Language of document : ECLI:EU:C:2018:250

Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

12 de abril de 2018 (*)

«Incumprimento de Estado – Livre circulação de capitais – Artigo 63.° TFUE – Artigo 40.° do Acordo EEE – Imposto sobre o rendimento dos residentes belgas – Determinação dos rendimentos imobiliários – Aplicação de dois métodos de cálculo diferentes em função do lugar onde se situa o imóvel – Cálculo a partir do valor cadastral para os imóveis situados na Bélgica – Cálculo baseado no valor locativo efetivo para os imóveis situados noutro Estado‑Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE) – Diferença de tratamento – Restrição à livre circulação de capitais»

No processo C‑110/17,

que tem por objeto uma ação por incumprimento, nos termos do artigo 258.° TFUE, proposta em 3 de março de 2017,

Comissão Europeia, representada por W. Roels e N. Gossement, na qualidade de agentes,

demandante,

contra

Reino da Bélgica, representado por P. Cottin, M. Jacobs e L. Cornelis, na qualidade de agentes,

demandado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: C. G. Fernlund, presidente de secção, J‑C. Bonichot (relator) e A. Arabadjiev, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua ação, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao manter disposições segundo as quais, em matéria de avaliação dos rendimentos provenientes de imóveis não arrendados ou arrendados quer a pessoas singulares que não lhes dão um uso profissional quer a pessoas coletivas que os põem à disposição de pessoas singulares para fins privados, a base tributável é calculada a partir do valor cadastral, no caso de bens situados no território nacional, e com base no valor locativo efetivo, no que diz respeito aos imóveis situados no estrangeiro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.° TFUE e do artigo 40.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3, a seguir «Acordo EEE»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        Nos termos do artigo 40.° do Acordo EEE:

«No âmbito do disposto no presente Acordo, são proibidas quaisquer restrições entre as Partes Contratantes aos movimentos de capitais pertencentes a pessoas residentes nos Estados‑Membros da [Comunidade Europeia (CE)] ou nos Estados da [Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA)], e quaisquer discriminações de tratamento em razão da nacionalidade ou da residência das partes, ou do lugar do investimento. As disposições necessárias à aplicação do presente artigo constam do Anexo XII.»

 Direito belga

3        O artigo 7.° do Wetboek van de inkomstenbelastingen 1992 (Código dos Impostos sobre o Rendimento de 1992, a seguir «CIR 92») prevê:

«§ 1. Constituem rendimentos imobiliários:

1°      Para os bens imóveis que não estejam dados em locação:

a)      Para os bens situados na Bélgica:

–        o rendimento cadastral, quando se trate de bens imóveis não edificados, de material e de ferramentas que tenham caráter de imóvel pela sua natureza ou pelo seu destino ou da habitação referida no artigo 12.°, § 3;

–        o rendimento cadastral acrescido de 40[por cento (%)], quando se trate de outros bens;

b)      Para os bens situados no estrangeiro: o valor locativo.

2°      Para os bens imóveis que estejam dados em locação:

a)      Para os bens situados na Bélgica e dados em locação a uma pessoa singular que não os afete nem total nem parcialmente ao exercício da sua atividade profissional:

–        o rendimento cadastral, quando se trate de bens imóveis não edificados, de material e de ferramentas que tenham caráter de imóvel pela sua natureza ou pelo seu destino;

–        o rendimento cadastral acrescido de 40[%], quando se trate de outros bens;

[...]

b bis) O rendimento cadastral acrescido de 40[%], quando se trate de bens imóveis edificados, dados em locação a uma pessoa coletiva que não seja uma sociedade, a fim de os pôr à disposição:

–        de uma pessoa singular, para utilização exclusivamente como habitação;

[...]

d)      O montante total da renda e das demais vantagens decorrentes da locação, quando se trate de bens imóveis situados no estrangeiro;

[...]»

4        O artigo 12.°, § 3, desse código dispõe:

«Sem prejuízo da retenção do imposto sobre os bens imóveis, está isento o rendimento cadastral da habitação ocupada pelo contribuinte e de que seja proprietário [...]

[...]

Quando o contribuinte ocupe uma habitação situada num Estado‑Membro do [Espaço Económico Europeu (EEE)] e seja proprietário da mesma, [...] a isenção prevista no presente número aplica‑se ao valor locativo da habitação [...]»

