CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PEDRO CRUZ VILLALÓN
apresentadas em 30 de abril de 2013 (1)
Processo C‑518/11
UPC Nederland BV
contra
Gemeente Hilversum
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Gerechtshof te Amsterdam (Países Baixos)]
«Redes e serviços de comunicações eletrónicas — Novo quadro regulamentar — Diretivas 2002/19/CE, 2002/20/CE, 2002/21/CE e 2002/22/CE — Âmbito de aplicação ratione materiae — Fornecimento de programas de rádio e de televisão livremente acessíveis por cabo — Cedência por um município da sua rede por cabo a uma empresa privada — Compatibilidade de uma cláusula contratual de limitação dos preços do serviço de base — Regulamentação setorial ex ante — Competências das autoridades reguladoras nacionais — Empresas com poder de mercado significativo — Objetivos de interesse geral»
1. O presente pedido de decisão prejudicial dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de analisar, pela primeira vez, a incidência do direito da União sobre a competência dos Estados‑Membros para imporem às empresas que prestem serviços de difusão de programas de rádio e televisão uma medida de limitação do aumento do preço a retalho dos referidos serviços. A particularidade do litígio no processo principal reside na circunstância de a medida de limitação em causa no processo principal ter assumido a forma de uma cláusula prevista no contrato pelo qual uma coletividade territorial, no caso, o Gemeente Hilversum (Município de Hilversum), vendeu a sua rede por cabo a uma empresa privada.
I — Quadro jurídico
2. As principais disposições de direito derivado da União relevantes para responder às questões prejudiciais submetidas no presente processo são as das várias diretivas que estabelecem o que se convencionou chamar novo quadro regulamentar no domínio das comunicações eletrónicas (2), a saber, a Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva‑quadro) (3) e as quatro diretivas específicas (4) que a acompanham e que são, além da Diretiva 97/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das telecomunicações (5), a Diretiva 2002/19/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa ao acesso e interligação de redes de comunicações eletrónicas e recursos conexos (diretiva acesso) (6), a Diretiva 2002/20/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa à autorização de redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva autorização) (7), e a Diretiva 2002/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva serviço universal) (8).
3. O conteúdo das diferentes disposições da diretiva‑quadro e da Diretiva 2002/77/CE da Comissão, de 16 de setembro de 2002, relativa à concorrência nos mercados de redes e serviços de comunicações eletrónicas (9), que estão especialmente em causa no processo principal, será exposto, na medida necessária, nos pontos seguintes.
II — Factos na origem do processo principal
4. Resulta da decisão de reenvio e das várias observações escritas e orais apresentadas ao Tribunal de Justiça que o litígio no processo principal tem origem na venda, pelo município de Hilversum ao antecessor jurídico da sociedade UPC Nederland (10), da sua rede de distribuição por cabo, bem como da empresa municipal que a explorava, por um montante de cerca de 23 227 000 euros.
5. Nos termos do «contrato relativo à futura exploração da rede de distribuição por cabo de Hilversum», celebrado entre as partes, o município de Hilversum comprometia‑se a colaborar para a obtenção pela compradora de uma autorização para instalação, manutenção e exploração de uma rede de radiodifusão por cabo no território do município.
6. O comprador comprometia‑se a fazer os investimentos que permitissem estabelecer uma rede por cabo suscetível de proporcionar uma melhoria da prestação de serviços aos subscritores médios do referido município, entre os quais, até 1 de janeiro de 1998, a instalação da cablagem de fibra ótica na rede, e proporcionar aos particulares e aos profissionais, além das cadeias de radiotelevisão (11), um conjunto atrativo de serviços de telecomunicações.
7. O artigo 4.2 deste contrato previa que o comprador «garantia […] uma oferta mínima pluralista de programas de radiotelevisão na rede de distribuição por cabo, mediante uma remuneração socialmente aceitável e com uma qualidade de receção excelente para o subscritor», isto é, um pacote de base de programas de RTV respeitando os critérios de composição e de preços previstos no contrato. Previa designadamente que o preço mensal do pacote de base era anualmente atualizável com base no índice de preços no consumidor, de acordo com uma fórmula indicada no anexo 11 do referido contrato, especificando que os aumentos dos custos externos seriam igualmente repercutidos no referido preço na medida em que excedessem os aumentos do índice referido (12).
8. Por carta de 28 de novembro de 2003, a UPC comunicou ao município de Hilversum o aumento do preço mensal do pacote de base para todas as famílias, de 10,28 euros para 13,32 euros, incluído o imposto sobre o valor acrescentado, a partir de 1 de janeiro de 2004.
9. O município de Hilversum intentou então uma ação para impedir o aumento de preço anunciado. Por decisão de 23 de dezembro de 2003, o Rechtbank te Amsterdam julgou o pedido procedente, tendo o mesmo sido confirmado em sede de recurso por acórdão de 12 de agosto de 2004 do Gerechtshof te Amsterdam (Países Baixos). A UPC interpôs recurso de cassação, ao qual foi negado provimento por acórdão do Hoge Raad der Nederlanden, de 8 de julho de 2005.
10. Por outro lado, em 27 de setembro de 2005, a Autoridade Neerlandesa da Concorrência (13) analisou a questão de saber se a UPC explorou abusivamente a sua posição dominante, na aceção do artigo 24.° da Lei neerlandesa da concorrência, ao cobrar preços excessivos de subscrição pelos pacotes tipo de radiotelevisão analógica e concluiu que tal não aconteceu.
11. Em 28 de setembro de 2005, a autoridade reguladora neerlandesa dos correios e telecomunicações (14) aprovou um projeto de decisão sobre «[o] mercado de transmissão e distribuição de radiodifusão na área de distribuição da UPC». Nele, a OPTA afirmava que a UPC, na respetiva área de distribuição, dispunha de uma capacidade considerável no «mercado de distribuição de pacotes de radiotelevisão de livre acesso por cabo» e impunha‑lhe obrigações relativas ao cálculo das suas tarifas (15).
