Language of document : ECLI:EU:C:2010:110

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 3 de Março de 2010 1(1)

Processo C‑46/08

Carmen Media Group Ltd

contra

Land Schleswig‑Holstein,

Innenminister des Landes Schleswig‑Holstein

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht (Alemanha)]

«Livre prestação de serviços – Jogos de fortuna ou azar – Reconhecimento mútuo – Licenças ‘off‑shore’ – Coerência da política nacional em matéria de jogos – Actividade da organização de apostas desportivas submetida a autorização – Disposições transitórias»





I –    Introdução

1.        Num sector não harmonizado como o dos jogos, em que cada um dos Estados‑Membros mantém uma regulamentação diferente, e em que o único elemento comum reside na existência de medidas destinadas a controlar o desenvolvimento da actividade, o grande desafio com o qual o juiz comunitário se confronta consiste em encontrar um campo comum que permita um certo respeito pelas liberdades consagradas pelo Tratado FUE.

2.        O impacto das novas tecnologias torna este problema jurídico bastante mais complexo. Graças aos novos meios de comunicação, os adeptos de jogos já não têm necessidade de se deslocar aos casinos ou a uma casa de jogo, pois têm a possibilidade de jogar a partir de casa, através da Internet ou, inclusivamente, do telemóvel. Além disso, este tipo de jogos em linha não conhece fronteiras; Os jogadores deixaram de estar limitados à oferta de jogos de fortuna ou azar disponíveis no seu próprio Estado‑Membro, uma vez que têm acesso a operadores estrangeiros, alguns dos quais estabelecidos na União Europeia e outros fora desta. O problema do jogo transfronteiriço está no centro da actualidade e os operadores que propõem os seus serviços na Internet deparam‑se com dúvidas quanto à questão de saber se o Estado‑Membro de destino tem ou não o direito de proibir as suas actividades.

3.        No entanto, os problemas não se restringem ao domínio dos jogos em linha. A existência de um monopólio estatal de certos jogos de fortuna ou azar ou as restrições à obtenção de licenças são também susceptíveis de afectar a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços. Por conseguinte, para o Tribunal de Justiça a questão que se coloca tem que ver uma vez mais com a eventual justificação de semelhantes regimes restritivos.

4.        O Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht (tribunal administrativo do Schleswig‑Holstein) (Alemanha) submete ao Tribunal de Justiça algumas destas questões na sequência da nova legislação adoptada pelos Länder em matéria de lotarias e apostas desportivas após o acórdão do Bundesverfassungsgericht (Tribunal constitucional federal) de 28 de Março de 2006 (2).

5.        O caso em apreço apresenta uma clara ligação com os processos apensos Stoß e o. (3), embora estes últimos se inscrevam no âmbito da legislação nacional anterior ao acórdão anteriormente referido. A proximidade das questões suscitadas nestes processos e as preocupações de economia processual que nos devem guiar, levam‑me assim, relativamente a um grande número de elementos do presente processo, a remeter para a exposição mais pormenorizada feita nas minhas conclusões nos processos apensos Stoß e o.

II – Quadro jurídico

A –    Regulamentação comunitária

6.        Até ao momento, o sector dos jogos de fortuna ou azar não foi objecto de harmonização em direito da União. A Directiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (4) exclui‑os expressamente do seu campo de aplicação. Nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea h), desta directiva:

«A presente directiva não se aplica às seguintes actividades:

[…]

h)      Actividades de jogo a dinheiro que impliquem uma aposta com valor monetário em jogos de fortuna ou azar, incluindo lotarias, actividades de jogo em casinos e apostas».

7.        O facto de não existir direito derivado implica a obrigação de recorrer ao direito primário, nomeadamente, no que ao caso em apreço se refere, ao artigo 49.° CE que estatui, no seu primeiro parágrafo, que «as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.»

B –    Legislação alemã

8.        Na Alemanha, as competências em matéria de jogo encontram‑se repartidas entre o Estado federal e os Länder. Na maior parte dos Länder existe um monopólio regional para a organização de apostas desportivas e de lotarias, ao passo que a exploração das máquinas de jogos e dos casinos é confiada a operadores privados devidamente autorizados.

1.      Direito federal

9.        O § 284 do Código Penal (Strafgesetzbuch, a seguir «StGB») estatui:

«(1)      Quem organizar ou possuir publicamente um jogo de azar sem autorização administrativa ou fornecer as instalações necessárias para o efeito está sujeito a uma pena de prisão até dois anos, ou a multa.

[...]

(3)      Quem actuar nos casos previstos no n.° 1

1. de forma profissional [...]

[...] está sujeito a uma pena de prisão de três meses a cinco anos.

[...]»

10.      A competência para determinar as condições em que podem ser concedidas as autorizações previstas no § 284 do StGB pertence aos Länder, exceptuando as apostas relativas aos concursos hípicos oficiais e às máquinas de jogo. A organização das primeiras pode ser autorizada ao abrigo da lei sobre as apostas em corridas e sobre as lotarias (Rennwett und Lotteriegesetz, a seguir «RWLG»), e a instalação e a exploração das segundas nos termos do código relativo ao exercício de profissões artesanais, comerciais e industriais (Gewerbeordnung, a seguir «GewO»).

11.      No caso da autorização das apostas em corridas de cavalos, o § 1 da RWLG dispõe:

«1.      A associação que pretender explorar uma empresa de apostas mútuas em corridas públicas de cavalos ou noutras competições hípicas públicas deve obter previamente a autorização das autoridades competentes em conformidade com o direito do Land.

[…]

3.      Esta autorização só pode ser concedida às associações que garantam destinar exclusivamente os seus rendimentos à criação equídea no Land».

12.      O § 2, n.° 1, da RWLG prescreve:

«Quem, a título comercial, pretender efectuar apostas sobre concursos hípicos públicos ou servir de intermediário de tais apostas (bookmakers) deve obter previamente a autorização das autoridades competentes em conformidade com o direito do Land».

2.      O acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006

13.      Em 28 de Março de 2006, o Bundesverfassungsgericht proferiu um acórdão (5), no qual declarou incompatível com o direito fundamental à liberdade de empresa, consagrado no artigo 12.° da Lei Fundamental, o monopólio das apostas desportivas existente no Land da Baviera, na medida em que a estrutura jurídica, as modalidades de comercialização e a apresentação deste monopólio não tinham como finalidade contribuir de forma activa e consequente para o objectivo de reduzir a paixão pelo jogo e de combater a dependência.