5        O artigo 13.° do referido código enuncia:

«No que respeita ao valor locativo, à renda e às demais vantagens decorrentes da locação de bens imóveis, entende‑se por rendimento líquido o montante bruto do rendimento, descontadas as despesas de manutenção e de reparação, de:

–        40[%], no caso dos bens imóveis edificados, bem como no caso do material e ferramentas que tenham caráter de imóvel pela sua natureza ou pelo seu destino […];

–        10[%], no caso dos bens imóveis não edificados.»

6        Nos termos do artigo 155.° do mesmo código:

«Os rendimentos isentos nos termos de convenções internacionais destinadas a evitar a dupla tributação são tomados em conta na determinação do imposto, mas este é reduzido proporcionalmente à parte dos rendimentos isentos na totalidade dos rendimentos.

[...]»

7        O artigo 156.° do CIR 92 prevê:

«É reduzida a metade, a fração do imposto que corresponda proporcionalmente:

1°      Aos rendimentos imobiliários situados no estrangeiro;

[...]»

8        O artigo 251.° desse código enuncia:

«São sujeitos passivos do imposto sobre os bens imóveis, segundo as regras fixadas pelo Rei, o proprietário, o possuidor, o enfiteuta, o titular do direito de superfície ou o usufrutuário dos bens tributáveis.»

9        O artigo 471.° do referido código dispõe:

«§ 1.      É estabelecido um rendimento cadastral para todos os bens imóveis edificados ou não, bem como para o material e ferramentas que tenham caráter de imóvel pela sua natureza ou pelo seu destino.

§ 2.      Entende‑se por rendimento cadastral o rendimento médio normal líquido de um ano.

[...]»

10      O comentário administrativo do CIR 92 prevê:

«13/7

Antes de serem reduzidos a 60% ou a 90% do seu montante, o valor locativo a que se refere o ponto 13/6, 1°, bem como a renda e as demais vantagens decorrentes da locação a que se refere o ponto 13/6, 2°, devem, no entanto, ser deduzidos dos impostos estrangeiros que tenham efetivamente onerado os rendimentos dos bens imóveis em causa (excluindo impostos estrangeiros sobre o rendimento global determinado de modo forfetário em função do rendimento estimado destas propriedades).

13/8

O valor locativo representa a renda bruta média anual que, em caso de locação, poderia ter sido obtida durante o período de tributação, tanto sob a forma de renda propriamente dita como de encargos assumidos pelo locatário [...], tudo em conformidade com os usos do país em que os bens estão situados.

Para justificar o valor locativo declarado, o proprietário deve, a pedido do agente tributário, apresentar todos os documentos comprovativos necessários, como escrituras de aquisição dos bens, escritura de habilitação de herdeiros, documentos relativos a impostos sobre bens imóveis e impostos pessoais. Para verificar o referido montante, podem, se necessário, ser efetuadas diligências junto das autoridades competentes para cobrança do imposto sucessório.

[...]»

11      O número 13/8 do comentário administrativo do CIR 92 foi completado pela circular AGFisc n.° 22/2016 (Ci.704.681), de 29 de junho de 2016, do seguinte modo:

«O rendimento fictício expressamente aprovado ou fixado por uma autoridade estrangeira para esse bem imóvel pode ser tomado em consideração como valor locativo. A utilização desse valor não é uma obrigação, mas apenas uma possibilidade que o contribuinte pode utilizar para a determinação destes rendimentos imobiliários. Neste caso, o documento de que resulta este valor vale como documento comprovativo (aviso de liquidação, imposto predial, etc.).

Este valor pode ser:

–        uma renda bruta estimada para esse bem, que é tomada em consideração num país para o estabelecimento de um imposto;

–        uma renda bruta fixa, que é tomada em consideração num país para o estabelecimento de um imposto (por exemplo, um valor locativo bruto fixado com base em parcelas de referência);

–        o rendimento tributável do imóvel, que é tomado em consideração num país para o cálculo de um imposto sobre o rendimento.

O montante indicado no documento comprovativo pode ser diminuído (devido à dedução de custos ou à aplicação de isenções ou reduções, nos termos da regulamentação aplicável no estrangeiro). Se for caso disso, o montante referido no documento comprovativo deve ser majorado com os gastos, isenções ou reduções, de modo que, na determinação do valor locativo, seja tomado em consideração o montante bruto.»

