Language of document : ECLI:EU:C:2015:384

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

11 de junho de 2015 (*)

«Reenvio prejudicial ― Regulamento (CE) n.° 1346/2000 ― Artigos 2.°, alínea g), 3.°, n.° 2, e 27.° ― Regulamento (CE) n.° 44/2001 ― Cooperação judiciária em matéria civil ― Processo de insolvência principal ― Processo de insolvência secundário ― Conflito de competências ― Competência exclusiva ou alternativa ― Determinação da lei aplicável ― Determinação dos bens do devedor que fazem parte do processo de insolvência secundário ― Localização desses bens ― Bens situados num Estado terceiro»

No processo C‑649/13,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo tribunal de commerce de Versailles (França), por decisão de 21 de novembro de 2013, entrado no Tribunal de Justiça em 6 de dezembro de 2013, nos processos

Comité d’entreprise de Nortel Networks SA e o.

contra

Cosme Rogeau, agindo na qualidade de liquidatário judicial no processo de insolvência secundário contra a Nortel Networks SA,

e

Cosme Rogeau, agindo na qualidade de liquidatário judicial no processo de insolvência secundário contra a Nortel Networks SA,

contra

Alan Robert Bloom,

Alan Michael Hudson,

Stephen John Harris,

Christopher John Wilkinson Hill,

agindo na qualidade de administradores conjuntos no processo de insolvência principal contra a Nortel Networks SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, A. Borg Barthet, E. Levits, M. Berger (relatora) e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 6 de novembro de 2014,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação do comité d’entreprise de Nortel Networks SA e o., por R. Dammann e M. Boché‑Robinet, avocats,

¾        em representação de C. Rogeau, agindo na qualidade de liquidatário judicial no processo de insolvência secundário contra a Nortel Networks SA, por A. Tchekhoff e E. Fabre, avocats,

¾        em representação de A. I. R. Bloom, A. M. Hudson, S. J. Harris e C. J. Wilkinson Hill, agindo na qualidade de administradores conjuntos no processo de insolvência principal contra a Nortel Networks SA, por C. Dupoirier, avocat,

¾        em representação do Governo francês, por F.‑X. Bréchot e D. Colas, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo do Reino Unido, por L. Christie, na qualidade de agente, assistido por B. Kennelly, barrister,

¾        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de janeiro de 2015,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 2.°, alínea g), 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito, por um lado, de um litígio que opõe o conselho de empresa da Nortel Networks SA (a seguir «NNSA») e o. a C. Rogeau, agindo na qualidade de liquidatário judicial no processo de insolvência secundário aberto em França contra a NNSA (a seguir «processo secundário»), numa ação que visa, nomeadamente, o pagamento de um subsídio de apoio à saída e, por outro lado, de um litígio que opõe C. Rogeau, agindo na qualidade de liquidatário judicial no processo secundário, a A. I. R. Bloom, A. M. Hudson, S. J. Harris e C. J. Wilkinson Hill, agindo na qualidade de administradores conjuntos («joint administrators», a seguir «coadministradores») no processo de insolvência principal aberto no Reino Unido contra a NNSA (a seguir «processo principal»), que tem por objeto uma intervenção provocada.

 Quadro jurídico

 Regulamento n.° 1346/2000

3        Os considerandos 6 e 23 do Regulamento n.° 1346/2000 enunciam:

«(6)      De acordo com o princípio da proporcionalidade, o presente regulamento deve limitar‑se às disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas. Além disso, o presente regulamento deve conter disposições relativas ao reconhecimento dessas decisões e ao direito aplicável, que respeitam igualmente aquele princípio.

[…]

«(23) O presente regulamento deve estabelecer, quanto às matérias por ele abrangidas, normas uniformes sobre o conflito de leis que substituam, dentro do respetivo âmbito de aplicação, as normas internas de direito internacional privado. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, deve aplicar‑se a lei do Estado‑Membro de abertura do processo (lex concursus). Esta norma de conflito de leis deve aplicar‑se tanto aos processos principais como aos processos locais. A lex concursus determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.»