12. Em 3 de novembro de 2005 (16), a OPTA submeteu este projeto de decisão à Comissão das Comunidades Europeias, a qual manifestou dúvidas sobre a compatibilidade do mesmo com o disposto no artigo 15.°, n.° 3, da diretiva‑quadro, em conjugação com a sua Recomendação 2003/311/CE (17).
13. A decisão definitiva adotada pela OPTA, em 17 de março de 2006, já não incluía a medida de controlo dos preços.
14. Em 15 de maio de 2006, a UPC intentou no Rechtbank te Amsterdam uma ação contra o município de Hilversum, no âmbito da qual pedia que a cláusula de limitação dos preços fosse declarada nula e que do município fosse obrigado a permitir aumentos de preços. A este respeito, invocava a incompatibilidade da cláusula de limitação dos preços especialmente com o disposto no NQR.
15. Em 27 de junho de 2007, o Rechtbank te Amsterdam negou provimento aos pedidos da UPC.
III — Questões prejudiciais e processo no Tribunal de Justiça
16. Foi nestas circunstâncias que, tendo‑lhe sido submetido um recurso da UPC, o Rechtbank te Amsterdam decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça nada menos do que dezoito questões prejudiciais, redigidas nos seguintes termos:
«1) Um serviço que consiste no fornecimento de pacotes de radiotelevisão de acesso livre por cabo, por cuja prestação são cobrados custos de transmissão e um montante correspondente ao pagamento (ou à sua repercussão) da divulgação dos respetivos conteúdos a organizações de radiodifusão e de gestão coletiva de direitos de autor, é abrangido pelo campo de aplicação material do NQR [novo quadro regulamentar]?
2) a) No contexto da liberalização do sector das telecomunicações e dos objetivos do NQR, que prevê um regime rigoroso de coordenação e consulta antes de uma ARN [autoridade reguladora nacional] ser (exclusivamente) competente para intervir nos preços ao utilizador final através de uma medida como o controlo dos preços, o Município tem ainda a competência (ou o dever) de defender os interesses públicos dos seus habitantes, mediante a sua intervenção nos preços ao utilizador final através de uma cláusula de limitação dos preços?
2) b) Em caso de resposta negativa, o NQR opõe‑se a que o Município aplique uma cláusula de limitação dos preços acordada no âmbito da venda da empresa de distribuição por cabo?
Em caso de resposta negativa à segunda questão [alíneas a) e b)], coloca‑se a seguinte questão:
3) Um organismo público, como o Município, numa situação como a presente tem também o dever de cooperação leal com a União, se, na celebração e posterior aplicação da cláusula de limitação dos preços, não atuar no exercício de uma competência pública, mas no âmbito de uma competência de direito privado [v. também sexta questão, alínea a)]?
4) Se o NQR for aplicável e o Município tiver o dever de cooperação leal com a União:
a) O dever [de] cooperação leal com a União em conjugação com o NQR (e os seus objetivos), que prevê um regime rigoroso de coordenação e consulta antes de uma ARN poder intervir nos preços de utilizador final através de uma medida como o controlo dos preços, opõe‑se a que o Município aplique a cláusula de limitação dos preços?
b) Em caso de resposta negativa, a resposta à quarta questão, alínea a) será diferente relativamente ao período após a Comissão ter manifestado dúvidas na sua «letter of serious doubt» sobre a compatibilidade do controlo dos preços proposto pela OPTA [Onafhankelijke Post en Telecommunicatie Autoriteit] com os objetivos do NQR descritos no artigo 8.° da diretiva‑quadro, e de a OPTA ter renunciado a essa medida?
5) a) O artigo 101.° TFUE é uma disposição de ordem pública que o juiz pode aplicar oficiosamente fora do objeto do litígio, no sentido dos artigos 24.° e 25.° do Código de Processo Civil neerlandês?
5) b) Em caso afirmativo, relativamente a que factos alegados nos autos deverá o juiz proceder à análise da aplicabilidade do artigo 101.° TFUE? O juiz também está obrigado a fazê‑lo se esta análise conduzir (eventualmente) a completar os factos, na aceção do artigo 149.° do Rv., depois de as partes terem sido convidadas a pronunciarem‑se a esse respeito?
6) Se o artigo 101.° TFUE tiver de ser aplicado fora do objeto do litígio tal como circunscrito pelas partes: no contexto do NQR (ou dos seus objetivos), da sua aplicação pela OPTA e pela Comissão Europeia, e da correspondência dos conceitos utilizados no NQR, tais como de «poder de mercado significativo» (PMS) e de «delimitação dos mercados relevantes», com os conceitos semelhantes do direito da concorrência da União, suscitam‑se as seguintes questões na sequência dos factos alegados nos autos:
6) a) Para efeitos da venda da sua empresa de distribuição por cabo e da cláusula de limitação dos preços acordada nesse contexto, o Município deve ser considerado uma empresa na aceção do artigo 101.° TFUE [(v., também, terceira questão)]?
6) b) A cláusula de limitação dos preços deve ser considerada uma restrição grave no sentido do artigo 101.°, n.° 1, alínea a), TFUE e conforme descrito de forma mais detalhada na Comunicação da Comissão, de 22 de dezembro de 2001, relativa aos acordos de pequena importância que não restringem sensivelmente a concorrência ([comunicação] ‘de minimis’; JO 2001, C 368, p. 7, ponto 11)? Em caso afirmativo, está em causa uma restrição sensível da concorrência na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE? Em caso de resposta negativa, a resposta é afetada pelas circunstâncias referidas na sexta questão, alínea d) […]?
