Language of document : ECLI:EU:C:2020:749

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

24 de setembro de 2020 (*)

[Texto retificado por Despacho de 14 de outubro de 2020]

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Efeitos da entrega — Artigo 27.o — Eventuais procedimentos penais por outras infrações — Regra da especialidade»

No processo C‑195/20 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha), por Decisão de 21 de abril de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de maio de 2020, no processo penal contra

XC,

sendo interveniente:

Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, S. Rodin (relator), D. Šváby, K. Jürimäe e N. Piçarra, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

visto o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de 21 de abril de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de maio de 2020, de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, em conformidade com o disposto no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

vista a Decisão de 25 de maio de 2020 da Quarta Secção de deferir o referido pedido,

vistos os autos e após a audiência de 16 de julho de 2020,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de XC, por M. Franzikowski e F. S. Fülscher, Rechtsanwälte,

–        em representação do Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof, por P. Frank e S. Heine, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller, M. Hellmann e F. Halabi, na qualidade de agentes,

–        [Conforme retificado por Despacho de 14 de outubro de 2020] em representação da Irlanda, por J. Quaney, na qualidade de agente, assistida por M. Gray, SC,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de agosto de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 27.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um procedimento penal contra XC, que foi condenado, na Alemanha, numa pena de prisão pela prática dos crimes de violação agravada e de extorsão em Portugal no ano de 2005.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 5 e 6 da Decisão‑Quadro 2002/584 têm o seguinte teor:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)      O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.»

4        O artigo 1.o, n.os 1 e 2, dessa decisão‑quadro enuncia:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.»

5        O artigo 8.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro estabelece:

«O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:

a)      Identidade e nacionalidade da pessoa procurada;

b)      Nome, endereço, número de telefone e de fax, e endereço de correio eletrónico da autoridade judiciária de emissão;

c)      Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 1.o e 2.o;

d)      Natureza e qualificação jurídica da infração, nomeadamente à luz do artigo 2.o;

e)      Descrição das circunstâncias em que a infração foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação da pessoa procurada na infração;

f)      Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado‑Membro de emissão para essa infração;

g)      Na medida do possível, as outras consequências da infração.»

6        O artigo 27.o da mesma decisão‑quadro tem o seguinte teor:

«1.      Cada Estado‑Membro tem a faculdade de notificar ao Secretariado‑Geral do Conselho que, nas suas relações com os outros Estados‑Membros que tenham apresentado a mesma notificação, se presume dado o consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue, salvo se, num caso específico, a autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.

2.      Exceto nos casos previstos nos n.os 1 e 3, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

3.      O n.o 2 não se aplica nos seguintes casos:

a)      Quando a pessoa, tendo tido a possibilidade de abandonar o território do Estado‑Membro ao qual foi entregue, o não faz num prazo de 45 dias após a extinção definitiva da sua responsabilidade penal, ou regresse a esse território após o ter abandonado;

[…]

g)      Quando a autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa tenha dado o seu consentimento nos termos do n.o 4.

4.      O pedido de consentimento é apresentado à autoridade judiciária de execução, acompanhado das informações referidas no n.o 1 do artigo 8.o e de uma tradução conforme indicado no n.o 2 do artigo 8.o O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro. O consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 3.o, podendo ainda, a não ser assim, ser recusado apenas pelos motivos referidos no artigo 4.o A decisão deve ser tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido.

[…]»

 Direito alemão

7        A transposição do artigo 27.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 para direito alemão ocorreu através do § 83h, n.os 1 e 2, da Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei sobre a Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), de 23 de dezembro de 1982 (BGBl. 1982 I, p. 2071), na sua versão aplicável aos factos no processo principal.

