Language of document : ECLI:EU:C:2011:255

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 14 de Abril de 2011 (1)

Processo C‑70/10

Scarlet Extended SA

contra

Société belge des auteurs compositeurs et éditeurs (Sabam)

sendo intervenientes:

Belgian Entertainment Association Video ASBL (BEA Video),

Belgian Entertainment Association Music ASBL (BEA Music),

Internet Service Provider Association ASBL (ISPA),

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour d’appel de Bruxelles (Bélgica)]

«Sociedade da informação – Direitos de propriedade intelectual – Directiva 2004/48/CE – Direito de autor e direitos conexos – Directiva 2001/29/CE – Teledescarga ilegal na Internet – Troca de ficheiros através de software peer‑to‑peer – Sistema de filtragem das comunicações electrónicas – Mecanismo de bloqueio dos ficheiros trocados em violação dos direitos de propriedade intelectual – Direito ao respeito da vida privada – Protecção dos dados pessoais – Artigos 7.° e 8.° da Carta – Artigo 8.° da CEDH – Directiva 95/46/CE – Directiva 2002/58/CE – Confidencialidade das comunicações – Direito à liberdade de expressão – Artigo 11.° da Carta – Artigo 10.° da CEDH – Responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços – Obrigação geral de vigilância das informações – Directiva 2000/31/CE – Estado de direito – Restrição dos direitos e liberdades ‘prevista por lei’ – Qualidade da lei – Primado do direito»






Índice


I –   Introdução

II – Quadro jurídico

A –   Direito da União

1.     Regulamentação relativa à protecção da propriedade intelectual

a)     Directiva 2001/29 relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação

b)     Directiva 2004/48 relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual

2.     Regulamentação relativa à protecção dos dados pessoais

a)     Directiva 95/46 relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados

b)     Directiva 2002/58 relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas

3.     Regulamentação relativa ao comércio electrónico: Directiva 2000/31

B –   Direito nacional

III – Factos na origem do litígio no processo principal e questões prejudiciais

A –   Factos e processo principal

B –   Questões prejudiciais

C –   Tramitação no Tribunal de Justiça

IV – Análise

A –   Observações preliminares

1.     Reformulação da primeira questão: a CEDH e a Carta

2.     Estrutura da resposta

3.     Uma abordagem em quatro etapas

B –   Medida solicitada (injunção de cessação) e o «sistema» exigido (filtragem e bloqueio)

1.     Sistema de filtragem e de bloqueio

i)     Mecanismo de «filtragem»

ii)   Mecanismo de «bloqueio»

2.     Características da medida de injunção

a)     «sem limitação no tempo»: âmbito de aplicação ratione temporis da medida

b)     «todas as comunicações electrónicas tanto as que entram como as que saem»: âmbito de aplicação ratione materiae da medida

c)     «em relação a toda a sua clientela»: âmbito de aplicação ratione personae da medida

d)     «em abstracto e a título preventivo»: função preventiva e dissuasora da medida solicitada

e)     «a expensas suas»: responsabilidade pelos custos relativos à execução da medida solicitada

3.     Conclusão intercalar

C –   Qualificação da medida à luz das directivas e dos artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta: uma «restrição» na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta

1.     «…interpretadas à luz dos artigos 7.° e 8.° da Carta…»: quanto ao respeito da vida privada e ao direito à protecção dos dados pessoais

a)     Protecção dos dados pessoais (artigo 8.° da Carta)

b)     Confidencialidade das comunicações electrónicas (artigo 7.° da Carta)

2.     «…interpretadas à luz do artigo 11.° da Carta»: quanto à garantia da liberdade de expressão e do direito à informação

3.     Conclusão intercalar

D –   Quanto às condições para a restrição do exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta e em particular a condição relativa à «qualidade da lei» (artigo 52.°, n.° 1, da Carta)

E –   «com base numa única disposição legal»: exame da legislação nacional à luz da condição relativa à «qualidade da lei» (artigo 52.°, n.° 1, da Carta)

V –   Conclusão


I –    Introdução

1.        O presente processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de abordar a questão das violações dos direitos de autor e dos direitos conexos na Internet, da teledescarga ilegal de obras protegidas, fenómeno comummente designado por «pirataria» de obras musicais, cinematográficas, audiovisuais ou ainda literárias, e de se interessar pela luta travada pelos titulares desses direitos e pelos seus sucessores contra o que se revela ser um flagelo mundial (2). O Tribunal de Justiça é, mais precisamente, chamado a pronunciar‑se sobre a questão inédita da viabilidade do ponto de vista do direito da União, de determinadas medidas técnicas de luta contra a pirataria que, apesar de a sua fiabilidade não estar totalmente demonstrada e estarem permanentemente dependentes do progresso tecnológico e da evolução das práticas, são apresentadas como uma resposta possível às violações dos direitos de propriedade intelectual quotidianamente perpetrados na «rede».

2.        As questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça neste processo exigem a interpretação tanto de um conjunto complexo de disposições de actos de direito derivado como de disposições de direito primário, mais precisamente, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (3), à luz da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (4). Deve, no entanto, desde já referir‑se que está fora de questão abordar, no âmbito das presentes conclusões, todas as dúvidas jurídicas e os problemas técnicos (5) que as medidas em causa suscitam. Com base na própria formulação das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio e nos termos em que o mesmo expõe a situação jurídica e factual do processo principal, esforçar‑me‑ei por lhe fornecer uma resposta útil concentrando‑me nos seus aspectos fundamentais.

3.        A este respeito, o Tribunal de Justiça é chamado principalmente a indicar em concreto ao órgão jurisdicional de reenvio se, do ponto de vista do direito da União, um tribunal nacional pode adoptar uma medida como a que é solicitada no processo principal, de ordenar a um fornecedor de acesso à Internet (6) a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio das comunicações electrónicas. Ora, como a medida assim solicitada tem um alcance completamente diferente para este FAI, por um lado, e para todos os utilizadores dos serviços desse FAI e os internautas em geral, por outro, há que ter em conta esta dupla perspectiva, apesar de a questão submetida visar especialmente os direitos dos utilizadores.

4.        Antes de mais, deve também precisar‑se que o presente caso se distingue do processo que deu origem ao acórdão Promusicae (7), embora o seu quadro jurídico e o seu contexto geral revelem evidentes semelhanças. Ainda que o presente caso exija, como no processo Promusicae, já referido, a conciliação das exigências relativas à protecção de diferentes direitos fundamentais, os dois processos revelam diferenças que, como o próprio órgão jurisdicional de reenvio realça, excluem que os ensinamentos do acórdão Promusicae, nomeadamente o princípio do justo equilíbrio dos direitos que define, sejam suficientes para lhe permitir decidir. Com efeito, no processo Promusicae, era pedido que um FAI, no âmbito de um processo judicial, revelasse a identidade e o endereço físico de pessoas identificadas pelo seu endereço IP (8), a data e a hora da sua conexão. Estava portanto em causa uma comunicação, num quadro judicial, de dados conhecidos e identificados. Em contrapartida, no processo principal exige‑se que um fornecedor de acesso à Internet instale um sistema de filtragem das comunicações electrónicas e de bloqueio dos ficheiros electrónicos susceptíveis de violarem um direito de propriedade intelectual. Não é imposta uma intervenção a posteriori, uma vez verificada uma violação dos direitos de autor ou de direitos conexos, que é exigida, mas sim uma intervenção a priori, destinada a evitar essa violação e, mais precisamente, a instalar um sistema susceptível de impedir, de forma preventiva, qualquer violação futura de um direito de propriedade intelectual (9), segundo regras que, como se verá, estão impregnadas de muitas incertezas.

5.        Dito isto, é essencialmente numa perspectiva de direitos fundamentais que se impõe o exame da situação em causa no processo principal.

II – Quadro jurídico

A –    Direito da União

6.        O Tribunal de Justiça é interrogado principalmente sobre a interpretação das Directivas 2001/29/CE (10) e 2004/48/CE (11), relativas à protecção da propriedade intelectual, das Directivas 95/46/CE (12) e 2002/58/CE (13), relativas à protecção de dados pessoais e da Directiva 2000/31/CE (14) sobre o comércio electrónico, directivas estas que têm entre si relações complexas. Atenta esta complexidade, serão apenas reproduzidas na apresentação do quadro jurídico, as disposições indispensáveis à compreensão do litígio no processo principal.

1.      Regulamentação relativa à protecção da propriedade intelectual

a)      Directiva 2001/29 relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação

7.        O artigo 8.° da Directiva 2001/29, intitulado «Sanções e vias de recurso», tem a seguinte redacção:

«1. Os Estados‑Membros devem prever as sanções e vias de recurso adequadas para as violações dos direitos e obrigações previstas na presente directiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação efectiva de tais sanções e vias de recurso. As sanções previstas devem ser eficazes, proporcionadas e dissuasivas.

2. Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas necessárias para assegurar que os titulares dos direitos cujos interesses sejam afectados por uma violação praticada no seu território possam intentar uma acção de indemnização e/ou requerer uma injunção e, quando adequado, a apreensão do material ilícito, bem como dos dispositivos, produtos ou componentes referidos no n.° 2 do artigo 6.°

3. Os Estados‑Membros deverão garantir que os titulares dos direitos possam solicitar uma injunção contra intermediários cujos serviços sejam utilizados por terceiros para violar um direito de autor ou direitos conexos.»

 b)     Directiva 2004/48 relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual

8.        O artigo 9.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2004/48 dispõe:

«Os Estado‑Membros devem garantir que as autoridades judiciais competentes possam, a pedido do requerente:

a) Decretar contra o infractor presumível uma medida inibitória de qualquer violação iminente de direitos de propriedade intelectual ou de proibição, a título provisório e eventualmente sujeita a quaisquer sanções pecuniárias compulsivas previstas na legislação nacional, da continuação da alegada violação dos referidos direitos, ou fazer depender essa continuação da constituição de garantias destinadas a assegurar a indemnização do titular; pode igualmente ser decretada uma medida inibitória, nas mesmas condições, contra qualquer intermediário cujos serviços estejam a ser utilizados por um terceiro para violar direitos de propriedade intelectual; as medidas inibitórias contra intermediários cujos serviços estejam a ser utilizados por terceiros para violar direitos de autor ou direitos conexos são abrangidas pela Directiva 2001/29/CE.»

9.        O artigo 11.° da Directiva 2004/48, intitulado «Medidas inibitórias», prevê:

«Os Estados‑Membros devem garantir que, nos casos em que tenha sido tomada uma decisão judicial que constate uma violação de um direito de propriedade intelectual, as autoridades judiciais competentes possam impor ao infractor uma medida inibitória da continuação dessa violação. Quando esteja previsto na legislação nacional, o incumprimento de uma medida inibitória deve, se for caso disso, ficar sujeito à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, destinada a assegurar a respectiva execução. Os Estados‑Membros devem garantir igualmente que os titulares dos direitos possam requerer uma medida inibitória contra intermediários cujos serviços sejam utilizados por terceiros para violar direitos de propriedade intelectual, sem prejuízo do n.° 3 do artigo 8.° da Directiva 2001/29/CE.»

2.      Regulamentação relativa à protecção dos dados pessoais

a)      Directiva 95/46 relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados

10.      O artigo 13.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 95/46 dispõe:

«Os Estados‑Membros podem tomar medidas legislativas destinadas a restringir o alcance das obrigações e direitos referidos no n.° 1 do artigo 6.°, no artigo 10.°, no n.° 1 do artigo 11.° e nos artigos 12.° e 21.°, sempre que tal restrição constitua uma medida necessária à protecção:

[…]

g)       De pessoa em causa ou dos direitos e liberdades de outrem.»

b)      Directiva 2002/58 relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas

11.      O artigo 5.° da Directiva 2002/58, consagrado à confidencialidade das comunicações, dispõe no seu n.° 1:

«Os Estados‑Membros garantirão, através da sua legislação nacional, a confidencialidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis. Proibirão, nomeadamente, a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outras formas de intercepção ou vigilância de comunicações e dos respectivos dados de tráfego por pessoas que não os utilizadores, sem o consentimento dos utilizadores em causa, excepto quando legalmente autorizados a fazê‑lo, de acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 15.°. O presente número não impede o armazenamento técnico que é necessário para o envio de uma comunicação, sem prejuízo do princípio da confidencialidade.»

12.      O artigo 15.°, n.° 1, da Directiva 2002/58, que prevê a aplicação de determinadas disposições da Directiva 95/46/CE, dispõe:

«Os Estados‑Membros podem adoptar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.° e 6.°, nos n.os 1 a 4 do artigo 8.° e no artigo 9.° da presente directiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a detecção e a repressão de infracções penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações electrónicas, tal como referido no n.° 1 do artigo 13.° da Directiva 95/46/CE. Para o efeito, os Estados‑Membros podem designadamente adoptar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.° do Tratado da União Europeia.»

3.      Regulamentação relativa ao comércio electrónico: Directiva 2000/31

13.      O artigo 15.° da Directiva 2000/31, que encerra a Secção 4 consagrada à responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços, institui o princípio da ausência de obrigação geral de vigilância nos seguintes termos:

«1. Os Estados‑Membros não imporão aos prestadores, para o fornecimento dos serviços mencionados nos artigos 12.°, 13.° e 14.°, uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação geral de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes.

2. Os Estados‑Membros podem estabelecer a obrigação, relativamente aos prestadores de serviços da sociedade da informação, de que informem prontamente as autoridades públicas competentes sobre as actividades empreendidas ou informações ilícitas prestadas pelos autores aos destinatários dos serviços por eles prestados, bem como a obrigação de comunicar às autoridades competentes, a pedido destas, informações que permitam a identificação dos destinatários dos serviços com quem possuam acordos de armazenagem.»

B –    Direito nacional

14.      O artigo 87.°, n.° 1, da Lei de 30 de Junho de 1994, relativa aos direitos de autor e aos direitos conexos (15), conforme alterada pela Lei de 10 de Maio de 2007 que transpõe o artigo 8.°, n.° 3, da Directiva 2001/29 e o artigo 11.° da Directiva 2004/48, dispõe:

«O presidente do tribunal de primeira instância e o presidente do tribunal do comércio […] constatam a existência e ordenam a cessação de qualquer violação dos direitos de autor ou de um direito conexo.

Podem igualmente dirigir uma injunção de cessação aos intermediários cujos serviços sejam utilizados por um terceiro para violar os direitos de autor ou um direito conexo.»

III – Factos na origem do litígio no processo principal e questões prejudiciais

A –    Factos e processo principal

15.      Por requerimento de 24 de Junho de 2004, a Société belge des auteurs compositeurs et éditeurs (Sabam), no quadro da lei de 30 de Junho de 1994 relativa aos direitos de autor e aos direitos conexos, submeteu ao presidente do tribunal de primeira instância de Bruxelas, na qualidade de juiz das medidas provisórias, um pedido de injunção de cessação dirigido contra a Scarlet Extended SA, um FAI (16).

16.      A Sabam alegava que, na sua qualidade de FAI, a Scarlet estava colocada na posição ideal para tomar medidas destinadas a fazer cessar as violações dos direitos de autor cometidas pelos seus clientes, os internautas que teledescarregam ilegalmente obras constantes do catálogo da Sabam através de software peer‑to‑peer sem pagar direitos, prática de que a Scarlet beneficia na medida em estas práticas são susceptíveis de aumentar o seu volume de tráfego e, consequentemente, a procura dos seus serviços.

