Language of document : ECLI:EU:C:2017:981

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

20 de dezembro de 2017 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 56.o TFUE — Artigo 58.o, n.o 1, TFUE — Serviços no domínio dos transportes — Diretiva 2006/123/CE — Serviços no mercado interno — Diretiva 2000/31/CE — Diretiva 98/34/CE — Serviços da sociedade da informação — Serviço de intermediação que permite, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar deslocações urbanas — Exigência de uma autorização»

No processo C‑434/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.o 3 de Barcelona, Espanha), por decisão de 16 de julho de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de agosto de 2015, no processo

Asociación Profesional Elite Taxi

contra

Uber Systems Spain,SL,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, J. L. da Cruz Vilaça, J. Malenovský e E. Levits, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet, D. Šváby (relator), C. Lycourgos, M. Vilaras e E. Regan, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 29 de novembro de 2016,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação da Asociación Profesional Elite Taxi, por M. Balagué Farré e D. Salmerón Porras, abogados, e por J. A. López‑Jurado González, procurador,

–        em representação da Uber Systems Spain, SL, por B. Le Bret e D. Calciu, avocats, e por R. Allendesalazar Corcho, J. J. Montero Pascual, C. Fernández Vicién e I. Moreno‑Tapia Rivas, abogados,

–        em representação do Governo espanhol, por M. A. Sampol Pucurull e A. Rubio González, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo estónio, por N. Grünberg, na qualidade de agente,

–        em representação da Irlanda, por E. Creedon, L. Williams e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por A. Carroll, barrister,

–        em representação do Governo helénico, por M. Michelogiannaki, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por D. Colas, G. de Bergues e R. Coesme, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por H. Stergiou e M. Bulterman, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo finlandês, por S. Hartikainen, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por É. Gippini Fournier, F. Wilman, J. Hottiaux e H. Tserepa‑Lacombe, na qualidade de agentes,

–        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por C. Zatschler, Ø. Bø e C. Perrin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de maio de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 56.o TFUE, do artigo 1.o da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 1998, L 204, p. 37), conforme alterada pela Diretiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998 (JO 1998, L 217, p. 18) (a seguir «Diretiva 98/34), do artigo 3.o da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrónico») (JO 2000, L 178, p. 1), bem como dos artigos 2.o e 9.o da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO 2006, L 376, p. 36).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a Asociación Profesional Elite Taxi (a seguir «Elite Taxi»), uma associação profissional de motoristas da táxis da cidade de Barcelona (Espanha), e a Uber Systems Spain, SL, sociedade ligada à Uber Technologies Inc., a propósito da prestação, por esta, através de uma aplicação para telefones inteligentes, de um serviço remunerado que estabelece a ligação entre motoristas não profissionais que utilizam o respetivo veículo e pessoas que pretendam efetuar deslocações urbanas, sem dispor de licenças e autorizações administrativas.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 98/34

3        O artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34 dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva entende‑se por:

[…]

2)      “serviço”: qualquer serviço da sociedade da informação, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via eletrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços.

Para efeitos da presente definição, entende‑se por:

–        “à distância”: um serviço prestado sem que as partes estejam simultaneamente presentes,

–        “por via eletrónica”: um serviço enviado desde a origem e recebido no destino através de instrumentos eletrónicos de processamento (incluindo a compressão digital) e de armazenamento de dados, que é inteiramente transmitido, encaminhado e recebido por cabo, rádio, meios óticos ou outros meios eletromagnéticos,

–        “mediante pedido individual de um destinatário de serviços”: um serviço fornecido por transmissão de dados mediante pedido individual.

No anexo V figura uma lista indicativa dos serviços não incluídos nesta definição.

[…]»

4        Em conformidade com os artigos 10.o e 11.o da Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 2015, L 241, p. 1), a Diretiva 98/34 foi revogada em 7 de outubro de 2015. Todavia, esta última diretiva continua aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal.

 Diretiva 2000/31

5        O artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2000/31 prevê que, para efeitos desta diretiva, os «serviços da sociedade da informação» devem ser entendidos como os serviços na aceção do n.o 2 do artigo 1.o da Diretiva 98/34.

6        O artigo 3.o, n.os 2 e 4, da Diretiva 2000/31 prevê:

«2.      Os Estados‑Membros não podem, por razões que relevem do domínio coordenado, restringir a livre circulação dos serviços da sociedade da informação provenientes de outro Estado‑Membro.