8        O referido § 83h dispõe:

«1)      Uma pessoa entregue por um Estado‑Membro ao abrigo de um mandado de detenção europeu não pode

1.      Ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue […]

[…]

2)      O n.o 1 não se aplica quando:

1.      A pessoa entregue, tendo tido a possibilidade de abandonar o território abrangido pela presente lei, o não faz num prazo de 45 dias após a extinção definitiva da sua responsabilidade penal, ou regresse a esse território após o ter abandonado;

2.      A infração não seja punível com pena ou medida de segurança privativas de liberdade;

3.      O procedimento penal não dê lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual da pessoa;

4.      A pessoa entregue seja passível de uma pena ou medida de segurança não privativas de liberdade, mesmo se esta pena ou medida é suscetível de restringir a sua liberdade individual;

5.      O Estado‑Membro requerido ou a pessoa entregue tiver renunciado a esse direito.

3)      A renúncia da pessoa entregue, ocorrida após a entrega, deve ser registada por um juiz ou procurador. A renúncia é irrevogável. A pessoa entregue deve ser informada desse facto.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

9        XC foi sujeito, na Alemanha, a três procedimentos penais distintos pela prática, respetivamente, dos crimes de, em primeiro lugar, tráfico de estupefacientes, em segundo lugar, abuso sexual de menor cometido em Portugal e, em terceiro lugar, violação agravada e extorsão, também cometidos em Portugal.

10      Antes de mais, em 6 de outubro de 2011, XC foi condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes pelo Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll, Alemanha) numa pena única de prisão de um ano e nove meses. A execução dessa pena foi condicionalmente suspensa.

11      Em seguida, em 2016, foi instaurado contra XC, na Alemanha, um procedimento penal por abuso sexual de menor praticado em Portugal e, em 23 de agosto de 2016, o Staatsanwaltschaft Hannover (Ministério Público de Hanôver, Alemanha) emitiu um mandado de detenção europeu com vista ao exercício da ação penal por esses crimes. Como o Tribunal da Relação de Évora (Portugal) autorizou a entrega de XC às autoridades judiciárias alemãs para efeitos da referida infração e XC não renunciou então à regra da especialidade, foi entregue em 22 de junho de 2017 à República Federal da Alemanha pelas autoridades judiciárias portuguesas. Condenado numa pena de prisão de um ano e três meses, foi encarcerado nesse Estado‑Membro.

12      Durante a execução da pena a que XC foi condenado por abuso sexual de menor, verificou‑se a revogação da suspensão condicional da execução da pena por tráfico de estupefacientes proferida em 6 de outubro de 2011 pelo Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll). Em 22 de agosto de 2018, o Staatsanwaltschaft Flensburg (Ministério Público de Flensburg, Alemanha) solicitou ao Tribunal da Relação de Évora, na sua qualidade de autoridade judiciária de execução do mandado de detenção europeu a que se refere o n.o 11 do presente acórdão, que renunciasse à aplicação da regra da especialidade e consentisse na execução da pena proferida pelo Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) em 6 de outubro de 2011.

13      Em 31 de agosto de 2018, por não haver resposta do Tribunal da Relação de Évora, XC foi posto em liberdade e colocado em acompanhamento sociojudiciário por um período de cinco anos, no âmbito do qual se devia apresentar uma vez por mês ao seu técnico de reinserção social. Em 18 de setembro de 2018, deslocou‑se aos Países Baixos e, em seguida, a Itália. Em 19 de setembro de 2018, o Ministério Público de Flensburg emitiu um mandado de detenção europeu contra XC, para efeitos da execução da Decisão do Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) de 6 de outubro de 2011.

14      Em 27 de setembro de 2018, XC foi detido em Itália com base nesse mandado de detenção europeu. Em 10 de outubro de 2018, a autoridade de execução italiana consentiu na sua entrega. Em 18 de outubro de 2018, XC foi entregue às autoridades alemãs.

15      Por último, em 5 de novembro de 2018, o Amtsgericht Braunschweig (Tribunal de Primeira Instância de Brunswick, Alemanha) emitiu um mandado de detenção com vista à instrução de um terceiro processo em que XC estava implicado e em que estavam em causa factos constitutivos de violação agravada e de extorsão praticados em Portugal no ano de 2005.

16      Em 12 de dezembro de 2018, o Staatsanwaltschaft Braunschweig (Ministério Público de Brunswick, Alemanha) solicitou à autoridade de execução italiana consentimento para XC ser também sujeito a um procedimento penal por esses crimes de violação agravada e de extorsão. A Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão, Itália) deu o seu consentimento em 22 de março de 2019.