6) c) Se a cláusula de limitação dos preços não é uma restrição grave, tem um alcance de restrição da concorrência (desde logo) porque:
— A NMA [Nederlandse Mededingingsautoriteit] decidiu que a UPC não explorou abusivamente a sua posição dominante com os preços (mais elevados) por si aplicados relativamente a uma prestação de serviços idêntica à distribuição do pacote básico por cabo no mesmo mercado;
— Na sua «letter of serious doubt», a Comissão manifestou dúvidas sobre a compatibilidade da intervenção ex ante, mediante o controlo dos preços ao utilizador final de serviços tais como a distribuição pela UPC do pacote básico por cabo com os objetivos descritos no artigo 8.° da diretiva‑quadro? A resposta é afetada pelo facto de a OPTA, na sequência da «letter of serious doubt», ter renunciado ao controlo dos preços?
6) d) Deve considerar‑se que o contrato, com a cláusula de limitação dos preços aí prevista, afeta sensivelmente a concorrência, na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE (também) tomando em consideração que:
— Ao abrigo do NQR, a UPC é considerada um PMS [poder de mercado significativo] ([comunicação] de minimis, ponto 7);
— Praticamente todos os municípios neerlandeses que, nos anos noventa, venderam as respetivas empresas municipais de distribuição por cabo a operadores de cabo como a UPC reservaram nesses contratos competências relativamente aos preços do pacote básico ([comunicação] de minimis, ponto 8)?
6) e) Deve considerar‑se que o contrato, com a cláusula de limitação de preços nele prevista, afeta (ou pode afetar) sensivelmente as relações comerciais entre os Estados‑Membros, na aceção do artigo 101.°, n.° 1, TFUE, e conforme descrito de forma mais detalhada nas Orientações sobre o conceito de afetação do comércio entre os Estados‑Membros previsto nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2004, C 101, p. 81), tomando em consideração que:
— Ao abrigo do NQR, a UPC é considerada um PMS;
— A OPTA seguiu o procedimento de consulta europeu para decidir uma medida de controlo dos preços relativamente a serviços, como a distribuição do pacote básico por cabo por operadores de cabo com um PMS como a UPC, o qual deve ser seguido, nos termos do NQR, sempre que a medida pretendida afete o comércio entre os Estados‑Membros;
— O contrato representava à data um valor de 51 milhões de florins (cerca de 23 milhões de euros);
— Praticamente todos os municípios neerlandeses que nos anos noventa venderam as respetivas empresas municipais de distribuição por cabo a operadores de cabo como a UPC reservaram nesses contratos competências relativamente aos preços do pacote básico;
7) O juiz tem também competência para afastar a aplicação da proibição prevista no artigo 101.°, n.° 1, TFUE, relativamente à cláusula de limitação de preços, com base no artigo 101.°, n.° 3, TFUE, no contexto do NQR e das dúvidas manifestadas pela Comissão na «letter of serious doubt» sobre a compatibilidade da intervenção (ex ante) nos preços ao utilizador final com os objetivos do direito da concorrência? A resposta é afetada pelo facto de a OPTA, na sequência da «letter of serious doubt», ter renunciado ao projetado controlo dos preços?
8) A sanção de nulidade do direito europeu prevista do artigo 101.°, n.° 2, TFUE permite a relativização dos seus efeitos no tempo, à luz das circunstâncias à data da celebração do contrato (o período inicial da liberalização do sector das telecomunicações) e dos posteriores desenvolvimentos no sector das telecomunicações, incluindo a entrada em vigor do NQR e das objeções sérias manifestadas pela Comissão, na sequência dessa entrada em vigor, sobre a adoção de uma medida de controlo dos preços?»
IV — Análise
A — Observações preliminares sobre o âmbito e a admissibilidade das questões prejudiciais
17. Importa, antes de mais, salientar que não será necessário responder a todas as dezoito questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.
18. Este último apresenta ele mesmo algumas destas questões como subsidiárias, estando a necessidade de lhes responder dependente da resposta dada a outras questões. É o caso da segunda questão, alínea b), subordinada a uma resposta negativa à segunda questão, alínea a), e da terceira questão, ela própria dependente de uma resposta negativa às questões anteriores.
19. No entanto, como se verá adiante, o caráter subsidiário de certas questões impõe‑se também logicamente à luz das respostas dadas às primeiras questões. É especialmente o caso da terceira e quarta questões, relativas ao âmbito do dever de cooperação leal, às quais é dada resposta no âmbito da análise das questões anteriores. É igualmente o caso, como salienta a Comissão, da quinta, sexta, sétima e oitava questões, relativas ao artigo 101.° TFUE.
20. Além disso, e como alegou o município de Hilversum nas suas observações escritas, nesta fase, não se pode excluir que algumas das questões do órgão jurisdicional de reenvio, em particular a quinta a oitava questões, relativas ao artigo 101.° TFUE, devam ser declaradas inadmissíveis ou, pelo menos, sem objeto, podendo a sua pertinência para efeitos da resolução do litígio no processo principal ser seriamente posta em causa, à luz das informações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.
21. Em definitivo, e como se constatará, as diversas questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio podem ser agrupadas em torno de três séries principais de interrogações, a primeira relativa ao âmbito de aplicação do NQR e, portanto, à aplicabilidade das disposições das diretivas aplicáveis no litígio no processo principal (primeira questão), a segunda relativa ao âmbito das obrigações que incumbem ao município de Hilversum ao abrigo das referidas diretivas (segunda questão) ou ao dever de cooperação leal referido no artigo 4.°, n.° 3, TFUE (terceira e quarta questões) e, finalmente, a última, respeitante à eventual incidência do disposto no artigo 101.°, n.° 1 (quinta e sexta questões), n.° 2 (sétima questão) e n.° 3 (oitava questão), TFUE sobre a solução a dar ao litígio no processo principal.
