Language of document : ECLI:EU:C:2011:297

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 12 de Maio de 2011 (1)

Processos apensos C‑483/09 e C‑1/10

Magatte Gueye

e

Valentín Salmerón Sánchez

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Audiencia Provincial de Tarragona (Espanha)]

«Decisão‑Quadro 2001/220/JAI – Estatuto da vítima em processo penal – Protecção da vítima – Determinação da pena – Medida imperativa de proibição de aproximação entre o autor e a vítima, aplicada como pena acessória – Tomada em conta da vontade da vítima – Mediação no âmbito do processo penal»





I –    Introdução

1.        A questão central dos presentes pedidos de decisão prejudicial consiste em saber se a Decisão‑quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal (2) se opõe a uma regulamentação nacional de acordo com a qual, nos casos de violência doméstica, é proibido ao autor do crime, de forma absoluta e imperativa, como pena acessória, o contacto com a vítima, mesmo nos casos em que a vítima pretenda retomar contacto com o autor.

II – Quadro jurídico

A –    Direito da União

2.        O artigo 2.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2001/220, intitulado «Respeito e reconhecimento», prevê o seguinte:

«Cada Estado‑Membro assegura às vítimas um papel real e adequado na sua ordem jurídica penal. Cada Estado‑Membro continua a envidar esforços no sentido de assegurar que, durante o processo, as vítimas sejam tratadas com respeito pela sua dignidade pessoal e reconhece os direitos e interesses legítimos da vítima, em especial no âmbito do processo penal.»

3.        O artigo 3.°, com o título «Audição e apresentação de provas», estabelece no n.° 1:

«Cada Estado‑Membro garante à vítima a possibilidade de ser ouvida durante o processo e de fornecer elementos de prova.»

4.        O artigo 8.° da Decisão‑Quadro 2001/220 diz respeito ao «Direito à protecção». Nos termos do seu n.° 1:

«Cada Estado‑Membro assegura um nível adequado de protecção às vítimas de crime e, se for caso disso, às suas famílias ou a pessoas em situação equiparada, nomeadamente no que respeita à segurança e protecção da vida privada, sempre que as autoridades competentes considerem que existe uma ameaça séria de actos de vingança ou fortes indícios de que essa privacidade poderá ser grave e intencionalmente perturbada.»

5.        Por último, o artigo 10.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2001/220 trata da mediação em processo penal:

«Cada Estado‑Membro esforça‑se por promover a mediação nos processos penais relativos a infracções que considere adequadas para este tipo de medida.»

B –    Direito nacional

6.        O órgão jurisdicional de reenvio observa que o direito espanhol relativo aos crimes cometidos no âmbito familiar endureceu consideravelmente nos últimos anos. Indica como razão de política criminal subjacente o facto de esses crimes constituírem um flagelo da sociedade, que exprime as relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres.

7.        Resulta das considerações expostas pelo órgão jurisdicional de reenvio que os tribunais, em todos os casos de violência doméstica, devem impor, nos termos do artigo 57.°, n.° 2, conjugado com o artigo 48.°, n.° 2, do Código Penal espanhol (Código Penal, a seguir «CP»), como pena acessória com vista à protecção da vítima, a proibição de o autor se aproximar da vítima ou de a contactar. A proibição de aproximação é imposta por um período que excede, entre um a cinco anos, o período de duração da pena de prisão aplicada ao autor, ou por um período superior a seis meses e inferior a cinco anos se a pena for de outra natureza. O órgão jurisdicional de reenvio indica que a referida proibição se aplica mesmo nos casos menos graves de violência doméstica, como no caso de bofetadas, arranhões, empurrões ou «ameaças verbais de pequena gravidade, sem exibição de armas».

8.        O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Código Penal impõe aos tribunais a aplicação desta pena acessória em todos os casos, sem que o juiz disponha de margem alguma – com excepção da sua duração – para apreciar as circunstâncias do caso concreto como, por exemplo, os interesses familiares em causa, a vontade da vítima ou a sua decisão de restabelecer a vida em comum.

9.        Por sua vez, o artigo 468.°, n.° 2, do CP pune a violação da proibição de aproximação como um crime de violação da pena. Segundo uma decisão do Tribunal Supremo, o consentimento da vítima em restabelecer a vida em comum não exclui o crime de violação da pena. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, existe mesmo a possibilidade teórica de ser instaurado um processo à vítima de um crime de âmbito familiar, por instigação dessa violação, ou por co‑autoria, em alguns casos de restabelecimento, de comum acordo, da vida em comum com o autor.

10.      A violação de uma proibição de aproximação imposta como pena acessória acarreta, segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, por força do artigo 84.°, n.° 3, do CP, a revogação de uma pena suspensa, mesmo quando o contacto tenha sido reatado com o consentimento da vítima.

11.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o artigo 87.°, alínea b), da Lei Orgânica do Poder Judicial (Ley Orgánica del Poder Judicial) proíbe a mediação em todos os casos de crimes ou infracções (incluindo meros insultos) cometidos no âmbito familiar.

III – Matéria de facto e processo principal

12.      O Juzgado de lo Penal N.° 23 de Barcelona condenou M. Gueye por um crime, não especificado no pedido de decisão prejudicial, cometido no âmbito familiar contra a sua companheira, com quem M. Gueye tinha mantido uma relação de casal durante os quatro anos precedentes. Por este motivo, o tribunal aplicou, designadamente, uma pena acessória que proibia o autor de se aproximar da vítima a uma distância inferior a 1000 metros e de a contactar durante um período de 17 meses.

13.      Poucos dias depois da condenação, M. Gueye retomou a vida em comum com a vítima, por vontade desta. Devido a esta violação da proibição de aproximação, o Juzgado de lo Penal N.° 1 Tarragona condenou‑o pelo crime de violação da pena nos termos do artigo 468.°, n.° 2, do CP. M. Gueye recorreu desta decisão para a Quarta Secção da Audiencia Provincial de Tarragona, o órgão jurisdicional de reenvio.