17      XC ficou em prisão preventiva na Alemanha, de 23 de julho de 2019 a 11 de fevereiro de 2020, ao abrigo do mandado de detenção emitido em 5 de novembro de 2018 pelo Amtsgericht Braunschweig (Tribunal de Primeira Instância de Brunswick). No decurso desse período, por Decisão de 16 de dezembro de 2019, o Landgericht Braunschweig (Tribunal Regional de Brunswick, Alemanha) condenou XC pelos crimes de violação agravada e de extorsão praticados em 2005 em Portugal. Aplicou‑lhe uma pena única de prisão de sete anos, que tem em conta a Decisão de 6 de outubro de 2011 do Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll). Toda a duração da prisão preventiva de XC que decorreu em Itália foi imputada na sua pena única.

18      Em 21 de janeiro de 2020, a autoridade de execução portuguesa deu o seu consentimento à execução da pena de prisão única proferida pelo Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) em 6 de outubro de 2011. XC está preso desde 12 de fevereiro de 2020 a título da execução dessa pena.

19      XC interpôs recurso de «Revision» no órgão jurisdicional de reenvio da Decisão do Landgericht Braunschweig (Tribunal Regional de Brunswick) de 16 de dezembro de 2019. Contesta, em especial, a validade do procedimento que conduziu à prolação dessa decisão à luz da regra da especialidade prevista no artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584. XC alega, em substância, que, na medida em que a autoridade de execução portuguesa não deu o seu consentimento para o procedimento penal relativo aos crimes de violação agravada e de extorsão praticados em Portugal no ano de 2005, as autoridades alemãs não podiam instaurar um procedimento penal contra o arguido. Com efeito, XC estava, desde 1 de setembro de 2018, sob proteção da regra da especialidade. Assim, os procedimentos penais instaurados contra XC pelas autoridades alemãs sem o acordo prévio da autoridade de execução portuguesa, bem como os atos processuais praticados nesse contexto, como o mandado de detenção emitido pelo Amtsgericht Braunschweig (Tribunal de Primeira Instância de Brunswick) em 5 de novembro de 2018, eram ilegais.

20      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a questão de saber se esse mandado de detenção pode ser mantido ou deve, pelo contrário, ser anulado depende de as autoridades alemãs poderem, ou não, instaurar um procedimento penal contra XC pelos crimes de violação agravada e de extorsão praticados em Portugal em 2005.

21      Nestas circunstâncias, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 27.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 […] ser interpretado no sentido de que a regra da especialidade não se opõe a uma medida restritiva da liberdade decretada em virtude de uma infração praticada antes da entrega e diferente daquela em que a entrega se baseia, quando a pessoa tiver abandonado voluntariamente o território do Estado‑Membro de emissão após a entrega, tiver sido subsequentemente entregue de novo por outro Estado‑Membro de execução ao território do Estado‑Membro de emissão com base num novo mandado de detenção europeu e o segundo Estado‑Membro de execução tiver dado o seu consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação e o cumprimento de uma pena relativamente a essa outra infração?»

 Quanto à tramitação urgente

22      O órgão jurisdicional de reenvio solicita que o presente reenvio prejudicial seja submetido à tramitação urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

23      Em apoio do seu pedido, esse órgão jurisdicional alega que XC se encontra preso com base na Decisão do Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) de 6 de outubro de 2011. Todavia, ainda segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o mandado de detenção emitido pelo Amtsgericht Braunschweig (Tribunal de Primeira Instância de Brunswick) em 5 de novembro de 2018 constitui um fundamento adicional de detenção do interessado e pode conduzir a limitar a suavização da execução da pena que lhe foi aplicada.

24      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, em 7 de junho de 2020, XC terá cumprido dois terços da pena que lhe foi aplicada em 6 de outubro de 2011 pelo Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) e, portanto, poderá beneficiar de uma eventual suspensão condicional da execução do resto dessa pena. A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, por um lado, o mandado de detenção emitido pelo Amtsgericht Braunschweig (Tribunal de Primeira Instância de Brunswick) em 5 de novembro de 2018 pode obstar à suspensão da execução da referida pena. Por outro lado, para o caso de essa suspensão ser decidida, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que a resposta à questão da validade desse mandado de detenção determinará se a prisão preventiva ordenada ao abrigo do referido mandado se poderá manter.