14.      O referido acórdão, que se referia ao Land da Baviera, pode, no entanto, ser também alargado aos monopólios de apostas desportivas que, com características análogas, existiam noutros Länder. O Tribunal Constitucional atribuiu aos legisladores competentes um período transitório, com termo em 31 de Dezembro de 2007, para procederem a uma reestruturação do monopólio em causa, a fim de introduzir um mínimo de coerência com o objectivo de combate à adição (6).

3.      Direito dos Länder

a)      O GlüStV

15.      O Acordo entre os Länder em matéria de jogos de fortuna ou azar na Alemanha (Staatsvertrag zum Glücksspielwesen in Deutschland, a seguir «GlüStV»), em vigor desde 1 de Janeiro de 2008, constitui o novo quadro uniforme criado pelos Länder para regular este sector na sequência do acórdão do Bundesverfassungsgericht, já referido (7).

16.      O § 1 do GlüStV enuncia os objectivos deste acordo celebrado pelos Länder:

«1.      prevenir a dependência dos jogos de fortuna ou azar e das apostas e criar as condições para lutar de modo eficaz contra a dependência,

2.      limitar a oferta de jogos de fortuna ou azar e canalizar de forma organizada e controlada o instinto de jogo da população, prevenindo, nomeadamente, um aumento descontrolado dos jogos de fortuna ou azar não autorizados,

3.      garantir a protecção dos menores e dos jogadores,

4.      assegurar o bom desenvolvimento dos jogos de fortuna ou azar, a protecção dos jogadores contra manobras fraudulentas e prevenir tanto a criminalidade associada aos jogos de fortuna ou azar como a resultante dos mesmos.»

17.      Nos termos do § 10 do GlüStV, a fim de alcançar estes objectivos, «os Länder têm a obrigação regulamentar de garantir uma oferta de jogos de fortuna ou azar suficiente» (n.° 1), podendo assumir esta missão «quer por si próprios quer por intermédio de pessoas colectivas de direito público ou de sociedades de direito privado que tenham uma participação directa ou indirecta determinante de pessoas colectivas de direito público.» (n.° 2).

18.      O § 4 do GlüStV prescreve que a organização ou a mediação de jogos de fortuna ou azar públicos apenas poderá ter lugar mediante a autorização da autoridade competente do respectivo Land (n.° 1). A autorização será recusada se a organização ou a mediação forem contrárias aos objectivos do n.° 1 e se, em qualquer caso, não existir o direito à obtenção da autorização (n.° 2).

19.      Este artigo proíbe qualquer organização ou mediação de jogos de fortuna ou azar públicos na Internet (n.° 4). No entanto, o § 25 do GlüStV, que contém um conjunto de disposições transitórias, prevê que os Länder possam autorizar, pelo período máximo de um ano a contar da entrada em vigor do GlüStV, a organização ou a mediação de lotarias na Internet, caso não existam razões para as recusar e caso estejam preenchidos certos requisitos suplementares (garantia da exclusão dos menores e de jogadores interditados, limitação das apostas a 1 000 euros por mês, proibição de crédito e de participação interactiva com a publicação de resultados em tempo real, por exemplo).

b)      Legislação do Land de Schleswig‑Holstein

20.      A Lei do Land de Schleswig‑Holstein de aplicação do GlüStV (Gesetz des Landes Schleswig‑Holstein zur Ausführung des Staatsvertrages zum Glücksspielwesen in Deutschland, a seguir «GlüStV AG»), de 13 de Dezembro de 2007, aplica‑se à organização, à exploração ou à mediação de lotarias e de apostas desportivas, mas não à exploração ou à mediação de apostas efectuadas em corridas de cavalos públicas (§ 3). Em conformidade com o n.° 2 do § 4 do GlüStV AG, o Land trata essa matéria através da NordwestLotto Schleswig Holstein GmbH & Co. KG.

III – Processo principal e questões prejudiciais

21.      A Carmen Media Group Ltd (a seguir «Carmen Media») obteve do Governo de Gibraltar, onde esta sociedade tem a sua sede, uma licença de jogo extraterritorial, limitada ao «remote gambling / fixed‑odds bets for offshore bookmaking», que, no entanto, a autorizava unicamente a organizar apostas fora do território de Gibraltar.

22.      A Carmen Media pretendia oferecer na Internet apostas desportivas na Alemanha, tendo, portanto, apresentado, em 10 de Fevereiro de 2006, um pedido ao Land de Schleswig‑Holstein no qual requeria que este reconhecesse o carácter lícito desta actividade, considerando a licença de que é titular em Gibraltar, ou, a título subsidiário, que emitisse uma autorização em conformidade com o direito nacional.

23.      Confrontada com o indeferimento do seu pedido, a Carmen Media apresentou, em 30 de Junho de 2006, um recurso para o Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht, alegando que o monopólio estatal em matéria de apostas desportivas é contrário ao direito da União, uma vez que é incompatível com a livre prestação de serviços prevista no artigo 49.° CE.

24.      No despacho de reenvio, o Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht dá conta das suas dúvidas consideráveis no respeitante à compatibilidade da legislação alemã sobre o jogo com o direito comunitário e submete ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que, para poder invocar […] a livre prestação de serviços, é necessário que o prestador também esteja autorizado, nos termos da legislação do Estado‑Membro em que está estabelecido, a prestar os seus serviços nesse Estado‑Membro – neste caso: a limitação da licença para jogos de [fortuna ou] azar em Gibraltar ao «offshore bookmaking»?

2)      O artigo 49.° deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um monopólio estatal de organização das apostas desportivas e lotarias (que envolvam um potencial de risco não negligenciável) estabelecido essencialmente para combater o perigo de [dependência do] jogo, [quando], nesse Estado‑Membro, outros jogos de [fortuna ou] azar que envolv[em] um risco considerável de dependência [podem] ser explorados por prestadores [de serviços privados] e os diferentes regimes jurídicos das apostas desportivas e lotarias, por um lado, e de outros jogos de [fortuna ou] azar, por outro, decorrem das diferentes competências legislativas dos Länder e do [Estado federal]?

No caso de resposta afirmativa à segunda questão:

3)      O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um regime nacional que confere às autoridades competentes um poder discricionário para a emissão de licenças de organização e mediação de jogos de [fortuna ou] azar, mesmo que estejam preenchidos os requisitos legais para a concessão da licença?