17.      A Sabam pedia, antes de mais, que fosse declarada a existência de violações dos direitos de autor sobre as obras musicais pertencentes ao seu repertório e, em particular, do direito de reprodução e do direito de divulgação ao público, decorrentes do intercâmbio não autorizado, por intermédio dos serviços fornecidos pela Scarlet, de ficheiros electrónicos musicais realizada através de software peer‑to‑peer.

18.      Seguidamente, a Sabam pedia que a Scarlet fosse condenada a fazer cessar essas violações sob pena de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, tornando impossível ou paralisando qualquer forma de envio ou de recepção pelos seus clientes, através de software peer‑to‑peer, de ficheiros contendo uma obra musical sem autorização dos titulares dos direitos.

19.      Por último, a Sabam exigia da Scarlet a comunicação, no prazo de oito dias a contar da notificação da decisão judicial, sob pena de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, de uma descrição das medidas adoptadas, a publicação de um texto na página inicial do seu sítio Internet e a publicação da decisão judicial em dois jornais diários e num jornal semanário da sua escolha.

20.      Por decisão de 26 de Novembro de 2004, o presidente do tribunal constatou a existência das violações dos direitos de autor denunciadas. No entanto, antes de decidir quanto ao pedido de cessação, nomeou um perito para avaliar se as soluções técnicas propostas pela Sabam eram tecnicamente exequíveis, se permitiam filtrar exclusivamente as trocas ilícitas de ficheiros electrónicos e se existiam outros dispositivos susceptíveis de controlar a utilização de software peer‑to‑peer e determinar o custo de tais dispositivos.

21.      O perito nomeado entregou o seu relatório em 29 de Janeiro de 2007, cujas conclusões, reproduzidas na decisão de reenvio, têm a seguinte redacção:

«1.      Uma rede peer‑to‑peer é um meio transparente de troca de conteúdos, independente, descentralizado e munido de funções de busca e de descarga avançadas.

2.      Com excepção da solução proposta pela Audible Magic, todas as soluções procuram impedir a utilização de redes peer‑to‑peer, independentemente do conteúdo que nelas é veiculado.

3.      Por outro lado, a perenidade das soluções de filtragem de aplicações peer‑to‑peer está longe de ficar assegurada a médio prazo (2‑3 anos) pela utilização crescente de encriptação nesse tipo de aplicações.

4.      A solução proposta pela sociedade Audible Magic é, portanto, a única a procurar dar resposta específica a essa questão. Esta solução, destinada essencialmente à área da educação, não está contudo, intrinsecamente dimensionada para dar resposta ao volume de tráfego de um FAI. O recurso a esta técnica no contexto de um FAI envolve por isso um custo de aquisição e de exploração elevado para compensar esse sub‑dimensionamento.

5.      Este custo deve ser ponderado à luz do período de tempo durante o qual a solução será eficaz, uma vez que a encriptação referida torna a solução igualmente ineficaz no âmbito da filtragem em trânsito.

6.      O recurso a métodos de investigação interna, realizada dentro de uma rede peer‑to‑peer, é mais complexo de implementar, mas apresenta melhores resultados. Estes métodos só se aplicam a priori à parte repreensível das trocas e têm a possibilidade de tomar em conta o contexto em que as trocas são feitas.

7.      Ademais, estes métodos não são, ou são muito menos sensíveis à encriptação e representam, na nossa opinião, o melhor investimento a médio e a longo prazo para assegurar o respeito dos direitos de autor respeitando os direitos de todos.»

22.      Baseado neste relatório do perito, o presidente do tribunal de primeira instância de Bruxelas proferiu, em 19 de Junho de 2007, uma segunda decisão pela qual condenou a Scarlet a fazer cessar as violações dos direitos de autor constatadas na decisão de 26 de Novembro de 2004, tornando impossível qualquer forma de envio ou de recepção pelos seus clientes, através de software peer‑to‑peer, de ficheiros electrónicos contendo uma obra musical do repertório da Sabam, sob pena de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória de 2 500 EUR por dia, caso a Scarlet não dê cumprimento à decisão, após o termo de um prazo de seis meses.

23.      A Scarlet interpôs recurso desta decisão para a cour d’appel de Bruxelles em 6 de Setembro de 2007.

24.      Além disso, por requerimento de 7 de Dezembro de 2007, a Scarlet submeteu ao presidente do tribunal de primeira instância de Bruxelas um pedido de anulação, ou pelo menos de suspensão, da sanção pecuniária compulsória que lhe foi aplicada. A Scarlet alegava que se encontrava material e temporalmente impossibilitada de dar cumprimento à injunção de cessação, na medida em que o sistema Audible Magic não funcionava e não estava provado que fosse tecnicamente possível a um fornecedor de acesso à Internet filtrar ou bloquear eficazmente o tráfego peer‑to‑peer.

25.      Por decisão de 22 de Outubro de 2008, o presidente do tribunal de primeira instância de Bruxelas rejeitou este pedido, considerando que o efeito devolutivo do recurso obstava a que as partes voltassem a debater a causa em juízo. Reconhecendo que não tinha sido possível implementar com sucesso a solução Audible Magic, observou, contudo, que a Scarlet não tinha ensaiado outras soluções de filtragem ou de bloqueio e que, por conseguinte, não tinha provado que não era possível cumprir a injunção de cessação. No entanto, para permitir à Scarlet explorar outros meios, suspendeu a sanção pecuniária compulsória até 31 de Outubro de 2008.

B –    Questões prejudiciais

26.      Foi nestas circunstâncias que a cour d’appel de Bruxelles decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1. As Directivas 2001/29/CE  e 2004/48/CE, conjugadas com as Directivas 95/46, 2000/31  e 2002/58, interpretadas à luz dos artigos 8.° e 10.° da Convenção Europeia para a protecção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, permitem que os Estados‑Membros confiram competência a um juiz nacional, [que conhece do mérito] de um processo [...] e com base numa única disposição legal que prevê que: ‘[o juiz nacional] pode igualmente dirigir uma injunção de cessação aos intermediários cujos serviços sejam utilizados por um terceiro para violar os direitos de autor ou um direito conexo’, para ordenar a um fornecedor de acesso à Internet (abreviadamente «FAI») [a instalação], em relação a toda a sua clientela, em abstracto e a título preventivo, a expensas exclusivas desse FAI e sem limitação no tempo, de um sistema de filtragem de todas as comunicações electrónicas, tanto as que entram como as que saem, transitando pelos seus serviços, nomeadamente através da utilização de software peer‑to‑peer, com vista a identificar na sua rede a circulação de ficheiros electrónicos contendo uma obra musical, cinematográfica ou audiovisual sobre a qual o requerente alega possuir direitos, e bloquear de seguida a transferência desses ficheiros, seja no momento do pedido, seja no momento do envio?

2. Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, essas directivas exigem que o juiz nacional, chamado a decidir sobre um pedido de injunção em relação a um intermediário cujos serviços são utilizados por um terceiro para violar os direitos de autor, aplique o princípio da proporcionalidade quando tiver de se pronunciar sobre a eficácia e o efeito dissuasor da medida requerida?»

C –    Tramitação no Tribunal de Justiça

27.      A Scarlet, a Sabam conjuntamente com a Belgian Entertainment Association Video (BEA Video) e a Belgian Entertainment Association Music (BEA Music), bem como a Internet Service Provider Association (ISPA), o Reino da Bélgica, a República Checa, o Reino dos Países Baixos, a República da Polónia, a República da Finlândia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

28.      O Tribunal de Justiça ouviu os representantes da Scarlet, da Sabam, da ISPA, os agentes do Reino da Bélgica, da República Checa, da República Italiana, do Reino dos Países Baixos, da República da Polónia e o agente da Comissão Europeia na audiência realizada em 13 de Janeiro de 2011.

IV – Análise

A –    Observações preliminares

1.      Reformulação da primeira questão: a CEDH e a Carta

29.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que a sua primeira questão prejudicial diz respeito à interpretação de diversas disposições do direito derivado da União «à luz dos artigos 8.° e 10.° da CEDH». Ao proceder deste modo, pode seguramente apoiar‑se no artigo 6.°, n.° 3, TUE, nos termos do qual «[d]o direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a [CEDH] […]». A este respeito, impõem‑se observações preliminares que conduzirão a uma reformulação pontual da questão.

30.      Antes de mais, este mesmo artigo 6.° TUE começa por precisar no seu n.° 1, primeiro parágrafo, que a Carta «tem o mesmo valor jurídico que os Tratados», como o Tribunal de Justiça não deixou de salientar nos últimos desenvolvimentos da sua jurisprudência (17). Deste modo, dado que os direitos, liberdades e princípios enunciados na Carta têm por si só um valor jurídico, aliás de primeiro nível, já não é necessário o recurso aos referidos princípios gerais quando os primeiros se puderem identificar com os segundos. Este é um primeiro elemento a favor de um exame da questão à luz das disposições da Carta em vez da das disposições da CEDH, ceteris paribus (18).

31.      Seguidamente, o artigo 52.°, n.° 3, da Carta prevê que, «[n]a medida em que [esta] contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção», sendo precisado que «[e]sta disposição não obsta a que o direito da União confira uma protecção mais ampla» (19). Ora, nas circunstâncias do processo principal, os direitos garantidos no artigo 8.° da CEDH «correspondem», na acepção do artigo 52.°, n.° 3, da Carta, aos garantidos nos artigos 7.° («Respeito pela vida privada e familiar») e 8.° («Protecção de dados pessoais») da Carta, da mesma forma que os direitos garantidos no artigo 10.° da CEDH «correspondem» aos garantidos no artigo 11.° da Carta («Liberdade de expressão e de informação»), não obstante as diferenças relativas, respectivamente, às formulações utilizadas e aos conceitos utilizados (20).

32.      Por último, deve referir‑se que as disposições da CEDH que autorizam sob determinadas condições medidas restritivas dos direitos e liberdades desse modo garantidos, concretamente os seus artigos 8.°, n.° 2 e 10.°, n.° 2, têm também correspondência, embora com uma formulação ligeiramente diferente, numa disposição transversal da Carta, comum a todos os direitos e liberdades que garante, a saber, o n.° 1 do seu artigo 52.°, intitulado «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios».

33.      Esta última disposição sujeita «[q]ualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades» a uma série de condições. O termo «restrição», corresponde ele próprio, por seu turno, aos termos «ingerência», utilizado no artigo 8.° da CEDH, e «restrição», utilizado no artigo 10.° da CEDH, disposições que enumeram diversas condições que correspondem também, em larga medida, às condições previstas no artigo 52.°, n.° 1, da Carta e cuja interpretação feita pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deverá ser tida em conta pelo Tribunal de Justiça (21). Por conseguinte, na medida em que essas condições comportam diferenças, afigura‑se claro que se deve fazer uma interpretação autónoma das disposições da Carta (22).

34.      Consequentemente, e com as reservas acima expressas, proponho alterar a questão do órgão jurisdicional de reenvio de tal forma que a menção aos artigos 8.° e 10.º da CEDH seja substituída pela referência aos «artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta, conjugados com o seu artigo 52.°, n.° 1, conforme interpretados, na medida do necessário, à luz dos artigos 8.° e 10.° da CEDH».

2.      Estrutura da resposta

35.      A Scarlet e a ISPA, bem como os Governos belga, checo, italiano, neerlandês, polaco e finlandês, consideram, de uma forma geral, no termo de uma análise substancial das disposições pertinentes mas com divergências na abordagem do problema, que o direito da União se opõe à adopção de uma medida como a solicitada. Por seu turno, a Comissão considera que, embora as directivas em causa enquanto tais não se oponham à instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio como o exigido, as modalidades concretas da sua instalação não respeitam, em contrapartida, o princípio da proporcionalidade. Considera assim, no essencial, que foi afinal o órgão jurisdicional de primeira instância que desrespeitou as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não sendo as disposições legais nacionais em si merecedoras de qualquer crítica.

36.      É verdade que, a este respeito, se deve recordar que o artigo 52.°, n.° 1, da Carta exige que qualquer restrição dos direitos e liberdades tenha lugar, entre outras condições, no respeito do princípio da proporcionalidade. O respeito do princípio da proporcionalidade impõe‑se sem sombra de dúvida quando se coloca a questão de uma restrição, na acepção dessa disposição, isto é, não só na fase da sua aplicação in concreto pelo juiz, que é precisamente o objecto da segunda questão, mas também, previamente, na fase da sua definição in abstracto pelo legislador. É sobre este aspecto do problema que a argumentação da Comissão, na minha opinião, peca por defeito.

37.      Em qualquer caso, não há qualquer dúvida de que, se a própria «lei» deve estar sujeita a um controlo da proporcionalidade, este só pode ocorrer depois da verificação, no caso concreto, da própria «existência» da referida lei. A este respeito, não é por acaso que a primeira das condições de qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta, estabelecidas no seu artigo 52.°, n.° 1, é a de que esteja «prevista por lei». Ora, acontece que, ao interrogar o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se a medida em causa pode ser adoptada «com base numa única disposição legal» que ele cita, o órgão jurisdicional de reenvio convida‑nos, em primeiro lugar, a examinar o respeito desta primeira condição. Este aspecto da questão é, na minha opinião, incontornável e coloca‑se antes de qualquer outro (23). Na falta de «lei», na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta, não há, com efeito, que examinar sucessivamente as condições a que está submetida qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta, nomeadamente a condição de proporcionalidade. Embora o Tribunal de Justiça raramente tenha tido a oportunidade de se questionar sobre essa condição (24), ela é, contudo, comum aos artigos 8.° e 10.° da CEDH e deu lugar, desde há muito tempo, a uma rica jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, razão pela qual terei de recorrer especialmente a esta jurisprudência para dar uma resposta completa e sobretudo útil ao órgão jurisdicional de reenvio.

3.      Uma abordagem em quatro etapas

38.      A cour d’appel de Bruxelles formula o seu reenvio prejudicial sob a forma de duas questões, sendo a segunda, relativa ao respeito pelos órgãos jurisdicionais nacionais do princípio da proporcionalidade, submetida apenas a título subsidiário, em concreto, para o caso de o Tribunal de Justiça responder afirmativamente à primeira questão. Permito‑me adiantar que, na medida em que vou considerar que deve ser dada resposta negativa à primeira questão, não haverá que examinar a segunda (25).

39.      Dito isto, a própria formulação da primeira questão prejudicial, extremamente rica e precisa, permite desenvolver o meu raciocínio apoiando‑me directamente nos diferentes elementos que a compõem. Para esse efeito, proponho apresentar o meu raciocínio em quatro etapas.

40.      Em primeiro lugar, é necessário abordar pormenorizadamente a natureza e as características da medida cuja adopção é pedida ao órgão jurisdicional de reenvio ou, mais exactamente, confirmar ou infirmar em sede de recurso, neste caso, a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio, distinguindo as características da medida solicitada, isto é, da própria injunção de cessação e do seu conteúdo. A análise desta medida já deverá permitir fornecer uma resposta de princípio à questão submetida, pelo menos do ponto de vista dos direitos e dos interesses da Scarlet. Contudo, como é pedida principalmente uma resposta à questão submetida do ponto de vista dos direitos fundamentais dos utilizadores dos serviços da Scarlet e dos internautas em geral, o meu exame deve prosseguir de forma mais detalhada nesta perspectiva.

