Language of document : ECLI:EU:C:2006:440

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

L. A. GEELHOED

apresentadas em 29 de Junho de 2006 1(1)

Processo C‑238/05

ASNEF‑EQUIFAX, Servicios de Información sobre Solvencia y Crédito, S.L.

e

Administración del Estado

contra

Asociación de Usuarios de Servicios Bancarios (AUSBANC)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Supremo (Espanha)]

«Acordos, decisões e práticas concertadas – Sistema de troca de informações entre instituições financeiras sobre a solvência dos clientes – Efeitos benéficos para os consumidores e utilizadores dos serviços financeiros»





I –    Introdução

1.        O presente processo diz respeito a um pedido de decisão prejudicial no qual o Tribunal Supremo (Espanha) coloca duas questões de interpretação do artigo 81.° CE, no âmbito de um exame da compatibilidade com este artigo de um registo informático sobre o crédito, acessível às instituições financeiras e de crédito em Espanha mediante pagamento.

2.        Fundamentalmente, as questões visam saber se esse registo cai no âmbito de aplicação do artigo 81.°, n.° 1, CE e, em caso afirmativo, se é susceptível de ser autorizado pelas autoridades de um Estado‑Membro ao abrigo do n.° 3 do mesmo artigo, caso em que é posto o acento tónico no segundo requisito (uma parte equitativa do lucro é reservada aos utilizadores).

3.        Estas questões foram suscitadas no âmbito de um recurso interposto pela sociedade ASNEF‑EQUIFAX Servicios de Información sobre Solvencia y Crédito SL (a seguir «ASNEF‑EQUIFAX») do acórdão de 28 de Novembro de 2001 da Audiencia Nacional (Espanha), que anulou a autorização concedida a esse registo nos termos do direito espanhol.

II – Quadro jurídico

A –    O direito comunitário

4.        De acordo com o seu quarto considerando, o Regulamento (CE) n.° 1/2003 (2) tem por objectivo reconhecer às autoridades responsáveis em matéria de concorrência e aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros competência para aplicar não só o n.° 1 do artigo 81.° e o artigo 82.° do Tratado, directamente aplicáveis nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, mas também o n.° 3 do artigo 81.° do Tratado.

5.        O artigo 3.°, n.os 1 e 2, deste Regulamento dispõe:

«1.      Sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência ou os tribunais nacionais apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a acordos, decisões de associação ou práticas concertadas na acepção do n.° 1 do artigo 81.° do Tratado, susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados‑Membros, na acepção desta disposição, devem aplicar igualmente o artigo 81.° do Tratado a tais acordos, decisões ou práticas concertadas. […].

2.      A aplicação da legislação nacional em matéria de concorrência não pode levar à proibição de acordos, decisões de associação ou práticas concertadas susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados‑Membros mas que não restrinjam a concorrência na acepção do n.° 3 do artigo 81.° do Tratado, ou que reúnam as condições do n.° 3 do artigo 81.° do Tratado ou se encontrem abrangidos por um regulamento de aplicação do n.° 3 do artigo 81.° do Tratado. Nos termos do presente regulamento, os Estados‑Membros não estão impedidos de aprovar e aplicar no seu território uma legislação nacional mais restritiva que proíba actos unilaterais de empresas ou que imponha sanções por esses actos.»

B –    O direito nacional

6.        O direito espanhol da concorrência rege‑se, principalmente, pela Ley 16/1989 de Defensa de la Competencia, de 17 de Julho de 1989 (lei de defesa da concorrência, a seguir «LDC»). A letra dos artigos 1.° e 3.° da LDC é, no essencial, praticamente idêntica à do artigo 81.°, n.os 1 e 3, CE.