4)      O artigo 49.° deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um regime nacional que proíbe a organização e a mediação de jogos públicos de [fortuna ou] azar na Internet, em especial quando seja simultaneamente permitida – embora apenas durante um período transitório de um ano – a organização e a mediação na Internet, com observância das disposições de protecção [dos menores] e dos jogadores, para compensar [equitativamente] dois operadores profissionais de apostas, que até à data operavam exclusivamente na Internet, facilitando a sua adaptação aos canais de comercialização permitidos pelo [Tratado entre os Länder]?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

25.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 8 de Fevereiro de 2008.

26.      A demandante (Carmen Media) e o demandado (o Land Schleswig Holstein) no processo principal, bem como os Governos alemão, austríaco, belga, espanhol, grego, neerlandês e norueguês e a Comissão das Comunidades Europeias apresentaram alegações escritas.

27.      Na audiência, que teve lugar em 8 de Dezembro de 2009, apresentaram alegações orais os representantes da Carmen Media, do Land Schleswig‑Holstein e do Innenminister des Landes Schleswig‑Holstein, os governos alemão, belga, grego, italiano, português e norueguês, bem como a Comissão.

V –    Análise da primeira questão prejudicial

28.      Através da sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal se o artigo 49.° CE exige, para que se possa invocar o direito à livre prestação de serviços, que o prestador esteja também em condições de exercer a sua actividade no Estado‑Membro onde se encontra estabelecido, em conformidade com a legislação desse Estado.

29.      A dúvida surgiu em razão do facto de a sociedade Carmen Media ter obtido das autoridades de Gibraltar, onde tem a sua sede, uma licença para jogos de fortuna ou azar limitada ao «offshore bookmaking», ou seja, uma licença extraterritorial, a qual não lhe permite organizar apostas no território de Gibraltar, mas apenas – pelo menos teoricamente – no estrangeiro.

30.      Questionado sobre este aspecto na audiência, o representante da Carmen Media não refutou que a sociedade estivesse submetida, no momento da ocorrência dos factos, à proibição de organizar jogos de fortuna ou azar em Gibraltar. Ora, resulta claramente das suas alegações escritas que, de facto, tal restrição existia, se não sob a forma de uma proibição em sentido estrito, muito claramente sob a forma de uma limitação do seu campo de acção (8).

31.      No mesmo articulado, a Carmen Media especifica que esta limitação (9) se devia exclusivamente a motivos de ordem fiscal, mais concretamente ao facto de ter optado por um regime fiscal mais favorável (o denominado «estatuto de sociedade isenta»), sujeito à condição de «não manter nenhuma relação comercial com pessoas estabelecidas em Gibraltar» (10). Afirma também que esta restrição não visava proteger os cidadãos de Gibraltar contra a oferta dos operadores de jogos de fortuna ou azar e que a sua eliminação teria sido possível sem ter de se submeter a um novo procedimento de autorização, ainda que, para obter tal autorização, a Carmen Media tivesse de renunciar ao seu regime fiscal especial.

32.      O órgão jurisdicional de reenvio procura determinar se, nos termos do artigo 49.° CE, uma autorização desse tipo permitiria à Carmen Media desenvolver a sua actividade em território alemão sem ter de obter uma nova licença junto das autoridades do respectivo Land, ou se o facto de não poder organizar jogos no seu próprio território de origem obstava à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo.

33.      O reconhecimento mútuo é um instrumento que visa garantir aos operadores o acesso ao mercado em todos os Estados‑Membros, mesmo em sectores onde existem diferenças de regime importantes (11). Segundo a jurisprudência, para alcançar este objectivo, é necessário encontrar o equilíbrio entre as exigências dos diferentes Estados‑Membros em causa, de modo a que o Estado‑Membro onde o serviço é prestado não se veja obrigado a redobrar os controlos e as condições já impostas no Estado‑Membro de origem do prestador.

34.      É o que resulta do acórdão de 17 de Dezembro de 1981, Webb (12), no qual o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 17, que «a livre prestação de serviços, enquanto princípio fundamental do Tratado, só pode ser limitada por regulamentações justificadas por razões imperiosas de interesse geral […], na medida em que este interesse não seja salvaguardado pelas regras a que o prestador está submetido no Estado‑Membro onde se encontra estabelecido» (13).

35.      No âmbito do reconhecimento mútuo, esta afirmação pressupõe que o Estado‑Membro de destino possa impor, com vista à realização de determinado interesse geral (14), a obtenção de uma autorização para a prestação dos serviços, devendo, no entanto, considerar apropriada a licença concedida pelas autoridades de outro Estado‑Membro quando esta garanta a satisfação das condições objectivamente necessárias para a prossecução do mesmo objectivo de interesse geral. Em última análise, se a exigência de uma autorização prévia é legítima do ponto de vista comunitário (na medida em que, segundo a jurisprudência, possa ser justificada por razões de interesse geral), também o é relativamente a uma empresa estabelecida noutro Estado‑Membro, desde que esta não se tenha já conformado com as referidas condições que visam prosseguir o mesmo objectivo no Estado‑Membro de estabelecimento.

36.      Uma licença extraterritorial, como a que está em causa no processo principal, dificilmente poderá preencher tais condições. Na medida em que as próprias autoridades do Estado‑Membro de origem não permitem o exercício desta actividade no seu território, a ideia de que, mediante a sua intervenção, o interesse geral que preocupa outro Estado‑Membro está suficientemente protegido desvanece‑se por si própria. O reconhecimento mútuo só é possível se o Estado‑Membro de origem tiver efectuado controlos análogos aos exigidos no Estado‑Membro de destino.

37.      Daqui resulta que a livre prestação de serviços só pode ser invocada quando a actividade em causa possa ser legalmente prestada no Estado‑Membro de estabelecimento.

38.      Esta ideia foi expressamente acolhida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça respeitante à livre prestação de serviços, a qual especificou que constituem restrições ao disposto no artigo 49.° CE não só as que comportam discriminações baseadas na nacionalidade, mas também as que, embora não sendo discriminatórias, sejam susceptíveis de «impedir, entravar ou tornar menos atractivas as actividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde preste legalmente serviços análogos» (15).

39.      Contrariamente a este entendimento, a Comissão invoca o acórdão de 30 de Setembro de 2003, Inspire Art (16), no qual o Tribunal de Justiça declarou que o facto de uma sociedade não exercer qualquer actividade no Estado‑Membro em que tem a sua sede e exercer as suas actividades única ou principalmente no Estado‑Membro da sua sucursal não basta para negar à sociedade em causa a aplicação das disposições comunitárias relativas ao direito de estabelecimento (17).

