Language of document : ECLI:EU:C:2010:665

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

9 de Novembro de 2010 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil – Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental – Regulamento (CE) n.° 2201/2003 – Litispendência – Acção para conhecimento do mérito relativa ao direito de guarda de menor e pedido de medidas provisórias relativo ao direito de guarda desse menor»

No processo C‑296/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Amtsgericht Stuttgart (Alemanha), por decisão de 31 de Maio de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 16 de Junho de 2010, no processo

Bianca Purrucker

contra

Guillermo Vallés Pérez,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente de secção, A. Arabadjiev, A. Rosas (relator), U. Lõhmus e A. Ó Caoimh, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vista a decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 2010 de submeter o processo a tramitação acelerada, em conformidade com os artigos 23.°‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e 104.°‑A, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

vistos os autos e após a audiência de 27 de Setembro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de B. Purrucker, por B. Steinacker, Rechtsanwältin,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo espanhol, por J. M. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por F. Penlington, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por A.‑M. Rouchaud‑Joët e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe B. Purrucker a G. Vallés Pérez a propósito do direito de guarda relativo ao filho de ambos, Merlín.

 Quadro jurídico

3        O Regulamento n.° 2201/2003 foi antecedido pelo Regulamento (CE) n.° 1347/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal em relação a filhos comuns do casal (JO L 160, p. 19). O Regulamento n.° 1347/2000 foi revogado pelo Regulamento n.° 2201/2003, cujo âmbito de aplicação é mais amplo.

4        No décimo segundo, décimo sexto e vigésimo primeiro considerandos do Regulamento n.° 2201/2003 afirma‑se:

«(12) As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

[…]

(16)      O presente regulamento não impede que, em caso de urgência, os tribunais de um Estado‑Membro ordenem medidas provisórias ou cautelares em relação a pessoas ou bens presentes nesse Estado‑Membro.

[…]

(21)      O reconhecimento e a execução de decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua e os fundamentos do não reconhecimento serão reduzidos ao mínimo indispensável.»

5        Nos termos do artigo 2.° do Regulamento n.° 2201/2003:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)      ‘Tribunal’, todas as autoridades que nos Estados‑Membros têm competência nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento por força do artigo 1.°;

[…]

4)      ‘Decisão’, qualquer decisão de divórcio, separação ou anulação do casamento, bem como qualquer decisão relativa à responsabilidade parental proferida por um tribunal de um Estado‑Membro, independentemente da sua designação, tal como ‘acórdão’, ‘sentença’ ou ‘despacho judicial’;

[…]

7)      ‘Responsabilidade parental’, o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita;

[…]

9)      ‘Direito de guarda’, os direitos e as obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência;

[…]»

6        O artigo 8.°, n.° 1, deste regulamento prevê:

«Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.»

7        O artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003, intitulado «Apreciação da acção por um tribunal», dispõe:

«1.      Considera‑se que o processo foi instaurado:

a)      Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido;

ou

b)      Se o acto tiver de ser citado ou notificado antes de ser apresentado ao tribunal, na data em que é recebido pela autoridade responsável pela citação ou notificação, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que o acto seja apresentado a tribunal.»

8        Segundo o artigo 17.° deste regulamento:

«O tribunal de um Estado‑Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado‑Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara‑se oficiosamente incompetente.»

9        O artigo 19.°, n.os 2 e 3, do referido regulamento prevê:

«2.      Quando são instauradas em tribunais de Estados‑Membros diferentes acções relativas à responsabilidade parental em relação a uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.

3.      Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara‑se incompetente a favor daquele.

Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetido pelo requerente à apreciação do tribunal em que a acção foi instaurada em primeiro lugar.»

10      O artigo 20.° do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Medidas provisórias e cautelares», dispõe:

«1.      Em caso de urgência, o disposto no presente regulamento não impede que os tribunais de um Estado‑Membro tomem as medidas provisórias ou cautelares relativas às pessoas ou bens presentes nesse Estado‑Membro, e previstas na sua legislação, mesmo que, por força do presente regulamento, um tribunal de outro Estado‑Membro seja competente para conhecer do mérito.

2.      As medidas tomadas por força do n.° 1 deixam de ter efeito quando o tribunal do Estado‑Membro competente quanto ao mérito ao abrigo do presente regulamento tiver tomado as medidas que considerar adequadas.»

11      Os artigos 21.° e seguintes do Regulamento n.° 2201/2003 são relativos ao reconhecimento e à execução de decisões. O referido artigo 21.°, n.° 1, prevê designadamente que as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem quaisquer formalidades.

12      O artigo 24.° do Regulamento n.° 2201/2003 prevê que não se pode proceder ao controlo da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem.

 Factos do processo principal e processos em curso

13      Resulta da decisão de reenvio, dos factos relatados no acórdão de 15 de Julho de 2010, Purrucker (C‑256/09, Colect., p. I‑0000), e dos autos do processo comunicados ao Tribunal de Justiça pelo tribunal de reenvio que, em meados de 2005, B. Purrucker, de nacionalidade alemã, foi viver para Espanha com G. Vallés Pérez, de nacionalidade espanhola, nascido na Alemanha. Da relação entre ambos nasceram em 31 de Maio de 2006 os gémeos prematuros Merlín, um rapaz, e Samira, uma rapariga. G. Vallés Pérez reconheceu os filhos. Dado que os pais viviam juntos, dispõem, ao abrigo do direito espanhol, de um direito de guarda comum. As crianças são titulares das nacionalidades alemã e espanhola.

14      As relações entre B. Purrucker e G. Vallés Pérez deterioraram‑se, pelo que B. Purrucker quis regressar à Alemanha com os filhos, situação a que G. Vallés Pérez inicialmente se opôs. Em 30 de Janeiro de 2007, as partes concluíram um acordo notarial, sujeito a homologação por um tribunal para ser executório, nos termos do qual B. Purrucker devia mudar‑se para a Alemanha com os filhos.