7.        Segundo o artigo 4.°, n.° 1, da LDC, o Tribunal de Defensa de la Competencia (tribunal da concorrência) pode autorizar os acordos, decisões, recomendações e práticas a que se refere o artigo 1.°, nos casos e nas condições previstos no artigo 3.°

III – Processo principal e questões prejudiciais

8.        O órgão jurisdicional de reenvio descreve o contexto do processo principal nos seguintes termos.

9.        Em 21 de Maio de 1998, a ASNEF‑EQUIFAX, à qual pertence, na qualidade de sócia, a Asociación Nacional de Entidades Financieras (Associação Nacional das Instituições Financeiras), apresentou, ao abrigo do artigo 4.° da LDC, um pedido de autorização de um registo de informação sobre o crédito, a ser gerido pela ASNEF‑EQUIFAX (a seguir «registo proposto»).

10.      O registo proposto «tem por objecto a prestação de serviços de informação sobre a solvência e o crédito, por meio de tratamento automatizado de dados relativos aos riscos assumidos pelas entidades participantes no processo de actividades de crédito». As informações retomadas no registo proposto teriam um conteúdo muito semelhante ao que está previsto na Circular n.° 3/1995, que rege a Central de Información de Riesgos (registo central de informações sobre os riscos), gerida pelo Banco central espanhol e já acessível às instituições financeiras em Espanha. As informações em causa dizem respeito à identidade e à actividade económica dos devedores e a certas situações especiais, como a insolvência.

11.      Ao contrário do parecer negativo dado pelo Servicio de Defensa de la Competencia (órgão administrativo que tem por missão a protecção da concorrência, na dependência do Ministério dos Assuntos Económicos e das Finanças), o Tribunal de Defensa de la Competencia autorizou, em 3 de Novembro de 1999, o registo proposto, por uma duração de cinco anos, mediante as condições expressas seguintes: estar acessível a todas as instituições financeiras em condições não discriminatórias e mediante pagamento da quota correspondente; não revelar informações relativas aos credores nele contidos.

12.      A Audiencia Nacional deu provimento, por acórdão de 28 de Novembro de 2001, ao recurso interposto pela Asociación de Usuarios de Servicios Bancarios (associação dos utentes dos serviços bancários, a seguir «AUSBANC») da decisão do Tribunal de Defensa de la Competencia. Entendeu que o registo proposto, ao restringir a livre concorrência, caía sob a proibição do artigo 1.° da LDC e não podia ser autorizado ao abrigo das disposições do artigo 3.° da LDC, uma vez que não estavam preenchidos os pressupostos para a sua aplicação. Este órgão jurisdicional nacional fez referência não só ao direito nacional, mas também ao direito comunitário, em particular o acórdão John Deere (3).

13.      A ASNEF‑EQUIFAX, discordando com esta decisão, dela recorreu para o Tribunal Supremo.

14.      Considerando que o litígio suscitava questões de interpretação do direito comunitário, o Tribunal Supremo submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«A)      A interpretação do artigo 81.º, n.° 1, do Tratado constitutivo da União Europeia permite considerar compatível com o mercado comum os acordos de troca de informações entre instituições financeiras sobre a situação de solvência e atraso no pagamento dos seus clientes, quando afecta as políticas financeiras da União e o mercado comum do crédito e tem o efeito de restringir a concorrência no sector das instituições financeiras e de crédito?

B)      A interpretação do artigo 81.º, n.° 3, do Tratado constitutivo da União Europeia permite ao Estado‑Membro, através dos organismos da concorrência, autorizar acordos de troca de informações entre instituições financeiras por meio da constituição de um registo de informação de créditos relativo aos seus clientes, pelo facto de os consumidores e utilizadores desses serviços financeiros beneficiarem da constituição de tal registo?»

15.      A ASNEF‑EQUIFAX, a AUSBANC, o Governo polaco e a Comissão apresentaram observações escritas. Realizou‑se uma audiência em 26 de Abril de 2006.

IV – Apreciação

A –    Quanto à admissibilidade

16.      Foram suscitados dois tipos de questões no que toca à admissibilidade:

–        trata‑se de uma aplicação do direito nacional (questão suscitada pela Comissão);

–        não tem incidência no comércio entre os Estados‑Membros (questão suscitada pela AUSBANC).