41.      Com base nesta análise, será assim possível, em segundo lugar, examinar a medida solicitada à luz das diferentes directivas evocadas e, muito particularmente, das disposições pertinentes da Carta tal como interpretadas, se for caso disso, à luz das disposições correspondentes da CEDH referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. A análise aprofundada da medida em causa deve, com efeito, permitir abordar a medida na perspectiva das restrições aos direitos e liberdades previstos no artigo 52.°, n.° 1, da Carta.

42.      Constituindo a referida medida, como se verificará mais à frente, uma «restrição» ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta, na acepção do seu artigo 52.°, n.° 1, deve examinar‑se, em terceiro lugar, em que condições esta será admissível, devendo a atenção centrar‑se na exigência de estar «prevista por lei». Com efeito, tendo em conta os termos da questão prejudicial e de forma a dar‑lhe uma resposta útil, não deverá ser necessário confrontar a medida com as outras condições previstas na referida disposição.

43.      Em terceiro e último lugar, é à luz destas considerações que será examinada a questão de saber se, do ponto de vista dos utilizadores dos serviços da Scarlet e dos internautas em geral, uma medida como a solicitada pode ser adoptada unicamente com base nas disposições legais do direito nacional evocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

B –    Medida solicitada (injunção de cessação) e o «sistema» exigido (filtragem e bloqueio)

44.      Quanto a este aspecto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se um tribunal de um Estado‑Membro pode «ordenar a um [FAI] a instalação, relativamente a toda a sua clientela, em abstracto e a título preventivo, a expensas [suas] e sem limitação no tempo, de um sistema de filtragem de todas as comunicações electrónicas, tanto as que entram como as que saiem, que transitam pelos seus serviços, nomeadamente através da utilização de software [peer‑to‑peer], com vista a identificar na sua rede a circulação de ficheiros electrónicos contendo uma obra musical, cinematográfica ou audiovisual sobre a qual o requerente alega possuir direitos, e bloquear de seguida a transferência desses ficheiros, seja no momento do pedido, seja no momento do envio», e tudo isto sob a forma de uma injunção de cessação.

45.      Baseando‑me nos termos e expressões utilizados nesta parte da questão, analisarei as características do próprio sistema de filtragem e de bloqueio e a medida de injunção solicitada.

1.      Sistema de filtragem e de bloqueio

46.      O «sistema» a instalar é duplo. Em primeiro lugar, deve garantir a filtragem de todas as comunicações de dados que transitam pela rede da Scarlet, a fim de detectar ou se se preferir, isolar, as que impliquem uma violação dos direitos de autor (26). Em segundo lugar, a partir dessa filtragem, o sistema deve garantir o bloqueio das comunicações que impliquem efectivamente uma violação dos direitos de autor, seja «no momento do pedido» seja «no momento do envio» (27). Na medida em que a eficácia do sistema de filtragem é uma condição de eficácia do mecanismo de bloqueio, estas duas operações, apesar de estarem estreitamente ligadas, revelam uma natureza muito diferente e têm, portanto, diferentes implicações.

i)      Mecanismo de «filtragem»

47.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que a medida solicitada exigiria à Scarlet, antes de mais, a instalação, relativamente a toda a sua clientela, de um sistema de filtragem de todas as comunicações electrónicas, tanto as que entram como as que saem, transitando pelos seus serviços, nomeadamente através de software peer‑to‑peer. Precisa que o objectivo prosseguido por essa filtragem é «identificar […] a circulação de ficheiros electrónicos contendo uma obra musical, cinematográfica ou audiovisual sobre a qual [a Sabam] alega possuir direitos».

48.      O objecto do controlo está definido de forma precisa como devendo permitir filtrar as comunicações electrónicas que transitam pelos serviços da Scarlet, tanto as que entram como as que saem. Esta filtragem deve ela própria permitir identificar os «ficheiros electrónicos» enviados e recebidos pelos assinantes dos serviços da Scarlet que alegadamente violam direitos de autor ou direitos conexos. O controlo a instalar, que inclui uma fase de filtragem e uma fase de identificação, é, portanto, essencialmente definido pelos resultados que deve produzir relativamente ao objectivo de bloqueio dos ficheiros detectados que violem um direito de propriedade intelectual. Deve também poder adaptar‑se às evoluções tecnológicas. Para ser eficaz, deve ser simultaneamente sistemático, universal e evolutivo (28).

49.      Há que dizer que nem o órgão jurisdicional de reenvio nem a Sabam fornecem a mais pequena indicação sobre as modalidades concretas segundo as quais esse controlo pode ou deve realizar‑se, nem no que diz respeito às técnicas de filtragem nem sobre os procedimentos de identificação dos ficheiros que supostamente foram pirateados (29). Em concreto, o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhuma precisão sobre a intensidade ou a profundidade do controlo a efectuar.

50.      Embora se deva recordar a este respeito que não incumbe ao Tribunal de Justiça, mas sim exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio, se necessário, examinar os aspectos técnicos desta questão (30), importa, no entanto, precisar que a natureza da filtragem a efectuar não é, manifestamente, destituída de incidência no plano jurídico (31).

ii)    Mecanismo de «bloqueio»

51.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que o mecanismo de bloqueio deve poder ser accionado seja «no momento do envio» seja «no momento do pedido» mas não fornece qualquer precisão suplementar sobre o modus operandi desse mecanismo. A Sabam insiste na ideia de que o mecanismo a instalar se define essencialmente pela sua finalidade, a sua aptidão para «impossibilitar qualquer forma de envio ou recepção pelos seus clientes, através de um software peer‑to‑peer, de ficheiros electrónicos que contenham uma obra musical do repertório da Sabam». Precisa que se trata de impedir a transmissão de determinadas informações através da entrega de mensagens ditas «time out», que indicam a impossibilidade de proceder à transmissão.

52.      Na realidade, é impossível (32) descrever o modo de funcionamento concreto, o modus operandi, do sistema de filtragem e do mecanismo de bloqueio cuja instalação seria imposta pela medida solicitada. O alcance da filtragem exigida, isto é, simultaneamente as pessoas e as comunicações em causa no controlo a efectuar e a intensidade do controlo é, ao mesmo tempo muito geral e em parte indeterminado. Por conseguinte, nem o seu impacto concreto no intercâmbio de dados nem o seu custo económico global, em especial o custo da instalação e os custos de manutenção, podem ser determinados a priori.

2.      Características da medida de injunção

53.      A natureza e as principais características do sistema de filtragem e de bloqueio exigido, tal como descritas, têm um impacto directo na própria natureza da medida solicitada ao órgão jurisdicional de reenvio. O alcance muito geral do sistema a instalar faz com que os âmbitos de aplicação ratione personae e ratione materiae da medida solicitada sob a forma de injunção tenham eles próprios forçosamente um carácter geral, tal como o seu âmbito de aplicação ratione temporis, segundo precisa o órgão jurisdicional de reenvio.

54.      A medida solicitada apresenta também outras características que importa salientar. Por um lado, exigiria à Scarlet, a título preventivo, uma obrigação de resultado sob pena de uma sanção pecuniária compulsória e, por outro, obriga‑la‑ia a suportar os custos da instalação do sistema de filtragem e de bloqueio. Esta medida define‑se, portanto, também pelo seu objectivo principal, que é delegar nos FAI a responsabilidade jurídica e económica da luta contra a teledescarga ilegal de obras pirateadas na Internet. Vejamo‑las com mais atenção.

a)      «sem limitação no tempo»: âmbito de aplicação ratione temporis da medida

55.      O órgão jurisdicional precisa que a medida é solicitada «sem limitação no tempo». Por seu turno, a Sabam confirmou nos seus articulados que a injunção solicitada não devia ser objecto de uma limitação no tempo, salvo a inerente à duração dos próprios direitos de autor. Insiste também na dimensão evolutiva da medida, que deve ser adaptada à evolução tecnológica e deve, portanto, ser objecto de adaptação.

56.      A medida solicitada imporia assim à Scarlet e, como se verá, de uma forma mais ampla aos FAI em geral, uma obrigação permanente e perpétua de investigar, testar, instalar e actualizar um sistema de filtragem e de bloqueio exclusivamente definido em função da eficácia dos seus resultados relativamente ao objectivo prosseguido de protecção dos direitos de propriedade intelectual.

b)      «todas as comunicações electrónicas, tanto as que entram como as que saem»: âmbito de aplicação ratione materiae da medida

57.      Como vimos, as comunicações sujeitas à filtragem e, sendo caso disso, ao bloqueio, não são objecto de nenhuma especificação. Não é possível determinar se os controlos devem afectar todas as comunicações ou apenas as que ocorrem através de um software peer‑to‑peer, mas afigura‑se, contudo, que o controlo a instalar deve ser, para produzir resultados eficazes, simultaneamente sistemático e universal.

58.      Por conseguinte, a medida solicitada, apresentada como uma mera injunção dirigida a um FAI no âmbito de um processo cível para declaração e punição de uma violação de direitos de propriedade intelectual e reparação dos danos daí resultantes, visa, na realidade a instalação permanente e perpétua de um mecanismo sistemático e universal de filtragem de todas as comunicações electrónicas que transitam pelos serviços do referido FAI.

c)      «em relação a toda a sua clientela»: âmbito de aplicação ratione personae da medida

59.      Como consequência directa do controlo da totalidade da filtragem das comunicações, o sistema a instalar está concebido para abranger os comportamentos de todos os utilizadores dos serviços do FAI em causa e não apenas dos seus assinantes. Como a Sabam precisou nos seus articulados, importa pouco que a comunicação tenha origem ou destino num cliente do FAI. Para ser eficaz, o sistema deve funcionar, segundo os próprios termos da questão prejudicial, sem que as pessoas que supostamente ocasionaram as violações dos direitos de autor cometidas sejam previamente individualizadas e independentemente de qualquer relação contratual entre estas e o FAI.

60.      O sistema a instalar deve poder bloquear o envio por qualquer internauta assinante da Scarlet a qualquer outro internauta, seja ou não assinante da Scarlet, de qualquer ficheiro susceptível de violar um direito de que a Sabam assegura a gestão, cobrança e protecção. Mas deve também poder bloquear a recepção por qualquer internauta assinante da Scarlet de qualquer ficheiro susceptível de violar os direitos de autor enviado por qualquer outro internauta, assinante ou não da Scarlet. O sistema deve permitir o bloqueio de qualquer ficheiro cujo conteúdo provenha do repertório da Sabam sem que a violação dos direitos de autor seja prévia e especificamente individualizada.

61.      Por outro lado, é imperativo pôr em evidência uma outra dimensão do enorme alcance da medida solicitada. Embora seja claro que o litígio no processo principal opõe apenas a Sabam à Scarlet, resulta contudo do despacho de reenvio e dos articulados dos diferentes intervenientes que o alcance do litígio ultrapassa necessariamente os interesses das partes no processo principal. A resolução que venha a ser dada a este litígio está inegavelmente vocacionada para ser alargada e generalizada não apenas a todos os FAI mas também e mais amplamente a outros importantes operadores da Internet (33), não só no Estado‑Membro que está na origem das questões prejudiciais, mas também em todos os Estados‑Membros, ou mesmo para além deles (34). Com efeito, como já salientei, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que lhe indique se o direito da União se opõe a que lhe seja reconhecido o poder de adoptar uma medida como a solicitada e, mais genericamente, se se opõe a que os titulares dos direitos possam intensificar a sua luta contra a teledescarga ilegal multiplicando pedidos desta natureza em todos os Estados‑Membros e para além deles (35).

62.      Consequentemente, a medida solicitada, apresentada como uma injunção dirigida a uma pessoa colectiva identificada impondo‑lhe a obrigação de instalar um sistema de filtragem e de bloqueio, é, na realidade, destinada a afectar duradouramente um número indeterminado de pessoas colectivas ou singulares, de FAI ou de internautas, de prestadores de serviços da sociedade da informação e de utilizadores dos referidos serviços.

d)      «em abstracto e a título preventivo»: função preventiva e dissuasora da medida solicitada

63.      O órgão jurisdicional de reenvio tem o cuidado de indicar que lhe é pedido que aplique à Scarlet a medida solicitada «em abstracto» e «a título preventivo», sem contudo precisar o que entende exactamente por isso. Pode, todavia, supor‑se que a medida solicitada não tem por objecto impor a um FAI uma obrigação de actuar baseada na verificação, in concreto, por um tribunal, no âmbito de uma acção cível, de uma violação efectiva, ou ainda de um risco de violação iminente, de um direito de autor ou de direitos conexos. Assim, esta medida é concebida como uma medida simultaneamente preventiva e dissuasora (36).

e)      «a expensas suas»: responsabilidade pelos custos relativos à execução da medida solicitada

64.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que os custos de instalação do sistema de filtragem e de bloqueio solicitado devem ser suportados pelo fornecedor. Deste ponto de vista, a medida em causa tem por efeito transferir para a Scarlet o encargo, de forma alguma insignificante, dos custos inerentes às acções cíveis que devem normalmente ser intentadas pelos titulares de direitos de autor ou de direitos conexos, ou pelos seus sucessores, com vista a obter a declaração e a punição das violações dos referidos direitos e, se for o caso, a correspondente reparação.

65.      O impacto económico directo da medida em causa (37), que na realidade não foi objecto de nenhuma avaliação, nem podia ter sido (38), é, além disso, agravado pelas sanções pecuniárias compulsórias que podem acompanhar a medida solicitada e, em especial a destinada a punir os atrasos na instalação do sistema de filtragem e de bloqueio.

3.      Conclusão intercalar

66.      Resulta das considerações precedentes que a medida solicitada, ao impor a um FAI a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio como o acima descrito, afigura‑se na realidade uma «obrigação» nova de carácter geral destinada a ser alargada, a prazo, de forma permanente a todos os FAI. Em si mesma não apresenta as características de tangibilidade e de individualização que normalmente se esperam de qualquer resposta ou reacção a uma conduta supostamente específica e determinada. Em resposta a violações mais ou menos individualizadas de direitos de propriedade intelectual, pede‑se ao órgão jurisdicional de reenvio que adopte uma medida que, repita‑se, devido à sua própria natureza, só pode ser geral sob todos os aspectos, pessoal, espacial e temporal.

67.      Seja‑me agora permitido referir que, nesta óptica, se a questão do órgão jurisdicional de reenvio só devesse ser abordada na perspectiva dos direitos e interesses da Scarlet, poderia, em aplicação do princípio da legalidade no seu sentido mais geral, ser‑lhe dada resposta negativa. Com efeito, como o Tribunal de Justiça realçou no seu acórdão Hoechst/Comissão, já referido (39), «as intervenções do poder público na esfera da actividade privada de qualquer pessoa, seja singular ou colectiva, devem ter fundamento legal e justificar‑se por razões previstas na lei». Esta exigência de protecção, reconhecida como um princípio geral do direito da União, é o corolário dos princípios da legalidade e da segurança jurídica, decorrentes eles próprios da ideia do Estado de direito (40). Assim, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o princípio da segurança jurídica exige que uma regulamentação que imponha encargos ao contribuinte (41), que acarrete consequências desfavoráveis para os particulares (42), ou ainda que imponha medidas restritivas com importantes repercussões nos direitos e liberdades das pessoas designadas (43) seja clara e precisa de forma a que os interessados possam conhecer sem ambiguidade os seus direitos e obrigações e adoptar as suas disposições em conformidade (44). Ora, como terei oportunidade de demonstrar pormenorizadamente mais à frente (45), se nos centrarmos na perspectiva dos utilizadores dos serviços da Scarlet e dos internautas em geral, a disposição legal nacional com base na qual pode ser adoptada a obrigação imposta à Scarlet não responde, entre outras, a essas exigências.