25      A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação da Decisão‑Quadro 2002/584, que faz parte dos domínios a que se refere o título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. Este reenvio é, por conseguinte, suscetível de ser submetido a tramitação prejudicial urgente.

26      Em segundo lugar, quanto ao critério relativo à urgência, importa, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tomar em consideração a circunstância de a pessoa em causa no processo principal estar atualmente privada de liberdade e de a sua manutenção em detenção depender da resolução do litígio no processo principal. Por outro lado, a situação da pessoa em causa deve ser apreciada tal como se apresenta à data do exame do pedido de tratamento do reenvio prejudicial segundo a tramitação prejudicial urgente (Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 58 e jurisprudência referida).

27      No caso em apreço, por um lado, embora seja pacífico que, nessa data, XC estava privado de liberdade por força da Decisão do Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) de 6 de outubro de 2011, é igualmente verdade que o mandado de detenção emitido pelo Amtsgericht Braunschweig (Tribunal de Primeira Instância de Brunswick) em 5 de novembro de 2018 também pode justificar a detenção de XC. Por outro lado, a manutenção em vigor desse mandado pode limitar a suavização da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, influenciar a decisão relativa à suspensão condicional dessa pena e, caso essa suspensão ocorra, tornar‑se a única base jurídica para a manutenção de XC em detenção.

28      Nestas condições, a Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 25 de maio de 2020, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio para se submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação prejudicial urgente.

 Quanto à questão prejudicial

29      Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se o artigo 27.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que a regra da especialidade enunciada no n.o 2 deste artigo não se opõe a uma medida restritiva da liberdade adotada em relação a uma pessoa visada num primeiro mandado de detenção europeu por crimes diversos daqueles que constituíram a razão da sua entrega em execução desse mandado e anteriores a esses crimes, quando essa pessoa tenha abandonado voluntariamente o território do Estado‑Membro de emissão do primeiro mandado e aí tenha sido entregue, em execução de um segundo mandado de detenção europeu emitido após o referido abandono para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade, desde que, ao abrigo do segundo mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária encarregada da sua execução concorde com o alargamento do procedimento penal aos crimes que estiveram na origem dessa medida restritiva da liberdade.

30      A fim de responder à questão prejudicial, importa, a título preliminar, recordar que o direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado‑Membro partilha com todos os outros Estados‑Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2.o TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados‑Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito do direito da União que os aplica [Acórdão de 11 de março de 2020, SF (Mandado de detenção europeu — Garantia de devolução ao Estado de execução), C‑314/18, EU:C:2020:191, n.o 35 e jurisprudência referida].

31      A este respeito, importa recordar que a Decisão‑Quadro 2002/584, como resulta, em particular, do seu artigo 1.o, n.os 1 e 2, lido à luz do seu considerando 5, tem por objeto substituir o sistema de extradição multilateral baseado na Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris, em 13 de dezembro de 1957, por um sistema de entrega, entre as autoridades judiciárias, das pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos da execução de sentenças ou de procedimento penal, baseando‑se este último sistema no princípio do reconhecimento mútuo [Acórdão de 11 de março de 2020, SF (Mandado de detenção europeu — Garantia de devolução ao Estado de execução), C‑314/18, EU:C:2020:191, n.o 37 e jurisprudência referida].

32      Neste contexto, esta decisão‑quadro pretende, através da instituição de um sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, conferido à União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros [Acórdão de 11 de março de 2020, SF (Mandado de detenção europeu — Garantia de devolução ao Estado de execução), C‑314/18, EU:C:2020:191, n.o 38 e jurisprudência referida].

33      No domínio regido pela Decisão‑Quadro 2002/584, o princípio do reconhecimento mútuo, que constitui, como resulta designadamente do considerando 6 desta, a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal, encontra a sua expressão no artigo 1.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, que consagra a regra por força da qual os Estados‑Membros são obrigados a executar qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com as disposições desta mesma decisão‑quadro. As autoridades judiciárias de execução apenas podem, portanto, em princípio, recusar dar execução a tal mandado pelos motivos, exaustivamente enumerados, de não execução previstos na Decisão‑Quadro 2002/584 [v., neste sentido, Acórdão de 11 de março de 2020, SF (Mandado de detenção europeu — Garantia de devolução ao Estado de execução), C‑314/18, EU:C:2020:191, n.o 39 e jurisprudência referida].