17.      A Comissão alega que a decisão do Tribunal de Defensa de la Competencia não se baseia no artigo 81.° CE, mas sim nas disposições equivalentes do direito espanhol (artigos 1.° e 3.° da LDC), o que suscita a questão da admissibilidade do presente pedido. A este respeito, a Comissão, lembrando que o presente pedido foi submetido no âmbito de um processo de recurso em última instância, questiona a possibilidade de o Tribunal Supremo aplicar disposições que não foram aplicadas pelas instâncias inferiores (nem pelo Tribunal de Defense de la Competencia, nem pela Audienca nacional) nas suas decisões.

18.      A Comissão nota que, apesar de o juiz a quo, na sua decisão de reenvio, afirmar que o 81.° CE se aplica a este processo, não explica porquê. Em particular, a Comissão observa que:

–        ou o direito nacional exige uma interpretação similar (como no processo Leur‑Bloem (4)); a Comissão entende que tal situação não se verifica no caso presente;

–        ou o artigo 81.° CE não desempenha qualquer papel em termos jurídicos no processo e a interpretação dada não é, portanto, relevante para o órgão jurisdicional de reenvio (como no processo Kleinwort Benson (5)); neste caso, o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre as questões prejudiciais;

–        ou, apesar do artigo 81.° não se aplicar directamente no presente processo, pode ser necessária uma interpretação para fazer respeitar o primado do direito comunitário sobre o direito nacional.

19.      No que toca a esta última possibilidade, a Comissão salienta que se trata de decidir sobre a legalidade de uma decisão adoptada em 2001, ou seja, numa altura em que a obrigação decorrente do Regulamento n.°1/2003 ainda não estava em vigor.

20.      Tendo em conta a jurisprudência constante quanto a esta matéria, sou da opinião de que este pedido de decisão prejudicial deve ser considerado admissível. Segundo esta jurisprudência, o Tribunal de Justiça deve, em princípio, pronunciar‑se quando as questões colocadas recaiam sobre a interpretação do direito comunitário e apenas pode recusar‑se a fazê‑lo quando a interpretação do direito comunitário solicitada não tenha qualquer relação com a realidade nem com o objecto do litígio no processo principal ou quando o problema seja de natureza hipotética e o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (6).

21.      É evidente que, no presente processo, as razões para declarar inadmissível um pedido prejudicial de interpretação não se verificam.

22.      Primeiro, resulta da decisão de reenvio que o Tribunal Supremo é de opinião de que «o acórdão (da Audiencia Nacional) [se baseia] nos princípios jurídicos consagrados nos artigos 1.° e 3.° da [LDC] e na aplicação do disposto no ex‑artigo 85.° do Tratado da Comunidade Económica Europeia, na interpretação seguida pelo Tribunal de Justiça […].»

23.      Para além disso, o Tribunal Supremo declarou que este pedido prejudicial, que constitui a expressão dos deveres de colaboração entre os órgãos jurisdicionais nacionais e comunitários, visa evitar interpretações contraditórias ou divergentes.

24.      Logo, mesmo que seja discutível que a Audiencia Nacional tenha baseado a sua decisão no artigo 81.° CE (ao referir‑se à jurisprudência comunitária unicamente com o fim de interpretar as disposições da LDC de conteúdo semelhante), o pedido é admissível.

25.      Segundo, quanto à função de um órgão jurisdicional de última instância, como já mencionei nas minhas conclusões no processo Manfredi (7), não cabe ao Tribunal de Justiça decidir se, e em que medida, o órgão jurisdicional de reenvio ultrapassou os limites da sua competência, como parece alegar a Comissão.

26.      No que respeita ao Regulamento n.° 1/2003 (questão da sua aplicação no tempo), é evidente que existem diferenças, ou melhor, nuanças, entre a situação jurídica existente antes e depois da sua entrada em vigor.

27.      A primeira diferença consiste no facto de as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais, desde a entrada em vigor do Regulamento, serem competentes para aplicar o artigo 81.° na sua íntegra.