14.      Além disso, a Audiencia Provincial de Tarragona também tem de decidir sobre o recurso interposto da condenação de Valentín Salmerón Sánchez pelo crime de violação da pena aplicada nos termos do artigo 468.°, n.° 2, do CP. V. Salmerón Sánchez é acusado de não ter cumprido a pena acessória que lhe fora aplicada por uma decisão do Juzgado de Instrucción N.° 7 de Valencia Sobre la Mujer, de El Vendrell, de 6 de Novembro de 2006, que o proibia de se aproximar da vítima a uma distância inferior a 500 metros ou de a contactar durante um período de 16 meses.

15.      A causa da condenação na pena acessória aplicada pelo Juzgado de Instrucción N.° 7 de Valencia Sobre la Mujer, de El Vendrell, foi um crime não especificado no pedido de decisão prejudicial, cometido no âmbito familiar contra a sua companheira, com quem o segundo acusado manteve uma relação sentimental durante os seis anos precedentes.

16.      De acordo com a matéria de facto dada como provada pelos tribunais, em ambos os casos os acusados voltaram a viver com as vítimas, apesar da proibição de aproximação, poucos dias depois da condenação. Quando foram ouvidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, ambas as vítimas indicaram terem retomado voluntariamente a relação com os autores, sem terem sofrido qualquer pressão e sem necessidade económica; afirmaram terem sido essencialmente elas que tiveram a iniciativa de o fazer. Por este motivo, consideram ser vítimas indirectas das disposições penais espanholas, porque a vida em comum decorria sem problemas até à detenção dos acusados por violação da pena.

17.      O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade das disposições espanholas com a decisão‑quadro. Embora seja possível que a protecção da vítima exija uma proibição de aproximação mesmo contra a sua vontade, o órgão jurisdicional de reenvio não considera adequado que o direito espanhol, mesmo em casos de crimes menores, não deixe espaço para proceder à ponderação das circunstâncias do caso concreto e da vontade da vítima e imponha, sem excepção, a proibição de aproximação de pelo menos seis meses.

IV – Pedido de decisão prejudicial e processo perante o Tribunal de Justiça

18.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio, por decisão de 15 de Setembro de 2009, no processo relativo a M. Gueye, e por decisão de 18 de Dezembro de 2009, no processo relativo V. Salmerón Sánchez, apresentou ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, idênticas em ambos os processos:

1. O direito de a vítima ser compreendida, previsto no oitavo considerando da [D]ecisão‑[Q]uadro [2001/220/JAI], deve ser considerado um dever positivo de as autoridades estatais encarregadas da repressão e punição das condutas agressoras permitirem à vítima expressar a sua apreciação, reflexão e opinião acerca dos efeitos directos que podem ocorrer na sua vida por causa da imposição de penas ao agressor com o qual mantém uma relação familiar ou intensamente afectiva?

2. O artigo 2.° da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI deve ser interpretado no sentido de que o dever de os Estados reconhecerem os direitos e interesses legítimos da vítima obriga a ter em conta a sua opinião quando as consequências penais do processo puderem comprometer de forma nuclear e directa o exercício do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade e da vida privada e familiar?

3. O artigo 2.° da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI deve ser interpretado no sentido de que as autoridades estatais são obrigadas a ter em consideração a vontade livre da vítima quando esta se opõe à imposição ou à manutenção de uma medida de afastamento quando o agressor seja um membro da sua família, não se verifique a condição objectiva de risco de reincidência e se comprove um nível de capacidade pessoal, social, cultural e emocional que exclua a possibilidade de uma submissão ao agressor ou, pelo contrário, há que manter a referida medida em todos os casos devido à tipologia específica destes crimes?

4. O artigo 8.° da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI ao dispor que os Estados asseguram um nível adequado de protecção à vítima, deve ser interpretado no sentido de que permite a imposição generalizada e obrigatória de medidas de afastamento ou de proibição de comunicação como penas acessórias em todos os casos em que uma pessoa é vítima de crimes cometidos no âmbito familiar, tendo em atenção a tipologia específica destas infracções, ou, pelo contrário, o artigo 8.° exige que se efectue uma avaliação individualizada que permita identificar, caso a caso, o nível adequado de protecção tendo em conta os interesses em presença?

5. O artigo 10.° da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI deve ser interpretado no sentido de que permite excluir de forma generalizada a mediação nos processos penais relativos a crimes cometidos no âmbito familiar, tendo em vista a tipologia específica destes crimes, ou, pelo contrário, a mediação deve ser autorizada também neste tipo de processos, ponderando‑se caso a caso os interesses em presença?

19.      Por despacho do seu presidente de 24 de Setembro de 2010, o Tribunal de Justiça apensou os dois processos para efeitos da fase oral e do acórdão.

20.      Os Governos italiano, neerlandês, austríaco, polaco, sueco e espanhol e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas em ambos os processos; o Governo alemão apresentou observações escritas no processo C‑483/09. Os Governos alemão e espanhol, bem como o Governo do Reino Unido e a Comissão participaram na audiência de 3 de Março de 2011.

V –    Apreciação jurídica

A –    Direito de apresentar o pedido de decisão prejudicial e admissibilidade do pedido

21.      Não existem dúvidas quanto ao direito de a Audiencia Provincial de Tarragona apresentar o pedido de decisão prejudicial. A Decisão‑Quadro 2001/220, que deve ser interpretada no presente caso, foi adoptada com base nos artigos 31.° e 34.°, n.° 2, segunda frase, alínea b), UE. Segundo o artigo 35.° UE, um pedido de decisão prejudicial relativo a um acto jurídico adoptado com base nesses artigos pressupõe que o Estado‑Membro em causa aceitou a competência do Tribunal de Justiça. Esta restrição ao direito de apresentar um pedido de decisão prejudicial subsiste durante um período transitório mesmo após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa (3). A Espanha entregou uma declaração nesse sentido ao abrigo do artigo 35.°, n.° 3, alínea a), EU (4), nos termos da qual qualquer órgão jurisdicional espanhol cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno pode apresentar um pedido de decisão prejudicial.