B — Quanto ao âmbito de aplicação material do NQR: o conceito de serviços de comunicações eletrónicas (primeira questão)
22. Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça quanto à questão de saber se um serviço que consiste no fornecimento de pacotes de RTV de acesso livre por cabo é abrangido pelo âmbito de aplicação material do NQR, especificando‑se que a faturação do referido serviço engloba os custos de transmissão, bem como a remuneração dos organismos de radiotelevisão e os direitos pagos aos organismos de gestão coletiva de direitos de autor, por força da difusão do conteúdo das obras.
1. Resumo das observações
23. A UPC alega que, no essencial, presta serviços de comunicações eletrónicas, pelo que o litígio no processo principal é abrangido pelo NQR. Pelo contrário, o município de Hilversum e o Governo neerlandês consideram que, na medida em que a UPC se limita a comprar conteúdos às diferentes cadeias de televisão, a constituir assim um pacote RTV e a fornecê‑lo aos utilizadores finais através da sua rede por cabo, presta um serviço de fornecimento de conteúdos não abrangido pelo âmbito de aplicação do NQR.
24. A Comissão e o Órgão de Fiscalização da EFTA consideram que o serviço prestado pela UPC é, simultaneamente, abrangido pela transmissão de sinais e pelo fornecimento de conteúdos RTV, pelo que o NQR só é aplicável à primeira componente. No entanto, o Órgão de Fiscalização da EFTA considera que é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe determinar a natureza do serviço prestado pela UPC e retirar as respetivas consequências.
2. Análise
25. Em minha opinião, a resposta a esta questão, tal como resulta tanto da definição do conceito de «serviço de comunicações eletrónicas», constante dos artigos 2.°, alínea c), da diretiva‑quadro e 1.°, n.° 3, da diretiva concorrência, como da interpretação das disposições pertinentes do NQR em cujo contexto se inscrevem e à luz da finalidade que prosseguem e do disposto na Diretiva 2010/13/UE «serviços de comunicação audiovisual» (18), não coloca quaisquer dúvidas.
26. Com efeito, o artigo 2.°, alínea c), da diretiva‑quadro define o serviço de comunicações eletrónicas como sendo o «serviço oferecido em geral mediante remuneração, que consiste total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas, incluindo os serviços de telecomunicações e os serviços de transmissão em redes utilizadas para a radiodifusão, excluindo os serviços que prestem ou exerçam controlo editorial sobre conteúdos transmitidos através de redes e serviços de comunicações eletrónicas». Esta disposição especifica ainda que deste conceito «excluem‑se igualmente os serviços da sociedade da informação, tal como definidos no artigo 1.° da Diretiva 98/34/CE (19) que não consistam total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas».
27. Como resulta desta definição, retomada em termos sensivelmente equivalentes no artigo 1.°, n.° 3, da diretiva concorrência, os serviços de comunicações eletrónicas são definidos tanto positivamente como negativamente.
28. A este respeito, o quinto considerando da diretiva‑quadro indica que «[a] convergência dos sectores das telecomunicações, meios de comunicação social e tecnologias da informação implica que todas as redes e serviços de transmissão sejam abrangidos por um único quadro regulamentar» e que, no âmbito do estabelecimento do referido quadro, «[é] necessário separar a regulação da transmissão, da regulamentação dos conteúdos». Especifica que o NQR «não abrange os conteúdos dos serviços prestados através das redes de comunicações eletrónicas recorrendo a serviços de comunicações eletrónicas, como sejam conteúdos radiodifundidos, serviços financeiros, ou determinados serviços da sociedade da informação e, por conseguinte, não prejudica as medidas tomadas a nível comunitário ou nacional relativamente a esses serviços, em conformidade com o direito comunitário, a fim de promover a diversidade cultural e linguística e garantir a pluralidade dos meios de comunicação».
29. Do mesmo modo, o sétimo considerando da diretiva concorrência, que indica que os conceitos de serviços e de redes de «comunicações eletrónicas» foram preferidos aos de serviços e de redes de «telecomunicações», precisamente com o objetivo de ter em conta o fenómeno de convergência, refere que esta definição abarca todos os serviços e/ou redes de comunicações eletrónicas «envolvidos na transmissão de sinais através de fios, radioligações, meios óticos ou ainda outros meios eletromagnéticos», englobando «redes fixas, sem fios, de televisão por cabo e de satélites». Especifica, além disso, que «a transmissão e difusão de programas de rádio e de televisão deviam ser reconhecidas como um serviço de comunicação eletrónica».
30. Por outro lado, o artigo 1.°, primeiro parágrafo, alínea a), i), da diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual» define o serviço de comunicação social audiovisual como «um serviço tal como definido pelos artigos 56.° [TFUE] e 57.° [TFUE], prestado sob a responsabilidade editorial de um fornecedor de serviços de comunicação social e cuja principal finalidade é a oferta ao público em geral de programas destinados a informar, distrair ou educar, através de redes de comunicações eletrónicas, na aceção da alínea a) do artigo 2.° da Diretiva 2002/21/CE». Esta mesma disposição especifica que um «serviço de comunicação social audiovisual é constituído por emissões televisivas, tal como definidas na alínea e) do presente número, ou por serviços de comunicação social audiovisual a pedido, tal como definidos na alínea g) do presente número».
31. No presente caso, resulta da decisão de reenvio e das observações escritas e orais apresentadas ao Tribunal de Justiça que a UPC exerce uma atividade que, no essencial, consiste na transmissão de programas de RTV por cabo aos seus clientes, titulares de uma subscrição. É facto assente, em concreto, que a UPC não produz ela mesma programas de RTV e não exerce nenhuma responsabilidade editorial quanto ao conteúdo dos programas que transmite.