4        O artigo 2.° do Regulamento n.° 1346/2000, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, são aplicáveis as seguintes definições:

[…]

g)      ‘Estado‑Membro onde se encontra um bem’:

―      no caso de bens corpóreos, o Estado‑Membro em cujo território está situado esse bem,

―      no caso de bens e direitos que devam ser inscritos num registo público pelo respetivo proprietário ou titular, o Estado‑Membro sob cuja autoridade é mantido esse registo,

―      no caso de créditos, o Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do terceiro devedor, tal como determinado no n.° 1 do artigo 3.°;

[…]»

5        Nos termos do artigo 3.° do regulamento, sob a epígrafe «Competência internacional»:

«1.      Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume‑se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas coletivas é o local da respetiva sede estatutária.

2.      No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado‑Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado‑Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.

[…]»

6        O artigo 25.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Reconhecimento e caráter executório de outras decisões», dispõe:

«1.      As decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência proferidas por um órgão jurisdicional cuja decisão de abertura do processo seja reconhecida por força do artigo 16.°, bem como qualquer acordo homologado por esse órgão jurisdicional, são igualmente reconhecidos sem mais formalidades. Essas decisões são executadas em conformidade com o disposto nos artigos 31.° a 51.°, com exceção do n.° 2 do artigo 34.°, da Convenção de Bruxelas [de 27 de setembro de 1968] relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial [(JO L 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a esta Convenção].

O primeiro parágrafo é igualmente aplicável às decisões diretamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas, mesmo que proferidas por outro órgão jurisdicional.

[…]

2.      O reconhecimento e a execução de decisões que não as referidas no n.° 1 regem‑se pela convenção referida no n.° 1 do presente artigo, na medida em que esta for aplicável.

[…]»

7        O artigo 27.° do Regulamento n.° 1346/2000, sob a epígrafe «Abertura», prevê:

«O processo referido no n.° 1 do artigo 3.° que for aberto por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro e reconhecido noutro Estado‑Membro (processo principal) permite abrir, neste outro Estado‑Membro, em cujo território um órgão jurisdicional seja competente por força do n.° 2 do artigo 3.°, um processo de insolvência secundário […], ficando os seus efeitos limitados aos bens do devedor situados no território desse outro Estado‑Membro.»

 Regulamento (CE) n.° 44/2001

8        O artigo 1.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), define o âmbito de aplicação deste último nestes termos:

«1.      O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

2.      São excluídos da sua aplicação:

[…]

b)      As falências, as concordatas e os processos análogos;

[…]»

 Litígios nos processos principais e questão prejudicial

9        O grupo Nortel era fornecedor de soluções técnicas destinadas às redes de telecomunicações. A Nortel Networks Limited (a seguir «NNL»), com sede em Mississauga (Canadá), detinha a maior parte das filiais do grupo Nortel no mundo, entre as quais a NNSA, com sede no departamento de Yvelines (França).

10      A quase totalidade da propriedade intelectual resultante da atividade de investigação e de desenvolvimento das filiais especializadas do grupo Nortel estava registada, principalmente na América do Norte, em nome da NNL, que concedia às suas filiais, entre as quais a NNSA, licenças exclusivas gratuitas para a exploração da propriedade intelectual deste grupo. As referidas filiais deviam também manter a propriedade económica («beneficial ownership») desta propriedade intelectual, na medida das respetivas contribuições. Um acordo interno do grupo, denominado «Master R&D Agreement» (a seguir «acordo MRDA»), regulava as relações jurídicas entre a NNL e as mesmas filiais.

11      Em 2008, estando o grupo Nortel confrontado com graves dificuldades financeiras, os seus dirigentes decidiram desencadear a abertura simultânea de processos de insolvência no Canadá, nos Estados Unidos e na União Europeia. Por decisão de 14 de janeiro de 2009, a High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division (Reino Unido), abriu um processo de insolvência principal nos termos do direito inglês contra todas as sociedades do grupo Nortel com sede na União, entre as quais a NNSA, em aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000.

12      Na sequência de uma petição conjunta apresentada pela NNSA e pelos coadministradores, o órgão jurisdicional de reenvio, por decisão de 28 de maio de 2009, abriu o processo secundário contra a NNSA e designou C. Rogeau como liquidatário judicial.