15      Em razão de complicações e da necessidade de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica, a menor Samira não pôde abandonar o hospital no dia previsto para a partida. Assim, B. Purrucker partiu para a Alemanha com o filho Merlín em 2 de Fevereiro de 2007. A questão de saber se, devido a esta situação particular, G. Vallés Pérez ainda era favorável à partida de B. Purrucker com o menor Merlín é controvertida entre as partes no processo principal.

16      A residência dos membros da família mantém‑se inalterada desde a partida de B. Purrucker em 2 de Fevereiro de 2007.

17      Estão actualmente em curso três processos entre as partes:

–        o primeiro, em Espanha, perante o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial, instaurado por G. Vallés Pérez, requerendo que fossem decretadas medidas provisórias. Não está excluído que, sob certas condições, este processo possa ser considerado um processo que conhece do mérito, tendo por objecto a atribuição do direito de guarda relativo aos menores Merlín e Samira;

–        o segundo, na Alemanha, instaurado por G. Vallés Pérez, tendo por objecto o exequatur do despacho de 8 de Novembro de 2007 do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial decretando medidas provisórias e a propósito do qual foi proferido o acórdão Purrucker, já referido; e

–        o terceiro, na Alemanha, instaurado por B. Purrucker, tendo por objecto a atribuição do direito de guarda relativo às mesmas crianças. Trata‑se do processo que deu lugar ao presente pedido de decisão prejudicial.

 Processo instaurado em Espanha para efeitos da adopção de medidas provisórias relativas à guarda das crianças e, eventualmente, de uma decisão de mérito

18      G. Vallés Pérez, tendo deixado de se sentir vinculado pelo acordo notarial de 30 de Janeiro de 2007, instaurou no Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial, em Junho de 2007, um processo de medidas provisórias no qual requeria, designadamente, que lhe fosse atribuído o direito de guarda dos menores Merlín e Samira.

19      A audiência realizou‑se em 26 de Setembro de 2007. B. Purrucker apresentou observações escritas e fez‑se representar na audiência.

20      Por despacho de 8 de Novembro de 2007, o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial considerou‑se competente e adoptou medidas urgentes e provisórias, designadamente no que respeita ao direito de guarda relativo às crianças. Sobre esse despacho recaiu um despacho de rectificação, de 28 de Novembro de 2007.

21      Segundo elementos constantes dos autos, em direito espanhol, quando são requeridas e obtidas medidas provisórias antes da propositura da acção em que se conheça de mérito, os efeitos dessas medidas só subsistem se a acção contenciosa for intentada no prazo de 30 dias a contar da adopção das medidas provisórias.

22      No mês de Janeiro de 2008, em data não precisada e que não resulta de nenhum documento constante dos autos comunicados pelo órgão jurisdicional de reenvio, G. Vallés Pérez intentou no Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial uma acção para conhecimento do mérito. B. Purrucker alega que esta acção era extemporânea.

23      Por despacho de 28 de Outubro de 2008, o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial tomou posição sobre a questão do «tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar» na acepção do artigo 19.°, n.° 3, do Regulamento n.° 2201/2003. Salienta que já decidiu a questão da sua competência no despacho de 8 de Novembro de 2007 e recorda os diferentes elementos factuais de conexão citados nesse despacho. Indica que, em 28 de Junho de 2007, deferiu o pedido de concessão de medidas provisórias relativas à guarda das crianças. Dado que só em Setembro de 2007 a mãe recorreu ao órgão jurisdicional alemão, o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial considera‑se o «tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar» e declara‑se competente para conhecer do processo, em conformidade com o artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003.

24      Por acórdão de 21 de Janeiro de 2010, a Audiencia Provincial de Madrid (Espanha), conhecendo do recurso interposto por B. Purrucker, confirmou o despacho de 28 de Outubro de 2008. O tribunal de recurso considera que, para efeitos da aplicação do artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003, a primeira acção é o pedido de medidas provisórias apresentado em conformidade com o direito espanhol perante o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial, que é anterior ao pedido formulado perante o tribunal alemão. Em contrapartida, o artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003, invocado por B. Purrucker, se for aplicável no presente caso, não estabelece nenhuma regra em matéria de competência e diz apenas respeito à adopção de medidas cautelares unicamente em caso de urgência, ao passo que a competência, que é objecto do presente processo, é estabelecida em conformidade com as regras previstas no artigo 19.° deste regulamento. Esta solução está por outro lado em conformidade com as disposições do artigo 22.°, n.° 3, da Lei orgânica do poder judicial (Ley Orgánica del Poder Judicial).

 Processo instaurado na Alemanha para obter o exequatur do despacho de 8 de Novembro de 2007 proferido pelo Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial

25      Trata‑se do processo que deu origem ao acórdão Purrucker, já referido. G. Vallés Pérez tinha num primeiro momento exigido, designadamente, a restituição do menor Merlín e, a título cautelar, requerido que fosse declarada a executoriedade do despacho de 8 de Novembro de 2007 do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial. Num segundo momento, pediu prioritariamente o exequatur desse despacho. Consequentemente, o Amtsgericht Stuttgart, por decisão de 3 de Julho de 2008, e o Oberlandesgericht Stuttgart (Alemanha), por decisão de 22 de Setembro de 2008 proferida em sede de recurso, concederam o exequatur ao referido despacho.

26      Na sequência de um recurso de «Revision» interposto por B. Purrucker, o Bundesgerichtshof (Alemanha) submeteu uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. No acórdão Purrucker, já referido, o Tribunal respondeu que as disposições dos artigos 21.° e seguintes do Regulamento n.° 2201/2003 não se aplicam a medidas provisórias, em matéria de direito de guarda, abrangidas pelo artigo 20.° do referido regulamento.