[…]

4.      Os Estados‑Membros podem tomar medidas derrogatórias do n.o 2 em relação a determinado serviço da sociedade da informação, caso sejam preenchidas as seguintes condições:

a)      As medidas devem ser:

i)      Necessárias por uma das seguintes razões:

–        defesa da ordem pública, em especial prevenção, investigação, deteção e incriminação de delitos penais, incluindo a proteção de menores e a luta contra o incitamento ao ódio fundado na raça, no sexo, na religião ou na nacionalidade, e contra as violações da dignidade humana de pessoas individuais,

–        proteção da saúde pública,

–        segurança pública, incluindo a salvaguarda da segurança e da defesa nacionais,

–        defesa dos consumidores, incluindo os investidores;

ii)      Tomadas relativamente a um determinado serviço da sociedade da informação que lese os objetivos referidos na subalínea i), ou que comporte um risco sério e grave de prejudicar esses objetivos;

iii)      Proporcionais a esses objetivos;

b)      Previamente à tomada das medidas em questão, e sem prejuízo de diligências judiciais, incluindo a instrução e os atos praticados no âmbito de uma investigação criminal, o Estado‑Membro deve:

–        ter solicitado ao Estado‑Membro a que se refere o n.o 1 que tome medidas, sem que este último as tenha tomado ou se estas se tiverem revelado inadequadas,

–        ter notificado à Comissão e ao Estado‑Membro a que se refere o n.o 1 a sua intenção de tomar tais medidas.»

 Diretiva 2006/123

7        Nos termos do considerando 21 da Diretiva 2006/123, «[o]s serviços, incluindo os transportes urbanos, os táxis e as ambulâncias, bem como os serviços portuários, devem ser excluídos do âmbito de aplicação [desta] diretiva».

8        O artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da referida diretiva prevê que esta não se aplica aos serviços no domínio dos transportes, incluindo os serviços portuários, abrangidos pelo âmbito do título V da da parte III do Tratado CE, atual título VI da parte III do Tratado FUE.

9        O capítulo III da Diretiva 2006/123, intitulado «Liberdade de estabelecimento dos prestadores», inclui o seu artigo 9.o, que dispõe, no n.o 1:

«Os Estados‑Membros só podem subordinar a um regime de autorização o acesso a uma atividade de serviços e o seu exercício se forem cumpridas as condições seguintes:

a)      O regime de autorização não ser discriminatório em relação ao prestador visado;

b)      A necessidade de um regime de autorização ser justificada por uma razão imperiosa de interesse geral;

c)      O objetivo pretendido não poder ser atingido através de uma medida menos restritiva, nomeadamente porque um controlo a posteriori significaria uma intervenção demasiado tardia para se poder obter uma real eficácia.»

10      O capítulo IV desta diretiva, intitulado «Livre circulação de serviços», inclui o seu artigo 16.o, que fixa as modalidades que permitem aos prestadores de serviços prestar serviços num Estado‑Membro diferente daquele em que se encontram estabelecidos.

 Direito espanhol

11      Na aglomeração de Barcelona, os serviços de táxi são regidos pela Ley 19/2003 del Taxi (Lei n.o 19/2003, dos serviços de taxi), de 4 de julho de 2003 (DOGC n.o 3926, de 16 de julho de 2003, e BOE n.o 189, de 8 de agosto de 2003) e pelo Regulamento Metropolitano del Taxi (Regulamento sobre os serviços de táxi da aglomeração de Barcelona), adotado pelo Consell Metropolitá de l’Entitat Metropolitana de Transport de Barcelona (Conselho Diretor do Organismo de Gestão dos Transportes da Aglomeração de Barcelona, Espanha), de 22 de julho de 2004.

12      Nos termos do artigo 4.o da referida lei:

«1.      A prestação do serviço de táxi urbano está sujeita à obtenção prévia da licença que habilita o titular para cada um dos veículos destinados a exercer essa atividade.

2.      As licenças que habilitam à prestação de serviços de táxi urbano são emitidas pelas câmaras municipais ou pelas autarquias locais competentes no território onde a atividade deve ser exercida.