28.      A segunda diferença que deve ser salientada neste contexto é que a faculdade de aplicar o direito comunitário se transformou numa obrigação (desde que esteja verificado o requisito do prejuízo do comércio entre Estados‑Membros). Estando verificados os requisitos de aplicação dos artigos 81.° e 82.°, as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de aplicar estas disposições nos litígios que tenham de decidir. Antes da entrada em vigor deste regulamento, um eventual conflito, em caso de aplicação paralela do direito comunitário e do direito nacional, devia ser resolvido através do princípio do primado do direito comunitário (8). O Regulamento n.° 1/2003 contém agora uma regra de convergência mais explícita. O seu artigo 3.°, n.° 2, dispõe que, sempre que os acordos, decisões e práticas concertadas não sejam proibidos pelo artigo 81.°, não podem ser proibidos pelo direito da concorrência dos Estados‑Membros.

29.      É certo que, na altura em que o Tribunal de Defensa de la Competencia e a Audiencia Nacional, tomaram as suas decisões, o Regulamento n.° 1/2003 não era aplicável. No entanto, a situação actual rege‑se por essa norma: de facto, a decisão a tomar terá impacto no funcionamento do registo proposto, seja por já se ter procedido à constituição desse registo (neste caso, é inútil averiguar se o artigo 81.° a isso se opõe ou não), seja por a respectiva constituição ter sido adiada enquanto é esperada a decisão a ser proferida (caso o artigo 81.° a tal não se oponha, será possível pôr esse registo em prática) (9).

30.      Por último, as alegações da AUSBANC de que o registo proposto não tem uma incidência sensível sobre o comércio entre Estados‑Membros dizem precisamente respeito à aplicabilidade do artigo 81.° CE à situação de facto que é objecto do processo principal. A sua apreciação compete ao órgão jurisdicional nacional e não têm pertinência para a verificação da admissibilidade das questões colocadas ao Tribunal de Justiça (10).

B –    Quanto ao mérito

 A primeira questão

31.      A primeira questão incide sobre o problema de saber se um sistema de troca de informações entre instituições de crédito constitui ou não uma violação do artigo 81.°, n.° 1, CE.

32.      Os requisitos de aplicação do artigo 81.° CE são: (1) que o comércio entre Estados‑Membros seja afectado, e (2) que a concorrência seja restringida.

33.      No que respeita ao requisito de o comércio entre Estados‑Membros ser afectado, é certo, como notou a Comissão, que a decisão de reenvio não explica detalhadamente em que medida é que o registo proposto é susceptível de afectar o comércio entre os Estados‑Membros. Em meu entender, é claro que o juiz a quo é implicitamente de opinião de que este requisito está preenchido, não só porque concentra as suas questões no segundo requisito, mas ainda porque a formulação das questões colocadas vai nesse sentido. Dado que a) o registo proposto parece destinado a ser aplicado em todo o território espanhol, e que b) o sector financeiro opera cada vez mais à escala transfronteiriça, creio que este requisito está, de facto, preenchido. De qualquer forma, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se isso se verifica efectivamente.

34.      A este respeito, resulta da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que basta provar que o acordo, decisão ou prática concertada é susceptível de afectar o comércio interestatal (11). Resulta ainda da jurisprudência que o requisito de que o comércio entre Estados‑Membros seja afectado está verificado se um conjunto de elementos objectivos de direito ou de facto permite admitir, com um grau suficiente de probabilidade, que um acordo, decisão ou prática concertada pode exercer um influência directa ou indirecta, actual ou potencial, sobre os fluxos do comércio entre Estados‑Membros (12). A decisão de reenvio não contém indicações precisas sobre o âmbito, ratione loci e ratione personae, do alegado acordo, decisão ou prática concertada. Contudo, pode‑se supor que a participação no registo proposto está aberta a todas as instituições de crédito, qualquer que seja o seu local de estabelecimento, activas no mercado espanhol (13). De qualquer forma, é ainda de jurisprudência constante que o facto de um acordo entre empresas dizer apenas respeito a operadores localizados num único Estado‑Membro não basta para excluir a possibilidade de afectar o comércio entre Estados‑Membros (14). Além disso, o Tribunal de Justiça lembrou várias vezes que um acordo que se estende a todo o território de um Estado‑Membro tem, pela sua própria natureza, por efeito consolidar barreiras de carácter nacional, entravando assim a interpenetração económica pretendida pelo Tratado (15).