40.      Em meu entender, não é pertinente invocar este acórdão, já que os critérios são diferentes quando se trata da livre prestação de serviços. Além disso, o Tribunal estabelece uma nítida diferença a este propósito entre as duas liberdades, mostrando‑se mais rigoroso no que respeita à liberdade de estabelecimento. Daí que no acórdão Säger, já referido, tenha enunciado que um «Estado‑Membro não pode sujeitar a realização da prestação de serviços no seu território ao cumprimento de todas as condições exigidas a um estabelecimento» (n.° 13), ao passo que a restrição à livre prestação de serviços que consista numa autorização administrativa nacional é susceptível de ser justificada por razões de interesse geral (n.os 14 e 15).

41.      Por conseguinte, uma empresa pode estabelecer‑se no Estado‑Membro A, cujas disposições em matéria de direito das sociedades sejam menos rigorosas, e desenvolver toda a sua actividade no Estado‑Membro B, nos termos do direito de estabelecimento consagrado pelo Tratado (artigo 43.° CE). No entanto, do ponto de vista da livre prestação de serviços, a situação é diferente, não se podendo inferir do acórdão Inspire Art, já referido, que a empresa em causa possa operar sem autorização no mercado do Estado‑Membro B pela simples razão de se encontrar estabelecida no Estado‑Membro A, apesar de as autoridades deste último Estado não lhe permitirem prestar este mesmo serviço no seu território.

42.      Em meu entender, esta conclusão também não pode ser refutada invocando o acórdão de 5 de Junho de 1997, VT4 (18), no qual o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 22, que «o Tratado não proíbe uma empresa de exercer a liberdade de prestação de serviços quando não oferece serviços no Estado‑Membro em que está estabelecida». (19) No caso em apreço, o elemento importante não é o facto de a Carmen Media não oferecer o serviço de organização de apostas no território do seu Estado‑Membro de estabelecimento (o que, em si, não constituiria um obstáculo para se poder invocar a liberdade de prestação de serviços, em conformidade com a jurisprudência referida), mas sim o facto de não estar autorizada a fazê‑lo em virtude de possuir uma licença de natureza exclusivamente extraterritorial ou «off‑shore».

43.      O facto de esta restrição se dever a uma opção voluntária da própria Carmen Media para beneficiar de um regime fiscal mais favorável em nada altera a circunstância de, quando pediu para ser reconhecida como operadora legal de jogos na Alemanha, apenas possuía uma autorização que não lhe permitia prestar este mesmo serviço no seu local de origem. Além disso, mesmo que a empresa pudesse ter obtido esta autorização para operar em Gibraltar, renunciando simplesmente aos benefícios fiscais de que gozava, não restam dúvidas de que optou por manter estes benefícios e, por conseguinte, suportar as restrições a eles associadas.

44.      Independentemente das razões – fiscais ou de outra natureza – que incitam um Estado‑Membro a agir deste modo, por que motivo este Estado‑Membro que emite as licenças extraterritoriais assumiria a obrigação de controlar suficientemente a prestação do serviço em causa? Por que é que os Estados‑Membros deveriam aceitar uma autorização que não é válida para aqueles que a emitiram?

45.      Tendo em conta estas circunstâncias, parece legítimo pensar que as autoridades de Gibraltar não terão provavelmente garantido o controlo e as condições que poderiam tornar inútil a intervenção das autoridades alemãs. O princípio de reconhecimento mútuo implica que se tenha confiança no controlo exercido pelo Estado de estabelecimento sobre uma empresa estabelecida no seu território. Porém, se um Estado‑Membro concedeu apenas uma licença «off‑shore», podemos questionar‑nos se devemos ter confiança no seu controlo. Por conseguinte, o controlo por parte das autoridades alemãs não é redundante, e o reconhecimento mútuo destinado a evitar um duplo controlo não tem razão de ser.

46.      Outra solução poderia, pelo menos teoricamente, favorecer um abuso indesejável do mercado interno, como é sublinhado, com razão, pelo Governo belga nas suas alegações. Não há dúvidas de que o Tribunal de Justiça aprecia este tipo de abuso de forma estrita (20), mas é difícil considerar que tais autorizações extraterritoriais constituam um comportamento susceptível de favorecer a confiança recíproca entre os Estados‑Membros.

47.      Por estes motivos, considero que, para poder invocar o direito à livre prestação de serviços, é indispensável que a licença concedida pelo Estado‑Membro de estabelecimento autorize o prestador a prestar o serviço em causa no Estado‑Membro onde se encontra estabelecido.

48.      No entanto, o problema não se coloca nestes termos no sector dos jogos de fortuna ou azar, já que, como exponho amplamente nas conclusões que apresento nos processos apensos Stoß e o. (21), no estado actual do direito da União, o reconhecimento mútuo das licenças de jogo afigura‑se impossível de aplicar. São três as circunstâncias que me levam a esta conclusão.

49.      Em primeiro lugar, o funcionamento homogéneo de um sistema de reconhecimento mútuo em matéria de jogo afigura‑se incompatível com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que admite de forma clara e inequívoca os monopólios e outras restrições impostas aos operadores no sector dos jogos de fortuna ou azar, desde que estejam preenchidas determinadas condições (22). Se um Estado‑Membro onde foi instaurado um monopólio em matéria de jogo, com observância das exigências do Tratado, fosse obrigado a tomar em consideração as autorizações concedidas pelos outros Estados‑Membros, a jurisprudência supracitada seria inaplicável e esvaziada do seu sentido.

50.      Em segundo lugar, o reconhecimento mútuo parece impossível na falta de uma harmonização do sector do jogo, a qual não se vislumbra no horizonte imediato. Sem harmonização, a aplicação da liberdade de circulação continuaria a ser limitada, e a tarefa do juiz consiste precisamente em delimitar as restrições que, neste sector não harmonizado, são compatíveis com as disposições do Tratado.

51.      Em terceiro lugar, a inexistência de uma cooperação administrativa suficientemente organizada torna difícil a criação de um sistema de reconhecimento mútuo neste sector.

52.      Por conseguinte, a primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional administrativo de reenvio assenta numa premissa errada, impondo‑se responder à mesma refutando a premissa principal, dado que as autoridades alemãs não estão obrigadas, nas circunstâncias do processo principal, a reconhecer uma licença de jogo emitida pelas autoridades de outro Estado‑Membro, independentemente das condições a que tal licença tenha sido submetida.