32. A este respeito, não se pode acolher a argumentação do município de Hilversum e do Reino dos Países Baixos, baseada na distinção entre «fornecimento de serviços de RTV» e «transmissão dos sinais» a eles inerentes, segundo a qual a atividade da UPC não está abrangida pelo NQR na medida em que os seus clientes adquirem, não uma capacidade de transmissão vazia mas um conteúdo, um pacote de programas de RTV transmitidos através de uma rede de teledistribuição por cabo.
33. Com efeito, como resulta das diversas definições recordadas precedentemente, as diretivas aplicáveis estabelecem uma distinção clara entre a produção dos conteúdos, que implica uma responsabilidade editorial, e a transmissão dos conteúdos, que exclui qualquer responsabilidade editorial, sendo os conteúdos e a sua transmissão objeto de regulamentações distintas (20) que prosseguem objetivos próprios (21), não se referindo nem aos clientes dos serviços prestados nem à estrutura dos custos de transmissão faturados a estes últimos.
34. Assim, embora seja exato que os clientes da UPC adquirem conteúdos ao serem assinantes da UPC a fim de acederem ao pacote analógico de programas de RTV que ela propõe, no entanto, tal não implica que a atividade desta última, que consiste na transmissão dos programas produzidos, sob a sua própria responsabilidade editorial, pelos editores de conteúdos, no caso, as cadeias de rádio e de televisão, até ao ponto de conexão da sua rede por cabo situada no domicílio dos seus assinantes, não possa ser qualificada de serviço de comunicações eletrónicas abrangido pelo âmbito de aplicação do NQR.
35. Pelo contrário, como alegou a Comissão, o fornecimento de pacotes RTV livremente acessíveis por cabo é abrangido pelo conceito de serviço de comunicações eletrónicas e, portanto, pelo âmbito de aplicação material do NQR na medida em que este abrange a transmissão de sinais na rede de transmissão por cabo.
36. Qualquer outra interpretação reduzia consideravelmente o âmbito do NQR, violava o efeito útil das suas disposições e, portanto, comprometia a realização dos objetivos prosseguidos por este último.
37. Dado que a própria finalidade do NQR consiste no estabelecimento de um verdadeiro mercado interno das comunicações eletrónicas (22), em cujo âmbito estas últimas devem no futuro ser reguladas apenas pelo direito da concorrência (23), a exclusão das atividades de uma empresa como a UPC do seu âmbito de aplicação com o pretexto de que esta não se limita à transmissão de sinais privaria, de facto, este último de todo o alcance.
38. Do mesmo modo, a circunstância de as despesas de transmissão faturadas aos assinantes incorporarem a remuneração devida às cadeias de radiotelevisão e os direitos pagos aos organismos de gestão coletiva dos direitos de autor ao abrigo da difusão do conteúdo das obras não pode, pelas mesmas razões, constituir obstáculo à qualificação do serviço prestado pela UPC como serviço de comunicações eletrónicas na aceção do NQR.
39. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça declare que a Diretiva 2002/21 deve ser interpretada no sentido de que é abrangido pelo seu âmbito de aplicação material um serviço que consiste no fornecimento de pacotes de radiotelevisão de acesso livre por cabo, por cuja prestação são cobrados os custos de transmissão e os direitos pagos às organizações de gestão coletiva de direitos de autor pela difusão do conteúdo das obras, quando o referido serviço inclui a transmissão de sinais através de redes de comunicações eletrónicas.
C — Quanto ao âmbito do NQR: prerrogativas dos Estados‑Membros e competências do município de Hilversum (segunda questão)
40. Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga, no essencial, o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se uma coletividade local como o município de Hilversum pode, tendo em conta o NQR, intervir na fixação dos preços cobrados ao consumidor final pelos serviços de comunicações eletrónicas através de uma rede por cabo fornecidos por um operador económico como a UPC.
41. Esta questão subdivide‑se em duas subquestões, que tomam em conta a especificidade da situação jurídica em causa no processo principal, materializada neste caso pela cláusula de limitação do preço prevista no contrato de compra e venda celebrado entre o município de Hilversum e a UPC. Assim, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, por um lado, se o NQR, tendo em conta as competências que atribui às ARN, se opõe a que uma coletividade local disponha de competência para adotar medidas de controlo dos preços. Por outro lado, e em caso de resposta negativa, pergunta se o NQR se opõe a que uma coletividade local possa aplicar uma tal cláusula contratual de limitação dos preços.
1. Resumo das observações
42. O município de Hilversum e o Governo neerlandês salientam, em primeiro lugar, que a cláusula de limitação dos preços foi livremente negociada no momento da celebração do contrato entre as partes e constitui a contrapartida do preço acordado no referido contrato. Consideram que, em qualquer caso, o NQR não se opõe à cláusula de limitação dos preços, uma vez que esta não pode constituir obstáculo à adoção, pela ARN, no caso, a OPTA, em qualquer momento, de uma medida destinada a favorecer a concorrência ao abrigo do artigo 17.° da diretiva serviço universal.
43. Em contrapartida, a UPC, a Comissão e o Órgão de Fiscalização da EFTA consideram que essa cláusula é incompatível com o NQR, designadamente na medida em que o município de Hilversum não pode ser considerado uma ARN, exclusivamente competente para adotar medidas de controlo dos preços a retalho como a que prevê a cláusula de limitação dos preços, ou como tendo agido legalmente na qualidade de ARN. No entanto, a Comissão não exclui que essa medida, desde que seja conforme aos princípios da transparência, da proporcionalidade e da não discriminação, possa constituir a contrapartida de uma obrigação de serviço público abrangida pelo artigo 106.°, n.° 2, TFUE, o que incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar.