35.      Quanto ao segundo «requisito», para que um acordo ou uma prática concertada viole o artigo 81.°, n.° 1, CE, é necessário que tenha «por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum». É, pois, necessário verificar, em primeiro lugar, se o acordo ou a prática concertada tem um objectivo anticoncorrencial. Se assim for, a proibição do artigo 81.°, n.° 1, CE aplica‑se, independentemente da produção de qualquer efeito. Se o objectivo daquele não for o de restringir ou falsear a concorrência, deve‑se proceder a uma análise destinada a determinar se dele resulta ou não tal efeito (16).

36.      É de jurisprudência constante que, para apreciar se um acordo, decisão ou prática concertada deve ser tido por proibido em razão das alterações à concorrência que dele resultam, a concorrência deve ser examinada no quadro real em que decorreria, na falta do acordo, decisão ou prática concertada controvertido. Tal apreciação requer que sejam tomados em consideração tanto os efeitos reais, como os potenciais do acordo sobre a concorrência (17). Além disso, a conformidade de um acordo com as regras da concorrência não pode ser apreciada de forma abstracta. Tal apreciação deve ser efectuada tendo em conta o contexto económico e jurídico do processo, tendo em conta a natureza do produto ou do serviço, bem como a estrutura e as condições reais de funcionamento do mercado (18). No entanto, um acordo, decisão ou prática concertada escapa à proibição do artigo 81.° se apenas afectar o mercado de forma insignificante (19).

37.      Além disso, é importante sublinhar que o princípio fundamental subjacente ao artigo 81.°, n.° 1, CE é a autonomia de comportamento de um operador no mercado (20).

38.      No que respeita mais concretamente à troca de informações, parece‑me útil especificar que essa troca pode ocorrer no contexto de um acordo, de uma decisão de associações de empresas ou de uma prática concertada. A troca de informações pode ser acessória ou constituir o objectivo a alcançar. No caso de um acordo, decisão ou prática concertada relativo a preços, por exemplo, para o qual a troca de informações é acessória, a limitação da autonomia resulta desse acordo relativo a preços. Do mesmo modo, é possível que a própria troca de informações tenha por efeito alterar o jogo da concorrência.

39.      Contudo, os acordos de troca de informações não são proibidos de forma automática, mas apenas em certas circunstâncias.

40.      A difusão e a troca de informações entre concorrentes e a criação de um mercado transparente podem ser neutras ou mesmo positivas para a estrutura concorrencial do mercado. É um facto notório que certas associações de empresas reúnem regularmente informações respeitantes a preços, rendimentos, capacidade e investimentos, para as distribuir pelos seus membros, que as podem utilizar para organizar a sua própria estratégia. Como sublinhou a jurisprudência, «a transparência entre operadores económicos num mercado verdadeiramente concorrencial pode levar à intensificação da concorrência entre as empresas […]» (21).

41.      É evidente que uma troca de informações pode ter efeitos nefastos. Geralmente, a distinção entre uma troca de informação legal e uma troca ilegal depende dos seguintes elementos: (1) carácter e conteúdo das informações trocadas (agregadas ou detalhadas) e (2) estrutura do mercado em causa (oligopolista ou fragmentado). A frequência da troca é igualmente relevante.

42.      No que toca ao primeiro elemento, uma troca de dados estatísticos ou históricos é, de um modo geral, menos problemática do que uma troca de dados recentes ou futuros. Os dados de mercado agregados são, em princípio, legais desde que não permitam a identificação ou o conhecimento da estratégia comercial de um concorrente isolado. A questão de saber se o nível de agregação permite ou não conhecer as estratégias dos concorrentes depende, em última análise, do número de concorrentes. De qualquer forma, cabe salientar que cada operador económico participante numa troca deve agir de forma independente e autónoma.

43.      No que respeita à estrutura do mercado, é evidente que, num mercado oligopolista, as empresas têm maior tendência para uniformizar o seu comportamento. A troca de informações pode então aumentar a probabilidade de colusão. Por tal razão, a troca de informações é considerada ilegal num mercado oligopolista ou, mesmo que o mercado não seja oligopolista, fortemente concentrado, e não num mercado verdadeiramente concorrencial (fragmentado) (22).