VI – Análise da segunda questão prejudicial

A –    Análise individualizada das restrições em matéria de jogo: remissão para as conclusões nos processos apensos Stoß e o.

53.      Através da sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se o artigo 49.° CE se opõe a um monopólio de Estado em matéria de organização de apostas desportivas e de lotarias instaurado essencialmente com o objectivo de lutar contra o risco de dependência do jogo, quando, no mesmo Estado‑Membro, existem outros jogos de fortuna ou azar que apresentam um potencial de risco de dependência importante, que podem ser fornecidos por prestadores de serviços privados.

54.      Esta questão foi colocada em termos idênticos nos processos apensos Stoß e o., já referidos. Por razões de economia processual, remeto portanto, no essencial, para a análise dos referidos processos que efectuo nas minhas conclusões (23). Nessas conclusões, considero que, à luz da vasta jurisprudência que existe nesta matéria, a análise dos sistemas jurídicos que regulam os jogos nos Estados‑Membros deve ser feita a partir de um prisma sectorial, examinando isoladamente cada restrição e cada jogo. Por conseguinte, face ao direito da União, a natureza legítima ou ilegítima da opção monopolística efectuada relativamente a certos jogos será determinada pela sua coerência ou incoerência em relação ao objectivo prosseguido, bem como pela sua natureza discriminatória ou não discriminatória e pela sua proporcionalidade, mas em caso algum há que proceder à sua apreciação relativamente à opção regulamentar efectuada em relação a outros jogos de fortuna ou azar no mesmo Estado‑Membro.

55.      De qualquer modo, e independentemente desta discussão, entendo que a decisão legislativa que consiste em instituir um monopólio em relação a certos jogos e em deixar os restantes entregues ao sector privado não é, a priori, incoerente com o objectivo de luta contra a fraude nem com o de limitação das ocasiões de jogo num Estado‑Membro, desde que as autoridades públicas garantam um certo controlo sobre os operadores privados e a oferta de jogos objecto do monopólio seja inferior à que poderia resultar da presença de um operador privado (24). Caso estes requisitos estejam reunidos, as circunstâncias evocadas não se opõem a uma política de jogos coerente e sistemática na esteira da jurisprudência. Compete ao juiz nacional verificar se os referidos requisitos estão satisfeitos.

B –    A estrutura territorial do Estado não tem incidência nesta apreciação

56.      A questão prejudicial do Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht apresenta, contudo, uma diferença relativamente à que foi colocada pelo Verwaltungsgericht Gießen e pelo Verwaltungsgericht Stuttgart, dado que o primeiro destes órgãos jurisdicionais também evoca a incidência que é susceptível de ter sobre a conclusão acima referida o facto de os diferentes regulamentos sobre as apostas desportivas e as lotarias, por um lado, e sobre os outros jogos de fortuna ou azar, por outro, se deverem às diferentes competências legislativas dos Länder e do Estado federal.

57.      Segundo jurisprudência assente, os Estados‑Membros não podem invocar disposições, práticas ou situações da sua ordem jurídica interna para justificar, no âmbito de um procedimento por incumprimento, uma violação do direito da União (25), nem, em caso de danos causados aos particulares pelo desrespeito do direito da União, eximir‑se à sua responsabilidade invocando a repartição das competências e das responsabilidades existentes na sua ordem jurídica interna (26). Independentemente do órgão que esteja na origem do incumprimento, o Estado, como entidade unitária, é responsável, mesmo que se trate de uma «instituição constitucionalmente independente» (27).

58.      Em meu entender, esta jurisprudência é igualmente aplicável a um caso como o do processo principal, em que a questão em análise consiste em saber se uma política nacional e a respectiva legislação violam as disposições do Tratado em matéria de liberdades. Por conseguinte, entendo que a repartição territorial das competências no âmbito de um Estado não deve ter incidência na apreciação da compatibilidade da legislação nacional com o direito comunitário.

59.      A complexidade da estrutura territorial interna de um Estado‑Membro, em especial a repartição das competências sobre determinada matéria entre duas entidades territoriais distintas (no caso em apreço, o Estado federal e os Länder), não põe em perigo, em si mesma, a coerência da política nacional em análise (que deve ser examinada a nível nacional), mas não pode, em contrapartida, servir de desculpa para eventuais incoerências ou para uma eventual discriminação (28).

VII – Análise da terceira questão prejudicial

60.      Na sua terceira questão, o autor do reenvio pergunta ao Tribunal se o artigo 49.° CE se opõe a uma legislação nacional que deixa à discricionariedade da autoridade encarregada de emitir as autorizações a concessão de uma autorização para a organização e a mediação de jogos de fortuna ou azar, mesmo quando estejam preenchidos os requisitos previstos na lei para tal concessão.

61.      O órgão jurisdicional de reenvio entende que esta questão só é pertinente no caso de o sistema de monopólio alemão se opor ao Tratado. No entanto, em meu entender, a questão é pertinente mesmo que o juiz nacional, seguindo os critérios determinados no acórdão do Tribunal de Justiça, venha declarar que a coexistência de um monopólio de certos jogos e da exploração por operadores privados de outros jogos não se opõe ao Tratado. Nesse caso, o procedimento de autorização seria aplicável a estes últimos.

62.      O regime de autorização administrativa prévia também constitui uma restrição às liberdades de circulação, a qual pode ser justificada desde que não seja discriminatória, vise garantir a realização de um objectivo de interesse geral e seja adequada à sua prossecução e proporcional a este (29).

63.      No entanto, segundo jurisprudência assente, a estes critérios haverá que acrescentar outros, a fim de que esta autorização, na medida em que é susceptível de implicar que a liberdade em causa esteja submetida ao poder discricionário da administração, não torne esta liberdade ilusória (30).

64.      Neste sentido, o Tribunal de Justiça declarou que, para que um regime de autorização administrativa prévia que derroga as liberdades fundamentais seja justificado, deve, por um lado, basear‑se em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, de modo a enquadrar os limites do exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais, a fim de este não poder ser utilizado de forma arbitrária e, por outro, assentar num sistema processual facilmente acessível e adequado a garantir aos interessados que o seu pedido será tratado dentro de um prazo razoável e com objectividade e imparcialidade, devendo além disso as eventuais recusas de autorização poder ser impugnadas no quadro de um recurso jurisdicional (31).