27      No n.° 76 do acórdão Purrucker, já referido, o Tribunal de Justiça indicou designadamente que, quando a competência para conhecimento do mérito, em conformidade com o Regulamento n.° 2201/2003, de um órgão jurisdicional que adoptou medidas provisórias não transpareça claramente dos elementos da decisão adoptada ou essa decisão não contenha uma fundamentação que não suscite ambiguidades, quanto à competência desse órgão jurisdicional para conhecimento do mérito, com referência a um dos critérios de atribuição de competência referidos nos artigos 8.° a 14.° deste regulamento, pode concluir‑se que essa decisão não foi adoptada em conformidade com as regras de competência previstas no referido regulamento.

 Processo instaurado na Alemanha para a atribuição do direito de guarda

28      Em 20 de Setembro de 2007, B. Purrucker requereu, numa acção para conhecimento do mérito intentada no Amtsgericht Albstadt (Alemanha), que lhe fosse atribuído o direito de guarda relativo aos menores Merlín e Samira. Esta acção só foi notificada ao demandado no processo principal em 22 de Fevereiro de 2008 por carta registada com aviso de recepção. Todavia, já anteriormente este tinha tido conhecimento da acção, o mesmo acontecendo com o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial.

29      Resulta designadamente de decisões de 25 de Setembro de 2007 e 9 de Janeiro de 2008 do Amtsgericht Albstadt que, segundo aquele tribunal, a acção de B. Purrucker não tinha nenhuma hipótese de proceder. Com efeito, uma vez que os progenitores das crianças não eram casados e que aparentemente não existia uma declaração relativa ao direito de guarda comum, não podendo o acordo notarial de 30 de Janeiro de 2007 ser interpretado como constitutivo de tal declaração, B. Purrucker dispunha do direito de guarda exclusivo relativo aos menores, de modo que uma decisão de atribuição do direito de guarda não era necessária. O Amtsgericht Albstadt mencionava por outro lado o processo pendente em Espanha.

30      Por decisão de 19 de Março de 2008, o Amtsgericht Albstadt rejeitou, por se julgar incompetente, o pedido de B. Purrucker na parte em que dizia respeito à menor Samira. Esta decisão foi confirmada em 5 de Maio de 2008 pelo Oberlandesgericht Stuttgart. Na sua decisão, o Oberlandesgericht Stuttgart salientou que esta criança tinha, desde o seu nascimento, residência habitual em Espanha. Segundo o mesmo tribunal, o artigo 9.° do Regulamento n.° 2201/2003 não se aplicava aos factos em litígio e os requisitos do artigo 15.° do mesmo regulamento não estavam preenchidos.

31      Através de outra decisão de 19 de Março de 2008, o Amtsgericht Albstadt suspendeu a instância em matéria de direito de guarda relativo ao menor Merlín, ao abrigo do artigo 16.° da Convenção de Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (a seguir «Convenção de Haia de 1980»). A instância foi retomada em 28 de Maio de 2008 a pedido de B. Purrucker uma vez que, até essa data, G. Vallés Pérez não tinha apresentado um pedido de regresso com fundamento na Convenção de Haia de 1980. Nenhum pedido foi posteriormente apresentado.

32      Em razão do pedido de execução do despacho do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial de 8 de Novembro de 2007, apresentado por G. Vallés Pérez, o processo relativo ao direito de guarda foi atribuído ao Amtsgericht Stuttgart, em conformidade com o artigo 13.° da Lei relativa à execução e à aplicação de certos instrumentos legais em matéria de direito internacional da família (Gesetz zur Aus‑ und Durchführung bestimmter Rechtsinstrumente auf dem Gebiet des internationalen Familienrechts).

33      Em 16 de Julho de 2008, B. Purrucker apresentou no Amtsgericht Stuttgart, com fundamento no artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003, um pedido destinado a obter uma medida provisória, requerendo que lhe fosse atribuída a guarda exclusiva do seu filho Merlín, ou, a título subsidiário, o direito exclusivo de fixar a residência deste. O contexto deste pedido caracterizava‑se, designadamente, por problemas detectados em controlos médicos preventivos. Por decisão de 28 de Julho de 2008, a medida requerida foi recusada, com fundamento em falta de urgência na acepção do artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003. O Amtsgericht Stuttgart salientou nomeadamente que o menor estava coberto pela segurança social do pai, em Espanha, e que, se necessário, seria possível ordenar a entrega do cartão de segurança social à mãe.

34      Resulta dos autos do processo comunicados ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio que, nos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2008, o Amtsgericht Stuttgart, no âmbito da acção para conhecimento do mérito, nele pendente, tentou por diversas vezes e por vários meios, designadamente por intermédio do magistrado espanhol de ligação na Rede Judiciária Europeia (RJE), entrar em contacto com o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial a fim de apurar se também estava pendente neste último tribunal uma acção para conhecimento do mérito. Os seus esforços foram porém infrutíferos.

35      Em 28 de Outubro de 2008, o Amtsgericht Stuttgart adoptou uma decisão na qual descreve as diligências que foram efectuadas junto do magistrado espanhol de ligação e a falta de resposta do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial. Pedia às partes que fornecessem e provassem, em primeiro lugar, a data do pedido de medidas provisórias apresentado pelo pai em Espanha, em segundo lugar, a notificação do despacho do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial de 8 de Novembro de 2007 e, em terceiro lugar, a propositura pelo pai, em Espanha, da acção para conhecimento do mérito, bem como a data da notificação desta acção à mãe.

36      Na mesma data, 28 de Outubro de 2008, o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial adoptou o despacho cujo conteúdo é descrito no n.° 23 do presente acórdão e no qual se refere à carta que lhe foi enviada pelo Amtsgericht Stuttgart.