13      Em 21 de julho de 2009, um protocolo de acordo de fim de conflito pôs termo a um conflito social na NNSA (a seguir «protocolo de fim de conflito»). Este protocolo previa o pagamento de um subsídio de apoio à saída do qual uma parte seria paga imediatamente e a outra parte, denominada «subsídio diferido de apoio à saída» (a seguir «subsídio diferido»), devia ser paga, depois da cessação da exploração, com os fundos disponíveis provenientes da venda dos ativos, após o pagamento dos custos incorridos pela continuação da atividade da NNSA durante os processos principal e secundário bem como das despesas de gestão («administration expenses»).

14      Em 1 de julho de 2009, foi assinado um protocolo de coordenação dos processos principal e secundário pelos órgãos dos dois processos (a seguir «protocolo de coordenação»), nos termos do qual, nomeadamente, as despesas de gestão deviam ser pagas prioritariamente na totalidade, independentemente da localização dos ativos vendidos. Por decisão de 24 de setembro de 2009, o órgão jurisdicional de reenvio homologou, designadamente, o protocolo de coordenação e o protocolo de fim de conflito.

15      Com vista a garantir uma melhor valorização dos ativos do grupo Nortel, os administradores dos diferentes processos de insolvência abertos no mundo acordaram vender esses ativos globalmente, por ramo de atividade. Nos termos de um acordo intitulado «Interim Funding and Settlement Agreement» (a seguir «acordo IFSA»), celebrado em 9 de junho de 2009 entre a NNL e várias filiais do grupo Nortel, estas filiais renunciariam em tempo útil aos seus direitos de propriedade industrial e intelectual cobertos pelo acordo MRDA. Em contrapartida, os direitos de licença de que as filiais beneficiavam seriam mantidos até ao termo das operações de liquidação e de cessão, e os direitos das referidas filiais, enquanto proprietárias económicas da respetiva propriedade intelectual, seriam mantidos.

16      Nos termos do acordo IFSA, os produtos das cessões de ativos do grupo Nortel seriam colocados em contas bloqueadas, ditas «lockbox» (a seguir «lockbox»), em estabelecimentos de crédito com sede nos Estados‑Unidos e não poderia haver nenhuma distribuição dos montantes depositados na «lockbox» sem um acordo celebrado por todas as entidades do grupo interessadas. A NNSA tornou‑se parte no acordo IFSA através de um acordo de adesão celebrado em 11 de setembro de 2009. Os produtos das cessões foram bloqueados conforme tinha sido previsto no acordo IFSA, não tendo ainda havido um acordo sobre a sua distribuição.

17      Em 23 de novembro de 2010, um relatório elaborado por C. Rogeau no âmbito do processo secundário declarava um saldo positivo de 38 980 313 euros nas contas bancárias da NNSA em 30 de setembro de 2010, o que permitia considerar um primeiro pagamento do subsídio diferido a partir do mês de maio de 2011. No entanto, após ter sido interpelado pelo conselho de empresa da NNSA, C. Rogeau informou‑o, por carta de 18 de maio de 2011, de que não podia aplicar os termos do protocolo de fim de conflito, uma vez que uma previsão de tesouraria revelava um montante negativo de cerca de 6 milhões de euros resultante, nomeadamente, de vários pedidos de pagamento dos coadministradores a título, designadamente, dos encargos gerados pela continuação das atividades do grupo Nortel durante o processo bem como pela cessão de certos ativos.

18      Contestando esta situação de facto, o conselho de empresa da NNSA e antigos trabalhadores da NNSA intentaram uma ação no tribunal de commerce de Versailles (França) requerendo, por um lado, que fosse declarado que o processo secundário lhes permite dispor de um direito exclusivo e direto sobre a quota‑parte do preço de cessão global dos ativos do grupo Nortel que cabem à NNSA e, por outro, que C. Rogeau fosse condenado, na qualidade de liquidatário judicial, a proceder imediatamente ao pagamento, nomeadamente, do subsídio diferido até ao montante dos fundos disponíveis da NNSA.