65.      Os poderes da administração devem, portanto, estar sujeitos a certos limites que impeçam a sua utilização abusiva, mas o juiz comunitário não exige que a faculdade de autorização seja integralmente regulada. Caso contrário, a restrição do número de operadores, por vezes permitida pela jurisprudência (32), não teria razão de existir e a realização dos objectivos de interesse geral que justificam tal restrição à livre prestação de serviços poderia mesmo ser entravada (33).

66.      Por conseguinte, desde que o procedimento estabelecido seja objectivo, transparente e não discriminatório, e que a decisão adoptada possa ser objecto de recurso, a administração pode conservar uma certa margem de apreciação, de modo a encontrar a solução mais adequada para cada situação. É esta a razão pela qual o § 4, n.° 2, do GlüStV especifica que não existe um direito adquirido à obtenção da autorização.

VIII – Análise da quarta questão prejudicial

67.      Na sua quarta e última questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma proibição absoluta de organização e de mediação de jogos de fortuna ou azar na Internet é compatível com o artigo 49.° CE, quando, simultaneamente, a legislação nacional permite a certos operadores continuar a propor estes jogos na Internet durante um período transitório de um ano.

68.      Através desta questão, o Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht pretende saber se o § 4, n.° 4, do GlüStV, que proíbe a organização ou a mediação de jogos de fortuna ou azar públicos na Internet, é compatível com o Tratado (34).

69.      O Tribunal de Justiça decidiu que outras proibições gerais, como as que se referem a uma determinada modalidade de jogos, são compatíveis com o Tratado (35). Assim sendo, nada se opõe à eventual legitimidade da proibição que tenha por objecto um suporte de jogo em especial, como a Internet. A medida não é discriminatória, dado que afecta tanto os operadores alemães como os estrangeiros (36), podendo ser adequada à protecção dos jogadores e a uma diminuição da ludopatia, atendendo às particularidades específicas do jogo na Internet (perigosidade específica ao nível da dependência, uma vez que o jogo tem lugar em privado, é acompanhado de uma oferta praticamente ilimitada – várias «janelas» de jogo podem ser abertas simultaneamente –, e está disponível 24 horas por dia e 365 dias por ano).

70.      Por conseguinte, a exemplo de outras proibições que afectam de forma menos acentuada a livre prestação de serviços, uma proibição desta natureza poderia ser justificada por razões de interesse geral e ser compatível com o Tratado, desde que não seja discriminatória e respeite os critérios de coerência e de proporcionalidade. É certo que alguns aspectos poderiam levar‑nos a duvidar da sua proporcionalidade, uma vez que, a par de outras medidas menos restritivas (como o próprio monopólio), uma proibição total poderia ter como efeito que a procura do jogo fosse canalizada para páginas Internet não lícitas. Do mesmo modo, a decisão poderia ser contrária à manutenção simultânea de um monopólio destes mesmos jogos (mesmo que não sejam oferecidos na Internet), baseada na necessidade de canalizar a apetência pelo jogo. Contudo, compete ao juiz nacional apreciar o conjunto destas questões.

71.      No entanto, o órgão jurisdicional que procedeu ao reenvio prejudicial não põe em causa a proibição de jogo na Internet em termos abstractos e gerais, mas apenas em relação à disposição transitória que permite aos Länder manter a organização e a mediação de lotarias na Internet pelo período de um ano a contar da data da entrada em vigor do GlüStV, desde que não existam razões objectivas para as recusar e estejam preenchidos outros requisitos suplementares.

72.      De acordo com a exposição de motivos do GlüStV, esta medida transitória tinha como finalidade permitir aos operadores de jogos de fortuna ou azar que desenvolviam a sua actividade praticamente de forma exclusiva na Internet adaptarem‑se ao novo quadro legal, voltando‑se para os novos canais de comercialização por ele permitidos (37). Trata‑se, por conseguinte, de uma decisão que visa proteger a segurança jurídica dos operadores, que, até à data da proibição, actuavam no âmbito de um regime não restritivo.

73.      O Tribunal de Justiça recordou, por diversas vezes, a importância do princípio da segurança jurídica, que faz parte da ordem jurídica comunitária e deve ser respeitado tanto pelas instituições comunitárias como pelos Estados‑Membros no exercício dos poderes que lhes são conferidos pelo direito da União (38).

74.      Tendo em conta as exigências que decorrem deste princípio, as directivas comunitárias prevêem normalmente um prazo razoável, a contar da sua entrada em vigor, para a sua transposição e aplicação, e a jurisprudência considera que, por parte dos Estados‑Membros, poderá ser justificado o adiamento temporário da adaptação de diversas situações – factuais e jurídicas – ao direito da União.

75.      No acórdão de 17 de Julho de 2008, ASM Brescia (39), por exemplo, o Tribunal de Justiça permitiu, ao abrigo do princípio da segurança jurídica, a prorrogação do período de validade de uma concessão de distribuição de gás contrária aos artigos 49.° e 86.° CE. Existem também vários acórdãos em que o Tribunal de Justiça, invocando o princípio da segurança jurídica, no exercício do poder que lhe é conferido pelo segundo parágrafo do artigo 231.° CE, indica os efeitos de um regulamento anulado que se devem considerar subsistentes (40).

76.      Ora, na medida em que se considere que o princípio da segurança jurídica é uma das razões imperiosas de interesse geral que podem ser invocadas pelos Estados‑Membros para manter provisoriamente uma regra ou uma situação contrária às liberdades consagradas pelo Tratado, dever‑se‑á afirmar, por maioria de razão, a legitimidade de uma decisão que adia a restrição de uma das referidas liberdades, concedendo aos interessados um prazo para se adaptarem às novas exigências da legislação nacional.

77.      Entendo, do mesmo modo, que a decisão de diferir a entrada em vigor da proibição de jogos na Internet não prejudicaria a coerência desta medida restritiva nem colocaria em perigo a realização dos objectivos de interesse geral por ela prosseguidos.

78.      Primeiramente, mesmo que a proibição dos jogos de fortuna ou azar na Internet possa ser justificada em virtude do elevado risco de dependência que comportam, não parece que a necessidade de os banir seja de tal forma premente que deva prevalecer sobre as exigências decorrentes do princípio da segurança jurídica.