68.      Por outro lado, e seguindo a abordagem defendida acertadamente pela Comissão, verifica‑se com bastante clareza que não existe uma relação de proporcionalidade entre a violação denunciada dos direitos de propriedade intelectual e a medida solicitada. Mas essa não é, na minha opinião, a questão que se coloca a título principal. A questão que se coloca é a de saber se esta nova «obrigação» de instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio com as características acima descritas pode, atendendo ao seu impacto nos direitos fundamentais dos utilizadores dos serviços dos referidos FAI, a saber, os internautas, ser imposta aos FAI sob a forma de uma injunção e com um fundamento legal que ainda deve ser objecto de exame.

C –    Qualificação da medida à luz das directivas e dos artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta: uma «restrição» na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta

69.      A questão prejudicial versa sobre a interpretação pelo Tribunal de Justiça das «Directivas 2001/29 e 2004/48, conjugadas com as Directivas 95/46, 2001/31 e 2002/58, interpretadas à luz dos artigos [7.°, 8.°, 11.° e 52.°, n.° 1, da Carta]». Trata‑se, essencialmente, de determinar se, nos termos da legislação nacional existente, este conjunto normativo, composto de direito primário e derivado da União, confere aos tribunais dos Estados‑Membros a possibilidade de concederem por via de injunção uma medida como acima descrita. É, contudo, à luz do direito primário que o processo principal deve ser primordialmente examinado e o direito derivado interpretado, uma vez que, como se verá mais à frente, a medida em questão afecta directamente os direitos e liberdades garantidos pelos artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta. Esta afirmação exige algumas observações preliminares.

70.      Importa recordar aqui que as directivas citadas na questão constituem o quadro jurídico em que é suposto inscrever‑se a adopção da medida solicitada (46), considerando uns que as referidas directivas autorizam ou não impedem essa adopção, e outros, pelo contrário, que as directivas não permitem ou impedem mesmo essa adopção (47). As directivas em causa fazem referência, de forma mais ou menos explícita, aos direitos fundamentais garantidos pela CEDH e agora pela Carta  (48). No acórdão Promusicae, o Tribunal de Justiça decidiu que cabe aos Estados‑Membros assegurar, na transposição e na aplicação dessas directivas, a manutenção de um justo equilíbrio entre os direitos fundamentais que as directivas visam garantir.

71.      Como é sabido, os artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta garantem, respectivamente, o direito ao respeito da vida privada e familiar, o direito à protecção dos dados pessoais e a liberdade de expressão e de informação. Não é de todo necessário salientar que no caso em apreço estão em causa outros direitos fundamentais, em especial o direito de propriedade, garantido pelo artigo 17.°, n.° 1, da Carta e, mais especificamente, o direito ao respeito da propriedade intelectual, garantido pelo artigo 17.°, n.° 2, da Carta, cuja violação em consequência da teledescarga ilegal na Internet assume proporções de grande escala, que evidentemente estão no centro do litígio no processo principal. Contudo, atendendo à medida solicitada e ao sistema de filtragem e de bloqueio exigido bem como aos termos da questão submetida, são principalmente os direitos garantidos pelos artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta que estão em causa, uma vez que o direito de propriedade só é afectado de forma secundária, na medida em que a instalação do sistema deve estar exclusivamente a cargo do FAI (49).

72.      É nestes termos que se deve agora colocar a questão de saber se a medida solicitada pode ser qualificada como «restrição» aos direitos e liberdades, na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta, interpretado à luz dos artigos 8.°, n.° 2, e 10.°, n.° 2, da CEDH. Se a referida medida enquanto tal dever ser qualificada de restrição (50), haverá então que verificar se cumpre as diferentes condições estabelecidas nestas disposições.

1.      «…interpretadas à luz dos artigos 7.° e 8.° da Carta…»: quanto ao respeito da vida privada e ao direito à protecção dos dados pessoais

73.      Deve examinar‑se sucessivamente a medida solicitada enquanto possível restrição ao direito à protecção dos dados pessoais, por um lado, e ao direito ao respeito da confidencialidade das comunicações, por outro. De uma forma geral, como a Comissão já declarou algumas vezes (51), a possibilidade de permanecer anónimo é essencial se quisermos preservar os direitos fundamentais à vida privada no ciberespaço. No entanto, embora se afigure claramente que as Directivas 95/46 e 2002/58 devem ser interpretadas à luz dos artigos 7.° e 8.° da Carta (52), lidos, se for o caso, à luz do artigo 8.° da CEDH (53), muito menos claro é o vínculo que liga o direito à protecção dos dados pessoais (artigo 8.° da Carta) à instalação do sistema de filtragem e de bloqueio (54).

a)      Protecção dos dados pessoais (artigo 8.° da Carta)

74.      Há uma certa dificuldade em avaliar a incidência concreta de um sistema de filtragem e de bloqueio no direito à protecção dos dados pessoais. Uma primeira dificuldade consiste em identificar os dados pessoais em causa, uma vez que, com excepção do que diz respeito aos «endereços IP» (55), esses dados não estão identificados com clareza. A neutralidade tecnológica reivindicada pela Sabam implica, com efeito, que não é possível, a priori, determinar se o sistema a instalar implica um tratamento de dados pessoais. Não é possível, a fortiori, determinar se implica a recolha e cancelamento de endereços IP.

75.      Uma segunda dificuldade consiste em determinar se os endereços IP constituem dados pessoais. Até agora o Tribunal de Justiça só julgou casos em que estavam em causa dados nominativos relacionados com os endereços IP (56). Em contrapartida, nunca teve oportunidade de analisar se um endereço IP podia ser considerado, enquanto tal, como um dado pessoal (57).

76.      Por seu turno, a Autoridade Europeia para a Protecção de Dados teve ocasião de referir (58) que «a vigilância do comportamento de um utilizador na Internet e a recolha dos seus endereços IP equivalem a uma ingerência nos seus direitos de respeito da vida privada e da inviolabilidade de correspondência» (59). O Grupo de protecção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais, instituído pela Directiva 95/46 (60), também considera que os endereços IP constituem, sem dúvida, dados pessoais, na acepção do artigo 2.°, alínea a), da referida directiva (61).

77.      Estas tomadas de posição correspondem à realidade jurídica decorrente do artigo 5.° da Directiva 2006/24/CE (62), que obriga os fornecedores de acesso à Internet, nomeadamente, a conservar, para efeitos de investigação, detecção e repressão de crimes graves, um determinado número de dados. São referidos, em especial, por um lado, os «dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação», entre eles, o nome e o endereço do assinante ou do utilizador registado a quem é atribuído um endereço IP e, por outro, os dados necessários para determinar «a data e a hora do início (log‑in) e do fim (log‑off) da ligação ao serviço de acesso à Internet com base em determinado fuso horário, juntamente com o endereço do protocolo IP, dinâmico ou estático, atribuído pelo fornecedor do serviço de acesso à Internet a uma comunicação […]».

78.      Nesta perspectiva, um endereço IP pode ser qualificado de dado pessoal na medida em que pode permitir a identificação de uma pessoa, através da referência a um número de identificação ou a qualquer outro elemento que seja próprio dessa pessoa (63).

79.      Assim, questão que se coloca não é tanto saber qual é o estatuto jurídico dos endereços IP, mas sim determinar em que condições e para que efeitos podem os mesmos ser recolhidos, em que condições se pode proceder ao seu cancelamento e ao tratamento de dados pessoais daí resultante, ou ainda em que condições pode ser exigido que se proceda à sua recolha ou ao seu cancelamento (64).

80.      O que importa aqui reter é que, não obstante as incertezas de carácter tecnológico evocadas acima, um sistema de filtragem e de bloqueio como o exigido é indiscutivelmente susceptível de afectar o direito à protecção dos dados pessoais (65)num grau suficientemente elevado para permitir a sua qualificação como restrição, na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta.

b)      Confidencialidade das comunicações electrónicas (artigo 7.° da Carta)

81.      A instalação de um sistema de filtragem das comunicações electrónicas como o exigido tem também consequências no direito ao respeito da correspondência e, mais amplamente, no direito à confidencialidade das comunicações garantido pelo artigo 7.° da Carta (66), interpretado à luz do artigo 8.° da CEDH e da jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

82.      O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não teve ainda oportunidade de se pronunciar sobre a compatibilidade de medidas específicas de controlo das comunicações electrónicas com a CEDH nem a fortiori de um sistema de filtragem e de bloqueio como o exigido. Pode contudo considerar‑se que, à luz da jurisprudência relativa a escutas telefónicas (67), essas medidas constituiriam ingerências, na acepção do artigo 8.° da CEDH. De resto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já decidiu que a recolha e a conservação de dados pessoais, sem que o interessado esteja ao corrente, relacionados com a utilização do telefone, do correio electrónico e da Internet constituíam uma «ingerência» no exercício do direito do interessado ao respeito da sua vida privada e da sua correspondência, na acepção do artigo 8.° da CEDH (68).

83.      Por seu turno, o artigo 5.° da Directiva 2002/58 (69) define e garante a confidencialidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis. Esta disposição impõe, em particular aos Estados‑Membros, a obrigação de proibir qualquer vigilância ou intercepção dessas comunicações fora dos casos legalmente previstos no artigo 15.° da referida directiva. Esta última disposição autoriza os Estados‑Membros a adoptar medidas legislativas para restringir o âmbito do direito à confidencialidade das comunicações sempre que essa restrição constitua uma medida necessária para garantir, nomeadamente, a prevenção, a investigação, a detecção e a repressão de infracções penais. As medidas susceptíveis de serem adoptadas devem, em qualquer caso, «ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.° do Tratado da União Europeia».

2.      «…interpretadas à luz do artigo 11.° da Carta»: quanto à garantia da liberdade de expressão e do direito à informação

84.      O artigo 11.° da Carta, que garante não só o direito de enviar informações, mas também de as receber (70), é naturalmente aplicável à Internet (71). Como salientou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, «devido à sua acessibilidade e à sua capacidade de conservar e difundir grandes quantidades de dados, os sítios Internet contribuem em grande medida para melhorar o acesso do público à actualidade e, de forma geral, para facilitar a comunicação e a informação» (72).

85.      Como a Scarlet salientou, não há dúvida de que a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio como o que é solicitado e muito especialmente o mecanismo de bloqueio, que pode implicar um controlo de todas as comunicações electrónicas que circulam nos seus serviços constitui, por definição, uma «restrição», na acepção do artigo 10.° da CEDH, à liberdade de comunicação consagrada no artigo 11.°, 1, da Carta (73), independentemente das modalidades técnicas segundo as quais o controlo das comunicações é concretamente realizado, do alcance e da amplitude do controlo efectuado e da eficácia e da fiabilidade do controlo efectivamente operado, aspectos que, como acima salientei, estão sujeitos a discussão.

86.      Como a Scarlet alega, um sistema combinado de filtragem e de bloqueio afectará inevitavelmente as trocas lícitas de conteúdos e, portanto, terá repercussões no conteúdo dos direitos garantidos pelo artigo 11.° da Carta, quanto mais não seja apenas porque o carácter lícito ou não de uma comunicação determinada, que depende do alcance do direito de autor em causa, varia de país para país e é, por isso, alheio à técnica. Tanto quanto é possível depreender, nenhum sistema de filtragem e de bloqueio pode garantir, de uma forma compatível com as exigências dos artigos 11.° e 52.°, n.° 1, da Carta, o bloqueio apenas das trocas especificamente identificáveis como ilícitas.

3.      Conclusão intercalar

87.      Resulta das considerações que antecedem que a medida solicitada, ao impor a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio das comunicações electrónicas como o descrito acima, é susceptível de afectar negativamente o gozo de direitos e liberdades protegidos pela Carta como os que foram analisados e deve, por isso, ser qualificada, em relação aos utilizadores dos serviços da Scarlet e aos utilizadores da Internet em geral, de «restrição», na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta (74). Ora as restrições ao exercício dos direitos fundamentais dos utilizadores que implicaria a instalação desse sistema de filtragem e de bloqueio só são admissíveis desde que respeitem um determinado número de condições que cabe examinar agora.

D –    Quanto às condições para a restrição do exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta e em particular a condição relativa à «qualidade da lei» (artigo 52.°, n.° 1, da Carta)

88.      Nos termos conhecidos, a Carta enuncia as condições a que está sujeita qualquer restrição ao exercício dos direitos e das liberdades que reconhece, da mesma forma que a CEDH define as condições em que, nomeadamente, pode ser considerada legítima uma ingerência no direito à vida privada ou uma restrição à liberdade de expressão.

89.      O artigo 52.° da Carta refere assim a «necessidade de protecção dos direitos e liberdades de terceiros» e a necessidade de qualquer medida desta natureza prosseguir «objectivos de interesse geral» e respeitar o princípio da proporcionalidade. Embora a defesa dos direitos de propriedade intelectual constitua garantidamente um objectivo de interesse geral, como demonstram as Directivas 2001/29 e 2004/48, nas circunstâncias do processo principal, no entanto, a principal justificação do sistema de filtragem e de bloqueio reside na necessidade de protecção dos «direitos e liberdades de terceiros». A «necessidade de protecção dos direitos» dos titulares dos direitos de autor ou de direitos conexos é um aspecto fulcral do caso em apreço, sendo a causa essencial da acção cível intentada pela Sabam contra a Scarlet.

90.      Importa, com efeito, salientar aqui, de forma veemente, que o direito de propriedade intelectual está agora consagrado no artigo 17.° da Carta, cujo n.° 2 afirma expressamente, importa não esquecer, que «[é] protegida a propriedade intelectual». Recordarei também que o Tribunal de Justiça tinha anteriormente consagrado o direito de propriedade como um direito fundamental que é parte integrante dos princípios gerais de direito (75) e reconhecido que os direitos de autor fazem parte do direito de propriedade (76). As próprias Directivas 2001/29 e 2004/48 (77) têm por finalidade garantir um nível elevado de protecção da propriedade intelectual. Por outro lado, segundo jurisprudência reiterada da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a propriedade intelectual beneficia enquanto tal, indiscutivelmente, da protecção do artigo 1.° do Protocolo n.° 1 da CEDH (78).

91.      Por último, o Tribunal de Justiça indicou que a razão fundamental dos direitos de autor é a de conferir ao criador de obras inventivas e originais o direito exclusivo de explorar essas obras (79). O direito de autor e os direitos conexos apresentam assim natureza económica, uma vez que abrangem, nomeadamente, a faculdade de explorar comercialmente a colocação no mercado da obra protegida sob a forma, nomeadamente, de licenças concedidas mediante o pagamento de direitos (80).

92.      Encontramo‑nos seguramente na presença de uma «necessidade de protecção de um direito», na acepção do artigo 52.°, n.° 1, da Carta que pode legitimar a «restrição» de outros direitos e liberdades na acepção desta mesma disposição.