3.      A prestação do serviço de táxi interurbano está sujeita à obtenção da autorização correspondente, emitida pelo Ministério do Governo Regional competente em matéria de transportes.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      Em 29 de outubro de 2014, a Elite Taxi interpôs recurso no Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.o 3 de Barcelona, Espanha), destinado a obter a declaração, por esse órgão jurisdicional, de que as atividades da Uber Systems Spain violam a legislação em vigor e constituem práticas enganosas e atos de concorrência desleal, na aceção da Ley 3/1991 de Competencia Desleal (Lei n.o 3/1991, da concorrência desleal), de 10 de janeiro de 1991. A Elite Taxi pede igualmente que a Uber Systems Spain seja condenada a cessar o seu comportamento desleal que consiste em dar assistência a outras sociedades do grupo, através da prestação de serviços de reserva mediante pedidos efetuados por intermédio de aparelhos móveis e pela Internet. Por último, pede que o referido órgão jurisdicional proíba a Uber Systems Spain de exercer esta atividade no futuro.

14      O Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.o 3 de Barcelona) apurou previamente que, embora a Uber Systems Spain exerça a sua atividade em Espanha, essa atividade está ligada a uma plataforma internacional, o que justifica que a ação desta sociedade seja apreciada ao nível da União Europeia. Em seguida, salienta que nem a Uber Systems Spain nem os motoristas não profissionais dos veículos em causa dispõem das licenças e das credenciais previstas no Regulamento sobre os serviços de táxi da aglomeração de Barcelona, de 22 de julho de 2004.

15      Para verificar se as práticas da Uber Systems Spain e das sociedades a ela ligadas (a seguir, em conjunto, «Uber») podem ser qualificadas de desleais e violar as regras espanholas da concorrência, o Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.o 3 de Barcelona) considera necessário verificar se a Uber deve ou não dispor de uma autorização administrativa prévia. Para tal, há que determinar se os serviços prestados por esta sociedade devem ser considerados serviços de transporte, serviços próprios da sociedade da informação ou uma combinação destes dois tipos de serviços. Com efeito, da qualificação que lhes for dada depende a possibilidade de lhe impor a obrigação de dispor de autorização administrativa prévia. Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, se o serviço em causa estiver abrangido pela Diretiva 2006/123 ou pela Diretiva 98/34, as práticas da Uber não podem ser consideradas desleais.

16      Para esse efeito, este órgão jurisdicional indica que a Uber entra em contacto ou estabelece a ligação com motoristas não profissionais a quem fornece uma série de ferramentas informáticas — uma interface — que lhes permite, por sua vez, estabelecer a ligação com pessoas que pretendam efetuar trajetos urbanos e que acedem ao serviço através da aplicação informática com o mesmo nome. A atividade da Uber é exercida com fim lucrativo.

17      O órgão jurisdicional de reenvio observa igualmente que o pedido de decisão prejudicial não incide, de maneira nenhuma, sobre esses elementos de facto, mas unicamente sobre a qualificação jurídica do serviço em causa.

18      Por conseguinte, o Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.o 3 de Barcelona) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Na medida em que o artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da [Diretiva 2006/123] exclui as atividades de transportes do seu âmbito de aplicação, deve a atividade de intermediação entre o proprietário de um automóvel e a pessoa que necessita de se deslocar dentro de uma cidade, atividade exercida com caráter lucrativo pela [Uber Systems Spain] e no âmbito da qual esta última gere os meios informáticos — interface e aplicação de programas informáticos (“telefones inteligentes e plataformas tecnológicas” segundo as palavras da [Uber Systems Spain]) — que permitem estabelecer a ligação entre essas pessoas, ser considerada uma mera atividade de transporte, ou deve ser considerada um serviço eletrónico de intermediação ou um serviço próprio da sociedade da informação na aceção do artigo 1.o, [ponto] 2, da [Diretiva 98/34]?

2)      Para a determinação da natureza jurídica desta atividade, poderá esta ser parcialmente considerada um serviço da sociedade de informação e, sendo esse o caso, deverá o serviço eletrónico de intermediação beneficiar do princípio da livre prestação de serviços consoante este é garantido pelo direito da União, mais precisamente pelo artigo 56.o TFUE e pelas Diretivas [2006/123] e [2000/31]?

3)      Se o Tribunal de Justiça considerar que o serviço prestado pela [Uber Systems Spain] não é um serviço de transporte e que, por conseguinte, está abrangido pelos casos referidos na Diretiva 2006/123, deve o conteúdo do artigo 15.o da Lei [n.o 3/1991] da concorrência desleal [de 10 de janeiro de 1991] — relativo à violação das normas que regulam a atividade da concorrência — considerar‑se contrário à Diretiva 2006/123, concretamente ao seu artigo 9.o, relativo à liberdade de estabelecimento e aos regimes de autorização, na medida em que remete para leis ou disposições jurídicas internas sem ter em conta o facto de que o regime de obtenção das licenças, autorizações ou credenciais não pode, em caso nenhum, ser restritivo ou desproporcionado, ou seja, não pode constituir um entrave não razoável ao princípio da liberdade de estabelecimento?