44.      No presente processo, as partes comprometem‑se a trocar informações sobre a solvência dos mutuários.

45.      Gostaria de chamar a atenção para o facto de que, praticamente em todos os países, existe, de uma forma ou de outra, um sistema de informações sobre o crédito, ou seja, um registo gerido por uma instituição pública, por uma entidade privada ou ainda por uma instituição de natureza jurídica mista. Esse registo contém dados de carácter negativo (entre os quais figuram os devedores que apresentam riscos especiais: os maus pagadores) e/ou dados de carácter neutro ou positivo (por exemplo, informações sobre o nível de endividamento de todos os beneficiários de créditos). O motivo subjacente para um país instaurar ou estimular um tal sistema reside na ajuda à prevenção de situações de sobre‑endividamento dos consumidores e na limitação dos riscos para os credores.

46.      O registo proposto comporta elementos negativos (como a falta de pagamento) e elementos positivos (como os saldos de crédito, os avales, as cauções e garantias, as operações de leasing ou a disposição temporária de activos). Além disso, já existe um registo de informações gerido pelo Banco de Espanha. Parece que ambos os registos contêm mais ou menos os mesmos dados, excepto que o registo proposto é um registo «em linha» (ou seja, as informações são transmitidas por via informática, logo, mais rapidamente) e que contém também, visto que não estão previstos limiares mínimos, informações sobre os pequenos beneficiários de crédito.

47.      À primeira vista, parece que o acordo (a constituição do registo proposto) não tem, em si mesmo, por objectivo limitar a autonomia de comportamento no mercado tanto dos demandantes de crédito como dos credores. Dado que o registo não parece, portanto, ter como objectivo restringir a concorrência, trata‑se de saber se tem por efeito restringi‑la ou falseá‑la.

48.      Como indicado supra, a partilha de informações para uma utilização individual não é, automaticamente, uma actividade que tenha um efeito anticoncorrencial.

49.      Neste contexto, importa sublinhar que a identidade do credor não deve ser revelada, nem directa, nem indirectamente, às empresas que têm acesso ao registo. Caso contrário, seria possível conhecer a posição ou a estratégia comercial dos concorrentes. A condição imposta pelo Tribunal de Defensa de la Competencia e aceite pela ASNEF‑EQUIFAX faz com que os dados da parte credora não sejam divulgados.

50.      Importa ainda que o sistema esteja aberto a todos os operadores activos neste domínio. Caso contrário, constituiria uma desvantagem para alguns deles, visto que aqueles que não têm acesso ao registo dispõem de menos informações para avaliar o risco, e também não facilitaria a entrada de novos operadores no mercado (23).

51.      Visto a troca de informações não ter qualquer relação com a identidade do credor e estimando que as instituições de crédito que têm acesso a este registo utilizam esta informação baseando a sua decisão na sua capacidade máxima de assunção de risco e em função da sua política comercial, resta saber se este tipo de troca de informação pode conduzir a outros efeitos anticoncorrenciais, tais como a adopção de comportamentos colusivos.

52.      À primeira vista, parece que este sistema não consiste na fixação de um interesse comum ou na exclusão colectiva de uma determinada categoria de clientes. O objectivo de um sistema de troca de informações sobre o crédito é limitar os riscos (gestão do risco). Isto está ligado ao carácter díspar das informações que podem ser pedidas pelos estabelecimentos de crédito aos seus clientes (potenciais). Este sistema é susceptível de propiciar um efeito positivo sobre a gestão dos riscos ligados a esta actividade económica.

53.      Neste contexto, gostaria de sublinhar que a jurisprudência não proíbe toda e qualquer eliminação da incerteza, mas apenas a eliminação de certas incertezas, em especial a ligada ao comportamento dos concorrentes no mercado. Ora, a incerteza em causa é a incerteza quanto à solvabilidade de um cliente.