22.      A Comissão indicou, sem que o contrário tenha sido afirmado, que, em direito espanhol, não cabe recurso posterior das decisões de uma Audiencia provincial que decide como tribunal de recurso das decisões de um Juzgado penal. Consequentemente, no presente caso, a Audiencia provincial é um órgão jurisdicional de última instância, na acepção do artigo 35.°, n.° 3, alínea a), UE, podendo por isso apresentar um pedido de decisão prejudicial.

23.      Os Governos espanhol e italiano defendem que os pedidos de decisão prejudicial são inadmissíveis, porque as questões submetidas não são decisivas para a resolução dos litígios nos processos principais.

24.      Segundo jurisprudência assente, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, compete exclusivamente ao tribunal nacional que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Assim, quando as questões prejudiciais submetidas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça, em princípio, é obrigado a decidir (5) e existe uma presunção de pertinência (6) das questões prejudiciais submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

25.      Só em determinados casos excepcionais se deve pressupor a inadmissibilidade de um pedido prejudicial, especialmente quando a interpretação solicitada das disposições do direito da União referidas nas questões desse pedido tenham manifestamente uma natureza hipotética (7). Nestas condições, as objecções formuladas por ambos os Governos não são convincentes.

26.      O Governo espanhol afirma que as questões submetidas são hipotéticas, pois o objecto do processo principal já não é a proibição de aproximação em si mesma, mas a sanção resultante da violação da proibição de aproximação, ou seja, o crime de violação da pena. Contudo, as questões do órgão jurisdicional de reenvio dizem apenas respeito à proibição de aproximação e não ao crime de violação da pena.

27.      No entanto, é ao órgão jurisdicional de reenvio que compete decidir se, na sua decisão sobre a violação da pena, deve, pode ou pretende ter em conta a admissibilidade das razões subjacentes à aplicação da proibição de aproximação. Por conseguinte, pode submeter ao Tribunal de Justiça questões sobre a interpretação da decisão‑quadro relativas a essa proibição de aproximação.

28.      O Governo italiano considera o reenvio prejudicial inadmissível, porque, se se admitir que o direito nacional é contrário à decisão‑quadro, uma interpretação desse direito conforme à referida decisão não é possível. Essa interpretação poderia ser feita, quando muito, contra legem. Com efeito, o próprio órgão jurisdicional de reenvio indica que, quando os requisitos do artigo 57.°, n.° 2, do CP estão preenchidos, é imperativo aplicar como pena acessória uma proibição de aproximação.

29.      O Tribunal de Justiça declarou por várias vezes que a obrigação de interpretação conforme do juiz nacional não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional (8). No entanto, parece‑me que ainda não está inequivocamente esclarecido se a proibição de interpretação contra legem resulta do próprio direito da União (9) ou se o direito da União simplesmente não se opõe a uma proibição nacional de uma interpretação contra legem (10). De qualquer forma, quando o direito nacional admita tal interpretação e esta não conduza a um agravamento da situação do indivíduo, como por exemplo no presente contexto, no qual essa interpretação não conduziria a uma justificação ou a um agravamento da pena, mas, pelo contrário, à sua supressão, não se entende por que razão o direito da União se lhe deveria opor.

30.      Contudo, não há que examinar esta questão de forma conclusiva no âmbito do presente processo, pois, pelo menos no âmbito da apreciação da admissibilidade no presente caso, não parece evidente que o órgão jurisdicional de reenvio – na hipótese de a decisão‑quadro se opor ao direito nacional – só possa chegar a um resultado conforme com a decisão‑quadro através de uma interpretação contra legem. De qualquer forma, há, com efeito, que exigir dos tribunais nacionais, na interpretação conforme com a decisão‑quadro, que considerem, sendo caso disso, o direito nacional no seu todo para apreciar em que medida este pode ser objecto de uma aplicação que não conduza a um resultado contrário ao pretendido pela decisão‑quadro (11).

31.      O próprio Governo espanhol indicou nas suas observações que a jurisprudência espanhola é totalmente contraditória quanto à questão de saber em que medida o direito espanhol deve admitir a tomada em consideração da vontade da vítima. Indicou que não se deve atribuir um «carácter vinculativo» às considerações do Tribunal Supremo sobre a punibilidade da violação da pena, das quais resulta que não se deve ter em conta a vontade da vítima ao sancionar a violação da proibição de aproximação. À luz destas considerações, não é evidente que uma interpretação conforme com a decisão‑quadro seja impossível e que, por isso, uma resposta do Tribunal de Justiça não tenha qualquer importância para o processo principal.

32.      Consequentemente, os pedidos de decisão prejudicial são admissíveis.

B –    Quanto à interpretação da Decisão‑Quadro 2001/220

33.      Com o seu pedido, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se a decisão‑quadro se opõe a uma regulamentação nacional que, para os crimes cometidos no âmbito familiar, prevê a aplicação imperativa de uma proibição de contacto entre o autor e a vítima, sem prever a possibilidade de, excepcionalmente, essa proibição não ser aplicada, depois da ponderação das circunstâncias do caso concreto e especialmente da vontade vítima de restabelecer a sua relação com o autor.

1.      Observação preliminar

34.      Uma regulamentação que prevê, em todos os casos de violência doméstica – como o órgão jurisdicional de reenvio salienta, mesmo no caso de ameaças verbais – a aplicação imperativa de uma proibição de aproximação como pena acessória, com uma duração que ultrapassa pelo menos um ano a duração da pena de prisão e, nos casos em que essa pena não existe, com uma duração de seis meses (12), é muito severa.