19      Em seguida, C. Rogeau chamou os coadministradores a juízo no órgão jurisdicional de reenvio. Estes últimos pediram, todavia, ao tribunal de commerce de Versailles que, designadamente, se declarasse internacionalmente incompetente, declinando a sua competência a favor da High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division. A título subsidiário, os coadministradores pediram ao órgão jurisdicional de reenvio, nomeadamente, que se declarasse incompetente para se pronunciar sobre os bens e os direitos não situados em França, na aceção do artigo 2.°, alínea g), do Regulamento n.° 1346/2000, à data da adoção da decisão de abertura do processo secundário.

20      O órgão jurisdicional de reenvio refere que, para se pronunciar sobre os pedidos que lhe foram apresentados, deve, antes de mais, pronunciar‑se sobre a sua competência para determinar a esfera dos efeitos do processo secundário. Considera também que será levado a determinar se os efeitos de um processo secundário podem estender‑se aos bens do devedor situados fora da União.

21      Nestas condições, o tribunal de commerce de Versailles decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O órgão jurisdicional do Estado da abertura de um processo secundário é competente, exclusiva ou alternativamente com o órgão jurisdicional do Estado da abertura do processo principal, para se pronunciar sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos do processo secundário em aplicação dos artigos 2.°, alínea g), 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 […] e, no caso de [uma] competência exclusiva ou alternativa, deve ser aplicado o direito do processo principal ou o do processo secundário?»

 Quanto à questão prejudicial

22      A questão submetida divide‑se em duas partes, que há que examinar separadamente. Assim, a primeira parte da questão diz respeito à repartição da competência jurisdicional entre o juiz do processo principal e o juiz do processo secundário, ao passo que a segunda parte visa identificar o direito aplicável à determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos do processo secundário.

 Quanto à primeira parte da questão

23      Através da primeira parte da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento n.° 1346/2000 devem ser interpretados no sentido de que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura de um processo de insolvência secundário são competentes, exclusiva ou alternativamente com os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura do processo de insolvência principal, para se pronunciarem sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos desse processo secundário.

24      A este respeito, ainda que a questão diga unicamente respeito ao Regulamento n.° 1346/2000, há, todavia, que identificar, antes de mais, se a competência do órgão jurisdicional de reenvio neste contexto é determinada por este regulamento ou pelo Regulamento n.° 44/2001. Em seguida, há que verificar se, com fundamento nas disposições do regulamento aplicável, a competência deste órgão jurisdicional está estabelecida num caso como o que está em causa no processo principal. Por último, será analisada a questão de saber se se deve considerar que essa competência tem caráter exclusivo ou alternativo.

 Quanto à aplicabilidade dos Regulamentos n.os 1346/2000 e 44/2001

25      Há que recordar que os litígios nos processos principais se inscrevem no âmbito da aplicação de uma multiplicidade de acordos celebrados pelas ou entre as partes no processo principal, entres os quais os acordos IFSA e MRDA bem como o protocolo de coordenação e o protocolo de fim de conflito. No âmbito de um litígio que tem por objeto a interpretação de um ou vários destes acordos, a competência para decidir este litígio pode ser regulada pelas disposições do Regulamento n.° 44/2001, mesmo se o referido litígio opõe os liquidatários de dois processos de insolvência, o processo principal e o processo secundário, ambos abrangidos pelo Regulamento n.° 1346/2000.

26      A este respeito, o Tribunal já declarou que os Regulamentos n.os 44/20001 e 1346/2000 devem ser interpretados de forma a evitar qualquer sobreposição entre as normas jurídicas que estes textos enunciam mas também um vazio jurídico. Assim, as ações excluídas, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001, do âmbito de aplicação deste último, na medida em que sejam relativas a «falências, […] concordatas e […] processos análogos», integram o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1346/2000. Simetricamente, as ações que não fazem parte do âmbito de aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 integram o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001 (acórdão Nickel & Goeldner Spedition, C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.° 21 e jurisprudência referida).

27      O Tribunal declarou igualmente que o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1346/2000 não deve ser objeto de interpretação ampla e que apenas as ações diretamente decorrentes de um processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas (a seguir «ações anexas») estão excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001. Consequentemente, apenas estas ações entram no âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1346/2000 (v. acórdão Nickel & Goeldner Spedition, C‑157/13, EU:2014:2145, n.os 22, 23 e jurisprudência referida).