34      No presente caso, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, por um lado, que, na sequência do mandado de detenção europeu emitido em 19 de setembro de 2018 pelo Ministério Público de Flensburg para efeitos da execução da Decisão do Amtsgericht Niebüll (Tribunal de Primeira Instância de Niebüll) de 6 de outubro de 2011, a autoridade de execução italiana deu o seu acordo à execução dessa decisão em 10 de outubro de 2018, antes de entregar XC às autoridades alemãs em 18 de outubro de 2018. Por outro lado, desses autos também resulta que, na sequência de um pedido feito em 12 de dezembro de 2018 pelo Ministério Público de Brunswick para que XC pudesse ser sujeito a um procedimento penal pela prática dos crimes de violação agravada e de extorsão, a Corte d’appello di Milano (Tribunal de Recurso de Milão) deu o seu acordo a que lhe fosse instaurado um procedimento penal por esses crimes em 22 de março de 2019.

35      No que respeita ao artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584, o Tribunal de Justiça já declarou que, embora os artigos 27.o e 28.o desta decisão‑quadro confiram aos Estados‑Membros determinadas competências precisas na execução de um mandado de detenção europeu, essas disposições, visto que consagram regras derrogatórias em relação ao princípio do reconhecimento mútuo enunciado no artigo 1.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, não podem ser interpretadas de forma tal que leve a neutralizar o objetivo prosseguido pela referida decisão‑quadro, que consiste em facilitar e acelerar as entregas entre as autoridades judiciárias dos Estados‑Membros tendo em conta a confiança mútua que deve existir entre estes (v., neste sentido, Acórdão de 28 de junho de 2012, West, C‑192/12 PPU, EU:C:2012:404, n.o 77).

36      Importa recordar que o artigo 27.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584 enuncia a regra da especialidade segundo a qual uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

37      Antes de mais, conforme sublinhou o advogado‑geral no n.o 33 das suas conclusões, da interpretação literal dessa disposição resulta que a referida regra está estreitamente ligada à entrega resultante da execução de um mandado de detenção europeu específico, porquanto a letra dessa disposição se refere à «entrega» no singular.

38      Em seguida, como indicado pelo advogado‑geral no n.o 37 das suas conclusões, esta interpretação é corroborada pela interpretação contextual da referida disposição. Com efeito, tanto o artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que define o mandado de detenção europeu à luz do objetivo específico que prossegue, como o artigo 8.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, que exige que os mandados de detenção europeus sejam precisos quanto à natureza e à qualificação jurídica das infrações em causa e descrevam as circunstâncias do seu cometimento, indicam que a regra da especialidade está ligada à execução de um mandado de detenção europeu específico.

39      Por último, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a regra da especialidade está ligada à soberania do Estado‑Membro de execução e confere à pessoa procurada o direito de apenas ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração pela qual tiver sido entregue (Acórdão de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov, C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669, n.os 43 e 44).

40      Com efeito, esta regra obriga a que o Estado‑Membro de emissão que pretenda instaurar um procedimento penal contra uma pessoa, ou condená‑la, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu diferente daquela que esteve na origem dessa entrega obtenha o consentimento do Estado‑Membro de execução a fim de evitar que o primeiro Estado‑Membro se imiscua nas competências que o Estado‑Membro de execução pode exercer e ultrapasse as suas prerrogativas relativamente à pessoa em causa. Na medida em que o mecanismo do mandado de detenção europeu visa a entrega da pessoa em causa ao Estado‑Membro de emissão desse mandado, pelas infrações específicas aí mencionadas, fazendo‑o entrar coercivamente no território desse Estado‑Membro, a regra da especialidade está indissociavelmente ligada à execução de um mandado de detenção europeu específico cujo âmbito está claramente definido.