35.      O órgão jurisdicional de reenvio exprime claramente as suas dúvidas quanto à proporcionalidade de tal proibição de aproximação em situações em que a vítima, de forma autónoma e sem pressão, pretende retomar a vida em comum com o autor. Interroga‑se se não poderão existir situações excepcionais em que a aplicação dessa sanção pode violar os interesses e os direitos da vítima, para a protecção dos quais a sanção foi efectivamente concebida. A este respeito, a vítima pode invocar o seu direito fundamental ao respeito da sua privada e familiar. O Governo alemão adiantou na audiência o exemplo de um casal que explora uma empresa em conjunto. Neste caso, uma proibição de aproximação poderia conduzir ao desaparecimento da empresa e destruir mesmo a base de subsistência económica da vítima.

36.       Pelo contrário, o Governo espanhol salientou que estas regras estritas são necessárias para combater eficazmente o fenómeno da violência. Há igualmente que ter em conta que o legislador tem a obrigação de proteger as vítimas. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem salientou recentemente estas obrigações de protecção (13). Precisamente nos casos de violência doméstica, uma proibição de aproximação pode ser um meio útil que permite à vítima reorganizar a sua vida sem qualquer pressão directa. É verdade que o órgão jurisdicional de reenvio refere que, nos processos principais, as vítimas escolheram de forma perfeitamente autónoma retomar a vida em comum com os autores. No entanto, nos casos de violência doméstica nem sempre é fácil apurar se a vítima sofreu realmente qualquer pressão, uma vez que normalmente esta não é exercida em público.

37.      É evidente que uma proibição de aproximação aplicada com carácter imperativo se situa na encruzilhada entre a exigência de um procedimento estatal eficaz contra a violência doméstica, por um lado, e o respeito da vida privada e familiar e da autonomia privada, por outro. Esta problemática, esboçada aqui de forma sucinta, requer uma ponderação difícil dos diferentes interesses jurídicos.

38.      Para antecipar a conclusão do meu exame, em meu entender, esta difícil ponderação não pertence ao âmbito material de aplicação da Decisão‑Quadro 2001/220, sendo antes uma questão do direito constitucional nacional (14) e da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (15).

39.      Como irei expor a seguir, a decisão‑quadro tem apenas por objecto o estatuto da vítima em processo penal, ainda que este deva ser entendido em sentido amplo. Em contrapartida, não contém qualquer disposição sobre o direito penal, designadamente sobre a natureza e a medida das penas. A questão da adequação de uma medida de afastamento, como a prevista pelo direito penal espanhol, escapa assim ao seu âmbito de aplicação material.

40.      De seguida irei esclarecer, em primeiro lugar, o objectivo legislativo geral Decisão‑Quadro 2001/220, para depois examinar conjuntamente as duas primeiras questões, bem como, conjuntamente também, a terceira e a quarta questões. Terminarei com a resposta à quinta questão.

2.      O objectivo normativo geral da Decisão‑Quadro 2001/220

41.      Através da Decisão‑Quadro 2001/220 deviam ser estabelecidas normas mínimas para a protecção das vítimas da criminalidade (16). O seu objectivo geral consiste em proteger os interesses das vítimas de crimes nas diversas fases do processo penal e, para este efeito, garantir um nível elevado de protecção às vítimas do crime idêntico em toda a União, independentemente do Estado‑Membro em que se encontrem (17). Os Estados‑Membros devem assegurar que a vítima de um crime também beneficie de medidas de assistência que sejam adequadas para atenuar os efeitos do crime (18).

42.      Segundo o oitavo considerando da decisão‑quadro, é necessário aproximar as regras e práticas relativas ao estatuto e aos principais direitos da vítima, em especial o direito de ser tratada com respeito pela sua dignidade, o direito de informar e de ser informada, o direito de compreender e ser compreendida, o direito de ser protegida nas várias fases do processo e o direito a que seja considerada a desvantagem de residir num Estado Membro diferente daquele onde o crime foi cometido. Por outras palavras, a vítima de um crime não deve ser um mero objecto do processo, havendo antes que considerar e tratar – como o quinto considerando realça –«as necessidades da vítima […] de forma abrangente e articulada, evitando soluções parcelares ou incoerentes que possam dar lugar a uma vitimização secundária».

3.      Primeira e segunda questões prejudiciais

43.      Com as suas duas primeiras questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, por um lado, se o oitavo considerando da decisão‑quadro obriga os Estados‑Membros a ouvir a vítima relativamente aos efeitos de uma pena aplicada ao autor com quem mantém uma relação familiar e, por outro, se resulta do artigo 2.° da decisão‑quadro que os tribunais devem ter essa opinião em conta.

44.      Relativamente à primeira pergunta, há, antes de mais, que esclarecer que um considerando de uma decisão‑quadro não pode impor obrigações jurídicas aos Estados‑Membros (19). Os considerandos só podem ser tidos em conta para a interpretação das disposições dessa decisão.

45.      O artigo 3.° da decisão‑quadro prevê o direito de audição da vítima. Por força deste artigo, os Estados‑Membros garantem à vítima a possibilidade de ser ouvida ao longo do processo e de fornecer elementos de prova. Uma vez que o artigo 3.° prevê uma regra especial relativa ao direito de audição da vítima, na resposta à segunda questão o exame deste artigo deve ter prioridade sobre o exame do artigo 2.°, n.° 1. O oitavo considerando pode, quando muito, ter relevância para a concretização do artigo 3.°

a)      Artigo 3.° da decisão‑quadro

46.      Como o Tribunal de Justiça já declarou relativamente ao direito de as vítimas fornecerem elementos de prova previsto no artigo 3.°, os Estados‑Membros dispõem de um amplo poder de apreciação na execução dessa obrigação (20). Por isso, o nono considerando da decisão‑quadro salienta igualmente que os Estados‑Membros não são obrigados a conceder às vítimas um tratamento equivalente ao das partes no processo. Por conseguinte, são livres de determinar de que forma garantem o direito de audição das vítimas.