2. Análise
44. Importa começar por especificar que, ainda que o contrato que inclui a cláusula de limitação dos preços tenha sido celebrado antes da adoção do NQR, as diversas diretivas que o compõem deviam ser transpostas pelos vários Estados‑Membros, o mais tardar, em 24 de julho de 2003, e que, desde então, os Estados‑Membros são obrigados a respeitar as suas disposições e a garantir o seu cumprimento em todo o seu território.
45. Esta obrigação impõe‑se aos Estados‑Membros por força das próprias diretivas e, portanto, independentemente do dever de cooperação leal que lhes incumbe por força do artigo 4.°, n.° 3, TUE, pelo que, se se chegar à conclusão de que o NQR constitui um obstáculo à aplicação da cláusula de limitação dos preços em causa no processo principal, não será necessário responder à terceira e quarta questões prejudiciais, dado que o incumprimento das disposições do NQR implica ipso facto a violação do referido dever.
46. Deve, em seguida, indicar‑se que, como resulta da análise das disposições pertinentes do NQR e como a UPC, a Comissão e o Órgão de Fiscalização da EFTA, no essencial, expuseram nas suas observações escritas e na audiência, medidas de controlo dos preços dos serviços de comunicações eletrónicas como a que está em causa no processo principal (24) só podem ser admitidas quando façam parte das medidas suscetíveis de ser adotadas por uma ARN relativamente a uma empresa com poder de mercado significativo ou quando possam ser justificadas ao abrigo de um objetivo de interesse geral ou em virtude do artigo 106.°, n.° 2, TFUE.
47. Ora, mesmo que se pressuponha que o município de Hilversum cumpre os requisitos de competência, de independência funcional e legal, de imparcialidade e de transparência impostas pelo artigo 3.° da diretiva‑quadro e pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (25) para poder ser validamente qualificado de ARN (26), em qualquer caso e como demonstrarei em primeiro lugar, não se pode considerar que tenha agido legalmente nessa qualidade, na medida em que a cláusula de limitação dos preços imposta à UPC foi adotada em violação das regras processuais pormenorizadas previstas pelas diversas diretivas aplicáveis.
48. Além disso, ainda que não se possa excluir a possibilidade de o município de Hilversum, não na qualidade de ARN mas enquanto coletividade territorial, adotar tal medida de limitação dos preços, desde que esta última seja justificada pela prossecução de objetivos de interesse geral ou ao abrigo do artigo 106.°, n.° 2, TFUE, é, no entanto, ao órgão jurisdicional de reenvio que cumpre proceder às verificações a este respeito, como demonstrarei em segundo lugar.
a) Quanto às medidas de controlo dos preços que podem ser adotadas no âmbito do NQR
49. Importa começar por recordar que a finalidade do NQR consiste no estabelecimento de um verdadeiro mercado interno das comunicações eletrónicas, em cujo âmbito estas últimas devem, no futuro, ser reguladas apenas pelo direito da concorrência (27), designadamente através da redução progressiva da regulamentação setorial ex ante (28).
50. O artigo 2.°, n.° 3, da diretiva concorrência especifica que os Estados‑Membros garantem que não sejam impostas nem mantidas restrições à prestação de serviços de comunicações eletrónicas em redes de comunicações eletrónicas, sem prejuízo do disposto nas diretivas acesso, autorização, quadro e serviço universal.
51. Portanto, é através das disposições pertinentes destas diretivas que é desenhado o regime de concorrência estabelecido pelo NQR e as suas correções e que deve ser analisada a compatibilidade da aplicação da cláusula de limitação dos preços.
52. A diretiva‑quadro fixa, nesta perspetiva, as tarefas que, sob o controlo da Comissão, incumbem às ARN e estabelece os processos que garantem a aplicação harmonizada do NQR em toda a União.
53. As ARN, definidas no artigo 2.°, alínea g), da diretiva‑quadro, estão, assim, encarregadas de, em conformidade com o artigo 8.°, n.° 1, desta mesma diretiva, tomar todas as medidas razoáveis para realizar os objetivos fixados nos n.os 2, 3 e 4 desta mesma disposição, a saber, a promoção da concorrência, designadamente, na oferta de serviços de comunicações eletrónicas e de recursos e serviços conexos, na contribuição para o desenvolvimento do mercado interno e na defesa dos interesses dos cidadãos da União.
54. Por sua vez, o artigo 3.° da diretiva autorização exige que os Estados‑Membros garantam a liberdade de oferecer redes e serviços de comunicações eletrónicas, especificando que este fornecimento só pode, em princípio, ser objeto de uma autorização geral (29), sem prejuízo das obrigações específicas referidas no seu artigo 6.°, n.° 2.
55. O artigo 6.°, n.° 2, da diretiva autorização estabelece, no presente caso, designadamente (30), a possibilidade de as ARN imporem obrigações específicas aos fornecedores de serviços e redes de comunicações eletrónicas com um poder de mercado significativo, nos termos dos artigos 6.° e 8.° da diretiva acesso, estando a sua adoção subordinada a condições e modalidades precisas (31). Esta mesma disposição indica, por um lado, que estas obrigações específicas serão legalmente separadas dos direitos e obrigações decorrentes da autorização geral e, por outro, que os critérios e procedimentos para a imposição dessas obrigações serão mencionados na autorização geral.
56. Deve ser salientado que o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhuma informação relativa à autorização geral concedida à UPC, exceto que o município de Hilversum se tinha comprometido a ajudar a obtê‑la.
57. Em quaisquer circunstâncias, não se pode considerar que a cláusula de limitação de preços imposta pelo município de Hilversum à UPC pode ser abrangida pelas medidas de controlo dos preços referidas no artigo 13.° da diretiva acesso que podem ser adotados relativamente a empresas com um poder de mercado significativo, nos termos do artigo 8.° da referida diretiva.