 Procedimento précontencioso

12      Por carta de notificação para cumprir de 7 de novembro de 2007, a Comissão salientou a eventual incompatibilidade das disposições fiscais belgas relativas aos rendimentos dos bens imóveis situados no estrangeiro (a seguir «regulamentação controvertida») com as obrigações que resultam do artigo 63.° TFUE e do artigo 40.° do Acordo EEE. Esta incompatibilidade resultava das diferentes modalidades de determinação do rendimento tributável, consoante o bem imóvel estivesse situado na Bélgica ou noutro Estado‑Membro. Neste último caso, ao abrigo da tributação dos rendimentos dos residentes belgas, os rendimentos imobiliários são tratados de forma desvantajosa relativamente aos rendimentos provenientes de imóveis situados na Bélgica. Segundo a Comissão, esta diferença de tratamento é suscetível de restringir a livre circulação de capitais. Por carta de 17 de março de 2008, o Reino da Bélgica contestou estas alegações.

13      Por carta de notificação para cumprir complementar de 26 de junho de 2009, a Comissão afirmou que as acusações formuladas diziam respeito tanto aos rendimentos dos bens imóveis edificados como aos dos bens imóveis não edificados. Por carta de 16 de novembro de 2009, o Reino da Bélgica confirmou a sua posição inicial.

14      Em 26 de março de 2012, a Comissão emitiu um parecer fundamentado. Por carta de 9 de outubro de 2012, o Reino da Bélgica declarou aceitar a posição da Comissão e comprometeu‑se a elaborar um projeto de lei que permitisse corrigir a infração.

15      A Comissão suspendeu o procedimento de infração, tendo em conta o facto de, em 3 de setembro de 2013, ter sido submetida ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial relativa ao tratamento fiscal na Bélgica de um bem imóvel situado em França, que deu origem ao Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards (C‑489/13, EU:C:2014:2210).

16      No n.° 34 desse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 63.° TFUE devia ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro relativa à tributação dos rendimentos dos residentes desse Estado, na medida em que é suscetível de conduzir, quando da aplicação de uma cláusula de progressividade contida numa convenção destinada a evitar a dupla tributação, a uma taxa de tributação sobre o rendimento mais elevada pelo mero facto de o método de determinação dos rendimentos dos bens imóveis levar a que os rendimentos provenientes de bens imóveis não dados em locação situados noutro Estado‑Membro sejam avaliados num montante superior aos provenientes desses bens situados no primeiro Estado‑Membro. Além disso, o Tribunal de Justiça deixou ao juiz nacional a tarefa de verificar se era esse o efeito da regulamentação em causa.

17      Tendo presente o referido acórdão, a Comissão decidiu prosseguir o procedimento de infração no Tribunal de Justiça, mediante a propositura da presente ação.

 Quanto à ação

 Argumentos das partes

18      A Comissão sustenta que o Reino da Bélgica violou o artigo 63.° TFUE e o artigo 40.° do Acordo EEE, ao aplicar, na determinação do cálculo do imposto sobre o rendimento, as disposições dos artigos 7.° e 13.° do CIR 92, conjugados com os números 13/7 e 13/8 do comentário administrativo do mesmo código, segundo os quais os rendimentos provenientes de imóveis não arrendados ou arrendados quer a pessoas singulares que não lhes dão um uso profissional quer a pessoas coletivas que os põem à disposição de pessoas singulares para fins privados são determinados com base numa taxa fixa, quando se trate de bens imóveis situados na Bélgica, e com base no valor locativo efetivo ou na renda efetiva, quando se trate de bens imóveis situados noutro Estado‑Membro da União Europeia ou do EEE.

19      No que diz respeito à base fixa, a Comissão defende que é constituída pelo valor cadastral dos bens imóveis, deduzidos os custos de manutenção e de reparação estimados forfetariamente. Na sua opinião, só é aplicável aos bens imóveis, estejam ou não arrendados, situados na Bélgica.