37      Depois de convidar as partes a tomar novamente posição, o Amtsgericht Stuttgart adoptou uma decisão, em 8 de Dezembro de 2008, na qual faz referência ao despacho do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial de 28 de Outubro de 2008 e ao recurso que dele seria interposto por B. Purrucker. Considerou que não podia decidir ele próprio sobre a questão do «tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar» dado que isso poria em causa a segurança jurídica, uma vez que dois tribunais de Estados‑Membros diferentes poderiam adoptar decisões contraditórias. A questão deveria ser decidida pelo tribunal que tivesse declarado a sua competência em primeiro lugar. Consequentemente, o Amtsgericht Stuttgart decidiu suspender a instância em conformidade com o artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 até ao trânsito em julgado da decisão do Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial de 28 de Outubro de 2008.

38      B. Purrucker interpôs recurso da decisão do Amtsgericht Stuttgart de 8 de Dezembro de 2008. Em 14 de Maio de 2009, o Oberlandesgericht Stuttgart anulou a referida decisão e remeteu o processo ao Amtsgericht Stuttgart para que este adoptasse uma nova decisão. O Oberlandesgericht Stuttgart considerou que um tribunal tinha o dever de verificar a sua própria competência e que o artigo 19.° do Regulamento n.° 2201/2003 não conferia a nenhum dos órgãos jurisdicionais chamados a pronunciar‑se a competência exclusiva para determinar em qual tribunal o processo tinha sido instaurado em primeiro lugar. O Oberlandesgericht Stuttgart salientou que o pedido relativo ao direito de guarda, apresentado em Espanha, em Junho de 2007, por G. Vallés Pérez, se inscrevia no âmbito de um processo tendo por objecto a concessão de medidas provisórias, ao passo que o pedido relativo ao direito de guarda, apresentado na Alemanha, em 20 de Setembro de 2007, por B. Purrucker, constituía uma acção em que se requeria a um tribunal que conhecesse de mérito. Essa acção e um processo para concessão de medidas provisórias têm por objecto litígios diferentes ou pedidos diferentes. Haveria que, sendo caso disso, admitir a existência de um conflito de competência positivo entre dois tribunais.

39      Por despacho de 8 de Junho de 2009, o Amtsgericht Stuttgart pediu novamente às partes que lhe indicassem em que fase se encontrava o processo instaurado em Espanha e convidou‑as a tomar posição sobre a possibilidade de, em conformidade com o artigo 104.°‑B do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial relativa à determinação do tribunal que primeiro foi chamado a pronunciar‑se.

40      Por despacho de 19 de Outubro de 2009, o Amtsgericht Stuttgart propôs às partes um acordo, no qual estas poderiam fixar em conjunto o local de residência habitual do menor Merlín com B. Purrucker e da menor Samira com G. Vallés Pérez, mantendo o direito de guarda comum, ou pedir, de comum acordo, que o direito de guarda do menor Merlín fosse atribuído a B. Purrucker e que a guarda da menor Samira fosse concedida a G. Vallés Pérez. A proposta, porém, não foi aceite.

41      Em 13 de Janeiro de 2010, realizou‑se uma audiência no Amtsgericht Stuttgart na presença das partes no processo principal, tendo G. Vallés Pérez sido representado pelo seu advogado. Não foi possível harmonizar nem aproximar os pontos de vista das partes.

42      Em 21 de Janeiro de 2010, através do acórdão referido no n.° 24 do presente acórdão, a Audiencia Provincial de Madrid pronunciou‑se sobre o recurso interposto por B. Purrucker. Esse acórdão de 21 de Janeiro de 2010 foi comunicado ao Amtsgericht Stuttgart por carta do advogado alemão de G. Vallés Pérez.

 Decisão de reenvio e questões prejudiciais

43      Na decisão de reenvio, o Amtsgericht Stuttgart expõe as razões pelas quais, em sua opinião, não existe nenhuma dúvida razoável quanto ao facto de, em 21 de Setembro de 2007, no momento da apresentação do pedido de guarda por B. Purrucker, o menor Merlín ter a sua residência habitual na Alemanha.

44      Segundo aquele tribunal, o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial não dispunha, com fundamento no artigo 10.° do Regulamento n.° 2201/2003, de competência ininterrupta até 21 de Setembro de 2007 pelo facto de os membros da família terem anteriormente a sua residência habitual comum em Espanha, uma vez que não é verosímil nem está provado que a deslocação do menor Merlín por B. Purrucker de Espanha para a Alemanha fosse ilícita. O acordo notarial de 30 de Janeiro de 2007 e, além disso, o facto de não ter sido apresentado um pedido declarado de regresso, formulado em aplicação do artigo 11.° do Regulamento n.° 2201/2003 em conjugação com a Convenção de Haia de 1980, constituem elementos susceptíveis de refutar a tese de uma retenção ilícita de uma criança na acepção do artigo 2.°, ponto 11, do referido regulamento. O Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial, de resto, não funda a sua competência nesta disposição.

45      O Amtsgericht Stuttgart recorda que, segundo o artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003, se considera um processo instaurado num órgão jurisdicional na data em que a petição inicial nele tenha sido apresentada, desde que o demandante não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao demandado.

46      O Amtsgericht Stuttgart esclarece que a petição de 20 de Setembro de 2007 foi entregue no Amtsgericht Albstadt em 21 de Setembro de 2007, mas só em 22 de Fevereiro de 2008 foi notificada ao demandado no processo principal, por motivos não imputáveis a B. Purrucker, relacionados com a contestação da competência internacional desse tribunal para adoptar medidas em matéria de direito de guarda relativas à menor Samira, filha das partes no processo principal.

47      O artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 prevê que o tribunal de um Estado‑Membro que primeiro tenha sido chamado a conhecer de uma acção tendo por objecto a responsabilidade parental relativa a uma criança tem competência prioritária relativamente ao tribunal que em segundo lugar tenha sido chamado a conhecer de uma acção com o mesmo objecto e a mesma causa de pedir. Segundo o tribunal de reenvio, o objecto do litígio que deu lugar, em Junho de 2007, à apresentação de um pedido de medidas provisórias no tribunal espanhol é idêntico ao do litígio que deu lugar à acção para conhecimento do mérito intentada no tribunal alemão em Setembro de 2007. Com efeito, os dois processos têm por objecto um pedido de medidas judiciais em matéria de responsabilidade parental relativas ao mesmo filho comum. Cada uma das duas partes pede, em cada caso, que lhe seja atribuída a guarda exclusiva. As partes são idênticas em ambos os processos.