93.      Precisado isto, é de observar que, para fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil à sua questão, não é necessário proceder ao exame pormenorizado de todas as condições de admissibilidade de restrições aos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio questiona especificamente este Tribunal sobre a questão de saber se a restrição ao exercício dos direitos e liberdades que, como acabo de expor, constituiria a instalação do sistema de filtragem e de bloqueio exigido pode ter lugar «com base numa única disposição legal» nacional, o artigo 87.°, n.° 1, da Lei de 30 de Junho de 1994 relativa aos direitos de autor e aos direitos conexos, que, de resto, o órgão jurisdicional de reenvio cita integralmente. Este aspecto da questão prejudicial exige, prioritariamente, o exame da primeira condição definida no artigo 52.°, n.° 1, da Carta, a de a restrição ser «prevista por lei», que é literalmente comum aos artigos 8.°, n.° 2, e 10.°, n.° 2, da CEDH, exame que será efectuado à luz das decisões pertinentes do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que interpretam estas últimas disposições que, como já salientei, formam com o tempo um corpus jurisprudencial particularmente rico que me permite determinar os contornos desta condição.

94.      O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou reiteradamente que as disposições da CEDH que subordinam a ingerência no exercício de um direito ou a restrição ao exercício de uma liberdade que ela garante à condição de ser «prevista por lei» (81) implicam não só que a medida assente numa base legal enquanto tal, tenha «uma base no direito interno», mas impõem, além disso, exigências relacionadas com «a qualidade da lei em causa» (82) para utilizar uma expressão do referido Tribunal. Esta «lei» deve, com efeito, ser «suficientemente acessível e previsível, isto é, formulada com precisão suficiente para permitir ao interessado – procurando, se necessário, a assessoria jurídica adequada – ajustar a sua conduta ao direito», «prever as consequências da mesma para si» (83) e «prever com um grau razoável de certeza, nas circunstâncias do caso, as consequências que podem resultar de um determinado acto» (84).

95.      A «lei» deve, portanto, ser suficientemente clara (85) e previsível quanto ao sentido e à natureza das medidas aplicáveis (86), bem como definir com suficiente nitidez a amplitude e as modalidades do exercício do poder de ingerência no exercício dos direitos garantidos pela CEDH (87). Uma lei que confere um poder de apreciação não contradiz em si mesma tal exigência, desde que a amplitude e as modalidades do exercício desse poder estejam definidas com nitidez suficiente, atendendo ao objectivo legítimo prosseguido, para proporcionar ao indivíduo uma protecção adequada contra a arbitrariedade (88). Assim, uma lei que confere um poder de apreciação deve determinar o alcance do mesmo (89).

96.      Consequentemente, uma restrição só é admissível se assentar numa base legal de direito interno, base essa que deve ser acessível, clara e previsível (90), condições que decorrem todas da ideia do primado do direito (91). É desta exigência do primado do direito que deriva (92) a necessidade da acessibilidade e da previsibilidade da lei no que se refere à pessoa em causa (93).

97.      Por conseguinte, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a condição de que qualquer restrição deve ser «prevista por lei» implica que a actuação dos titulares da autoridade pública se inscreva nos limites definidos previamente pelas normas jurídicas o que «impõe determinadas exigências a que devem responder tanto as próprias normas jurídicas como os procedimentos destinados a impor o seu cumprimento efectivo» (94).

98.      O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou também que o alcance do conceito de previsibilidade e de acessibilidade da lei depende em larga medida do conteúdo do texto em causa, do domínio que abrange, bem como do número e da qualidade dos seus destinatários (95). A previsibilidade da lei não se opõe a que a pessoa em causa recorra a aconselhamento especializado a fim de avaliar com um grau razoável de certeza, nas circunstâncias do caso, as consequências que podem resultar de determinado acto (96). É, em especial, o que acontece com os profissionais habituados a ter de fazer prova de grande prudência no exercício da sua profissão.

99.      Por último, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve oportunidade de precisar que se deve entender o termo «lei» na sua acepção «material» e não apenas na sua acepção formal, no sentido de que ela pode incluir tanto o «direito escrito» como o «direito não escrito» ou ainda o «direito de criação judicial» (97). Deste ponto de vista, pode ser necessário, nomeadamente, ter em conta, se for caso disso, a jurisprudência. Em determinadas circunstâncias, «uma jurisprudência constante» publicada, portanto acessível e seguida pelos tribunais inferiores, pode completar uma disposição legislativa e clarificá‑la até ao ponto de a tornar previsível (98).

100. Em conclusão, tanto a Carta como a CEDH admitem a possibilidade de uma restrição ao exercício dos direitos e liberdades, de uma ingerência no exercício dos direitos ou de uma restrição ao exercício das liberdades que garantem desde que, nomeadamente, sejam «previstas por lei». O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, baseando‑se fundamentalmente no princípio do primado do direito consagrado no preâmbulo da CEDH, construiu a partir desta expressão, e essencialmente através do conceito de «qualidade da lei» (99), uma verdadeira doutrina, segundo a qual qualquer limitação, ingerência ou restrição deve previamente ser objecto de uma previsão legal, pelo menos no sentido material do termo, que seja suficientemente precisa à luz do objectivo que prossegue, isto é, conforme a exigências mínimas. Esta jurisprudência deve ser tida em consideração pelo Tribunal de Justiça na interpretação do alcance das correspondentes disposições da Carta.

E –    «com base numa única disposição legal»: exame da legislação nacional à luz da condição relativa à «qualidade da lei» (artigo 52.°, n.° 1, da Carta)

101. Chegados a esta fase do exame, falta apenas responder à questão de saber se a base legal que o órgão jurisdicional de reenvio identificou no ordenamento jurídico do Estado‑Membro é, do ponto de vista dos utilizadores dos serviços dos FAI e dos internautas em geral, efectivamente susceptível de constituir a «lei» exigida pela Carta, na acepção da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acima examinada, adaptada, se for caso disso, às especificidades da ordem jurídica da União.

102. Começo por recordar o teor literal da disposição legal nacional em causa, em concreto o artigo 87.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Lei de 30 de Junho de 1994 relativa aos direitos de autor e aos direitos conexos, que o órgão jurisdicional de reenvio teve grande cuidado em reproduzir in extenso na própria questão prejudicial: «[o presidente do tribunal de primeira instância ou o presidente do tribunal de comércio] podem igualmente dirigir uma injunção de cessação aos intermediários cujos serviços sejam utilizados por um terceiro para violar direitos de autor ou um direito conexo».

103. Dito isto, não há dúvida de que o direito belga contém «uma» base legal para a adopção, no âmbito de uma acção cível intentada para obter a declaração, a punição e a reparação de uma violação dos direitos de autor ou dos direitos conexos, de uma injunção de cessação dirigida, como no processo principal, a um FAI como a Scarlet com o objectivo de garantir a cessação efectiva da referida violação. Contudo, o problema suscitado pela questão do órgão jurisdicional de reenvio não é o de saber se o órgão jurisdicional belga competente pode, de uma forma geral, adoptar uma injunção de cessação nesse contexto e com esse objectivo, mas sim se pode, à luz das exigências decorrentes da «qualidade da lei» na acepção da CEDH e, agora da Carta, ordenar uma medida do tipo da solicitada no caso em apreço com base no referido poder de injunção.

104. Nesta perspectiva, antes de mais, devo retomar a reflexão inicial sobre as características e, em última análise sobre a «natureza» da medida solicitada.

105. Como vimos acima, na perspectiva da Scarlet e dos FAI, a obrigação de instalar, exclusivamente a expensas suas, um sistema de filtragem e de bloqueio como o que está em causa é a tal ponto caracterizada ou mesmo singular, por um lado, e «nova» ou mesmo inesperada, por outro, que só pode ser admitida na condição de ter sido prevista de forma expressa, prévia, clara e precisa, numa «lei», na acepção da Carta. Ora, dificilmente se pode considerar que, ao adoptar a medida solicitada com base na disposição nacional em causa, o órgão jurisdicional nacional competente actue dentro dos limites expressa, prévia, clara e precisamente definidos pela «lei», em especial se tivermos em conta as disposições do artigo 15.° da Directiva 2000/31 (100). Do ponto de vista da Scarlet, a adopção por um tribunal belga de uma medida desta natureza era dificilmente previsível (101) e, tendo em conta as suas potenciais consequências económicas, roça mesmo a arbitrariedade.

106. Na perspectiva dos utilizadores dos serviços da Scarlet e dos internautas em geral, o sistema de filtragem exigido destina‑se a ser aplicado, independentemente das modalidades do seu funcionamento concreto, de forma sistemática e universal, permanente e perpétua, sem que a sua instalação seja acompanhada de alguma garantia específica no que se refere, nomeadamente, à protecção dos dados pessoais e à confidencialidade das comunicações. Por outro lado, o mecanismo de bloqueio destina‑se, independentemente também das modalidades do seu funcionamento concreto, a ser activado sem que seja expressamente prevista a possibilidade de as pessoas afectadas, isto é os internautas, se oporem ao bloqueio de um determinado ficheiro ou de impugnarem o fundamento desse bloqueio.

107. Dificilmente pode ser de outra forma, uma vez que a lei nacional em causa não tem de modo algum por objectivo autorizar os tribunais nacionais competentes a adoptarem uma medida de filtragem de todas as comunicações electrónicas dos assinantes dos FAI que exercem a sua actividade no território do Estado‑Membro em causa.

108. Consequentemente, a conclusão que se impõe é a de que a disposição em causa do direito nacional não pode, à luz dos artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta e, em especial, das exigências relativas à «qualidade da lei» e, mais genericamente, das exigências do primado do direito, ser considerada uma base legal suficiente para adoptar uma medida de injunção que impõe um sistema de filtragem e de bloqueio como o exigido no processo principal.

109. De resto, na óptica do conceito «material» de «lei», deve também observar‑se que não foi de forma alguma demonstrada a existência de uma jurisprudência abundante dos tribunais belgas que tenha repetido e aperfeiçoado a interpretação e a aplicação da disposição em causa do direito nacional, em conformidade com o direito da União e o direito da CEDH, no sentido da medida solicitada e que permitisse assim concluir pelo respeito da exigência de previsibilidade da lei (102).

110. Face ao exposto, não é necessário examinar a incidência do direito da União (103) na «qualidade» da base legal nacional. A este respeito, a advogada‑geral J. Kokott salientou nas suas conclusões apresentadas no processo Promusicae, já referido (104), que «[o] equilíbrio entre os direitos fundamentais em causa deve ser encontrado, antes de mais, pelo legislador da Comunidade» e que «os Estados‑Membros também são obrigados a ter esse equilíbrio em consideração, ao exercerem a faculdade de regulamentação que lhes é deixada no âmbito da transposição das directivas».

111. Suscita‑se, assim, a questão particularmente delicada da «responsabilidade» respectiva da União e dos Estados‑Membros, à luz das exigências do primado do direito acima examinadas, numa situação em que as directivas e as medidas nacionais de transposição são objecto de uma aplicação que implica a «restrição» de um direito garantido ou de uma liberdade reconhecida pela Carta. Contudo, os termos da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que visa expressamente as disposições da legislação nacional que supostamente transpõem as Directivas 2001/29 e 2004/48 relativas à protecção da propriedade intelectual, permitem‑me deixar provisoriamente de lado esta questão, depois de se ter apurado que nenhuma das directivas em causa impõe a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio como o exigido no processo principal.

112. Por último, deve ser rejeitada neste contexto a ideia de que as directivas em causa e, em especial, a Directiva 2000/31, devem ser objecto de uma interpretação actualizada, tendo em conta a evolução tecnológica e a utilização da Internet. Embora seja evidente, como reiteradamente declarou (105) o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a exigência de previsibilidade não implica uma certeza absoluta, a abordagem que defende a interpretação «viva» dos textos legais não pode suprir a inexistência de qualquer base legal nacional que faça referência expressa a um sistema de filtragem e de bloqueio das comunicações electrónicas. Uma interpretação do direito da União e, em especial, do artigo 15.° da Directiva 2000/31 no sentido de que permitem ou não se opõem à adopção de uma medida como a solicitada não respeita as exigências da «qualidade da lei» e viola os princípios da segurança jurídica (106) e da protecção da confiança legítima.

113. Seja‑me permitido acrescentar algumas considerações finais. Ao exigirem que qualquer «limitação» (ou «ingerência» ou «restrição») dos direitos e liberdades seja «prevista por lei», tanto a Carta como a CEDH remetem de forma muito específica para a função da lei, ou mais exactamente do direito, como fonte de tranquillitas publica e isto no domínio extremamente sensível que nos ocupa. Ora, a Carta não só exige que a lei «preceda» qualquer restrição dos direitos e liberdades, como também que essa restrição respeite o seu «conteúdo essencial», o que torna praticamente incontornável a intervenção do legislador no momento de definir a fronteira entre a restrição do direito e o território, em princípio intangível, do referido conteúdo essencial. Do mesmo modo, a Carta exige que qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades que ela reconhece respeite o princípio da proporcionalidade, obedeça ao princípio da necessidade e prossiga efectivamente objectivos de interesse geral reconhecidos pela União ou responda à necessidade de protecção dos direitos e liberdades de terceiros. À luz de todas estas condições, o que em minha opinião volta a faltar é a existência da própria «lei», entendida a «lei» como direito «deliberado», isto é, democraticamente legitimado. Com efeito, só a existência de uma lei no sentido parlamentar do termo teria permitido avançar no exame das outras condições que o artigo 52, n.° 1, da Carta estabelece. A este respeito, ter‑se‑ia podido afirmar que o artigo 52.°, n.° 1, da Carta incorpora uma exigência implícita de lei «deliberada», em correspondência com a intensidade do debate público. Contudo, o que aqui se discute é a exigência explícita de lei, enquanto «direito previamente estabelecido». E tendo‑se comprovado que, no caso em apreço, esta lei não existia, pode responder‑se à primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio.

114. Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda negativamente à primeira questão prejudicial submetida pela cour d’appel de Bruxelles e, consequentemente, declare que não é necessário responder à segunda questão, submetida a título subsidiário.

V –    Conclusão

115. Para concluir, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial colocada pela cour d’appel de Bruxelles nos termos seguintes:

«As Directivas 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, e 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual, conjugadas com as Directivas 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, e 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno (‘Directiva sobre o comércio electrónico’), interpretadas à luz dos artigos 7.°, 8.°, 11.° e 52.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e tendo em consideração os artigos 8.° e 10.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, devem ser interpretadas no sentido de que se opõem à adopção por um tribunal nacional, com base numa única disposição legal que prevê que ‘[o juiz] pode igualmente dirigir uma injunção de cessação aos intermediários cujos serviços sejam utilizados por um terceiro para violar os direitos de autor ou um direito conexo’ de uma medida que ordene ‘a um fornecedor de acesso à Internet [a instalação], em relação a toda a sua clientela, em abstracto e a título preventivo, a expensas exclusivas [desse fornecedor] e sem limitação no tempo, de um sistema de filtragem de todas as comunicações electrónicas, tanto as que entram como as que saem, transitando pelos seus serviços, nomeadamente através da utilização de softwarepeer‑to‑peer, com vista a identificar na sua rede a circulação de ficheiros electrónicos contendo uma obra musical, cinematográfica ou audiovisual sobre a qual o requerente alega possuir direitos, e bloquear de seguida a transferência desses ficheiros, seja no momento do pedido, seja no momento do envio’.»


1 – Língua original: francês.