20      No que diz respeito aos bens imóveis situados noutro Estado‑Membro da União ou do EEE, há que distinguir os bens imóveis dados em locação dos que não o são. Enquanto, no primeiro caso, o valor tributável é calculado com base na renda recebida, no segundo caso, o cálculo efetua‑se a partir do montante do valor locativo efetivo do bem imóvel. Em ambos os casos, ao valor assim obtido é subtraído, por um lado, o montante dos impostos pagos ao Estado em cujo território se situa o bem imóvel e, por outro, o montante das despesas de manutenção e reparação estimadas forfetariamente.

21      Na falta de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação celebrada entre o Reino da Bélgica e o Estado em cujo território se situa o bem imóvel, os rendimentos provenientes desse bem estão sujeitos ao imposto na Bélgica, ainda que beneficiem de uma redução de 50%. Em contrapartida, se houver uma convenção, esses rendimentos, apesar de isentos de imposto na Bélgica, são tidos em consideração para determinar a taxa de tributação aplicável aos rendimentos não isentos.

22      A este respeito, a Comissão alega que o valor cadastral de um bem imóvel situado na Bélgica, apesar da sua indexação, das atualizações e dos ajustamentos aplicáveis desde 1997, continua a ser inferior ao valor locativo efetivo desse bem e à renda efetiva.

23      Daqui resulta uma diferença de tratamento em detrimento dos residentes belgas que sejam proprietários de bens imóveis situados noutros Estados‑Membros da União ou do EEE, o que é suscetível de dissuadir essas pessoas de investirem os seus capitais em tais bens imóveis e restringir a livre circulação de capitais.

24      Além disso, a Comissão considera que o Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards (C‑489/13, EU:C:2014:2210), confirma que, em aplicação das convenções destinadas a evitar a dupla tributação, a tomada em consideração, por força de uma cláusula de progressividade, dos rendimentos isentos, para fins da determinação da taxa do imposto sobre o rendimento aplicável aos rendimentos não isentos, é, em si, suscetível de constituir uma desvantagem para o contribuinte, na medida em que dá lugar a uma taxa de tributação mais elevada do que a que seria aplicável se o imóvel estivesse situado na Bélgica.

25      Por último, a Comissão salienta que, em resposta às notificações para cumprir, as autoridades belgas alegaram que, mediante a circular AGFisc n.° 22/2016, procederam a uma flexibilização da doutrina fiscal ao permitir a aplicação de um valor fixado pelas autoridades de outro Estado em cujo território se situa o bem imóvel propriedade de um residente belga, em vez do valor locativo efetivo. Contudo, esta flexibilização referia‑se unicamente aos bens não locados, não era juridicamente obrigatória para a Administração Fiscal belga e estava prevista numa circular cujo valor jurídico era inferior às disposições do CIR 92. Além disso, os valores locativos calculados pelas autoridades estrangeiras para a determinação dos seus impostos não são sempre inferiores às rendas reais praticadas no mercado imobiliário.

26      O Reino da Bélgica não nega que existe uma diferença dos métodos de avaliação dos rendimentos dos bens imóveis, consoante esses bens se situem ou não no território belga. Afirma, contudo, que resulta do Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards (C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.° 20), que é permitido recorrer a métodos de avaliação dos rendimentos imobiliários diferentes, desde que as liberdades de circulação estejam garantidas. Segundo o Reino da Bélgica, este é o caso da regulamentação belga, que não implica necessariamente uma tributação superior para um contribuinte belga que disponha de um bem imóvel situado no território de outro Estado.

27      A este respeito, o Reino da Bélgica sustenta que o valor cadastral de um bem imóvel situado na Bélgica é determinado, à semelhança do valor locativo de um bem imóvel situado noutro Estado, com base numa estimativa das rendas que poderiam ser obtidas, tendo em conta elementos variáveis como a antiguidade do bem e o montante da renda no mercado de arrendamento local. Alega que a diferença entre o valor cadastral e o valor locativo efetivo varia em função dos referidos elementos.

28      É certo que a estimativa que serve de base ao valor cadastral é antiga e, por isso, em geral, claramente inferior ao valor locativo efetivo. Contudo, o valor cadastral é atualizado anualmente em função da evolução do índice de preços no consumidor e acrescido de 40%.

29      Além disso, uma diferença entre o valor cadastral e o valor locativo efetivo de um imóvel situado na Bélgica não implica a existência de uma diferença entre o valor cadastral do imóvel situado na Bélgica e o valor locativo efetivo de um bem imóvel comparável situado noutro Estado. A este respeito, o Reino da Bélgica alega que o custo dos imóveis nos Estados‑Membros da União e do EEE pode variar consideravelmente. Em alguns desses Estados, as rendas podem ser inferiores às praticadas na Bélgica.