4)      Caso se confirme que a Diretiva [2000/31] é aplicável ao serviço prestado pela [Uber Systems Spain], constituem as restrições às quais um Estado‑Membro sujeita a livre prestação do serviço eletrónico de intermediação a partir de outro Estado‑Membro, sob a forma de exigência de uma autorização ou de uma licença, ou sob forma de ordem judicial de cessação da prestação do serviço eletrónico de intermediação decretada com base na legislação nacional em matéria de concorrência desleal, medidas válidas que consubstanciem exceções ao disposto no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva [2000/31], por força do disposto no artigo 3.o, n.o 4, da mesma diretiva?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

19      A Elite Taxi considera que a qualificação jurídica do serviço prestado pela Uber não é da competência do Tribunal de Justiça, uma vez que essa qualificação pressupõe pronunciar‑se sobre questões de facto. Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça não é competente para responder às questões submetidas.

20      A este respeito, há que recordar que o órgão jurisdicional de reenvio afirmou claramente, como resulta do n.o 17 do presente acórdão, que as suas questões de modo nenhum incidem sobre o apuramento ou sobre a apreciação dos factos do litígio no processo principal, mas unicamente sobre a qualificação jurídica do serviço em causa. Ora, a qualificação, à luz do direito da União, de factos apurados pelo referido órgão jurisdicional pressupõe uma interpretação desse direito, para a qual, no âmbito do procedimento previsto no artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça é competente (v., neste sentido, acórdão de 3 de dezembro de 2015, Banif Plus Bank, C‑312/14, EU:C:2015:794, n.os 51 e 52).

21      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer das questões submetidas.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

22      Os Governos espanhol, helénico, neerlandês, polaco e finlandês, a Comissão Europeia e o Órgão de Fiscalização da EFTA salientam o caráter insuficientemente preciso da decisão de reenvio tanto no que se refere à legislação nacional aplicável como à natureza das atividades em causa no processo principal.

23      A este respeito, há que recordar que o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.o 25).

24      Quanto a este último ponto, a necessidade de obter uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige, como resulta do artigo 94.o, alíneas a) e b), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que essas questões assentam (v. acórdão de 10 de maio de 2017, de Lobkowicz, C‑690/15, EU:C:2017:355, n.o 28).

25      Além disso, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as informações fornecidas nas decisões de reenvio servem não apenas para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis mas igualmente para dar aos Governos dos Estados‑Membros e aos outros interessados a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Incumbe ao Tribunal de Justiça providenciar por que esta possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta que, nos termos desse artigo, só as decisões de reenvio são notificadas às partes interessadas, acompanhadas de uma tradução na língua oficial de cada Estado‑Membro, com exclusão dos autos do processo nacional eventualmente transmitidos ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio (acórdão de 4 de maio de 2016, Pillbox 38, C‑477/14, EU:C:2016:324, n.o 26 e jurisprudência aí referida).

26      No caso em apreço, há que salientar que a decisão de reenvio, sem dúvida sucinta na sua referência às disposições nacionais pertinentes, permite, todavia, identificar aquelas que são suscetíveis de se aplicar à prestação do serviço em causa no processo principal, das quais resulta que, para esse efeito, é necessária a obtenção de uma licença ou de uma autorização administrativa prévia.

27      Do mesmo modo, a descrição do serviço prestado pela Uber, feita pelo órgão jurisdicional de reenvio, cujo conteúdo é recordado no n.o 16 do presente acórdão, apresenta um grau de precisão suficiente.

28      Por último, em conformidade com o artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo, o órgão jurisdicional de reenvio expõe de maneira precisa as razões que o conduziram a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União.

29      Por conseguinte, há que considerar que a decisão de reenvio contém os elementos de facto e de direito que permitem ao Tribunal de Justiça fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio e aos interessados tomar utilmente posição sobre as questões submetidas ao Tribunal de Justiça, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 25 do presente acórdão.

30      Além disso, o Governo polaco tem dúvidas sobre a aplicabilidade, designadamente, do artigo 56.o TFUE ao presente processo, por a situação em causa no processo principal ser puramente interna.