47.      Para respeitar os interesses da vítima e não a limitar a um mero papel passivo, este direito de audição não pode – aspecto para o qual o Governo alemão e Governo polaco chamam acertadamente a atenção – ser alvo de interpretação restrita. O direito da vítima a ser ouvida deve englobar, além da possibilidade de descrever como se produziram os factos, o direito de comunicar as suas apreciações e expectativas subjectivas relativamente ao processo. Em todo o caso, numa situação em que a vítima mantém uma relação pessoal estreita com o autor, tendo a proibição de aproximação, por conseguinte, consequências directas na sua vida privada e familiar, o princípio da audição deve ser igualmente alargado à opinião da própria vítima sobre a aplicação dessa medida.

48.      Para que o direito de audição não seja privado do seu efeito útil (21), a opinião da vítima deve poder ser tida em conta na fixação da pena. O Tribunal de Justiça fez referência ao conteúdo do artigo 2.°, n.° 1, ao interpretar o artigo 3.° (22) Nos termos daquele artigo, os Estados‑Membros asseguram às vítimas um papel real e adequado na sua ordem jurídica penal. O cumprimento desta exigência implica que o órgão jurisdicional deve examinar as declarações da vítima e que estas possam influenciar a decisão que o mesmo venha a proferir. Com efeito, a vítima não desempenharia um papel efectivo no processo se a sua opinião não devesse ser tida em conta.

49.      No entanto, não pode resultar do direito de audição – como, entre outros, o Governo austríaco acertadamente realça – que a aplicação da pena fique ao dispor da vítima. A questão da determinação da pena exige antes uma ponderação complexa, que deve ter em conta diversos aspectos, pelo que essa determinação não se pode basear apenas na vontade da vítima. Por este motivo, o tribunal competente não está vinculado pela apreciação da vítima. Outro argumento contra a atribuição de carácter vinculativo à vontade da vítima, invocado acertadamente pelo Governo sueco, consiste no facto de, nesse caso, existir o perigo de a vítima ser pressionada pelo autor para solicitar ao tribunal uma pena leve.

50.      Como irei expor na resposta à terceira e à quarta questões, a efectividade deste direito de audição não se opõe a uma pena mínima prevista pelo direito nacional. A possibilidade de tomada em conta da opinião da vítima, exigida pelo artigo 3.° da decisão‑quadro, só deve existir dentro dos limites das penas previstas pelo direito nacional.

b)      Conclusão intermédia

51.      Por conseguinte, há que reter, como conclusão intermédia, que o artigo 3.°, n.° 1, obriga os Estados‑Membros a conceder à vítima a possibilidade de manifestar a sua opinião sobre a aplicação de uma proibição de aproximação ao autor, com quem a vítima mantém uma relação familiar ou intensamente afectiva. Também deve existir a possibilidade de o órgão jurisdicional tomar em conta a opinião da vítima na sua decisão. No entanto, isto só é válido dentro dos limites das penas previstas pelo direito nacional. Há, contudo, que precisar que isto não significa que o órgão jurisdicional tenha de seguir a vontade da vítima. Na determinação da pena, não está vinculado pela opinião expressa pela vítima a este respeito.

4.      Terceira e quarta questões prejudiciais

52.      Com estas duas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se a decisão‑quadro se opõe a que deva ser imperativamente aplicada uma proibição de aproximação em todos os casos de violência domestica, sem a ponderação das circunstâncias do caso concreto e mesmo contra a vontade da vítima.

53.      Na sequência da anterior interpretação do artigo 3.°, examinarei em primeiro lugar o direito de audição.

a)      Artigo 3.° da decisão‑quadro

54.      No que se refere ao direito de audição examinado no âmbito das duas primeiras questões, poder‑se‑ia argumentar que o direito de audição só é efectivo quando a audição da vítima possa levar, em alguns casos, a que não seja imposta nenhuma proibição de aproximação. Segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, nos casos em que o autor seja condenado numa pena de prisão, a proibição de aproximação terá uma duração superior em, pelo menos um ano, à duração da pena de prisão, e, nos restantes casos, uma duração mínima de seis meses. A pedido do Tribunal de Justiça, o Governo espanhol explicou além disso na audiência que, em determinados casos, a duração mínima da proibição de aproximação pode ser reduzida para um mês.

55.      Em razão da duração mínima de seis meses da proibição de aproximação, o Governo do Reino Unido exprimiu na audiência as suas dúvidas quanto à conformidade da lei espanhola com a decisão‑quadro. O direito de audição da vítima sobre a sanção a aplicar ficaria esvaziado de sentido no que respeita a esses seis meses. Isto porque, independentemente das declarações da vítima, o tribunal não pode impor a proibição de aproximação por um período inferior a seis meses. No entender do Reino Unido, isto não corresponde à exigência de um direito de audição efectivo.

56.      Em minha opinião, o direito de audição não pode contudo produzir esse efeito na graduação das penas prevista no direito nacional. Sempre que uma vítima possa exprimir a sua opinião sobre proibição de aproximação e que a sua opinião possa ser tida em conta de forma geral dentro dos limites das penas previstas pelo direito nacional, as exigências do artigo 3.° são cumpridas.

57.      A imposição de exigências mais amplas ultrapassaria o conteúdo jurídico‑processual da decisão‑quadro. Isto porque o objectivo da decisão‑quadro consiste em garantir à vítima de um crime determinadas garantias processuais no processo penal. A questão de saber se um Estado‑Membro prevê penas acessórias e, se assim for, de que tipo, nos casos de crimes de violência doméstica, não está regulada na Decisão‑Quadro 2001/220. Esta decisão não regula de forma geral e exaustiva todos os aspectos da protecção da vítima, mas apenas especificamente os relativos às garantias processuais em processo penal. Por conseguinte, o direito de audição da vítima consagrado no artigo 3.° não pode ser objecto de uma interpretação de tal forma extensiva que influencie directamente os próprios limites das penas previstos no direito nacional.