2 – Não parece ser necessário salientar que o problema da pirataria na Internet é planetário, que deu lugar a respostas diferentes conforme os países, a maior parte das vezes judiciárias [contra os próprios utilizadores da Internet ou contra os prestadores do serviço, fornecedores de acesso Internet, fornecedores de hosting, editores de softwarespeer‑to‑peer ou de serviços [v., nomeadamente, processos Napster (A&M Records/Napster, 239 F.3d 1004, 9th Cir. 201) e Grokster (Metro‑Goldwyn‑Mayer Studios/Grokster, 125 S. Ct. 2764, 2005) nos Estados Unidos, o processo Kazaa na Austrália [Kazaa (2005) F. C. A. 1242] ou ainda o processo PirateBay na Suécia (Svea hovrätt), de 26 de Novembro de 2010, processo n.° B 4041‑09)]; respostas algumas vezes legislativas [por exemplo, em França, a Lei dita Hadopi, do nome da Haute Autorité pour la diffusion des œuvres et la protection des droits sur Internet, que a institui (Lei n.° 2009‑669, de 12 de Junho de 2009, que protege a difusão e a protecção da criação na Internet, JORF n°135 de 13 de Junho de 2009, p. 9666); em Espanha, Disposición final cuadragésima tercera de la Ley 2/2011, de 4 de Março, de Economía Sostenible (BOE de 5 de Março de 2011, Sec. I., p. 25033)], por vezes sui generis [v., por exemplo, o JointMemorandum of Understanding on an approach to reduce unlawful file sharing assinado em 2008 entre os principais fornecedores de acesso à Internet do Reino Unido e os representantes das indústrias da criação], abundantemente comentadas e das quais não é evidentemente possível dar aqui conta mesmo que sucintamente, e que o debate que suscita é em si mundial e particularmente controverso; para uma ideia da abordagem francesa do problema, v., nomeadamente, Derieux, E. e Granchet, A., La lutte contre le téléchargement ilegal, Lois DADVSI e HADOPI, Lamy Axe Droit, 2010; para uma ideia da abordagem defendida pela Comissão, v. o seu primeiro relatório, de 21 de Novembro de 2003, sobre a aplicação da Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno [COM(2003) 702 final, ponto 4.7]; o seu relatório de 22 de Dezembro de 2010 sobre a aplicação da Directiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual [COM(2010) 779 final, ponto 3.3] e a sua Comunicação de 16 de Julho de 2008, «Une stratégie dans le domaine des droits de propriété industrielle pour l’Europe», COM (2008) 465 final, ponto 5. 3. Pode também consultar‑se, entre os trabalhos realizados no âmbito do Conselho da Europa, a Recomendação CM/Rec(2008)6 do Comité dos Ministros dos Estados‑Membros, de 26 de Março de 2008, sobre as medidas destinadas a promover o respeito da liberdade de expressão e de informação relativamente aos filtros Internet e as orientações destinadas a ajudar os fornecedores de serviços Internet, de Julho de 2008; v. também, relatório da OCDE apresentado em 13 de Dezembro de 2005 ao Working Party on the Information Economy, Digital Broadband Content: Music, DSTI/ICCP/IE(2004)12/FINAL.


3 – A seguir «Carta».


4 – A seguir«CEDH».


5 – Assim, no plano jurídico, a qualificação jurídica dos actos de contrafacção em causa e a relevância das excepções para cópia privada não serão examinadas; no plano técnico, nem as técnicas de teledescarga ilegal nem os meios possíveis para a impedir podem ser examinados. De uma forma mais geral, remeter‑se‑á, a este respeito, para a abundante doutrina que a apreensão jurídica do fenómeno suscita.


6 – A seguir «FAI».


7 – Acórdão de 29 de Janeiro de 2008, C‑275/06, Colect., p. I‑271; conclusões da advogada‑geral J. Kokott de 18 de Julho de 2007.


8 – Um endereço IP é um endereço único que os dispositivos que comunicam em conformidade com o «Protocolo Internet» utilizam para se identificarem e comunicarem entre eles numa rede informática; v., em especial, Jon Postel ed., Internet Protocol, RFC 791, Setembro de 1981, http://www.faqs.org/rfcs/rfc791.html. V., também, as conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Promusicae, já referido, n.os 30 e 31.


9 – Na verdade, como se verá mais à frente, embora se exija que o FAI em causa instale um dispositivo «preventivo» de luta contra as violações dos direitos de propriedade intelectual, deve contudo salientar‑se que, no caso em apreço, o referido FAI é o destinatário de uma injunção adoptada em reacção a violações dos direitos de propriedade intelectual verificadas no âmbito de um processo cível.


10 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO L 167, p. 10).


11 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual (JO L 157, p. 45, e – rectificativos – JO 2004, L 195, p. 16, e JO 2007, L 204, p. 27).


12 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO L 281, p. 31).


13 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas (JO L 201, p. 37).


14 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («directiva sobre o comércio electrónico») (JO L 178, p. 1).


15 – Moniteur belge de 27 de Julho de 1994, p. 19297.


16 – A seguir «Scarlet».


17 – V., nomeadamente, em relação aos desenvolvimentos mais recentes, acórdãos de 14 de Outubro de 2010 Fuß (C‑243/09, n.° 66); de 9 de Novembro de 2010, Volker und Markus Schecke e Eifert (C‑92/09 e C‑93/09, n.os 45 e segs.), e B e D (C‑57/09 e C‑101/09, n.° 78); de 12 de Novembro de 2010, Asparuhov Estov (C‑339/10, n.° 12); de 23 de Novembro de 2010, Tsakouridis (C‑145/09, n.° 52); de 22 de Dezembro de 2010, DEB Deutsche Energiehandels‑und Beratungsgesellschaft (C‑279/09, n.° 30); Sayn‑Wittgenstein (C‑208/09, n.° 52); Gavieiro Gavieiro e Iglesias Torres (C‑444/09 e C‑456/09, n.° 75); Aguirre Zarraga (C‑491/10 PPU), e de 1 de Março de 2011, Association Belge des Consommateurs Test‑Achats e o. (C‑236/09, n.° 16).


18 – V., também neste sentido, as conclusões do advogado‑geral I. Bot de 5 de Abril de 2011 no processo C‑108/10, Scattollon.


19 – V. acórdãos de 5 de Outubro de 2010, McB. (C‑400/10 PPU, ainda não publicado na Colectânea, n.° 53), e DEB Deutsche Energiehandels‑und Beratungsgesellschaft já referido (n.° 35).


20 – V., também, a este respeito, as anotações destinadas a orientar a interpretação da Carta referidas no artigo 52.°, n.° 7, e, em especial, as relativas aos artigos 7.°, 8.°, 11.° e 52.° da Carta.


21 – Como o Tribunal de Justiça recordou no n.° 35 do acórdão DEB Deutsche Energiehandels‑und Beratungsgesellschaft, já referido, «o sentido e o âmbito dos direitos garantidos são determinados não apenas pela letra da CEDH, mas também, designadamente, pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», em conformidade com as anotações destinadas a orientar a interpretação da Carta referidas no seu artigo 52.°, n.° 7.


22 – V., a este respeito, as minhas conclusões de 1 de Março de 2011 no processo Samba Diouf (C‑69/10, n.° 42).


23 – Era este, precisamente, o sentido da questão que tive o cuidado de colocar pormenorizadamente na audiência aos diferentes intervenientes.


24 – Relativamente a meras «menções» da condição, v., nomeadamente, acórdãos de 21 de Setembro de 1989, Hoechst/Comissão (46/87 e 227/88, Colect., p. 2859, n.° 19); de 17 de Outubro de 1989, Dow Benelux/Comissão (85/87, Colect., p. 3137, n.os 30 e segs.); de 26 de Junho de 1997, Familiapress (C‑368/95, Colect., p. I‑3689, n.° 26); de 11 de Julho de 2002, Carpenter (C‑60/00, Colect., p. I‑6279, n.° 42), e de 1 de Julho de 2010, Knauf Gips/Comissão (C‑407/08 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 91); relativamente a um «controlo» da condição, v. acórdão Volker und Markus Schecke e Eifert, já referido, n.° 66. V. também as conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Promusicae, já referido, n.° 53.


25 – Na sequência dos desenvolvimentos será, assim, feita referência simplesmente à questão prejudicial no singular.


26 – A seguir «sistema de filtragem».


27 – A seguir «sistema de bloqueio».


28 – Não obstante, nos seus articulados, a Sabam salienta que a medida solicitada só visa as comunicações peer‑to‑peer. A expressão peer‑to‑peer (par‑a‑par) designa um método de comunicação segundo o qual os computadores ligados em rede em linha directa trocam, através de software que utiliza protocolos específicos, informações, que podem ser ficheiros (o file sharing sobre o qual versa o presente processo), mas também, por exemplo, serviços de telefone como o Skype. A título de exemplo, podem‑se citar os seguintes protocolos e softwares de file sharing: BitTorrent (Azureus, BitComet, Shareaza, MlDonkey…), eDonkey (eDonkey2000, MlDonkey), FastTrack (Kazaa, Grokster, iMesh, MlDonkey), Gnutella (BearShare, Shareaza, Casbos, LimeWire, MlDonkey…), Gnutella2 (Shareaza, Trustyfiles, Kiwi Alpha, FileScope, MlDonkey…), OpenNap (Napster, Lopster, Teknap, MlDonkey); para uma exposição mais detalhada do peer‑to‑peer, v., nomeadamente, Stevens R., Peer‑to‑Peer (P2P) Resource Sharing, Julho de 2010 (no sítio da Universidade de Oxford, Information and Communications Technology <http://www.ict.ox.ac.uk/oxford/rules/p2p.xml>). A Sabam precisa que a medida visa «tornar impossível qualquer forma de envio ou recepção […], através de softwarepeer‑to‑peer, de ficheiros electrónicos que contenham uma obra musical do repertório da Sabam». É ao órgão jurisdicional de reenvio que incumbe determinar qual é exactamente a situação e, nomeadamente, se o sistema também se deve adaptar a meios alternativos ao peer‑to‑peer de troca de ficheiros, tal como o streaming (fluxo de dados) e o direct download (teledescarga directa via, por exemplo, RapidShare, MegaUpload). O Tribunal de Justiça, que está vinculado tanto pelos termos da questão prejudicial que lhe foi submetida como pelos fundamentos da decisão de reenvio, deve partir do princípio de que o sistema de filtragem e de bloqueio exigido visa «nomeadamente» e, portanto, não exclusivamente, as comunicações efectuadas através de softwarepeer‑to‑peer.


29 – É uma consequência inevitável do princípio da «neutralidade tecnológica» defendido pela Sabam, nos termos do qual a medida solicitada não obriga a Scarlet a adoptar nenhuma tecnologia em especial.


30 – Com toda a cautela que se impõe a quem não é do ramo, parece que a instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio pode assentar em diversos mecanismos de detecção. Importa distinguir: 1) a detecção do protocolo de comunicação utilizado: como cada protocolo peer‑to‑peer possui os seus próprios mecanismos para gerir a rede e coordenar a distribuição do tráfego, é possível instalar filtros que procurem em cada pacote IP a impressão própria de cada protocolo (a assinatura). Uma vez reconhecida a assinatura, é possível depois quer bloquear, ou tornar consideravelmente mais lentas com fins dissuasores, todas as comunicações que utilizam esse protocolo, quer explorar as possibilidades de controlo aprofundado do conteúdo dos ficheiros para bloquear apenas os que sejam identificados como ficheiros que violam um direito; 2) a detecção do conteúdo dos ficheiros trocados: este tipo de sistema pode não só detectar uma tatuagem informática previamente colocada num ficheiro mas também comparar a assinatura informática de um ficheiro com as assinaturas previamente estabelecidas das obras. O sistema CopySense da Audible Magic que foi evocado na decisão de reenvio é um sistema deste tipo; 3) a detecção do comportamento dos autores da comunicação controvertida: detecção dos portos de comunicação, detecção da abertura por um computador servidor/cliente de diversas conexões a vários outros clientes; detecção de pedidos de busca/transferência de ficheiros, ou mesmo detecção da criptagem da troca como indício da intenção de iludir as medidas de detecção. Para um resumo das diferentes técnicas a ter em consideração, comparar, por exemplo, o Relatório Kahn‑Brugidou, de 9 de Março de 2005, e o Relatório Olivennes sobre o desenvolvimento e a protecção das obras culturais nas novas redes, de 23 de Novembro de 2007, que inspirou a Lei Hadopi, já referida.


31 – Apesar do princípio da neutralidade tecnológica defendido pela Sabam, a escolha do sistema a instalar também não é neutra no plano tecnológico. Pode, por exemplo, ser razoável considerar que um sistema de filtragem por conteúdo de todas as comunicações terá provavelmente maior impacto na rede de comunicação do que uma filtragem apenas dos ficheiros trocados segundo um protocolo cuja assinatura é identificada.


32 – Trata‑se de uma consequência directa da ideia de neutralidade tecnológica defendida pela Sabam.


33 – De resto, já foi submetida ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial idêntica no âmbito de outro litígio entre a Sabam e a Netlog, uma plataforma de redes sociais; v. processo Sabam (C‑360/10) pendente no Tribunal de Justiça (JO C 288, de 23 de Outubro de 2010, p. 18).


34 – Como uma rápida busca na Internet permite demonstrar, as decisões dos tribunais belgas neste processo tiveram, com efeito, uma repercussão considerável fora da Europa.


35 – Não é necessário insistir nas consideráveis vantagens que representaria para os titulares dos direitos e os seus sucessores, e em especial as sociedades de gestão colectiva dos direitos envolvidas na luta contra a teledescarga ilegal, a generalização da instalação de sistemas de filtragem e de bloqueio, admitindo que possam ser efectivamente eficazes, primeiro nos planos processual e patrimonial, em relação a uma estratégia que consiste em requerer judicialmente a colaboração dos FAI para detectar e identificar os autores de violações para, depois, intentar acções contra estes.


36 – A este respeito, a Sabam precisa que a sua intenção não é pôr em causa a Scarlet enquanto autora ou responsável pelas violações da propriedade intelectual, mas sim dissuadi‑la de fornecer os seus serviços a terceiros na medida em que estes os utilizem para violar um direito de autor ou um direito conexo. A este propósito, deve, contudo, recordar‑se que em primeira instância a Scarlet foi objecto de uma injunção para cessação e de uma sanção pecuniária compulsória, que constituem o objecto do recurso no processo principal, e que a Sabam pede a confirmação das decisões da primeira instância, bem como a tradução e a publicação da decisão a proferir no seu sítio Internet e em diversos jornais.


37 – O perito designado pelo presidente do tribunal de primeira instância de Bruxelas insiste neste aspecto da questão. V. pontos 4 e 5 das conclusões do seu relatório de 29 de Janeiro de 2007, referidas na decisão de reenvio e reproduzidas no n.° 21, supra.


38 – Uma vez mais, o princípio da neutralidade tecnológica defendido pela Sabam implica que é impossível calcular ex ante os custos globais da instalação de um sistema de filtragem e de bloqueio, quer se trate dos custos relacionados com a investigação e os testes do próprio sistema, dos custos de investimento (caixas de flitragem, routeurs …), dos custos de engenharia e de gestão do projecto ou ainda dos custos correntes de manutenção e de acompanhamento operativo.


39 – N.° 19.