31      Todavia, resulta da decisão de reenvio, em especial dos elementos recordados no n.o 14 do presente acórdão, bem como dos outros elementos dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, que o serviço em causa no processo principal é prestado por intermédio de uma sociedade que opera a partir do território de outro Estado‑Membro, a saber, o Reino dos Países Baixos.

32      Nestas circunstâncias, há que considerar que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

33      Com as suas primeira e segunda questões, que há que tratar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 56.o TFUE, conjugado com o artigo 58.o, n.o 1, TFUE, bem como o artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da Diretiva 2006/123 e o artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34, para o qual remete o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2000/31, devem ser interpretados no sentido de que um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal, que tem por objeto, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser qualificado de «serviço no domínio dos transportes», na aceção do artigo 58.o, n.o 1, TFUE, e, por conseguinte, excluído do âmbito de aplicação do artigo 56.o TFUE, da Diretiva 2006/123 e da Diretiva 2000/31, ou se, pelo contrário, esse serviço está abrangido pelo artigo 56.o TFUE, pela Diretiva 2006/123 e pela Diretiva 2000/31.

34      A este respeito, há que salientar que um serviço de intermediação que consiste em estabelecer a ligação entre um motorista não profissional que utiliza o seu próprio veículo e uma pessoa que pretenda efetuar uma deslocação urbana constitui, em princípio, um serviço distinto do serviço de transporte que consiste num ato físico de deslocação de pessoas ou de bens de um local para outro através de um veículo. Há que acrescentar que cada um destes serviços, considerado isoladamente, é suscetível de estar relacionado com diferentes diretivas ou disposições do Tratado FUE relativas à livre prestação de serviços, como refere o órgão jurisdicional de reenvio.

35      Assim, um serviço de intermediação que permite a transmissão, através de uma aplicação para telefone inteligente, de informações relativas à reserva do serviço de transporte entre o passageiro e o motorista não profissional que utiliza o seu próprio veículo, que efetuará o transporte, preenche, em princípio, os critérios para ser qualificado de «serviço da sociedade da informação» na aceção do artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34, para o qual remete o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2000/31. Este serviço de intermediação constitui, como prevê a definição constante da referida disposição da Diretiva 98/34, «qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via eletrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços».

36      Em contrapartida, um serviço de transporte urbano não coletivo, como um serviço de táxi, deve ser qualificado de «serviço no domínio dos transportes», na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da Diretiva 2006/123, lido à luz do seu considerando 21 (v., neste sentido, acórdão de 1 de outubro de 2015, Trijber et Harmsen, C‑340/14 e C‑341/14, EU:C:2015:641, n.o 49).

37      Todavia, há que salientar que um serviço como o que está em causa no processo principal não se limita a um serviço de intermediação que consiste em estabelecer a ligação, através de uma aplicação para telefones inteligentes, entre um motorista não profissional que utiliza o seu próprio veículo e uma pessoa que pretenda efetuar uma deslocação urbana.

38      Com efeito, numa situação como a referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, em que o transporte de passageiros é assegurado por motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo, o prestador desse serviço de intermediação cria, ao mesmo tempo, uma oferta de serviços de transporte urbano, que torna acessível designadamente através de ferramentas informáticas, tais como a aplicação em causa no processo principal, e cujo funcionamento geral organiza a favor das pessoas que pretendam recorrer a essa oferta para efeitos de deslocação urbana.

39      A este respeito, resulta das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça que o serviço de intermediação da Uber assenta na seleção de motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo, aos quais esta sociedade fornece uma aplicação sem a qual, por um lado, esses motoristas não seriam levados a prestar serviços de transporte e, por outro, as pessoas que pretendessem efetuar uma deslocação urbana não teriam acesso aos serviços dos referidos motoristas. Além disso, a Uber exerce uma influência decisiva nas condições da prestação desses motoristas. Quanto a este último ponto, verifica‑se, designadamente, que a Uber fixa, através da aplicação com o mesmo nome, pelo menos, o preço máximo da corrida, cobra esse preço ao cliente antes de entregar uma parte ao motorista não profissional do veículo e exerce um certo controlo sobre a qualidade dos veículos e dos respetivos motoristas assim como sobre o comportamento destes últimos, que pode implicar, sendo caso disso, a sua exclusão.