58.      De resto, o Reino Unido também defendia que o direito material penal, e, por conseguinte, a natureza e a duração das penas, não estão incluídos no âmbito de aplicação da decisão‑quadro.

b)      Artigo 8.° da decisão‑quadro

59.      O Governo alemão deduz da expressão de «nível adequado de protecção às vítimas de crime» utilizada no artigo 8.° da decisão‑quadro que esta se opõe à obrigação imperativa de impor uma proibição de aproximação. Afirma que decorre da exigência da adequação da protecção das vítimas a obrigação de os Estados‑Membros ponderarem caso a caso a aplicação de uma proibição de aproximação.

60.      Esta interpretação não me convence. Antes de mais, o legislador da União não estava certamente a pensar numa protecção excessiva das vítimas quando exigiu, no artigo 8.°, n.° 1, uma protecção adequada das vítimas. No presente caso, a protecção que resulta da proibição de aproximação espanhola só poderia, no entanto, ser desadequada pelo facto de ser imposta contra a vontade da vítima, podendo por isso ser excessiva. A exigência de uma protecção adequada da vítima foi antes introduzida no artigo 8.° por receio de um nível de protecção demasiado reduzido.

61.      Independentemente disso, o artigo 8.° tem por objecto, como resulta do seu contexto normativo, a protecção da vítima no âmbito do processo quando exista «uma ameaça séria de actos de vingança ou fortes indícios de que [a vida privada] poderá ser grave e intencionalmente perturbada». Como o Governo sueco salienta com razão, estas medidas de protecção devem proteger a vítima, enquanto está a decorrer o processo, contra abusos ou pressões por parte do autor ou de uma pessoa próxima dele. O artigo 8.°, n.° 1, não diz respeito à protecção da vítima contra as consequências negativas resultantes das penas aplicadas ao autor.

62.      A favor desta interpretação pode igualmente invocar‑se, como o Governo neerlandês refere nas suas observações, a articulação desse n.° 1 com os outros números do artigo 8.° da Decisão‑Quadro 2001/220. Assim, nos termos do seu n.° 3, os Estados‑Membros devem garantir que o contacto entre vítimas e arguidos possa ser evitado nos edifícios dos tribunais, se possível, pondo à disposição espaços de espera separados. Com este mesmo objectivo, o artigo 8.°, n.° 4, da Decisão‑Quadro 2001/220 procura, além disso, evitar que a vítima seja confrontada com o autor ao prestar o seu depoimento na audiência pública. Todos estes aspectos dizem respeito ao processo penal.

63.      A garantia de protecção do artigo 8.° da Decisão‑Quadro 2001/220 tem, por outras palavras, uma função instrumental: deve garantir que a vítima possa exercer os restantes direitos processuais reconhecidos sem perigo, sem medo e, por conseguinte, de forma eficaz. Assim, o artigo 8.° está relacionado com os direitos da vítima no processo e não tem por objecto tratar exaustivamente todos os interesses imagináveis da vítima.

64.      Assim, também não resulta do artigo 8.° da decisão‑quadro que esta se opõe a uma proibição de aproximação imperativa prevista no direito penal nacional.

c)      Artigo 2.° da decisão‑quadro

65.      De acordo com o artigo 2.°, n.° 1, da decisão‑quadro, os Estados‑Membros asseguram que as vítimas tenham um papel real e adequado na sua ordem jurídica penal e reconhecem os direitos e interesses legítimos da vítima, em especial no âmbito do processo penal.

66.      O artigo 2.° não contém garantias concretas, estando antes formulado de forma claramente aberta. Por este motivo, o Tribunal de Justiça também tem até agora invocado este artigo para interpretar as garantias concretas respectivamente previstas nos artigos seguintes da decisão‑quadro (23). Por isso, a sua função consiste mais em delimitar de forma geral o programa da decisão‑quadro, antes de os artigos seguintes estabelecerem as obrigações concretas dos Estados‑Membros.

67.      De qualquer forma, não se pode deduzir do artigo 2.° que não é permitido, de modo imperativo e sem excepções, impor uma proibição de aproximação. A questão da proporcionalidade da obrigação de aplicar imperativamente uma proibição de aproximação diz respeito às penas previstas no direito penal material. A referência geral feita no artigo 2.° ao respeito e ao reconhecimento da vítima não pode levar a impor aos Estados‑Membros uma obrigação de realizar os interesses das vítimas no âmbito do direito penal, considerado no seu todo, incluindo o direito penal material, limitando‑se antes ao contexto do direito processual penal.

68.      É o que resulta do título e do contexto global das disposições da Decisão‑Quadro 2001/220. Todos os artigos que se seguem ao artigo 2.° servem para precisar e concretizar o estatuto da vítima precisamente no que se refere ao processo penal. Assim, estes dizem respeito, entre outros, à «Audição e apresentação de provas», ao «Direito de receber informações», às «Garantias de comunicação» e às «Despesas da vítima resultantes da sua participação no processo penal». Pelo contrário, não se encontram em nenhuma parte da decisão‑quadro aspectos explícitos da protecção da vítima que digam respeito ao direito penal material.

69.      A decisão‑quadro não contém declarações relativas ao direito penal material dos Estados‑Membros em geral nem à questão aqui retratada da punição do autor do crime. Da definição da vítima, dada no artigo 1.°, resulta igualmente que a decisão‑quadro não pretende atingir o direito penal material, tomando este antes como ponto de partida para os direitos processuais da vítima. De acordo com essa definição, a vítima é com efeito unicamente a pessoa que sofreu um dano causado por uma acção que infrinja a legislação penal de um Estado‑Membro.