30      No que se refere, em particular, aos bens isentos de imposto na Bélgica ao abrigo de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação, o Reino da Bélgica alega que, na medida em que a taxa de tributação aplicável aos rendimentos tributáveis na Bélgica progride por escalões, a tomada em consideração dos rendimentos imobiliários estrangeiros, em virtude da aplicação de uma cláusula de progressividade, não afeta necessariamente a taxa de tributação aplicável aos outros rendimentos tributáveis na Bélgica. Seria assim unicamente na hipótese de uma eventual sobreavaliação ter por efeito fazer passar o rendimento marginal do contribuinte para um escalão superior da tabela de tributação. Como decorre do Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards (C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.° 23), o juiz nacional, competente para verificar a existência de uma eventual tributação superior, deve proceder a uma apreciação caso a caso.

31      Para efeitos da tomada em consideração dos rendimentos imobiliários estrangeiros na determinação da taxa de tributação aplicável aos rendimentos tributáveis na Bélgica, importa, além disso, distinguir os bens imóveis arrendados dos que não o estão.

32      No caso dos bens não dados em locação, os contribuintes belgas dispõem da faculdade, prevista pela circular AGFisc n.° 22/2016, de mencionar na sua declaração de imposto o «valor locativo bruto» determinado pela Administração Fiscal do Estado em cujo território se situa o seu bem imóvel. Por conseguinte, esta circular gera expectativas legítimas nos contribuintes, como reconheceu a cour d’appel d’Anvers (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), em 2 de junho de 2015, no processo Verest & Gerards contra o Estado belga.

33      Na medida em que alguns Estados‑Membros da União ou do EEE não procedem à avaliação dos rendimentos dos bens imóveis que não estão arrendados, cabe ao contribuinte estimar o valor locativo desses bens. No entanto, em função do nível de vida e das rendas geralmente praticadas nesses Estados, esta estimativa não tem necessariamente de ser de um montante superior ao do valor cadastral de um imóvel comparável situado na Bélgica.

34      No que se refere aos imóveis dados em locação, uma tributação superior dos situados noutro Estado‑Membro da União ou do EEE que não o Reino da Bélgica só poderia ser aplicada se estivessem preenchidos três requisitos, a saber, em primeiro lugar, o arrendamento e as demais vantagens decorrentes da locação serem superiores ao valor cadastral de um imóvel comparável situado na Bélgica, em segundo lugar, o contribuinte belga dispor de outros rendimentos tributáveis na Bélgica e, em terceiro lugar, a tomada em consideração do rendimento imobiliário implicar a passagem a um escalão superior da tabela de tributação.

35      De resto, o valor cadastral de bens imóveis situados na Bélgica aproxima‑se do montante dos rendimentos dos bens imóveis situados num Estado distinto do Reino da Bélgica pela dedução desses rendimentos, dos impostos estrangeiros e das despesas de conservação e de reparação até 40%. No que se refere a essas despesas, o Reino da Bélgica admite, contudo, que o valor cadastral de bens imóveis situados na Bélgica é também diminuído num montante fixo de despesas idênticas.

36      Além disso, o Reino da Bélgica sustenta que os rendimentos de bens imobiliários situados na Bélgica fazem parte dos rendimentos globalmente sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e estão sujeitos ao imposto sobre os bens imóveis, que é um imposto predial distinto. Considera, portanto, que, enquanto, no caso dos imóveis situados noutro Estado, os rendimentos desses imóveis só são tidos em conta para determinar a taxa de tributação aplicável aos rendimentos tributáveis na Bélgica, os rendimentos dos imóveis situados na Bélgica determinam não só a taxa de tributação aplicável como, além disso, estão sujeitos a dupla tributação. Globalmente, a tributação dos residentes belgas que possuem bens imóveis na Bélgica é, por conseguinte, mais elevada do que a dos residentes belgas que possuem bens imóveis situados noutro Estado‑Membro da União ou do EEE.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

 Observações preliminares

37      Com a sua ação, a Comissão acusa o Reino da Bélgica de restringir a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.° TFUE e no artigo 40.° do Acordo EEE, ao prever um tratamento fiscal desfavorável para os residentes belgas que possuam um bem imóvel no território de um Estado‑Membro da União ou do EEE diferente do Reino da Bélgica.