48      A prioridade temporal de um processo é apreciada nos termos do artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003. O Amtsgericht Stuttgart salienta porém que a redacção desta disposição não faz nenhuma distinção entre uma acção para conhecimento do mérito e um processo tendo por objecto a concessão de medidas provisórias. Esta situação deixa margem para diferentes concepções jurídicas relativas ao domínio de aplicação do artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003.

49      Resulta da concepção jurídica adoptada pelo Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de San Lorenzo de El Escorial e pela Audiencia Provincial de Madrid que se considera que uma acção é intentada num tribunal espanhol, na acepção dos artigos 16.° e 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003, quando seja apresentado um pedido de medidas provisórias. O processo de medidas provisórias constitui, em combinação com a acção para conhecimento do mérito, intentada posteriormente, uma unidade processual. Um despacho de medidas provisórias deixaria porém de ser ipso jure válido no caso de não ser intentada uma acção para conhecimento do mérito no prazo de 30 dias a contar da notificação do despacho de medidas provisórias.

50      Segundo o despacho de 14 de Maio de 2009 do Oberlandesgericht Stuttgart, ao invés, o artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 não se aplica à relação entre uma acção para conhecimento do mérito e um processo de medidas provisórias, uma vez que os dois processos têm objectos diferentes, ao passo que uma decisão relativa à guarda de uma criança tem efeitos idênticos independentemente de ser proferida no âmbito de um processo de medidas provisórias ou de uma acção para conhecimento do mérito. Esta interpretação é igualmente justificada pelo facto de os artigos 21.° e seguintes do Regulamento n.° 2201/2003 não se aplicarem às medidas provisórias, na acepção do artigo 20.° do referido regulamento.

51      Tendo em conta estes elementos, o Amtsgericht Stuttgart decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O disposto no artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento [n.° 2201/2003] é aplicável quando uma das partes instaura, em primeiro lugar, num tribunal de um Estado‑Membro, um mero procedimento cautelar para regulação da responsabilidade parental e a outra parte instaura, em segundo lugar, num tribunal de outro Estado‑Membro, uma acção principal com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir?

2)      Essa disposição também é aplicável quando uma decisão proferida num procedimento cautelar isolado, instaurado num Estado‑Membro, não é susceptível de reconhecimento noutro Estado‑Membro, nos termos do artigo 21.° do Regulamento n.° 2201/2003?

3)      A instauração, num tribunal de um Estado‑Membro, de um procedimento cautelar isolado pode ser equiparada à propositura da acção principal, na acepção do artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003, se, por força das normas processuais nacionais desse Estado‑Membro, a esse procedimento cautelar tiver de se seguir, num determinado prazo, a propositura de uma acção principal nesse mesmo tribunal, para evitar consequências processuais negativas?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

52      Na decisão de reenvio, o Amtsgericht Stuttgart pediu que o reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação acelerada em aplicação do artigo 104.°‑B do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, sugerindo por outro lado que esse reenvio fosse atribuído à formação que conheceu do pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof. Por carta de 1 de Julho de 2010, o Amtsgericht Stuttgart clarificou o seu pedido, precisando que o seu objectivo era a aplicação do artigo 104.°‑A do Regulamento de Processo e não do seu artigo 104.°‑B.

53      Por despacho de 15 de Julho de 2010, o presidente do Tribunal de Justiça deferiu tal pedido.

 Quanto às questões prejudiciais

54      Através da sua primeira questão, o tribunal de reenvio pergunta se o artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 é aplicável quando uma das partes instaura, com vista à obtenção de medidas em matéria de responsabilidade parental, em primeiro lugar, no tribunal de um Estado‑Membro, um simples processo de medidas provisórias e a outra parte instaura, em segundo lugar, num tribunal de outro Estado‑Membro, uma acção principal com o mesmo objecto, com vista à obtenção de uma decisão de mérito. A segunda questão tem por objecto a aplicação desta disposição a uma decisão de medidas provisórias não susceptível de reconhecimento na acepção do artigo 21.° deste regulamento, enquanto a terceira questão tem por objecto a aplicação da referida disposição a um processo instaurado com vista à obtenção de medidas provisórias eventualmente ligado a um processo para conhecimento do mérito.

55      Estas questões devem ser examinadas em conjunto.

 Observações das partes

56      Foram desenvolvidas duas teses perante o Tribunal.

57      Por um lado, B. Purrucker, o Governo alemão e a Comissão Europeia sustentam que não há litispendência em caso de processo para conhecimento do mérito concomitante com um processo que visa a obtenção de medidas provisórias no qual tenha sido proferida uma decisão, mesmo que este processo seja susceptível de constituir uma unidade processual com a acção para conhecimento do mérito, quando intentada dentro do prazo previsto por lei. Cada processo deve ser considerado uma entidade autónoma e, por conseguinte, a litispendência termina a partir do momento em que seja adoptada uma decisão.

58      Se assim não fosse, sublinha o Governo alemão, não se poderia ter em conta uma mudança da residência habitual da criança, apesar de tal circunstância ser tomada em consideração pelo Regulamento n.° 2201/2003, o que seria contrário ao objectivo deste regulamento, que é permitir que, em matéria de responsabilidade parental, se pronuncie o tribunal mais próximo da criança. Por outro lado, o facto de considerar que há litispendência em caso de processo para conhecimento do mérito concomitante com um processo de medidas provisórias em que tenha sido proferida decisão obrigaria o tribunal que em segundo lugar tivesse sido chamado a pronunciar‑se a averiguar se, no direito nacional do Estado‑Membro do primeiro tribunal, a concessão de medidas provisórias implica ou não que um processo para conhecimento do mérito se encontre ainda pendente. Por último, o Governo alemão invoca o risco da livre determinação pelas partes da competência jurisdicional («forum shopping») se se utilizar o critério da urgência para levar a que um juiz se declare competente, conceda medidas provisórias urgentes e mantenha sob a sua alçada o conhecimento do mérito da acção.