70.      Também não se chega a um resultado diferente a partir da definição do conceito de «processo» igualmente constante do artigo 1.° e utilizada também no artigo 2.°, n.° 1. Este conceito é definido nesse artigo como «processo em sentido lato», que, independentemente do processo penal propriamente dito, inclui todos os contactos, relacionados com o seu processo, que a vítima estabeleça nessa qualidade com qualquer autoridade, etc., antes, durante ou após o processo penal. Daqui não se pode deduzir que a configuração das penas materiais faça parte do conceito de processo. O sexto e o décimo considerandos evocam a importância das medidas de apoio à vítima e das organizações de apoio à vítima antes e depois do processo penal.

71.      O facto de a decisão‑quadro se basear num entendimento amplo do conceito de processo é lógico, na medida em que aí se entende, de acordo com o artigo 1.°, por processo penal o processo penal na acepção do direito nacional respectivo. Uma vez que as ordens jurídicas nacionais são divergentes quanto ao que faz parte do processo penal em sentido próprio, a protecção da vítima em toda a União necessita que sejam incluídos aspectos directamente ligados ao processo penal, mas que o precedem ou lhe sucedem. A protecção da vítima também pode exigir que as medidas de apoio e assistência não terminem abruptamente com a pronúncia da sentença, mas subsistam por mais algum tempo.

72.      Nem mesmo um entendimento amplo do conceito de processo permite que se considere que uma sanção penal contra o autor constitui um aspecto processual. Precisamente, a decisão‑quadro não regula de forma geral e abrangente todos os aspectos da protecção da vítima, mas apenas os que dizem respeito às garantias processuais no processo penal. Por conseguinte, a decisão‑quadro não tem por objecto proteger a vítima contra consequências indirectas e extra‑processuais da pena aplicada ao autor por um tribunal.

73.      No caso de uma interpretação da decisão‑quadro que produzisse efeitos sobre as penas previstas pelo direito nacional, colocar‑se‑ia além disso a questão de saber se a União Europeia tem realmente competência legislativa para este efeito.

74.      Já em outras ocasiões indiquei (24) que há dúvidas quanto a saber se as questões da protecção da vítima no processo penal são realmente abrangidas pela base jurídica referida na Decisão‑Quadro 2001/220 (artigo 34.°, n.° 2, segunda frase, alínea b), UE). Isto é ainda mais válido quanto aos aspectos relativos às penas materiais e à determinação das penas examinados no presente processo. A ideia da interpretação conforme com o direito primário milita igualmente contra uma interpretação da decisão‑quadro no sentido de que a mesma engloba a proporcionalidade das penas.

75.      Para terminar, há ainda que abordar a Carta dos Direitos Fundamentais, referida em especial pela Comissão. No entender da Comissão, a obrigação, prevista no artigo 2.°, n.° 1, da decisão‑quadro, de os Estados‑Membros reconhecerem os direitos da vítima no processo penal também leva a que os Estados‑Membros concedam todos os direitos da Carta dos Direitos Fundamentais. Por conseguinte, a Comissão examina a possibilidade de uma violação do artigo 7.° da Carta, que prevê o direito ao respeito da vida privada e familiar.

76.      A este propósito, há que recordar que a decisão‑quadro deve efectivamente ser interpretada no sentido de que os direitos fundamentais devem ser tidos em conta (25). No entanto, isto só se aplica ao seu âmbito de aplicação material. Referi inicialmente que, nos presentes factos, podem estar em causa direitos fundamentais das vítimas. Mas, ao mesmo tempo, esta constatação não pode levar a que se atribua à decisão‑quadro um conteúdo que a mesma não tem.

77.      Assim, no presente caso também não está em causa a interpretação do artigo 51.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais, que delimita o seu âmbito de aplicação. Nos termos desta disposição, a Carta tem por destinatários os Estados‑Membros, «apenas quando apliquem o direito da União». Ainda não foi definitivamente esclarecido se isto deve ser entendido de forma estrita ou se inclui todos os casos em que o direito nacional esteja incluído no âmbito de aplicação do direito da União (26).

78.      Uma vez que a decisão‑quadro só tem por objecto os aspectos processuais penais da protecção da vítima e não as penas a aplicar ao autor, o presente caso não está incluído no âmbito de aplicação da decisão‑quadro nem, por conseguinte, do direito da União.

79.      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não tem competência para examinar se e em que medida as disposições do direito espanhol criticadas pelo órgão jurisdicional de reenvio relativas à aplicação de uma proibição de aproximação no caso de crimes de violência doméstica são conformes com os direitos fundamentais como, por exemplo, o dever de respeitar a vida privada e familiar(27). Este exame dos direitos fundamentais dos cidadãos em causa compete antes aos tribunais constitucionais nacionais e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

d)      Conclusão intermédia

80.      Assim, em resposta à terceira e à quarta questões prejudiciais há que declarar que a decisão‑quadro não diz respeito à proporcionalidade das penas a aplicar. Por isso, não se opõe a uma legislação nacional que prevê a aplicação, sem excepções e imperativa, de proibição de aproximação como pena acessória.

5.      Quinta questão prejudicial

81.      Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 10.° da Decisão‑Quadro 2001/220 deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados‑Membros a prever uma possibilidade de mediação igualmente para os crimes cometidos no âmbito familiar.

82.      Antes de mais, há que voltar a indicar que a decisão‑quadro só é vinculativa no que se refere ao seu objectivo, deixando às instâncias nacionais a escolha da forma e dos meios. Os Estados‑Membros dispõem de um amplo poder de apreciação quanto à sua implementação concreta (28).