38      Na medida em que o Reino da Bélgica refere que a circular AGFisc n.° 22/2016 tem, no entender deste Estado‑Membro, por objetivo tornar a regulamentação controvertida conforme com o artigo 63.° TFUE e com o artigo 40.° do Acordo EEE, basta recordar que é jurisprudência constante que a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação controvertida tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado e que as alterações posteriormente ocorridas não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal de Justiça (Acórdão de 29 de outubro de 2015, Comissão/Bélgica, C‑589/14, não publicado, EU:C:2015:736, n.° 49).

39      Uma vez que, como resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, esse prazo terminou em 26 de março de 2012, não há que ter em conta a argumentação do Reino da Bélgica relativa a esta circular datada de 29 de junho de 2016.

 Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

40      Importa recordar que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, compreendem as medidas suscetíveis de dissuadir os residentes de um Estado‑Membro de fazerem investimentos imobiliários noutros Estados‑Membros (Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards., C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.° 21 e jurisprudência referida).

41      No caso em apreço, os artigos 7.° e 13.° do CIR 92, conjugados com os números 13/7 e 13/8 do comentário administrativo do mesmo código, estabelecem que os rendimentos provenientes de imóveis não arrendados ou arrendados quer a pessoas singulares que não lhes dão um uso profissional quer a pessoas coletivas que os põem à disposição de pessoas singulares para fins privados são determinados com base numa taxa fixa, quando se trate de bens imóveis situados na Bélgica, e com base no valor locativo efetivo ou na renda efetiva, quando se trate de bens imóveis situados noutro Estado.

42      A base forfetária aplicável aos bens imóveis situados na Bélgica é constituída pelo seu valor cadastral, que foi determinado em 1 de janeiro de 1975, a partir de uma estimativa do valor locativo normal líquido determinado com base nas rendas que, em caso de locação desses bens, poderiam ter sido obtidas nessa data.

43      Além disso, é facto assente que, a partir de 1991, o valor cadastral de um bem imóvel situado na Bélgica, é afetado de um coeficiente de majoração cuja taxa varia anualmente em função do índice de preços no consumidor. Além disso, desde 1994, aplica‑se uma majoração ao valor cadastral dos bens imóveis edificados, cuja taxa foi fixada em 25% para 1995 e aumentada para 40% a partir de 1997.

44      No caso do valor locativo efetivo de um bem imóvel, este representa a renda bruta média anual que poderia ser obtida em caso de locação desse bem. É utilizado para determinar os rendimentos provenientes de bens imóveis não arrendados, situados num Estado‑Membro que não o Reino da Bélgica.

45      O Reino da Bélgica não contesta que o valor cadastral de um bem imóvel situado na Bélgica seja inferior à renda efetiva desse bem ou ao seu valor locativo efetivo. A este respeito, resulta da ação da Comissão que a evolução geral dos preços do imobiliário desde 1975 tendeu a aumentar em todas as regiões belgas, gerando um aumento correspondente das rendas, e que a indexação e a majoração do valor cadastral dos bens imóveis situados na Bélgica não foram suficientes para aproximar esse valor do montante das rendas que podem ser obtidas no mercado de arrendamento belga.

46      É certo que, como observa com razão o Reino da Bélgica, esta diferença entre o valor cadastral e o valor locativo efetivo de um bem imóvel situado na Bélgica não significa necessariamente que o rendimento de um bem imóvel situado num Estado‑Membro que não o Reino da Bélgica seja mais elevado do que o valor cadastral de um imóvel comparável situado no território belga. Com efeito, não se pode excluir que as rendas praticadas noutro Estado‑Membro da União ou do EEE sejam bastante inferiores às praticadas na Bélgica.

47      No entanto, como resulta dos n.os 42 a 44 do presente acórdão, o rendimento de um bem imóvel, situado na Bélgica ou noutro local, considerado pelas autoridades fiscais belgas é calculado, in fine, em função das rendas que um imóvel é suscetível de gerar, o que o Reino da Bélgica confirma nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

48      Consequentemente, para determinar se a avaliação diferenciada do rendimento imobiliário — consoante o bem esteja situado na Bélgica ou noutro Estado‑Membro da União ou do EEE — constitui uma diferença de tratamento, há que comparar o valor cadastral, o valor locativo e as rendas que podem ser efetivamente obtidas no mercado de arrendamento.