59      Por outro lado, os Governos checo, espanhol e francês sustentam que a natureza do processo, seja ele de medidas provisórias ou uma acção para conhecimento do mérito, é irrelevante para efeitos da aplicação do artigo 19.° do Regulamento n.° 2201/2003. Recordando o n.° 130 das conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo que deu origem ao acórdão Purrucker, já referido, o Governo francês sublinha que este regulamento, no seu conjunto, não estabelece uma distinção entre as decisões finais ou definitivas, por um lado, e as decisões provisórias, por outro, seja nos seus capítulos 1 e 2 ou no capítulo 3, relativo ao reconhecimento. O critério pertinente é portanto, segundo estes governos, que os dois pedidos pendentes tenham o mesmo objecto e a mesma causa de pedir, o que acontece quando ambos os progenitores pedem a guarda da mesma criança, quer seja a título de medida provisória quer de decisão definitiva.

60      Todos os interessados na acepção do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça que apresentaram observações consideram que não há litispendência quando um dos pedidos visa a obtenção de medidas provisórias na acepção do artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003, ou quando o juiz que primeiro tenha sido chamado a pronunciar‑se já tenha decretado medidas provisórias na acepção desta disposição.

61      A Comissão sublinha no entanto que é difícil, para o juiz que em segundo lugar tenha sido chamado a pronunciar‑se, determinar se são adoptadas medidas provisórias pelo tribunal competente para conhecer do mérito ou se se trata de medidas provisórias na acepção do artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003. É por esta razão que a Comissão defende a mesma tese que o Governo alemão, ou seja, que um processo em que se pedem medidas provisórias é um processo autónomo, que termina quando é adoptada a decisão em que tais medidas são decretadas. Admite, porém, que há que fazer uma excepção a este princípio quando o direito nacional impõe ao demandante que apresente um pedido de medidas provisórias antes de poder instaurar um processo para conhecimento do mérito.

62      A maior parte dos interessados que apresentaram observações indicaram que, embora a regra relativa à litispendência que figura no artigo 19.° do Regulamento n.° 2201/2003 seja a mesma que figura no artigo 21.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 99, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978, relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e – texto alterado – p. 77; EE 01 F2 p. 131), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982, relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234), pela Convenção de 26 de Maio de 1989, relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1), bem como pela Convenção de 29 de Novembro de 1996, relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «Convenção de Bruxelas»), e que figura no artigo 27.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), o objectivo e as outras disposições destes diferentes diplomas são demasiado diferentes para serem aplicadas, no contexto do Regulamento n.° 2201/2003, soluções eventualmente adoptadas no quadro da Convenção de Bruxelas ou do Regulamento n.° 44/2001.

63      O Governo alemão sublinha designadamente que, nas matérias de direito civil que se enquadram no âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001, uma medida provisória apenas adquire força de caso julgado limitada, ao passo que a decisão de mérito assume plena força de caso julgado. Não é o que acontece, segundo esse governo, no caso de uma medida provisória adoptada em matéria de autoridade parental, que adquire força de caso julgado apenas formal, mas não material, no sentido de que pode sobre ela recair posteriormente uma nova decisão a fim de ter novas circunstâncias em conta. Por outro lado, como sublinha a Comissão, as regras relativas aos conflitos de decisões são diferentes.

 Resposta do Tribunal

64      As regras relativas à litispendência destinam‑se, no interesse de uma boa administração da justiça na União, a evitar processos paralelos em órgãos jurisdicionais de diversos Estados‑Membros, bem como a consequente eventualidade de neles serem proferidas decisões contraditórias (v., neste sentido, relativamente à Convenção de Bruxelas, acórdãos de 9 de Dezembro de 2003, Gasser, C‑116/02, Colect., p. I‑14693, n.° 41; e de 14 de Outubro de 2004, Mærsk Olie & Gas, C‑39/02, Colect., p. I‑9657, n.° 31).

65      Segundo os termos do artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003, há litispendência quando em tribunais de Estados‑Membros diferentes sejam instauradas acções destinadas a regular a responsabilidade parental relativa a uma criança, que tenham o mesmo objecto e a mesma causa de pedir. A este respeito, não é necessário que as acções sejam instauradas entre as mesmas partes.

66      Tendo em conta os objectivos prosseguidos pelo Regulamento n.° 2201/2003 e a circunstância de o teor do artigo 19.°, n.° 2, deste regulamento, em vez de se referir ao termo «litispendência» tal como é utilizado nas diferentes ordens jurídicas nacionais dos Estados‑Membros, estabelecer vários requisitos substanciais como elementos de uma definição, há que concluir que os conceitos utilizados no artigo 19.°, n.° 2, para determinar uma situação de litispendência devem ser considerados autónomos (v., neste sentido, relativamente à Convenção de Bruxelas, acórdão de 8 de Dezembro de 1987, Gubisch Maschinenfabrik, 144/86, Colect., p. 4861, n.° 11).

67      Os conceitos de «mesmo pedido» e de «mesma causa de pedir» devem ser definidos tendo em conta o objectivo do artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003, que é evitar que sejam proferidas decisões incompatíveis.

68      O Tribunal de Justiça já decidiu, no quadro da Convenção de Bruxelas, que o objecto do litígio consiste na finalidade da acção (v. acórdão de 6 de Dezembro de 1994, Tatry, C‑406/92, Colect., p. I‑5439, n.° 41). Para verificar se dois pedidos têm o mesmo objecto, há que ter em conta as pretensões de cada um dos demandantes em cada um dos litígios (acórdão de 8 de Maio de 2003, Gantner Electronic, C‑111/01, Colect., p. I‑4207, n.° 26). Por outro lado, o Tribunal de Justiça interpretou o conceito de «causa de pedir» no sentido de que abrange os factos e a norma jurídica invocados como fundamento da acção (v. acórdão Tatry, já referido, n.° 39).