79.      Em seguida, não nos podemos esquecer de que o período transitório estabelecido no § 25, n.° 6, do GlüStV está sujeito a importantes requisitos e exigências. Em primeiro lugar, apenas é aplicável às lotarias, mas não às apostas desportivas, cuja organização e mediação na Internet são proibidas desde a entrada em vigor do GlüStV, devido à sua perigosidade específica. Em segundo lugar, a autorização transitória de lotarias na Internet está sujeita a várias exigências e restrições destinadas a evitar os riscos que este tipo de jogo pode comportar. Assim, esta disposição impõe uma garantia de exclusão dos menores e dos jogadores interditados, limita o montante das apostas a 1 000 euros mensais e proíbe o crédito e a participação interactiva com a publicação dos resultados em tempo real, por exemplo.

80.      Em definitivo, como é especificado no despacho de reenvio das questões prejudiciais, a disposição transitória introduzida pelo GlüStV constitui uma compensação adoptada por razões de equidade que respeita as normas relativas à protecção dos menores e dos jogadores. Daí que considere que a previsão de uma tal disposição não é incoerente com a proibição do jogo na Internet, dado que visa facilitar a transição para o novo quadro legal da forma mais apta a garantir a observância dos objectivos de interesse geral prosseguidos e do princípio da segurança jurídica.

IX – Conclusão

81.      À luz das considerações procedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que se digne responder às questões prejudiciais colocadas pelo Schleswig Holsteinisches Verwaltungsgericht, declarando que:

«1)      O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que, para poder invocar a livre prestação de serviços, é necessário que a licença concedida pelo Estado‑Membro de estabelecimento autorize o prestador a fornecer o serviço em causa no Estado‑Membro onde se encontra estabelecido. No entanto, o reconhecimento mútuo de autorizações em matéria de jogo não é viável no estado actual do direito da União Europeia.

2)      O artigo 49.° CE é compatível com um monopólio estatal em matéria de organização de apostas desportivas e de lotarias, estabelecido essencialmente para combater o perigo de dependência do jogo, mesmo quando, nesse Estado‑Membro, existam outros jogos de fortuna ou azar que envolvam um potencial de risco não negligenciável que possam ser explorados por prestadores privados de serviços, desde que as autoridades públicas garantam um certo controlo sobre os operadores privados e a oferta de jogos objecto do monopólio seja inferior à que poderia resultar da presença de um operador privado. Caso estes requisitos estejam reunidos, as circunstâncias evocadas não se opõem a uma política de jogos coerente e sistemática na esteira da jurisprudência. Compete ao juiz nacional verificar se os referidos requisitos estão satisfeitos.

A repartição das competências legislativas em matéria de jogos entre o Estado federal e os Länder não põe em perigo a coerência da política nacional em análise (que deve ser analisada globalmente a nível nacional), mas não pode, em contrapartida, servir de desculpa para eventuais incoerências.

3)      O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que deixa à discricionariedade da autoridade encarregada da emissão das autorizações a concessão de uma autorização para a organização e a mediação de jogos de fortuna ou azar, desde que o procedimento estabelecido seja objectivo, transparente e não discriminatório, e que a decisão adoptada possa ser objecto de recurso.

4)      O artigo 49.° CE não se opõe a uma legislação nacional que proíbe a organização e a mediação de jogos públicos de fortuna ou azar na Internet, desde que a medida seja coerente com o objectivo de interesse geral invocado como justificação, e seja proporcionada a esse objectivo, e, apesar de, simultaneamente, a organização e a mediação na Internet serem, com observância das disposições relativas à protecção dos menores e dos jogadores, permitidas por razões de equidade, tendo por objecto especificamente as pessoas que operavam até à data exclusivamente na Internet».


1 – Língua original: francês.


2 – BVerfG. I BvR 1054/01.


3 – Processos C‑316/07, C‑358/07, C‑359/07, C‑360/07, C‑409/07, C‑410/07, nos quais apresentei as minhas conclusões hoje mesmo.


4 – JO L 376, p. 36.


5 – BVerfG, I BvR 1054/01.


6 – BVerfG, 1 BvR 1054/01, n.° 148 e seguintes, no qual este Tribunal especifica as condições exigidas para harmonizar – do ponto de vista normativo e organizacional – o monopólio das apostas com a Lei Fundamental.


7 – O GlüStV substitui o Acordo entre os Länder em matéria de lotarias na Alemanha (Staatsvertrag zum Lotteriewesen in Deutschland, a seguir «LottStV»), que tinha entrado em vigor em 1 de Julho de 2004.


8 – «A licença emitida em Gibraltar para a organização de apostas desportivas na Internet estava inicialmente limitada […] às ofertas propostas fora de Gibraltar» (alegações da Carmen Media, n.° 11).


9 – O referido regime terá, de qualquer modo, desaparecido em 2006.


10 – Subsecção c) da secção 3.ª do Despacho de 1983 sobre as empresas (Fiscalidade e Concessões).


11 – Amstrong, K. A., «Mutual Recognition» no The Law of the single European Market Unpacking premises, sob a direcção de Barnard, C. e Scott, J., Hart Publishing, 2002, p. 230.


12 – 279/80, Recueil, p. 3305.


13 – V., neste sentido, acórdãos de 25 de Julho de 1991, Säger (C‑76/90, Colect., p. I‑4221) n.° 15; de 9 de Agosto de 1994, Vander Elst (C‑43/93, Colect., p. I‑3803), n.° 16; de 28 de Março de 1996, Guiot (C‑272/94, Colect., p. I‑1905), n.° 11; de 23 de Novembro de 1999, Arblade e o. (C‑369/96 e C‑376/96, Colect., p. I‑8453), n.° 34; e de 15 de Março de 2001, Mazzoleni e ISA (C‑165/98, Colect., p. I‑2189, n.° 25).


14 – Por exemplo, a protecção dos consumidores ou a luta contra a criminalidade num determinado sector.


15 – Sublinhado meu. V., neste sentido, acórdãos Säger, já referido (n.° 12); Guiot, já referido (n.° 10); e de 12 de Dezembro de 1996, Reisebüro Broede (C‑3/95, Colect., p. I‑6511, n.° 25).


16 – C‑167/01, Colect., p. I‑10155.


17 – N.° 139.


18 – C‑56/96, Colect., p. I‑3143.


19 – V., neste sentido, acórdão de 9 de Março de 1999, Centros (C‑212/97, Colect., p. I‑1459), n.° 27.


20 – Por exemplo, o acórdão Inspire Art, já referido, sobre a liberdade de estabelecimento (n.° 139).