28      Por último, o Tribunal de Justiça reteve como critério determinante para identificar o domínio onde se integra uma ação não o contexto processual em que essa ação se inscreve, mas o fundamento jurídico desta última. Segundo esta abordagem, há que aferir se o direito ou a obrigação que está na base da ação tem a sua origem nas regras comuns do direito civil e comercial ou nas normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência (acórdão Nickel & Goeldner Spedition, C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.° 27).

29      No caso vertente, embora caiba ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar o conteúdo dos diversos acordos celebrados pelas partes no processo principal, afigura‑se, todavia, que os direitos ou as obrigações em que assentam as ações no processo principal resultam diretamente de um processo de insolvência, estão estreitamente relacionados com ele e têm a sua origem em regras específicas dos processos de insolvência.

30      Com efeito, a solução dos litígios nos processos principais depende, nomeadamente, da repartição do produto da venda dos ativos da NNSA entre o processo principal e o processo secundário. Como parece resultar do protocolo de coordenação, e como as partes nos processos principais confirmaram na audiência, esta repartição deverá ser efetuada, em substância, aplicando as disposições do Regulamento n.° 1346/2000, sem que o referido protocolo ou os outros acordos em causa visem alterar o seu conteúdo. Os direitos ou as obrigações em que assentam as ações nos processos principais têm portanto origem nos artigos 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento n.° 1346/2000, pelo que este regulamento é aplicável.

 Quanto às regras de competência previstas no Regulamento n.° 1346/2000

31      No que diz respeito à competência do órgão jurisdicional que abriu um processo de insolvência secundário para se pronunciar sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo, é jurisprudência constante que o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 deve ser interpretado no sentido de que atribui competência internacional ao Estado‑Membro em cujo território foi iniciado o processo de insolvência para conhecer das ações anexas (v., nomeadamente, acórdão F‑Tex, C‑213/10, EU:C:2012:215, n.° 27 e jurisprudência referida).

32      Embora o Tribunal, até à data, apenas tenha reconhecido que a competência internacional para decidir uma ação anexa pertence ao Estado‑Membro cujos órgãos jurisdicionais são competentes em aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, impõe‑se uma interpretação análoga do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1346/2000.

33      Com efeito, tendo em conta a economia e o efeito útil do Regulamento n.° 1346/2000, deve considerar‑se que o artigo 3.°, n.° 2, deste regulamento atribui aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território foi iniciado um processo de insolvência secundário competência internacional para conhecer das ações anexas, na medida em que essas ações digam respeito aos bens do devedor que se encontrem no território deste último Estado.

34      Por um lado, como salientou o advogado‑geral no n.° 32 das suas conclusões, o artigo 25.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1346/2000 prevê uma obrigação para os Estados‑Membros de reconhecerem e de executarem as decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência proferidas tanto pelos órgãos jurisdicionais competentes nos termos do artigo 3.°, n.° 1, deste regulamento como pelos órgãos jurisdicionais cuja competência assenta no n.° 2 deste artigo 3.°, ao passo que o artigo 25.°, n.° 1, segundo parágrafo, do referido regulamento precisa que o primeiro parágrafo desta última disposição também se aplica às «decisões diretamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas», a saber, às decisões que se pronunciem, nomeadamente, sobre uma ação anexa.

35      Ora, ao prever uma obrigação de reconhecimento das decisões «anexas» adotadas pelos órgãos jurisdicionais competentes em aplicação do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1346/2000, este regulamento parece atribuir, pelo menos implicitamente, competência a estes últimos órgãos jurisdicionais para adotar essas decisões.

36      Por outro lado, há que recordar que um dos objetivos essenciais prosseguidos pela possibilidade, prevista no artigo 27.° do Regulamento n.° 1346/2000, de abrir um processo de insolvência secundário consiste, nomeadamente, na proteção dos interesses locais, não obstante o facto de esse processo poder também prosseguir outros objetivos (v., neste sentido, acórdão Burgo Group, C‑327/13, EU:C:2014:2158, n.° 36).

37      Ora, uma ação anexa, como a que está em causa nos processos principais, em que se pede a declaração de que determinados bens são abrangidos por um processo de insolvência secundário, visa precisamente proteger esses interesses. Esta proteção e, por conseguinte, o efeito útil, nomeadamente, do artigo 27.° desse regulamento ficariam sensivelmente enfraquecidos se esta ação anexa não pudesse ser intentada nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território o processo secundário foi iniciado.