69      Todos os interessados que apresentaram observações sustentaram acertadamente que não pode haver litispendência entre um pedido destinado a obter medidas provisórias na acepção do artigo 20.° do referido regulamento e uma acção para conhecimento do mérito.

70      Com efeito, como o Tribunal de Justiça recordou no n.° 61 do acórdão Purrucker, já referido, o artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003 não pode ser considerado uma disposição atributiva de competência para conhecimento do mérito.

71      Além disso, a aplicação da referida disposição não impede que se apresente uma acção no tribunal competente para conhecer do mérito. O artigo 20.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 evita os riscos de contradição entre uma decisão que decreta medidas provisórias na acepção do artigo 20.° deste regulamento e uma decisão adoptada pelo tribunal competente para conhecer do mérito, uma vez que prevê que as medidas provisórias na acepção do artigo 20.°, n.° 1, do referido regulamento deixam de ter efeito quando o órgão jurisdicional competente para conhecer do mérito tiver tomado as medidas que considerar adequadas.

72      A litispendência na acepção do artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 só pode portanto existir quando dois ou vários processos com o mesmo objecto e a mesma causa de pedir estiverem pendentes em tribunais diferentes e quando, nesses diferentes processos, os demandantes pretenderem obter uma decisão susceptível de reconhecimento num Estado‑Membro diferente do do órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em razão da sua competência para conhecer do mérito.

73      A este respeito, não é possível estabelecer uma distinção consoante a natureza dos processos instaurados em tais tribunais, isto é, um processo de medidas provisórias ou uma acção para conhecimento do mérito. Com efeito, não resulta do conceito de «decisão» referido no artigo 2.°, ponto 4, do Regulamento n.° 2201/2003 nem dos seus artigos 16.° e 19.°, relativos, respectivamente, à propositura de uma acção num órgão jurisdicional e à litispendência, que este regulamento faça tal distinção. O mesmo se diga no que toca às disposições do referido regulamento relativas ao reconhecimento e à execução de decisões, como os seus artigos 21.° e 23.°

74      De resto, o recurso a um ou a outro dos processos poderia ser ditado pelas especificidades do direito nacional. A Comissão evocou a hipótese de um direito nacional prever a obrigação de apresentar um pedido de medidas provisórias antes de poder instaurar o processo para conhecimento do mérito.

75      Tendo em conta a jurisprudência recordada no n.° 68 do presente acórdão, mais concretamente o acórdão Gantner Electronic, já referido, o que é importante saber é, portanto, se a pretensão do demandante no primeiro tribunal é obter uma decisão desse tribunal em razão da sua competência para conhecer do mérito na acepção do Regulamento n.° 2201/2003.

76      É a comparação entre a pretensão do demandante perante esse tribunal e a do demandante perante o segundo tribunal que permitirá a este último apreciar se existe ou não litispendência.

77      Se do objecto do pedido submetido ao primeiro juiz e das circunstâncias de facto descritas nesse pedido resultar manifestamente que o mesmo não contém nenhum elemento que permita reconhecer ao tribunal no qual foi apresentado o referido pedido uma competência para conhecer de mérito na acepção do Regulamento n.° 2201/2003, o segundo tribunal poderá considerar que não há litispendência.

78      Em contrapartida, se resultar das pretensões do demandante ou dos elementos de facto constantes do pedido apresentado ao primeiro tribunal, mesmo que tal pedido se destine a obter medidas provisórias, que o mesmo foi apresentado num tribunal que, à primeira vista, poderia ser competente para conhecer do mérito, o segundo tribunal deve suspender a instância, em conformidade com o artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003, até que a competência do primeiro tribunal seja estabelecida. Em função das circunstâncias e se os requisitos do artigo 20.° deste regulamento estiverem preenchidos, o segundo tribunal pode, no interesse da criança, tomar as medidas provisórias necessárias.

79      A existência de uma decisão judicial que decreta medidas provisórias, sem que tal decisão precise se o tribunal que adoptou essas medidas é competente para conhecer do mérito, não pode constituir uma prova, em apoio de uma excepção de litispendência, da existência de uma acção para conhecimento do mérito, na falta de precisões quanto à competência do primeiro tribunal e às circunstâncias de facto constantes da acção para conhecimento do mérito.

80      Todavia, o segundo tribunal deve verificar ele próprio se, ao decretar medidas provisórias, a decisão do primeiro tribunal mais não era do que uma decisão prévia a uma decisão posterior adoptada com maior conhecimento de causa e em condições que já não se caracterizariam pela urgência em decidir. O segundo tribunal deve por outro lado verificar se existe uma unidade processual entre a pretensão que é objecto das medidas provisórias e uma pretensão quanto ao mérito apresentada posteriormente.

81      Segundo as possibilidades previstas pelo seu direito nacional, o segundo tribunal pode, quando os dois litígios opõem as mesmas partes, questionar a parte que invoca a excepção de litispendência sobre a existência do litígio alegado e sobre o conteúdo do pedido. Por outro lado, tendo em consideração o facto de o Regulamento n.° 2201/2003 se basear na cooperação e na confiança mútua entre os tribunais, o referido tribunal pode avisar o primeiro tribunal de que nele foi proposta uma acção, alertar este último para a eventualidade de litispendência, convidá‑lo a comunicar‑lhe as informações relativas à acção nele pendente e a tomar posição sobre a sua competência na acepção do Regulamento n.° 2201/2003 ou a comunicar‑lhe qualquer decisão já adoptada a esse respeito. Finalmente, o segundo tribunal poderá dirigir‑se à autoridade central do seu Estado‑Membro.