41      Donde se conclui que a regra da especialidade que podia ter sido invocada no contexto da primeira entrega de XC pelas autoridades de execução portuguesas é irrelevante no que respeita ao regresso de XC ao território alemão com base no mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de Flensburg em 19 de setembro de 2018. Conforme salientou o advogado‑geral no n.o 50 das suas conclusões, a inaplicabilidade da regra da especialidade a título do primeiro mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de Hanôver em 23 de agosto de 2016 resulta não de uma das exceções previstas no artigo 27.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, mas do facto de o litígio no processo principal passar a integrar o âmbito da execução do segundo mandado de detenção europeu emitido contra XC pelo Ministério Público de Flensburg em 19 de setembro de 2018.

42      Nestas condições, exigir, para que uma pessoa possa ser sujeita a procedimento penal, condenada ou detida com vista ao cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega, diferente daquela que justificou a sua entrega, o consentimento tanto da autoridade judiciária de execução do Estado‑Membro que entregou a pessoa sujeita a um procedimento penal com base num primeiro mandado de detenção europeu como da autoridade judiciária de execução do Estado‑Membro que entregou a referida pessoa com base num segundo mandado de detenção europeu impede a efetividade do procedimento de entrega, pondo assim em perigo o objetivo prosseguido pela Decisão‑Quadro 2002/584, conforme resulta da jurisprudência constante recordada no n.o 35 do presente acórdão.

43      Por conseguinte, uma vez que, no presente caso, XC abandonou voluntariamente o território alemão após ter cumprido nesse Estado‑Membro a pena a que tinha sido condenado pelos crimes a que se referia o primeiro mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de Hanôver em 23 de agosto de 2016, essa pessoa deixou de poder invocar a regra da especialidade correspondente a esse primeiro mandado de detenção europeu. Nesse contexto, a referida pessoa só pode invocar a regra da especialidade a respeito do segundo mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público de Flensburg em 19 de setembro de 2018 e executado pela autoridade de execução italiana.

44      A este propósito, resulta do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro 2002/584 que a regra da especialidade prevista no n.o 2 deste artigo não se aplica quando a autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa em causa dá o seu consentimento a que esta seja sujeita a procedimento penal, condenada ou detida com vista ao cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega, diferente daquela que justificou a sua entrega.

45      Na medida em que, conforme resulta do n.o 43 do presente acórdão, numa causa como a do processo principal, a única entrega pertinente para efeitos da apreciação do respeito da regra da especialidade é a efetuada com base num segundo mandado de detenção europeu, o consentimento exigido no artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro 2002/584 apenas deve ser dado pela autoridade judiciária de execução do Estado‑Membro que entregou a pessoa sujeita ao procedimento penal com base no referido mandado de detenção europeu.

46      Por conseguinte, importa responder à questão submetida que o artigo 27.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que a regra da especialidade enunciada no n.o 2 deste artigo não se opõe a uma medida restritiva da liberdade adotada em relação a uma pessoa visada num primeiro mandado de detenção europeu por crimes diversos daqueles que constituíram a razão da sua entrega em execução desse mandado e anteriores a esses crimes, quando essa pessoa tenha abandonado voluntariamente o território do Estado‑Membro de emissão do primeiro mandado e aí tenha sido entregue, em execução de um segundo mandado de detenção europeu emitido após o referido abandono para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade, desde que, ao abrigo do segundo mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária encarregada da sua execução concorde com o alargamento do procedimento penal aos crimes que estiveram na origem dessa medida restritiva da liberdade.

 Quanto às despesas

47      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 27.o, n.os 2 e 3, da DecisãoQuadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que a regra da especialidade enunciada no n.o 2 deste artigo não se opõe a uma medida restritiva da liberdade adotada em relação a uma pessoa visada num primeiro mandado de detenção europeu por crimes diversos daqueles que constituíram a razão da sua entrega em execução desse mandado e anteriores a esses crimes, quando essa pessoa tenha abandonado voluntariamente o território do EstadoMembro de emissão do primeiro mandado e aí tenha sido entregue, em execução de um segundo mandado de detenção europeu emitido após o referido abandono para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade, desde que, ao abrigo do segundo mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária encarregada da sua execução concorde com o alargamento do procedimento penal aos crimes que estiveram na origem dessa medida restritiva da liberdade.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.