21 – N.os 90 a 105.


22 – Acórdãos de 21 de Setembro de 1999, Läärä e o. (C‑124/97, Colect., p. I‑6067); de 11 de Setembro de 2003, Anomar e o. (C‑6/01, Colect., p. I‑8621); e de 8 de Setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International (C‑42/07, ainda não publicado na Colectânea).


23 – N.os 61 a 76.


24 – N.° 74 das minhas conclusões nos processos apensos Stoß e o., já referidos.


25 – Acórdãos de 15 de Dezembro de 1982, Comissão/Países Baixos (106/82, Recueil, p. 4637, n.° 4); de 5 de Junho de 1984, Comissão/Itália (280/83, Recueil, p. 2361, n.° 4); de 28 de Março de 1985, Comissão/Bélgica (215/83, Recueil, p. 1039, n.° 25); de 15 de Outubro de 1998, Comissão/Bélgica (C‑326/97, Colect., p. 6107, n.° 7); e de 28 de Maio de 1998, Comissão/Espanha (C‑298/97, Colect., p. I‑3301, n.° 14).


26 – Acórdão de 1 de Junho de 1999, Konle (C‑302/97, Colect., p. I‑3099, n.° 62).


27 – Acórdão de 5 de Maio de 1970, Comissão/Bélgica (77/69, Recueil, p. 237; Colect. 1969‑1970, p. 335, n.° 15).


28 – V., neste sentido, o acórdão de 16 de Julho de 2009, Horvath (C‑428/07, ainda não publicado na Colectânea, n.os 47 a 58).


29 – Acórdãos de 6 de Novembro de 2003, Gambelli e o. (C‑243/01, Colect., p. I‑13031, n.° 65); de 13 de Novembro de 2003, Lindman (C‑42/02, Colect., p. I‑13519, n.° 29); de 6 de Março de 2007, Placanica (C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.° 49); bem como Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido (n.° 60).


30 – Acórdãos de 31 de Janeiro de 1984, Luisi e Carbone (286/82 e 26/83, Colect., p. 377, n.° 34); de 23 de Fevereiro de 1995, Bordessa e o. (C‑358/93 e C‑416/93, Colect., p. I‑361, n.° 25); de 14 de Dezembro de 1995, Sanz de Lera e o. (C‑163/94, C‑165/94 e C‑250/94, Colect., p. I‑4821, n.os 23 a 28); de 20 de Fevereiro de 2001, Analir e o. (C‑205/99, Colect., p. I‑1271, n.° 37); e de 13 de Maio de 2003, Müller‑Fauré (C‑385/99, Colect., p. I‑4509, n.° 84).


31 – Acórdãos Müller‑Fauré, já referido, n.° 85, Analir e o., já referido, n.° 38; e de 12 de Julho de 2001, Smits e Peerbooms (C‑157/99, Colect., p. I‑5473, n.° 90).


32 – Acórdão Placanica, já referido, n.os 53 a 58.


33 – A jurisprudência sobre o jogo refere‑se frequentemente à necessidade de as autoridades nacionais disporem de um «poder de apreciação suficiente» para determinar as exigências que comporta o objectivo de interesse geral para cuja prossecução actuam (acórdãos de 24 de Março de 1999, Schindler, C‑275/92, Colect., p. I‑1039, n.° 61), e de 21 de Outubro de 1999, Zenatti, C‑67/98, Colect., p. I‑7289, n.° 15, bem como acórdãos, já referidos, Läära e o., n.° 14; Gambelli e o., n.° 63; Placanica e o. n.° 47, e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.° 57).


34 – O governo alemão indicou na audiência que a proibição do jogo na Internet se aplica tanto às apostas desportivas e às lotarias como aos casinos e às máquinas de jogo. As páginas Web desta natureza que poderiam existir na Alemanha (algumas das quais foram citadas no processo) são, portanto, ilegais.


35 – Por exemplo, o acórdão Schindler, já referido, relativo à proibição das lotarias prevista pela legislação do Reino Unido.


36 – Sob reserva da precisão feita no n.° 31. Por outro lado, como é salientado pela Carmen Media, não parece existir uma «discriminação latente», resultante do facto de os operadores estrangeiros estarem «dependentes» da Internet, uma vez que gozam do mesmo direito de desenvolver a sua actividade na Alemanha que as empresas alemãs.


37 – O órgão jurisdicional de reenvio entende que se trata de «uma compensação equitativa para dois operadores de jogos comerciais», que terão sido especificamente designados na exposição de motivos do GlüStV. Contudo, o Governo alemão contesta esta tese nas suas alegações, afirmando que a aplicação do § 25, n.° 6, do GlüStV não se limita a estes dois operadores, abrangendo também «os operadores de jogos estrangeiros que organizam lotarias autorizadas com observância das condições previstas pelo direito do seu país». Incumbe ao juiz nacional verificar a veracidade desta afirmação, dado que, se se tratasse de uma disposição ad nominem, ou seja, aplicável exclusivamente a certas empresas, envolveria uma discriminação contrária ao Tratado.


38 – Acórdãos de 3 de Dezembro de 1998, Belgocodex (C‑381/97, Colect., p. I‑8153, n.° 26); de 29 de Abril de 2004, Gemeente Leusden e Holin Groep (C‑487/01 e C‑7/02, Colect., p. I‑5337, n.° 57); bem como de 26 de Abril de 2005, Goed Wonen (C‑376/02, Colect., p. I‑3445, n.° 32).


39 – (C‑347/06, Colect., p. I‑5641).


40 – Acórdão de 3 de Setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colect., p. I‑6351, n.os 373 e seguintes). O Tribunal aplica analogicamente esta disposição no âmbito dos pedidos prejudiciais e ao conjunto dos actos de direito derivado: assim, nos acórdãos de 15 de Outubro de 1980, Providence agricole de Champagne (4/79, Colect., p. 2823, n.os 45 e 46) e de 5 de Julho de 1995, Parlamento/Conselho (C‑21/94, Colect., p. I‑1827, n.os 29 a 32). Fica por resolver a questão de saber se esta possibilidade também pode ser aplicada às regras de direito interno contrárias a uma norma de direito da União directamente aplicável, colocada ao Tribunal no processo Winner Wetten (C‑409/06), pendente no Tribunal de Justiça. Nas suas conclusões de 26 de Janeiro de 2010, o advogado‑geral Bot já deu uma resposta negativa a esta questão.