40 – Basta recordar que a União, nos termos do artigo 2.° TUE, se baseia nomeadamente nos valores do Estado de direito e que o Tribunal de Justiça desde há muito consagrou na sua jurisprudência a ideia de «Comunidade de direito»; v., nomeadamente, acórdãos de 23 de Abril de 1986, Os Verdes/Parlamento (294/83, Colect., p. 1339, n.° 23), e de 3 de Setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colect., p. I‑6351, n.° 281). Sobre estas questões e com todas as reservas que devem acompanhar a utilização de conceitos nacionais no direito da União, v., nomeadamente, Calliess, C. und Ruffert, M., EUV/EGV, Das Verfassungsrecht der Europäischen Union mit Europäischer Grundrechtcharta, Kommentar, Beck, 2007, p. 62; Schwarze, J., Droit administratif européen, Bruylant 2009, p. 219 e segs; Azoulai, L, «Le principe de légalité», em Auby, J.‑B. e Dutheil de la Rochère, J, Droit administratif européen, Bruylant 2007, p. 394, especialmente p. 399; Simon D., «La Communauté de droit», em Sudre, F. e Labayle, H., Réalité et perspectives du droit communautaire des droits fondamentaux, Bruylant, 2000, p. 85, especialmente pp. 117 e segs.


41 – V. acórdãos de 9 Julho de 1981, Gondrand e Garancini (169/80, Recueil, p. 1931, n.° 17); de 22 de Fevereiro de 1989, Comissão/França e Reino Unido (92/87 e 93/87, Colect., p. 405, n.° 22); de 13 de Fevereiro de 1996, Van Es Douane Agenten (C‑143/93, Colect., p. I‑431, n.° 27); de 17 de Julho de 1997, National Farmers’ Union e o. (C‑354/95, Colect. p. I‑4559, n.° 57); de 16 de Outubro de 1997, Banque Indosuez e o. (C‑177/96, Colect., p. I‑5659, n.° 27); de 23 de Setembro de 2003, BGL (C‑78/01, Colect., p. I‑9543, n.° 71); e de 20 de Novembro de 1997, Wiener SI (C‑338/95, Colect., p. I‑6495, n.° 19).


42 – V., nomeadamente, acórdãos de 7 de Junho de 2005, VEMW e o. (C‑17/03, Colect., p. I‑4983, n.° 80); de 14 de Janeiro de 2010, Stadt Papenburg (C‑226/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 45); de 14 de Setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão e o. (C‑550/07 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 100); e de 2 de Dezembro de 2010, Jakubowska (C‑225/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 42).


43 – Acórdão de 29 de Abril de 2010, M e o. (C‑340/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 65).


44 – V., também, acórdãos de 30 de Janeiro de 1985, Comissão/Dinamarca (143/83, Recueil. p. 427, n.° 10); de 21 de Junho de 1988, Comissão/Itália (257/86, Colect., p. 3249, n.° 12); de 16 de Junho de 1993, França/Comissão (C‑325/91, Colect., p. I‑3283, n.° 26); de 1 de Outubro de 2009, Comissão/Conselho (C‑370/07, Colect., p. I‑8917, n.° 39); de 11 de Novembro de 2010, Grootes (C‑152/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43), e de 22 de Dezembro de 2010, Gowan Comércio (C‑77/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 47). Quanto à exigência de clareza e precisão das medidas de transposição das directivas, v., nomeadamente, acórdãos de 20 de Outubro de 2005, Comissão/Reino Unido (C‑6/04, Colect., p. I‑9017, n.° 21); de 10 de Maio de 2007, Comissão/Áustria (C‑508/04, Colect., p. I‑3787, n.° 73); e de 3 de Março de 2011, Comissão/Irlanda, (C‑50/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 46).


45 – V., infra, no título E, n.os 101 e segs.


46 – A título indicativo, o artigo 8.°, n.° 3, da Directiva 2001/29 e o artigo 9.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2004/48 impõem aos Estados‑Membros uma dupla obrigação de instituir mecanismos judiciais de forma a prevenir e a punir as violações dos direitos de propriedade intelectual. O artigo 15.°, n.° 1, da Directiva 2000/31 impõe aos Estados‑Membros uma dupla obrigação de abstenção: devem abster‑se de impor aos «prestadores» uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação geral de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes. As Directivas 95/46 e 2002/58 garantem, pelo seu próprio objecto, o direito à protecção dos dados pessoais. O artigo 4.° da Directiva 2006/24 prevê que os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que os dados conservados em conformidade com esta directiva só sejam transmitidos às autoridades nacionais competentes em casos específicos e de acordo com a legislação nacional.


47 – V. a este respeito, conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Promusicae, já referido, que examina em pormenor as relações existentes entre as diferentes directivas.


48 – V., em especial, os considerandos primeiro, segundo, décimo e trigésimo sete da Directiva 95/46/CE, os considerandos terceiro, décimo primeiro e vigésimo quarto da Directiva 2000/31 e os considerandos nono e vigésimo quinto, e o artigo 4.° da Directiva 2006/24.


49 – Na medida em que o sistema de filtragem e de bloqueio deve ser instalado exclusivamente a cargo do FAI, a referida medida poderia também configurar‑se como uma «privação» do direito de propriedade na acepção do artigo 17.° da Carta, tal como interpretado à luz do artigo 1.° do Protocolo n.° 1 da CEDH e da jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Contudo, este aspecto da questão não será examinado nas presentes conclusões.


50 – Ou ainda de «ingerência» na acepção do artigo 8.° da CEDH ou de «restrição» na acepção do artigo 10.° da CEDH. Sobre estes conceitos, v., nomeadamente Ganshof van der Meersch, W. J., Réflexions sur les restrictions à l’exercice des droits de l’homme dans la jurisprudence de la Cour européenne de Strasbourg, Völkerrecht als Rechtsordnung ‑ Internationale Gerichtsbarkeit Menschenrechte, Festschrift für H. Mosler, Springer, 1983, p. 263; Kiss, C.‑A., «Les clauses de limitation et de dérogation dans la CEDH», em Turp, D. e Beaudoin, G., Perspectives canadiennes et européennes des droits de la personne, Yvon Blais, 1986, p. 119; Duarte, B., Les restrictions aux droits de l’homme garantis par le Pacte international relatif aux droits civils et politiques et les Conventions américaine et européenne des droits de l’homme, tese, Universidade de Lille II, 2005; Viljanen, J., The European Court of Human Rights as a Developer of the General Doctrines of Human Rights Law. A Study of the Limitation Clauses of the European Convention on Human Rights, tese, Universidade de Tampere, 2003; Loucaides, L. G., «Restrictions or limitations on the Rights guaranteed by the European Convention on Human Rights», The Finnish Yearbook of International Law, vol. 3, p. 334


51 – Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões – Criar uma Sociedade da informação mais segura, reforçando a segurança das infra‑estruturas de informação e lutando contra a cibercriminalidade – eEurope 2002, COM (2000) 890 final, especialmente p. 23.


52 – V., a este respeito, em especial, acórdãos de 20 de Maio de 2003, Rundfunk (C‑465/00, C‑138/01 e C‑139/01, Colect., p. I‑4989, n.° 68); de 16 de Dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, Colect., p. I‑9831), e Volker und Markus Schecke e Eifert, já referido (n.os 56 e segs.). V., também, conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Promusicae, já referido, n.os 51 e segs.


53 – V., em especial, décimo considerando da Directiva 95/46, primeiro, segundo, sétimo, décimo, décimo primeiro e vigésimo quarto considerandos e artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 2002/58.


54 – A Scarlet e a ISPA, à semelhança dos Governos belga, checo e neerlandês alegam, no essencial, que a instalação de tal sistema de filtragem e de bloqueio levaria os FAI a procederem ao tratamento de dados pessoais em violação das disposições das Directivas 95/46 e 2002/58. Em contrapartida, a Sabam, os Governos polaco e finlandês e a Comissão, consideram que a instalação desse sistema não é contrária às Directivas 95/46 e 2002/58. Para um exame das proibições de tratamento previstas nas referidas directivas, v., em especial, as conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Promusicae, já referido, n.os 64 e segs.


55 – A Scarlet e a ISPA consideram que o endereço IP próprio de cada utilizador da Internet constitui um dado pessoal na medida em que permite, precisamente, identificar os internautas. Consequentemente, a recolha e a resolução dos endereços IP dos internautas, indispensáveis à sua identificação e, portanto, ao funcionamento desse sistema, constituiriam um tratamento de dados pessoais que as directivas não autorizam.


56 – Acórdão Promusicae, já referido, n.° 45; despacho de 19 de Fevereiro de 2009, LSG‑Gesellschaft zur Wahrnehmung von Leistungsschutzrechten (C‑557/07, Colect., p. I‑1227).


57 – Cabe observar que a questão se coloca indirectamente no processo C‑461/10, Bonnier e o., pendente no Tribunal de Justiça (JO C 317, 20 de Novembro de 2010, p. 24), no âmbito do qual o Tribunal de Justiça é, no essencial, questionado sobre a questão de saber se a Directiva 2006/24 que altera a Directiva 2002/58 se opõe à aplicação de uma disposição nacional, adoptada com fundamento no artigo 8.° da Directiva 2004/48, que, para efeitos de identificação de um assinante, permite ordenar a um FAI que comunique ao titular de um direito de autor ou ao seu sucessor um endereço IP que teria sido utilizado para violar o referido direito.


58 – Parecer da Autoridade Europeia para a Protecção de Dados, de 22 de Fevereiro de 2010, sobre as negociações em curso na União Europeia sobre um Acordo Comercial Anticontrafacção (ACTA) (JO C 147, de 5 de Junho de 2010, p. 1, n.° 24); Parecer da Autoridade Europeia para a Protecção de Dados, de 19 de Maio de 2010, sobre a proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à luta contra o abuso e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil e que revoga a Decisão‑Quadro 2004/68/JAI (JO C 323, de 30 de Novembro de 2010, p. 6, n.° 11).


59 – A este respeito, remete para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, decisão Weber e Saravia c. Alemanha, de 29 de Junho de 2006, processo n.° 54934/00, Colectânea 2006‑XI e acórdão Liberty e o. c. Reino Unido, de 1 de Julho de 2008, processo n.° 58243. Deve, contudo, observar‑se que estes dois processos não dizem especificamente respeito à recolha de endereços IP na Internet, mas sim à vigilância das telecomunicações.


60 – Dito «grupo de trabalho ‘artigo 29.°’».


61 – V., em especial, parecer 4/2007, de 20 de Junho de 2007, relativo ao conceito de dados pessoais, WP 136, disponível no endereço electrónico http://ec.europa.eu/justice/policies/privacy/. V., também, mais amplamente, a recomendação n.° 3/97, de 3 de Dezembro de 1997, L’anonymat sur l’Internet, WP 6, e o documento de trabalho intitulado «Le respect de la vie privée sur Internet – Une approche européenne intégrée sur la protection des données en ligne», adoptado em 21 de Novembro de 2000, WP 37, em particular p. 22.


62 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva 2002/58/CE (JOL 105, p. 54).


63 – É essa, por exemplo, a abordagem adoptada em França pela Commission nationale de l'informatique et des libertés; v. deliberação n.° 2007‑334, de 8 de Novembro de 2007. Sobre estas questões, v., por exemplo, González Pascual, M., «La Directiva de retención de datos ante el Tribunal Constitucional Federal alemán. La convergencia de jurisprudencias en la Europa de los Derechos: un fin no siempre deseable», REDE, 2010, n.° 36, p. 591.


64 – Quanto ao alcance da proibição de armazenagem e de comunicação dos dados de tráfego, na acepção da Directiva 2002/58 e as suas excepções, remete‑se para as conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Promusicae, já referido, n.° 64 e segs.


65 – O artigo 11.° da Directiva 2006/24 acrescentou, nomeadamente, um n.° 1‑A ao artigo 15.° da Directiva 2002/58, nos termos do qual o artigo 15.°, n.° 1, da Directiva 2002/58 não se aplica aos dados cuja conservação seja especificamente exigida pela Directiva 2006/24. O artigo 4.° da Directiva 2006/24 dispõe, neste caso, que «[o]s Estados‑Membros devem tomar medidas para assegurar que os dados conservados em conformidade com a presente directiva só sejam transmitidos às autoridades nacionais competentes em casos específicos e de acordo com a legislação nacional. Os procedimentos que devem ser seguidos e as condições que devem ser respeitadas para se ter acesso a dados conservados de acordo com os requisitos da necessidade e da proporcionalidade devem ser definidos por cada Estado‑Membro no respectivo direito nacional, sob reserva das disposições pertinentes do Direito da União Europeia ou do Direito Internacional Público, nomeadamente a CEDH, na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem».


66 – A Scarlet, apoiada pela ISPA, alega que a instalação desse sistema viola as disposições da Directiva 2002/58 relativas à confidencialidade das comunicações electrónicas, referindo‑se, a este respeito, ao vigésimo sexto considerando e ao artigo 5.° da referida directiva.


67 – Foi, de resto, referindo expressamente esta jurisprudência que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem examinou uma medida de sonorização de um apartamento. V. TEDH, acórdão Vetter c. França, de 31 de Maio de 2005, processo n.° 59842/00, n.° 27, que remete expressamente para o seu raciocínio nos acórdãos Huvig c. França, de 24 de Abril de 1990, processo n.° 11105/84, Série A, n.° 176‑B, e Kruslin c. França, de 24 de Abril de 1990, processo n.° 11801/85, Série A, n.° 176‑A


68 – TEDH, acórdão Copland c. Reino Unido, de 3 de Abril de 2007, processo n.° 62617/00, §§ 43 e 44.


69 – Importa observar que o décimo quinto considerando da Directiva 2000/31 remete expressamente para o artigo 5.° da Directiva 97/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Dezembro de 1997, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das telecomunicações (JO L 24, p. 1) que foi revogada pela Directiva 2002/58.


70 – À semelhança do artigo 10.° da CEDH. V., nomeadamente, TEDH, acórdão Observer e Guardian c. Reino Unido, de 26 de Novembro de 1991, processo n.° 13585/88, Série A, n.° 216, § 59, e Guerra e o. c. Itália, de 19 de Fevereiro de 1998, processo n.° 14967/89, Rec. 1998‑I, § 53.


71 – Pode observar‑se que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na sua apreciação da compatibilidade de uma «restrição» com a liberdade de expressão à luz das exigências do artigo 10.°, n.° 2, da CEDH, teve também oportunidade de ter em conta o «poder» da Internet que, ao ser per se acessível a todos produz um efeito multiplicador de grande envergadura. V., em especial, TEDH, Mouvement Raëlien Suisse c. Suíça, de 13 de Janeiro de 2011, processo n.° 16354/06, § 54 e segs; Akdaş c. Turquia, de 16 de Fevereiro de 2010, processo n.° 41056/04, § 28; e Willem c. França, de 16 de Julho de 2009, processo n.° 10883/05, § 36 e 38.


72 – TEDH, acórdão Times Newspapers Limited c. Reino Unido, de 10 de Maio de 2009, processos n.os 3002/03 e 23676/03, § 27. Neste processo, o Tribunal declarou que «na medida em que a criação de arquivos na Internet representa um aspecto essencial do papel que os sítios Internet desempenham», está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 10.° da CEDH.