58. Em primeiro lugar, em razão da concorrência existente entre a difusão de programas de RTV por cabo e o desenvolvimento da televisão numérica terrestre, por um lado, e da difusão de programas de RTV pelas redes DSL, por outro (32), o mercado em causa no processo principal já não faz parte dos abrangidos pela Recomendação 2007/879/CE como sendo suscetíveis de regulamentação ex ante.
59. É certo que, como salienta a Comissão, esta circunstância não impede, em princípio, que uma ARN possa definir mercados de utilizadores finais que correspondam às circunstâncias nacionais suscetíveis de regulamentação ex ante (33).
60. No entanto, é ainda necessário que a definição de tais mercados ocorra de acordo com os procedimentos previstos nos artigos 6.° e 7.° da diretiva‑quadro, e designadamente depois de proporcionar às partes interessadas a possibilidade de apresentarem observações (34), que a análise dos referidos mercados seja efetuada de acordo com o procedimento previsto no artigo 16.° da diretiva‑quadro, que, depois de ter constatado que o mercado relevante efetivamente não é concorrencial, a identificação das empresas com um poder de mercado significativo seja efetuada em conformidade com o artigo 14.° da diretiva‑quadro e, por último, que a adoção das medidas de controlo dos preços cumpra o procedimento previsto no artigo 7.°, n.° 2, da diretiva‑quadro e as condições previstas no artigo 13.° da diretiva acesso.
61. Ora, resulta dos elementos do processo que a medida imposta à UPC lhe foi aplicada não sendo cumpridas as diferentes obrigações procedimentais impostas pelas diversas disposições aplicáveis do NQR, em particular, as previstas nos artigos 6.° e 7.° da diretiva‑quadro.
62. A aplicação da diretiva serviço universal deve ser excluída pelas mesmas razões. Embora o artigo 9.° preveja que podem ser impostas medidas de controlo dos preços a empresas designadas para executar um serviço universal, estas últimas, pressupondo que possam aplicar‑se a serviços de RTV, só podem ser impostas no final de uma análise de mercado como a prevista no artigo 16.° da diretiva‑quadro e nos artigos 16.° e 17.° da diretiva serviço universal (35).
63. Consequentemente, pode concluir‑se provisoriamente que o NQR se opõe, em princípio, à cláusula de limitação dos preços, salvo se se demonstrar que é justificada pela prossecução de objetivos de interesse geral.
64. Com efeito, o artigo 1.°, n.os 2 e 3, da diretiva‑quadro especifica que as diretivas que constituem o NQR não afetam as obrigações impostas aos referidos serviços por medidas nacionais adotadas em aplicação do direito da União, ou pelo próprio direito da União, nem as medidas tomadas pela União ou pelos Estados‑Membros em cumprimento do direito da União, com vista a prosseguir objetivos de interesse geral.
65. No caso em apreço, não é alegado que a cláusula de limitação de preços resulta de uma obrigação prevista por medidas nacionais tomadas em aplicação do direito da União ou pelo direito da União. Em contrapartida, cumpre examinar se a aplicação desta cláusula prossegue um objetivo de interesse geral na aceção do artigo 1.°, n.° 3, da diretiva‑quadro ou se pode ser justificada ao abrigo do artigo 106.°, n.° 2, TFUE.
b) Quanto às justificações relativas à prossecução de um objetivo de interesse geral
66. O artigo 1.°, n.° 3, da diretiva‑quadro prevê que esta diretiva e as diretivas específicas não afetam as medidas tomadas a nível comunitário ou nacional, no cumprimento do direito da União, com vista a prosseguir objetivos de interesse geral, em especial relacionados com a regulamentação de conteúdos e a política audiovisual.
67. Resulta do sexto considerando da diretiva‑quadro que os Estados‑Membros podem, no cumprimento do direito da União, aplicar, designadamente, uma política audiovisual e uma regulamentação em matéria de conteúdos com vista à prossecução de objetivos de interesse geral, tais como a liberdade de expressão, o pluralismo dos meios de comunicação, a imparcialidade, a diversidade cultural e linguística, a integração social, a proteção do consumidor e a proteção de menores.
68. No presente processo, embora invoque, na exposição de motivos da sua decisão de reenvio e na sua segunda questão prejudicial, a ideia de que o município de Hilversum atuou através de instrumentos de direito privado para defender os interesses públicos dos seus habitantes, o órgão jurisdicional de reenvio não dá nenhuma indicação sobre a natureza dos interesses defendidos deste modo.
69. O município de Hilversum e o Governo neerlandês alegam, a este respeito, que a cláusula de limitação dos preços, que foi livremente acordada, prossegue um objetivo de proteção dos consumidores. Permite garantir o fornecimento de um serviço de RTV, o pacote analógico básico, a um preço socialmente aceitável, devendo continuar acessível para as famílias de baixos recursos, dado constituir um serviço de utilidade pública fundamental.
70. Ora, como recordei anteriormente, o objetivo do NQR é precisamente assegurar aos utilizadores, pela promoção da concorrência, o máximo benefício em termos de escolha, preço e qualidade de serviços de comunicações eletrónicas (36). É designadamente unicamente às ARN que incumbe, se for o caso, intervir, com imparcialidade e transparência (37), no final de uma análise do mercado, relativamente a uma empresa com um poder significativo no referido mercado, que, na falta de concorrência eficaz, podia manter preços a um nível excessivamente elevado em prejuízo dos utilizadores finais (38).
71. Portanto, e independentemente mesmo do facto de, no caso em apreço, como recordado nos n.os 11 a 13 supra, a OPTA ter precisamente adotado, sob o controlo da Comissão, uma decisão de sentido contrário, a justificação aduzida pelo município de Hilversum e pelo Governo neerlandês não pode ser admitida como tal.