54.      A actividade de crédito consiste em pôr provisoriamente à disposição de um terceiro um certo capital, contra remuneração (os juros). Os juros dependem nomeadamente de um elemento de risco ligado à possibilidade de a outra parte não executar correctamente as obrigações que lhe incumbem. Como observou a Comissão, referindo‑se à teoria económica, a remuneração desejada pela instituição é composta, em parte, por um prémio de seguro contra o risco de incumprimento. A falta de informações sobre este risco provoca um problema de disparidade de informações. Nesse caso, é impossível avaliar correctamente o risco e, portanto, a tendência é para impor o mesmo preço a todos os devedores, preço este demasiado alto para a categoria que apresenta o risco menor.

55.      Desde que cada operador determine, de modo autónomo, a política que pretende seguir no mercado comum e as condições que pretende reservar aos seus clientes, a instituição de um registo como o que está aqui em causa não coloca problemas do ponto de vista do direito da concorrência.

56.      Os eventuais problemas ligados à sensibilidade dos dados de carácter pessoal podem ser resolvidos por outros instrumentos, como legislação em matéria de protecção destes dados. É evidente que é necessário, de um modo ou de outro, comunicar aos devedores em causa quais os dados registados e dar‑lhes o direito de verificar e, caso o desejem, corrigir os dados que lhes dizem respeito. Este aspecto parece estar assegurado, tendo em conta a legislação espanhola aplicável e a cláusula 9 do regulamento do registo.

 A segunda questão

57.      A segunda questão diz respeito ao problema de saber se o artigo 81.°, n.° 3, CE permite a um órgão competente de um Estado‑Membro autorizar acordos de troca de informações como aquele que está aqui em causa, com o fundamento de que os utilizadores, ou seja, os clientes das instituições financeiras beneficiam desses serviços.

58.      Apesar desta questão já ter sido respondida implicitamente nas considerações supra, voltarei a ela sucintamente.

59.      Tal como indiquei supra, desde a entrada em vigor do Regulamento n.° 1/2003, os órgãos jurisdicionais e as autoridades nacionais são competentes para aplicar o artigo 81.° CE na sua íntegra. Segundo este regulamento, não é necessária uma decisão prévia no caso de um acordo abrangido pelo artigo 81.°, n.° 1, CE preencher os requisitos cumulativos do seu n.° 3.

60.      Vários Estados‑Membros adoptaram o seu direito da concorrência de modo a aplicar um sistema de excepção legal no contexto nacional. Pelo contrário, noutros Estados‑Membros vigora ainda o sistema de autorização. De qualquer forma, sendo o artigo 81.° aplicável, mesmo em caso de aplicação paralela, um acordo que preencha os requisitos do respectivo n.° 3 deve ser plenamente autorizado.

61.      O juiz a quo concentra‑se particularmente no segundo requisito do artigo 81.°, n.° 3, segundo o qual «aos utilizadores» deve ser reservada «uma parte equitativa do lucro dai resultante».

62.      Como já referi, um cálculo mais exacto dos riscos pode traduzir‑se numa diminuição geral do custo das operações de crédito, o que é, de um modo geral, favorável aos consumidores. Um melhor conhecimento do risco pode, no entanto, traduzir‑se numa distinção entre os bons devedores (menor risco, logo menos juros) e os maus devedores (que pagam mais ou a quem pode ser recusado o crédito).

63.      No entanto, não é necessário que todo e qualquer consumidor individual beneficie com esta prática. O que importa é que a incidência global nos consumidores seja favorável.

V –    Conclusão

64.      Com base no que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais colocadas pelo Tribunal Supremo da seguinte forma:

«O artigo 81.°, n.° 1, CE deve ser interpretado no sentido de que um acordo de troca de informações entre instituições financeiras, sobre a situação de solvência e de incumprimento dos seus clientes, que não permita identificar o credor e que estabeleça condições não discriminatórias no que toca ao acesso ao sistema em causa e à sua utilização pelos operadores activos no mercado do crédito não tem, em princípio, como efeito restringir a concorrência.»


1 – Língua original: francês.


2 – Regulamento do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1).