82      Se o segundo tribunal não dispuser, apesar dos esforços por si desenvolvidos, de nenhum elemento que comprove a existência de uma acção intentada noutro tribunal e que permita determinar o objecto e a causa de pedir dessa acção, e que, designadamente, demonstre a competência desse outro tribunal chamado a pronunciar‑se em conformidade com o Regulamento n.° 2201/2003, incumbe‑lhe, após um prazo razoável durante o qual deve aguardar as respostas às questões formuladas, prosseguir o exame da acção que nele tenha sido intentada.

83      A duração deste prazo razoável de espera deve ser determinada pelo tribunal em função, em primeiro lugar, do interesse da criança. O facto de se tratar de uma criança de tenra idade é um critério a tomar em consideração a este respeito (v., neste sentido, acórdão de 11 de Julho de 2008, Rinau, C‑195/08 PPU, Colect., p. I‑5271, n.° 81).

84      Importa recordar que o Regulamento n.° 2201/2003 tem como objectivo, no superior interesse da criança, permitir ao tribunal que lhe seja mais próximo e que, consequentemente, conhece melhor a sua situação e o estado do seu desenvolvimento tomar as decisões necessárias.

85      Finalmente, importa sublinhar que, segundo o artigo 24.° do Regulamento n.° 2201/2003, não se pode proceder ao controlo da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem. Ora, se o artigo 19.°, n.° 2, do referido regulamento prevê que o segundo juiz deve suspender a instância em caso de litispendência, é precisamente para permitir ao primeiro tribunal pronunciar‑se sobre a sua competência.

86      Resulta de todas estas considerações que há que responder do seguinte modo às questões submetidas:

–        O disposto no artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003 não é aplicável quando o tribunal de um Estado‑Membro que primeiro tenha sido chamado a pronunciar‑se com vista à obtenção de medidas em matéria de responsabilidade parental apenas tiver de se pronunciar sobre medidas provisórias na acepção do artigo 20.° deste regulamento, e seja posteriormente apresentado num tribunal de outro Estado‑Membro competente para conhecer do mérito na acepção do mesmo regulamento um pedido com vista à obtenção das mesmas medidas, quer seja a título provisório quer a título definitivo.

–        O facto de um tribunal de um Estado‑Membro ser chamado a pronunciar‑se no âmbito de um processo de medidas provisórias ou de ser tomada uma decisão no âmbito desse processo e de não resultar de nenhum elemento do pedido apresentado ou da decisão adoptada que o tribunal chamado a conhecer do pedido de medidas provisórias é competente na acepção do Regulamento n.° 2201/2003 não tem necessariamente como consequência excluir que exista, como eventualmente o permite o direito nacional desse Estado‑Membro, um pedido quanto ao mérito conexo com o pedido de medidas provisórias e que contenha elementos que demonstrem que o tribunal chamado a pronunciar‑se é competente na acepção deste regulamento.

–        Quando o segundo tribunal não dispuser, apesar dos esforços por si desenvolvidos para se informar junto da parte que invoca a litispendência, junto do primeiro tribunal e da autoridade central, de nenhum elemento que permita determinar o objecto e a causa de pedir de uma acção intentada noutro tribunal e que vise, designadamente, demonstrar a competência desse outro tribunal em conformidade com o Regulamento n.° 2201/2003, e, em razão de circunstâncias particulares, o interesse da criança exigir a adopção de uma decisão susceptível de reconhecimento em Estados‑Membros diferentes do Estado‑Membro do segundo tribunal, incumbe a este último tribunal, após um prazo razoável durante o qual deve aguardar as respostas às questões formuladas, prosseguir o exame da acção que nele tenha sido intentada. A duração deste prazo razoável de espera deve ter em conta o superior interesse da criança, à luz das circunstâncias próprias do litígio em causa.

 Quanto às despesas

87      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

O disposto no artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, não é aplicável quando o tribunal de um Estado‑Membro que primeiro tenha sido chamado a pronunciar‑se com vista à obtenção de medidas em matéria de responsabilidade parental apenas tiver de se pronunciar sobre medidas provisórias na acepção do artigo 20.° deste regulamento, e seja posteriormente apresentado num tribunal de outro Estado‑Membro competente para conhecer do mérito na acepção do mesmo regulamento um pedido com vista à obtenção das mesmas medidas, quer seja a título provisório quer a título definitivo.

O facto de um tribunal de um Estado‑Membro ser chamado a pronunciar‑se no âmbito de um processo de medidas provisórias ou de ser tomada uma decisão no âmbito desse processo e de não resultar de nenhum elemento do pedido apresentado ou da decisão adoptada que o tribunal chamado a conhecer do pedido de medidas provisórias é competente na acepção do Regulamento n.° 2201/2003 não tem necessariamente como consequência excluir que exista, como eventualmente o permite o direito nacional desse Estado‑Membro, um pedido quanto ao mérito conexo com o pedido de medidas provisórias e que contenha elementos que demonstrem que o tribunal chamado a pronunciar‑se é competente na acepção deste regulamento.

Quando o segundo tribunal não dispuser, apesar dos esforços por si desenvolvidos para se informar junto da parte que invoca a litispendência, junto do primeiro tribunal e da autoridade central, de nenhum elemento que permita determinar o objecto e a causa de pedir de uma acção intentada noutro tribunal e que vise, designadamente, demonstrar a competência desse outro tribunal em conformidade com o Regulamento n.° 2201/2003, e, em razão de circunstâncias particulares, o interesse da criança exigir a adopção de uma decisão susceptível de reconhecimento em Estados‑Membros diferentes do Estado‑Membro do segundo tribunal, incumbe a este último tribunal, após um prazo razoável durante o qual deve aguardar as respostas às questões formuladas, prosseguir o exame da acção que nele tenha sido intentada. A duração deste prazo razoável de espera deve ter em conta o superior interesse da criança, à luz das circunstâncias próprias do litígio em causa.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.