38      Importa, assim, concluir que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura de um processo de insolvência secundário são competentes, com fundamento no artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1346/2000, para se pronunciar sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo.

 Quanto ao caráter exclusivo ou alternativo da competência internacional para se pronunciar sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos de um processo de insolvência secundário

39      No que respeita, por último, à questão de saber se a competência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura de um processo de insolvência secundário para se pronunciar sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo tem caráter exclusivo ou alternativo, há que recordar que a jurisprudência do Tribunal que reconhece a competência dos órgãos jurisdicionais, em aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, para decidir as ações anexas assenta principalmente no efeito útil deste regulamento (v., neste sentido, acórdãos Seagon, C‑339/07, EU:C:2009:83, n.° 21, e F‑Tex, C‑213/10, EU:C:2012:215, n.° 27). Como decorre do n.° 37 do presente acórdão, o mesmo se aplica no que diz respeito à competência análoga dos órgãos jurisdicionais competentes com fundamento no n.° 2 desse artigo 3.°

40      Consequentemente, para efeitos de determinar o caráter exclusivo ou alternativo da competência internacional para decidir as ações anexas, e, assim, o âmbito respetivo dos n.os 1 e 2 do referido artigo 3.°, há também que garantir o efeito útil destas disposições.

41      Deste modo, no que diz respeito a uma ação destinada a obter a declaração de que certos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos do processo de insolvência secundário, como as ações em causa nos processos principais, é de considerar que esta ação tem claramente uma incidência direta nos interesses administrados no âmbito do processo de insolvência principal, uma vez que a declaração pedida implicaria necessariamente que os bens em causa não são abrangidos pelo processo principal. Contudo, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.° 57 das suas conclusões, os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura do processo principal são igualmente competentes para conhecer das ações anexas e, assim, para determinar a esfera dos efeitos deste último processo.

42      Nestas condições, uma competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura de um processo de insolvência secundário para se pronunciar sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo privaria o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, na parte em que esta disposição prevê uma competência internacional para conhecer das ações anexas, do seu efeito útil e não poderia, por conseguinte, ser aceite.

43      Por outro lado, não resulta das disposições do Regulamento n.° 1346/2000 que este regulamento atribua ao órgão jurisdicional em que é apresentado um pedido em primeiro lugar competência para decidir uma ação anexa. Contrariamente ao que o conselho de empresa da NNSA alega, esta atribuição também não decorre do acórdão Staubitz‑Schreiber (C‑1/04, EU:C:2006:39), que diz respeito a um caso diferente, a saber, à atribuição de competência para iniciar um processo de insolvência principal e, assim, à atribuição de uma competência que, por força das disposições desse regulamento, é exclusiva.

44      É verdade que, como vários interessados alegaram, o reconhecimento, neste contexto, de uma competência jurisdicional «alternativa» implica o risco de decisões concorrentes e, potencialmente, inconciliáveis.

45      Todavia, como o advogado‑geral observou no n.° 60 das suas conclusões, o artigo 25.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 permitirá evitar o risco de decisões inconciliáveis, ao impor a qualquer órgão jurisdicional no qual é intentada uma ação anexa, como as que estão em causa nos processos principais, o reconhecimento de uma decisão anterior adotada por outro órgão jurisdicional competente, em aplicação do artigo 3.°, n.° 1, ou, se for caso disso, n.° 2, desse regulamento.

46      Tendo em conta todas as considerações que precedem, há que responder à primeira parte da questão submetida que os artigos 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento n.° 1346/2000 devem ser interpretados no sentido de que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura de um processo de insolvência secundário são competentes, alternativamente com os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura do processo principal, para se pronunciarem sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo secundário.

 Quanto à segunda parte da questão

47      Através da segunda parte da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, qual é o direito aplicável à determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos de um processo de insolvência secundário.

48      A este respeito, importa recordar, por um lado, que os efeitos de um processo de insolvência secundário estão limitados, como decorre dos artigos 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento n.° 1346/2000, aos bens do devedor que se encontravam, à data da abertura do processo de insolvência, no território do Estado‑Membro de abertura do processo secundário.