3 – Acórdão de 28 de Maio de 1998, John Deere/Comissão (C‑7/95 P, Colect., p. I‑3111). Nomeadamente, a Audiencia National referiu os pontos 5, 10, 88 e 123 deste acórdão.


4 – Acórdão de 17 de Julho de 1997 (C‑28/95, Colect., p. I‑4161).


5 – Acórdão de 28 de Março de 1995 (C‑346/93, Colect., p. I‑615).


6 – V. acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA (C‑344/04, ainda não publicado na Colectânea, n.° 24) e a jurisprudência aí citada. V. ainda o acórdão de 26 de Novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, Colect., p. I‑7791, n.° 16), e a jurisprudência aí citada.


7 – De 26 de Janeiro de 2006, nos processos Manfredi e o. (C‑295/04, C‑296/04, C‑297/04 e C‑298/04, ainda não publicados na Colectânea, n.° 25).


8 – V. acórdão de 13 de Fevereiro de 1969, Walt Wilhelm (14/68, Colect., p. 1).


9 – Não se sabe se o registo já se encontra ou não operacional.


10 – V. acórdão Bronner (já referido na nota 6, n.° 21).


11 – V. acórdão de 1 de Fevereiro de 1978, Miller/Comissão (19/77, Colect., p. 45, n.° 15).


12 – V., nomeadamente, acórdãos de 9 de Julho de 1969, Völk (5/69, Colect. 1969/1970, p. 95, n.° 5); de 10 de Julho de 1980, Lancôme e Cosparfrance (99/79, Recueil, p. 2511, n.° 23), e de 11 de Julho de 1985, Remia e o./Comissão (42/84, Recueil, p. 2545, n.° 22).


13 – Tal foi confirmado pela representante da ASNEF‑EQUIFAX durante a audiência.


14 – Acórdão de 11 de Julho de 1989, Belasco/Comissão (246/86, Colect., p. 2117).


15 – Acórdão de 19 de Fevereiro de 2002, Wouters (C‑309/99, Colect., p. I‑1577, n.° 95), e jurisprudência aí citada.


16 – V., a título de ilustração, os acórdãos de 30 de Junho de 1966, Société Technique Minière (56/65, Colect., p. 381); de 27 de Janeiro de 1987, Verband der Sachversicherer/Comissão (45/85, Colect., p. 405, n.° 39), e de 28 de Fevereiro de 1991, Delimitis (C‑234/89, Colect., p. I‑935, n.° 13).


17 – V. acórdãos Société Technique Minière e Delimitis, já referidos.


18 – Acórdãos de 12 de Dezembro de 1995, Oude Littikhuis e o. (C‑399/93, Colect., p. I‑4515, n.° 10), e de 15 de Dezembro de 1994, DLG (C‑250/92, Colect. p. I‑5641, n.° 31.


19 – Acórdão de 9 de Julho de 1969, Völk, já referido na nota 12, n.° 7.


20 – V., por exemplo, os acórdãos John Deere/Comissão (já referido na nota 3, n.° 86), e de 8 de Julho de 1999, Comissão/Anic Partecipazioni (C‑49/92 P, Colect., p. I‑4125, n.° 116).


21 – Acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 27 de Outubro de 1994, John Deere/Comissão (T‑35/92, Colect., p. II‑957, n.° 51); acórdãos do Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 1998, John Deere/Comissão (já referido na nota 3, n.os 88 a 90), e de 2 de Outubro de 2003, Thyssen Stahl/Comissão (C‑194/99 P, Colect., p. I‑10821, n.° 84).


22 – Acórdão de 2 de Outubro de 2003, Thyssen Stahl/Comissão (já referido na nota anterior, n.° 86).


23 – Este requisito parece estar preenchido. Nas suas observações escritas, a ASNEF‑EQUIFAX declarou: «de entre os participantes na constituição deste registo figuram organismos e operadores do sector financeiro de tamanho e envergadura muito diferentes […]», e «clientes com perfis extremamente diversos, desde bancos e caixas de aforro a sociedades imobiliárias, incluindo sociedades de aluguer de automóveis a longo e a curto prazo, grandes superfícies e pequenos estabelecimentos comerciais, etc.».