72. No entanto, nos seus articulados, a Comissão abordou a questão de saber se a UPC podia ser considerada como tendo sido encarregada pelo município de Hilversum de um serviço de interesse económico geral na aceção do artigo 106.°, n.° 2, TFUE. Considera, no entanto, que não dispõe de elementos suficientes para responder a esta questão e, consequentemente, propõe que o órgão jurisdicional de reenvio seja chamado a pronunciar‑se a este respeito à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça.
73. É verdade que o Tribunal de Justiça teve a oportunidade de declarar que o artigo 106.°, n.° 2, TFUE, que, mediante certos requisitos, permite derrogações às regras gerais do Tratado, visa conciliar os interesses dos Estados‑Membros em utilizar certas empresas, nomeadamente do setor público, como instrumentos de política económica ou social com o interesse da União em que sejam respeitadas as regras da concorrência e preservada a unidade do mercado comum (39). Tendo em conta o interesse dos Estados‑Membros definido nestes termos, recordado no artigo 14.° TFUE, não pode ser‑lhes proibido terem em consideração, quando definem os serviços de interesse económico geral que confiam a determinadas empresas, objetivos próprios da sua política nacional, nem que tentem realizá‑los através de obrigações e imposições a cargo dessas mesmas empresas (40).
74. Deve, no entanto, ser declarado que o órgão jurisdicional de reenvio não se refere, de modo nenhum, ao artigo 106.°, n.° 2, TFUE, nem mesmo à ideia de que a cláusula de limitação dos preços constitui a manifestação da atribuição, pelo município de Hilversum, de uma missão de interesse económico geral à UPC. De resto, nem o município de Hilversum nem o Governo neerlandês alegaram que a cláusula de limitação dos preços podia ser justificada ao abrigo do artigo 106.°, n.° 2, TFUE. Por sua vez, a UPC não se pronunciou a este respeito. Contestou igualmente na audiência a alegação do município de Hilversum segundo a qual a cláusula de limitação dos preços foi compensada por uma redução do preço de venda da rede por cabo.
75. Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça pode apenas limitar‑se a remeter ao órgão jurisdicional de reenvio a tarefa de analisar se o artigo 106.°, n.° 2, TFUE, tendo em conta a jurisprudência pertinente, é aplicável ao caso em apreço no processo principal (41).
76. Cumpre, mais exatamente, determinar, em primeiro lugar, se se pode considerar que o município de Hilversum efetivamente encarregou a UPC da gestão de um serviço de interesse económico geral e, em caso afirmativo, se a aplicação do direito da União impede o cumprimento da missão específica que, deste modo, lhe foi atribuída (42), implicando este controlo, designadamente, que se determine a natureza das necessidades resultantes da realização da missão de interesse geral em causa (43).
77. Cumpre‑lhe, em seguida, garantir, à luz da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, que as obrigações impostas respeitam plenamente o princípio da proporcionalidade, tendo em conta todas as circunstâncias do processo principal (44).
78. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça declare que os artigos 6.°, 8.° e 13.° da diretiva acesso, os artigos 3.° e 6.°, n.° 2, da diretiva autorização, e os artigos 1.°, n.os 2 e 3, 3.°, 6.° e 7.°, bem como 14.° a 16.° da diretiva‑quadro, devem ser interpretados no sentido de que se opõem, em princípio, à aplicação de uma cláusula de limitação dos preços como a do processo principal, a menos que se demonstre que é justificada pela prossecução de objetivos de interesse geral ou ao abrigo do artigo 106.°, n.° 2, TFUE, e plenamente conforme ao princípio da proporcionalidade, o que incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar.
D — Quanto à incidência do artigo 101.° TFUE (quinta a oitava questões)
79. Tendo em conta as respostas que proponho para as primeiras questões prejudiciais analisadas supra, não se mostra necessário responder à quinta, sexta, sétima e oitava questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, todas relativas à interpretação do artigo 101.° TFUE.
80. Em qualquer caso, pode salientar‑se que não é possível determinar em que medida a situação em causa no processo principal podia ser abrangida pelo artigo 101.° TFUE, dado que o órgão jurisdicional de reenvio não dá nenhuma indicação sobre os motivos que o levam a considerar que o município de Hilversum devia ser considerada uma empresa que celebrou um acordo (45) no âmbito do exercício de atividades económicas (46) no sentido desta disposição.
V — Conclusão
81. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pelo Gerechtshof te Amsterdam:
«1) A Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas, deve ser interpretada no sentido de que é abrangido pelo seu âmbito de aplicação material um serviço que consiste no fornecimento de pacotes de radiotelevisão de acesso livre por cabo, por cuja prestação são cobrados os custos de transmissão e os direitos pagos às organizações de gestão coletiva de direitos de autor pela difusão do conteúdo das obras, quando o referido serviço inclui a transmissão de sinais através de redes de comunicações eletrónicas.
2) Os artigos 6.°, 8.° e 13.° da Diretiva 2002/19/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa ao acesso e interligação de redes de comunicações eletrónicas e recursos conexos, os artigos 3.° e 6.°, n.° 2, da Diretiva 2002/20/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa à autorização de redes e serviços de comunicações eletrónicas, e os artigos 1.°, n.os 2 e 3, 3.°, 6.° e 7.°, bem como 14.° a 16.° da Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas, devem ser interpretados no sentido de que se opõem, em princípio, à aplicação de uma cláusula de limitação dos preços como a do processo principal, a menos que se demonstre que é justificada pela prossecução de objetivos de interesse geral ou ao abrigo do artigo 106.°, n.° 2, TFUE, e plenamente conforme ao princípio da proporcionalidade, o que incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar.»