49      A este respeito, resulta das considerações expostas nos n.os 41 a 45 do presente acórdão que, por um lado, o valor cadastral de um bem imóvel situado na Bélgica é inferior às rendas que podem ser obtidas no mercado de arrendamento belga e que, por outro, o valor locativo efetivo de um bem imóvel corresponde, em princípio, à renda bruta média anual que poderia ser obtida em caso de locação desse bem. Daqui resulta que, através da avaliação diferenciada dos rendimentos dos bens imóveis em função do Estado em cujo território se situem esses bens, o rendimento de um bem imóvel situado num Estado‑Membro da União ou do EEE diferente do Reino da Bélgica é sobreavaliado em relação ao rendimento de um bem imóvel situado na Bélgica.

50      Por outro lado, como salienta a Comissão, dada a importância desta sobreavaliação, o facto de o valor locativo efetivo de um bem imóvel situado num Estado‑Membro da União ou do EEE diferente do Reino da Bélgica ser reduzido num montante correspondente aos impostos que oneram o rendimento imobiliário desse bem nesse primeiro Estado não conduz a uma aproximação determinante do valor locativo e do valor cadastral.

51      Na medida em que o Reino da Bélgica exerce o seu poder de tributação sobre os rendimentos imobiliários dos bens arrendados e não arrendados situados num Estado‑Membro da União ou do EEE diferente do Reino da Bélgica, resulta da sobreavaliação dos rendimentos desses bens que a base de tributação estabelecida é mais elevada do que seria se um valor análogo ao valor cadastral tal como previsto pela regulamentação controvertida para os bens situados na Bélgica fosse utilizado para determinar o nível desses rendimentos.

52      Quando existam convenções destinadas a evitar a dupla tributação que prevejam uma reserva de progressividade, o rendimento de um imóvel situado noutro Estado não é tributado na Bélgica. No entanto, é tomado em consideração a fim de aplicar a regra de progressividade ao cálculo do montante do imposto sobre o resto dos rendimentos do contribuinte tributáveis na Bélgica (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards, C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.os 29 e 30). Neste caso, a sobreavaliação do rendimento dos bens situados num Estado‑Membro da União ou do EEE diferente do Reino da Bélgica pode levar à aplicação de uma taxa de tributação mais pesada, o que o Reino da Bélgica admite nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

53      À luz do que precede, há que concluir que a regulamentação controvertida, que prevê que os rendimentos provenientes de imóveis não arrendados ou arrendados quer a pessoas singulares que não lhes dão um uso profissional quer a pessoas coletivas que os põem à disposição de pessoas singulares para fins privados são determinados com base numa taxa fixa, quando se trate de bens imóveis situados na Bélgica, e com base no valor locativo efetivo ou na renda efetiva, quando se trate de bens imóveis situados noutro Estado, implica uma diferença de tratamento suscetível de dissuadir os residentes belgas de fazerem investimentos imobiliários noutros Estados‑Membros da União ou do EEE diferentes do Reino da Bélgica.

54      Por conseguinte, a referida legislação constitui uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE.

 Quanto à existência de uma justificação à restrição à livre circulação de capitais ao abrigo do artigo 65.° TFUE

55      Segundo jurisprudência constante, há que distinguir as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Para que uma legislação fiscal nacional, como a regulamentação controvertida, possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que essa diferença de tratamento diga respeito a situações não objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de setembro de 2014, Comissão/Espanha, C‑127/12, não publicado, EU:C:2014:2130, n.° 73; de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards, C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.° 28; e de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C‑10/14, C‑14/14 e C‑17/14, EU:C:2015:608, n.° 64).