40      Por conseguinte, há que considerar que este serviço de intermediação faz parte integrante de um serviço global cujo elemento principal é um serviço de transporte e, portanto, corresponde à qualificação, não de «serviço da sociedade da informação» na aceção do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 98/34, para o qual remete o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2000/31, mas sim de «serviço no domínio dos transportes», na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da Diretiva 2006/123.

41      Além disso, tal qualificação é corroborada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual o conceito de «serviço no domínio dos transportes» abrange não só os serviços de transporte, considerados enquanto tais, mas também qualquer serviço intrinsecamente ligado a um ato físico de movimentar pessoas ou mercadorias de um local para outro através de um meio de transporte [v., neste sentido, acórdão de 15 de outubro de 2015, Grupo Itevelesa e o., C‑168/14, EU:C:2015:685, n.os 45 e 46, e parecer 2/15 (Acordo de Comércio Livre com Singapura), de 16 de maio de 2017, EU:C:2017:376, n.o 61].

42      Consequentemente, a Diretiva 2000/31 não é aplicável a um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal.

43      Tal serviço, na medida em que está abrangido pela qualificação de «serviço no domínio dos transportes», também não está sujeito à Diretiva 2006/123, uma vez que, de acordo com o artigo 2.o, n.o 2, alínea d), desta diretiva, esse tipo de serviços é um dos expressamente excluídos do âmbito de aplicação da referida diretiva.

44      Além disso, o serviço de intermediação em causa no processo principal, uma vez que corresponde à qualificação de «serviço no domínio dos transportes», está abrangido não pelo artigo 56.o TFUE, relativo à livre prestação de serviços em geral, mas sim pelo artigo 58.o, n.o 1, TFUE, disposição específica nos termos da qual «[a] livre prestação de serviços em matéria de transportes é regulada pelas disposições constantes do título relativo aos transportes» (v., neste sentido, acórdão de 22 de dezembro de 2010, Yellow Cab Verkehrsbetrieb, C‑338/09, EU:C:2010:814, n.o 29 e jurisprudência aí referida).

45      Assim, a aplicação do princípio da livre prestação de serviços deve ser realizada, segundo o Tratado FUE, através da execução da política comum dos transportes (acórdão de 22 de dezembro de 2010, Yellow Cab Verkehrsbetrieb, C‑338/09, EU:C:2010:814, n.o 30 e jurisprudência aí referida).

46      Ora, há que observar que os serviços de transporte urbano não coletivo e os serviços a eles indissociavelmente ligados, como o serviço de intermediação em causa no processo principal, não deram origem à adoção, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, de regras comuns ou de outras medidas, com fundamento no artigo 91.o, n.o 1, TFUE.

47      Daí resulta que, no estado atual do direito da União, cabe aos Estados‑Membros regulamentar, no respeito das regras gerais do Tratado FUE, as condições de prestação dos serviços de intermediação como o que está em causa no processo principal.

48      Por conseguinte, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 56.o TFUE, conjugado com o artigo 58.o, n.o 1, TFUE, bem como o artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da Diretiva 2006/123 e o artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34, para o qual remete o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2000/31, devem ser interpretados no sentido de que um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal, que tem por objeto, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser considerado indissociavelmente ligado a um serviço de transporte e, por conseguinte, abrangido pela qualificação de «serviço no domínio dos transportes», na aceção do artigo 58.o, n.o 1, TFUE. Tal serviço deve, portanto, ser excluído do âmbito de aplicação do artigo 56.o TFUE, da Diretiva 2006/123 e da Diretiva 2000/31.

49      Tendo em conta a resposta dada à primeira e segunda questões, não há que responder à terceira e quarta questões, que são submetidas para o caso de a Diretiva 2006/123 ou a Diretiva 2000/31 lhes ser aplicável.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 56.o TFUE, conjugado com o artigo 58.o, n.o 1, TFUE, bem como o artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno, e o artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação, conforme alterada pela Diretiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998, para o qual remete o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrónico»), devem ser interpretados no sentido de que um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal, que tem por objeto, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser considerado indissociavelmente ligado a um serviço de transporte e, por conseguinte, abrangido pela qualificação de «serviço no domínio dos transportes», na aceção do artigo 58.o, n.o 1, TFUE. Tal serviço deve, portanto, ser excluído do âmbito de aplicação do artigo 56.o TFUE, da Diretiva 2006/123 e da Diretiva 2000/31.

Assinaturas


*      Língua de processo: espanhol.