73 – Pode sustentar‑se que as disposições do direito da propriedade intelectual de um Estado‑Membro podem constituir, em si, uma restrição, na acepção do artigo 10.° da CEDH; v. Danay, R., «Copyright vs. Free Expression: the Case of peer‑to‑peer File‑sharing of Music in the United Kingdom», Yale Journal of Law & Technology, 2005‑2006, Vol. 8, n.° 2, p. 32.


74 – Ou, em alternativa, de «ingerência» na acepção do artigo 8.° da CEDH e de «restrição» na acepção do artigo 10.° da CEDH.


75 – V., nomeadamente, acórdão de 12 de Setembro de 2006, Laserdisken (C‑479/04, Colect., p. I‑8089, n.° 62).


76 – Acórdão Laserdisken, já referido, n.° 65.


77 – V., em especial, o terceiro e quarto considerandos da Directiva 2001/29 e o primeiro e o décimo considerandos da Directiva 2004/48.


78 – V., nomeadamente, Comissão Europeia dos Direitos do Homem, decisões Smith Kline e French Laboratories Ltd. c. Países Baixos, de 4 de Outubro de 1990, processo n.° 12633/87, DR 66, p. 81 e A. D. c. Países Baixos, de 11 de Janeiro de 1994, processo n.° 21962/93; TEDH, acórdãos British‑American Tobacco Company Ltd c. Países Baixos, de 20 de Novembro de 1995, Série A n.° 331, § 71‑72; Chappel c. Reino Unido, de 30 de Março de 1989, processo n.° 10461/83, Série A, n.° 152A, § 59; e Anheuser‑Bush Inc. c. Portugal, de 11 de Janeiro de 2007, processo n.° 73049/01, §§ 71 e 72; decisão Melnychuk c. Ucrânia, de 5 de Julho de 2005, processo n.° 28743/03, § 3.


79 – V. acórdão de 17 de Maio de 1988, Warner Brothers e Metronome Video (158/86, Colect., p. 2605, n.° 13).


80 – V. acórdãos de 20 de Janeiro de 1981, Musik‑Vertrieb membran e K‑tel International (55/80 e 57/80, Recueil, p. 147, n.° 12), e de 20 de Outubro de 1993, Phil Collins e o. (C‑92/92 e C‑326/92, Colect., p. I‑5145, n.° 20).


81 – Nomeadamente, van Dijk P., et al., Theory and practice of the European Convention on Human Rights, 4.ª ed., Intersentia, 2006, p. 336; Jacobs F. G., White R. C. A., and Ovey C., The European Convention on Human Rights, 5.ª ed., Oxford University Press, 2010, p. 315; Harris D.J., O’Boyle M., and Warbrick C., Law of the European Convention on Human Rights, 2.ª ed., Oxford University Press, 2009; Grabenwarter C., Europäische Menschenrechtskonvention: ein Studienbuch, 3.ª ed., Helbing & Lichtenhahn, 2008, p. 112; Matscher F., «Der Gesetzesbegriff der EMRK», em Adamovich und Kobzina A., Der Rechstaat in der Krise – Festschrift Edwin Loebenstein zum 80. Geburstag, Mainz, 1991, p. 105; Gundel J., «Beschränkungsmöglichkeiten», Handbuch der Grundrechte, Band. VI/1, Müller, 2010, p. 471; Weiß R., Das Gesetz im Sinne der europäischen Menschenrechtskonvention, Duncker & Humblot, 1996.


82 – V., nomeadamente, Martín‑Retortillo Baquer L., «La calidad de la ley según la jurisprudencia del Tribunal europeo de derechos humanos», Derecho Privado y Constitución, 2003, n.° 17, p. 377; Wachsmann, P., «De la qualité de la loi à la qualité du système juridique», em Libertés, Justice, Tolérance, Mélanges en hommage au doyen Gérard Cohen‑Jonathan, Bruylant, Bruxelas, vol. 2, p. 1687.


83 – TEDH, acórdão Leander c. Suécia, de 26 de Março de 1987, processo n.° 9248/81, Série A, n.° 116, § 50.


84 – TEDH, acórdão Margareta e Roger Andersson c. Suécia, de 25 de Fevereiro de 1992, processo n.° 12963/87, Série A n.° 226‑A, p. 25, § 75.


85 – TEDH, acórdão Tan c. Turquia, de 3 de Julho de 2007, processo n.° 9460/03, §§ 22‑26; neste processo, o Tribunal apreciou a conformidade com o princípio da clareza da lei de uma regulamentação sobre a correspondência dos detidos. Considerou que a regulamentação que conferia aos directores de estabelecimentos prisionais, mediante decisão da comissão disciplinar, o poder de recusar despachar, censurar ou proceder à destruição de qualquer correio considerado «problemático», não indicava com suficiente clareza o alcance e as modalidades do poder de apreciação das autoridades no domínio em causa.


86 – V., nomeadamente, TEDH, acórdão Kruslin c. França, de 24 de Abril de 1990, processo n.° 11801/85, Série A, n.° 176‑A, § 30; decisão Coban c. Espanha, de 25 de Setembro de 2006, processo n.° 17060/02.


87 – V., nomeadamente, TEDH, acórdão Sanoma Uitgevers c. Países Baixos, de 14 de Setembro de 2010, processo n.° 38224/03, §§ 81‑82.


88 – Entre outros, acórdão Margareta e Roger Andersson, já referido, § 75.


89 – TEDH, acórdão Silver e o. c. Reino Unido, de 25 de Março de 1983, processos n.os 5947/72, 6205/73, 7052/75, 7061/75, 7107/75, 7113/75 e 7136/75, Série A, n.° 61, § 88.


90 – V., a este respeito, n.° 53 das conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Promusicae, já referido, citando o acórdão Österreichischer Rundfunk, já referido, n.os 76 e 77.


91 – Para uma formulação de conjunto de estas diferentes exigências, v., nomeadamente, TEDH, acórdão Kopp c. Suíça, de 25 de Maio de 1998, processo n.° 23224/94, Rec. 1998‑II, § 55.


92 – TEDH, acórdão Valenzuela Contreras c. Espanha, de 30 de Julho de 1998, processo n.° 27671/95, Rec. 1998‑V, § 46, que remete para o acórdão de 2 Agosto 1984, Malone, processo n.° 8691/79, Série A, n.° 82 e para os acórdãos Kruslin e Kopp, já referidos.


93 – O princípio do primado do direito, que consta do preâmbulo da CEDH, implica que o direito interno ofereça uma certa protecção contra as infracções arbitrárias do poder público aos direitos que garante. Se este princípio «exige que toda a ingerência das autoridades nos direitos de um indivíduo possa ser objecto de um controlo eficaz» (TEDH, acórdão Klass e o. c. Alemanha, de 6 de Setembro de 1978, processo n.° 5029/71, Série A n.° 28, pp. 25‑26, § 55; acórdãos Malone, já referido, § 68; acórdão Silver e o., já referido, § 90), «implica, inter alia, que a interferência do poder executivo nos direitos individuais tenha de ser sujeita a um controlo efectivo que deve normalmente ser garantido pelo poder judicial, pelo menos em última instância, dado que a fiscalização judicial é a que oferece mais garantias de independência, de imparcialidade e de um processo equitativo» (TEDH, acórdão Klass e o., já referido, § 55), exige também um «grau mínimo de protecção» que não existiria «se o poder de apreciação conferido ao poder executivo não tivesse limites» (sobre o artigo 8.° da CEDH, para além dos acórdãos Malone, § 68 e Kruslin, § 30 já referidos; TEDH, acórdão Rotaru c. Roménia, de 4 de Maio de 2000, processo n.° 28341/95, Rec. 2000‑V, § 55; Segerstedt‑Wiberg e o. c. Suécia, de 6 de Junho de 2006, processo n.° 62332/00, Rec. 2006‑VII, § 76; Lupsa c. Roménia, de 8 de Junho de 2006, processo n.° 10337/04, Rec. 2006‑VII, § 34; decisão Weber e Saravia c. Alemanha, de 29 de Junho de 2006, processo n.° 54934/00, Rec. 2006‑XI, § 94; sobre o artigo 10.° da CEDH, acórdão Sanoma Uitgevers, já referido, § 82) ou ainda se o poder de apreciação concedido a um juiz não conhece limites (TEDH, acórdão Huvig c. França, de 24 de Abril de 1990, processo n.° 11105/84, Série A, n.° 176‑B, p. 55, § 29; decisão Weber e Saravia c. Alemanha, já referida, § 94; acórdão Liberty e o., já referido, § 62; acórdão Bykov c. Rússia, de 10 de Março de 2009, processo n.° 4378/02, § 78).


94 – Wachsmann, P., «La prééminence du droit», em Le droit des organisations internationales, Recueil d’études à la mémoire de Jacques Schwob, p. 241, especialmente 263; v., também Wiarda, G., «La Convention européenne des droits de l’homme et la prééminence du droit», Rivista di studi politici internazionali, 1984, p. 452; Grabarczyk, K, Les principes généraux dans la jurisprudence de la Cour européenne des droits de l’homme, PUAM, 2008, especialmente pp. 194 e segs; Morin, J.‑Y, «La prééminence du droit dans l’ordre juridique européen», Theory of International Law at the Threshold of the 21st Century. Essays in Honourof Krzysztof Skubiszewski, Kluwer Law International, 1996, p. 643.


95 – TEDH, acórdãos Groppera Radio e o. c. Suíça, de 28 de Março de 1990, processo n.° 10890/84, Série A n.° 173, p. 26, § 68; Cantoni c. França, de 15 de Novembro de 1996, processo n.° 17862/91, Rec. 1996‑V, § 35. Como o referido Tribunal salientou a respeito de uma medida de vigilância através de GPS das deslocações em público de uma pessoa, os critérios relativamente estritos, estabelecidos e seguidos no contexto específico da vigilância das telecomunicações, não podem ser aplicáveis mutatis mutandis a todas as formas de ingerência. V. TEDH, acórdão Uzun c. Alemanha, de 2 de Setembro de 2009, processo n.° 35623/05, § 66. Nesse processo, o Tribunal preferiu seguir os princípios gerais a observar «para que exista uma protecção adequada contra toda a ingerência arbitrária no exercício dos direitos protegidos pelo artigo 8.°» da CEDH. No caso dos autos, como recordou o referido Tribunal, «quando se trata de medidas de vigilância secreta pelas autoridades públicas, a falta de controlo público e o risco de abuso de poder implicam que o direito interno ofereça uma protecção contra as ingerências arbitrárias no exercício dos direitos garantidos pelo artigo 8.°». «O Tribunal deve ter a convicção de que existem garantias adequadas e suficientes contra os abusos. Esta apreciação depende das circunstâncias que se verifiquem no caso, por exemplo, a natureza, a amplitude e a duração das eventuais medidas, as razões que as justificam, as autoridades competentes para as autorizar, executar e controlar, o tipo de recursos previstos no direito interno».


96 – Entre outros, acórdãos Groppera Radio, já referido, § 68, e Tolstoy Miloslavsky, já referido, § 37.


97 – V., nomeadamente, TEDH, acórdãos Sunday Times c. Reino Unido (n.° 1), de 26 de Abril de 1979, processo n.° 6538/74, Série A n.° 30, § 49; Tolstoy Miloslavsky c. Reino Unido, de 13 de Julho de 1995, processo n.° 18139/91, Série A n.° 316‑B, § 37; Sanoma Uitgevers, já referido, § 83.


98 – Nomeadamente, TEDH, acórdão Müller e o. c. Suíça, de 24 de Maio de 1988, processo n.° 10737/84, Série A n.° 133, § 29.


99 – Importa observar que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem conferiu progressivamente ao conceito de «qualidade da lei» um significado próprio, adaptado à realização dos fins prosseguidos pela CEDH, que o distingue de conceitos próximos, com um conteúdo muitas vezes mais amplo, que se encontram no direito de determinados Estados‑Membros; v., entre outros, Milano, L., «Contrôle de constitutionnalité et qualité de la loi», Revue du Droit public, 2006, n.° 3, p. 637; «La mauvaise qualité de la loi: Vagueness Doctrine at the French Constitutional Council», Hastings Constitutional Law Quarterly, Inverno de 2010, n.° 37, p. 243; Reicherzer, M, «Legitimität und Qualität von Gesetzen», Zeitschrift für Gesetzgebung, 2004, p. 121; Wachsmann, P. «La qualité de la loi», Mélanges Paul Amselek, p. 809; Montalivet, P. de, «La ‘juridicisation’ de la légistique. À propos de l’objectif de valeur constitutionnelle d’accessibilité et d’intelligibilité de la Loi», La confection de la loi, PUF, 2005, p. 99; Moysan, H., «L’accessibilité et l’intelligibilité de la loi. Des objectifs à l’épreuve de la pratique normative», AJDA, 2001, p. 428.


100 – O artigo 15.°, n.° 1, da Directiva 2000/31 impõe aos Estados‑Membros uma dupla obrigação de não fazer. Devem abster‑se de impor aos «prestadores» uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação geral de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes. Além disso, o artigo 12.°, n.° 1, da Directiva 2000/31 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de velar para que os prestadores de serviços de fornecimento de acesso a uma rede de comunicação, e portanto, nomeadamente os FAI, não sejam responsáveis pelas informações transmitidas.


101 – O trigésimo considerando da Directiva 2009/136/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2009, que altera a Directiva 2002/22/CE relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações electrónicas, a Directiva 2002/58/CE relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas e o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de defesa do consumidor (JO L 337, p. 11–36), precisa também que «[a] Directiva 2002/22/CE […] não exige que os prestadores fiscalizem a informação transmitida nas suas redes ou que intentem acções judiciais contra os clientes com base nessa informação, nem considera os prestadores responsáveis por esta última».


102 – V., em especial, TEDH, acórdão Chappel, já referido, § 56. V., também, TEDH, acórdãos Bock e Palade c. Roménia, de 15 de Fevereiro de 2007, processo n.° 21740/02, § 61 a 64; July e Libération c. França, de 14 de Fevereiro de 2008, processo n.° 20893/03, § 55; e Brunet‑Lecomte e o. c. França, de 5 de Fevereiro de 2009, requerimento n.° 42117/04, § 42.


103 – Relativamente à tomada em consideração, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, do direito da União na análise da qualidade da lei, v., nomeadamente, TEDH, acórdão Cantoni, já referido, § 30, e decisão Marchiani c. França, de 27 de Maio de 2008, processo n.° 30392/03.


104 – N.° 56.


105 – Como salienta o referido Tribunal, «a certeza, embora muito desejável, é por vezes acompanhada de uma rigidez excessiva; ora, o direito deve poder adaptar‑se às alterações das situações»; nomeadamente, acórdão Sunday Times, já referido, § 49; TEDH, acórdão Éditions Plon c. França, de 18 de Maio de 2004, processo n.° 58148/00, Rec. 2004‑IV, § 26.


106 – Quanto ao nexo estabelecido por vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entre os princípios do primado do direito e da «segurança das situações jurídicas», v., em especial, TEDH, acórdãos Sovtransavto Holding c. Ucrânia, de 25 de Julho de 2002, processo n.° 48553/99, Rec. 2000‑VII, § 77 e Timotiyevich c. Ucrânia, de 8 de Novembro de 2005, processo n.° 63158/00, § 32. V., também, Grabarczyk K, Les principes généraux dans la jurisprudence de la Cour européenne des droits de l’homme, tese, já referida, especialmente pp. 209 e segs, n.os 583 e segs.