56      A este respeito, o Reino da Bélgica alega que, em aplicação das convenções destinadas a evitar a dupla tributação que celebrou com a maioria dos Estados‑Membros da União ou do EEE, os rendimentos dos imóveis situados no território desses Estados não são tributados na Bélgica a título do imposto sobre as pessoas singulares, ao passo que os rendimentos provenientes de imóveis situados na Bélgica fazem parte da base tributável para o cálculo do imposto na Bélgica. Assim, só se pode declarar uma violação do artigo 63.° TFUE se o montante efetivamente devido na Bélgica a título da tributação global dos rendimentos das pessoas singulares aí residentes for mais elevado para o proprietário de um bem imóvel situado noutro Estado‑Membro da União ou do EEE.

57      Esta argumentação deve ser julgada improcedente.

58      Como observa o Reino da Bélgica na sua contestação, os rendimentos isentos ao abrigo de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação são, em conformidade com o artigo 155.° do CIR 92, tidos em conta para determinar a taxa de tributação aplicável aos rendimentos tributáveis na Bélgica.

59      O objetivo de tal isenção com «reserva de progressividade» é evitar que, na Bélgica, os rendimentos tributáveis de um contribuinte proprietário de um bem imóvel situado noutro Estado‑Membro sejam tributados a uma taxa de tributação inferior à aplicável aos rendimentos dos contribuintes proprietários de bens comparáveis na Bélgica (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards, C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.° 31).

60      À luz deste objetivo, a situação dos contribuintes que tiverem adquirido um bem imóvel na Bélgica é comparável à dos contribuintes que tiverem adquirido esse bem noutro Estado‑Membro da União ou do EEE (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2014, Verest e Gerards, C‑489/13, EU:C:2014:2210, n.° 32).

61      A mesma conclusão se aplica na falta de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação. Nesta hipótese, o objetivo da regulamentação controvertida, de tributar os rendimentos provenientes de bens imóveis cujos proprietários são os residentes belgas, aplica‑se de igual modo aos rendimentos dos bens imóveis situados na Bélgica ou noutro Estado. Em ambos os casos, esses rendimentos são incluídos no valor tributável, para efeitos da tributação dos rendimentos.

62      Além disso, quanto à questão de saber se a diferença de tratamento dos contribuintes belgas, consoante possuam um bem imobiliário na Bélgica ou noutro Estado‑Membro da União ou do EEE, pode ser justificada por uma razão imperiosa de interesse geral, há que observar que o Reino da Bélgica não invocou no Tribunal de Justiça nenhuma razão imperiosa de interesse geral suscetível de justificar, no caso em apreço, a restrição à livre circulação de capitais na aceção do artigo 63.° TFUE.

 Quanto à violação do artigo 40.° do Acordo EEE

63      Na medida em que as disposições do artigo 40.° do Acordo EEE têm o mesmo alcance jurídico que as disposições, essencialmente idênticas, do artigo 63.° TFUE, todas as considerações anteriores, relativas à existência de uma restrição à livre circulação de capitais na aceção do artigo 63.° TFUE, são, nas circunstâncias da presente ação, transponíveis mutatis mutandis para o referido artigo 40.° (Acórdão de 4 de maio de 2017, Comissão/Grécia, C‑98/16, não publicado, EU:C:2017:346, n.° 49).

64      Atendendo a todas as considerações que precedem, há que julgar procedente a ação da Comissão.

65      Em consequência, há que declarar que, ao manter disposições segundo as quais, em matéria de avaliação dos rendimentos provenientes de imóveis não arrendados ou arrendados quer a pessoas singulares que não lhes dão um uso profissional quer a pessoas coletivas que os põem à disposição de pessoas singulares para fins privados, a base tributável é calculada a partir do valor cadastral, no caso de bens situados no território nacional, e com base no valor locativo efetivo, no que diz respeito aos imóveis situados no estrangeiro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.° TFUE e do artigo 40.° do Acordo EEE.

 Quanto às despesas

66      Nos termos do artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Reino da Bélgica e tendo este sido vencido, há que condená‑lo nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) decide:

1)      Ao manter disposições segundo as quais, em matéria de avaliação dos rendimentos provenientes de imóveis não arrendados ou arrendados quer a pessoas singulares que não lhes dão um uso profissional quer a pessoas coletivas que os põem à disposição de pessoas singulares para fins privados, a base tributável é calculada a partir do valor cadastral, no caso de bens situados no território nacional, e com base no valor locativo efetivo, no que diz respeito aos imóveis situados no estrangeiro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.° TFUE e do artigo 40.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992.

2)      O Reino da Bélgica é condenado nas despesas.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.