49      Por outro lado, resulta dos considerandos 6 e 23 do Regulamento n.° 1346/2000, em primeiro lugar, que este regulamento estabelece normas uniformes sobre o conflito de leis que substituem as normas nacionais de direito internacional privado e, em segundo lugar, que esta substituição se limita, de acordo com o princípio da proporcionalidade, ao âmbito de aplicação das regras previstas neste regulamento. Assim, o referido regulamento não exclui, em princípio, no âmbito de uma ação anexa, como as que estão em causa nos processos principais, a aplicação de qualquer legislação do Estado‑Membro do órgão jurisdicional em que a ação anexa está pendente, relativa ao direito internacional privado desse Estado, na medida em que o Regulamento n.° 1346/2000 não contém regras uniformes que regulem a situação em causa.

50      Todavia, no que diz respeito à questão de saber se, para efeitos da aplicação do Regulamento n.° 1346/2000, se deve considerar que um bem está situado no território de um Estado‑Membro à data da abertura do processo de insolvência, há que reconhecer que este regulamento prevê, de facto, regras uniformes, excluindo, nesta medida, qualquer recurso ao direito nacional.

51      Com efeito, resulta do artigo 2.°, alínea g), do Regulamento n.° 1346/2000 que, para efeitos deste regulamento, o «Estado‑Membro onde se encontra um bem» é, no caso de bens corpóreos, o Estado‑Membro em cujo território está situado o bem, no caso de bens e direitos que o proprietário ou o titular deve inscrever num registo público, o Estado‑Membro sob cuja autoridade é mantido esse registo e, por último, no caso de créditos, o Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do terceiro devedor, tal como determinado no artigo 3.°, n.° 1, do referido regulamento. Não obstante a complexidade da situação jurídica em causa nos processos principais, esta regra deve permitir ao órgão jurisdicional de reenvio localizar os bens, os direitos ou os créditos correspondentes.

52      Importa acrescentar a este propósito que, embora o artigo 2.°, alínea g), do Regulamento n.° 1346/2000 só faça expressamente referência aos bens, aos direitos e aos créditos situados num Estado‑Membro, não se pode daí inferir que esta disposição não é aplicável caso se deva considerar que o bem, o direito ou o crédito estão situados num Estado terceiro.

53      Com efeito, para identificar os bens que são abrangidos por um processo de insolvência secundário, basta verificar se, à data da abertura do processo de insolvência, estes se encontravam, nos termos do artigo 2.°, alínea g), do Regulamento n.° 1346/2000, no território do Estado‑Membro em que o processo foi aberto, sem que a questão de saber, se for caso disso, em que outro Estado esses bens se encontravam num momento posterior tenha uma incidência a este respeito.

54      Consequentemente, no que diz respeito aos litígios nos processos principais, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, primeiro, se os bens em causa, que não se afigura que possam ser considerados bens corpóreos, constituem bens ou direitos que o proprietário ou o titular deve inscrever num registo público ou se devem ser considerados créditos. Em seguida, cabe ao mesmo órgão jurisdicional determinar, respetivamente, se o Estado‑Membro sob cuja autoridade é mantido esse registo é o da abertura do processo de insolvência secundário, no caso vertente, a República Francesa, ou, sendo caso disso, se o Estado‑Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do terceiro devedor é a República Francesa. Só no caso de uma destas verificações conduzir a um resultado positivo é que os bens em causa serão abrangidos pelo processo de insolvência secundário aberto em França.

55      Nestas condições, há que responder à segunda parte da questão submetida que a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos de um processo de insolvência secundário deve ser realizada de acordo com as disposições do artigo 2.°, alínea g) do Regulamento n.° 1346/2000.

 Quanto às despesas

56      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

Os artigos 3.°, n.° 2, e 27.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, devem ser interpretados no sentido de que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura de um processo de insolvência secundário são competentes, alternativamente com os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da abertura do processo principal, para se pronunciarem sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo secundário.

A determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos de um processo de insolvência secundário deve ser realizada de acordo com as disposições do artigo 2.°, alínea g), do Regulamento n.° 1346/2000.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.