83.      Em relação à possibilidade de uma mediação no âmbito do processo penal, o artigo 10.° da Decisão‑Quadro 2001/220 só exige a cada Estado‑Membro que promova a mediação nos processos penais relativos a infracções «que considere adequadas para este tipo de medida». Este critério aberto da adequação mostra claramente que a escolha das infracções em relação às quais é permitida a mediação cabe aos Estados‑Membros (29).

84.      Embora este poder de apreciação dos Estados‑Membros possa certamente ser limitado pela obrigação de utilizar critérios objectivos para determinar os tipos de infracção em questão (30), nada indica que isso não se verifique no caso em apreço. Com efeito, a possibilidade de mediação continua a ter um âmbito de aplicação substancial, ainda que seja excluída nos casos de crimes cometidos no âmbito familiar.

VI – Conclusão

85.      À luz das considerações precedentes, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma ao pedido de decisão prejudicial:

1)      O artigo 3.° da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, obriga os Estados‑Membros a conceder à vítima, numa situação em que a vítima mantém com o autor uma relação pessoal estreita e tendo a proibição de aproximação consequências directas na sua vida privada e familiar, a possibilidade de manifestar a sua opinião sobre a aplicação de uma medida de afastamento. Também deve existir a possibilidade de os tribunais tomarem em conta essa opinião da vítima na sua tomada de decisão. No entanto, isto só se aplica dentro dos limites das penas previstas pelo direito nacional e também não significa que o tribunal esteja vinculado pela vontade da vítima.

2)      A Decisão‑Quadro 2001/220 não trata da questão da adequação das penas aplicar. Por isso, não se opõe a uma legislação nacional que prevê a aplicação, sem excepções e imperativa, de uma proibição de aproximação como pena acessória.

3)      O artigo 10.° da Decisão‑Quadro 2001/220 deixa aos Estados‑Membros uma ampla margem de apreciação na determinação dos crimes para os quais prevê uma mediação. Esta disposição não obriga os Estados‑Membros a preverem uma mediação nos casos de crimes cometidos no âmbito familiar.


1 – Língua original: alemão.


2 –      JO 2001 L 82, p. 1, a seguir «Decisão‑Quadro 2001/220» ou «decisão‑quadro».


3 – Protocolo (N.° 36) relativo às disposições transitórias, JO 2010 C 83, p. 322.


4 – É o que resulta da informação relativa à data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 1 de Maio de 1999, JO L 114, p. 56.


5 – V., designadamente, acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 59), e de 13 de Julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, Colect., p. I‑6619, n.° 26).


6 – Acórdãos de 16 de Junho de 2005, Pupino (C‑105/03, Colect., p. I‑5285, n.° 30), de 9 de Outubro de 2008, Katz (C‑404/07, Colect., p. I‑7607, n.° 31), e de 22 de Abril de 2010, Dimos Agiou Nikolaou (C‑82/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 15).


7 – Jurisprudência assente, v. apenas acórdão de 31 de Março de 2011, Schröder (C‑450/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 17).


8 – V. acórdãos de 4 de Julho de 2006, Adeneler e o. (C‑212/04, Colect., p. I‑6057, n.° 110), de 15 de Abril de 2008, Impact (C‑268/06, Colect., p. I‑2483, n.° 100), e de 16 de Julho de 2009, Mono Car Styling (C‑12/08, Colect., p. I‑6653, n.° 61).


9 – O acórdão Pupino (referido na nota 6, n.° 47) parece apontar neste sentido.


10 – Os acórdãos referidos nas notas anteriores, que referem a obrigação de interpretação conforme resultante do direito da União, advogam a favor da primeira variante.


11 – Acórdão Pupino (já referido na nota 6, n.° 47).


12 – Neste caso, a duração máxima da medida de afastamento é de cinco anos.


13 – Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 9 de Junho de 2009, (queixa n.° 33401/02).


14 – O Tribunal Constitucional espanhol declarou, por acórdão de 7 de Outubro de 2010, proferido no processo STC 60/2010, a constitucionalidade das disposições espanholas.


15 – Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950.


16 – V. terceiro considerando da decisão‑quadro, que menciona as conclusões do Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de Outubro de 1999.


17 – V. quarto considerando da decisão‑quadro.


18 – V. terceiro e sexto considerandos da decisão‑quadro.


19 – V., designadamente, acórdão de 25 de Fevereiro de 2010, Müller Fleisch (C‑562/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 40 e jurisprudência referida).


20 – Acórdão Katz (referido na nota 6, n.° 46); v., a este respeito, igualmente as minhas conclusões proferidas neste processo.


21 – V., neste sentido, acórdão Katz (referido na nota 6, n.° 47).


22 – Acórdão Katz (referido na nota 6, n.° 47).


23 – Acórdão Katz (referido na nota 6, n.° 47) e Pupino (referido na nota 6, n.° 52).


24 – V. as minhas conclusões, de 11 de Novembro de 2004, apresentadas no processo Pupino (C‑105/03, Colect., p. I‑5285, n.° 48 e segs.), bem como as minhas conclusões, de 8 de Março de 2007, apresentadas no processo Dell´Orto (C‑467/05, I‑5557, n.° 40).


25 – Acórdão Katz (referido na nota 6, n.° 48).


26 – V., a este respeito, conclusões do advogado‑geral Y. Bot, de 5 de Abril de 2011, apresentadas no processo Scattolon (C‑108/10, ainda não publicado na Colectânea, n.os 110 a 121).


27 – V., a este respeito, acórdão de 30 de Setembro de 1987, Demirel (12/86, Colect., p. 3719, n.° 28); acórdão de 18 de Junho de 1991, ERT (260/89, Colect., p. I‑2925, n.° 42).


28 – Acórdãos Katz (referido na nota 6, n.° 46), e de 21 de Outubro de 2010, Eredics (C‑205/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 38).


29 – Acórdão Eredics (referido na nota 28, n.° 37).


30 – V., neste sentido, acórdão Eredics (referido na nota 28, n.° 39).