Language of document : ECLI:EU:C:2018:890

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 8 de novembro de 2018 (1)

Processo C551/18 PPU

IK

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Conteúdo — Artigo 8.o, n.o 1, alínea f) — Mandado de detenção europeu que não menciona uma pena acessória proferida contra a pessoa procurada — Entrega por força de um mandado — Consequências»






1.        Os jovens estudantes de direito na Europa são muitas vezes iniciados ao direito penal por uma expressão em latim: nullum crimen nulla poena sine lege scripta, praevia, certa et stricta. Trata‑se de uma regra clara e de um princípio fundamental do direito: a legalidade dos delitos e das penas. O que se descobre mais tarde, na qualidade de estudante de direito, técnico de justiça, advogado, professor ou mesmo advogado‑geral do Tribunal de Justiça da União Europeia, são as infinitas nuances que estes termos em latim podem assumir. Termos como poena requerem sempre uma interpretação.

2.        Assim, no presente processo, está em causa uma «pena acessória» que consiste na colocação à ordem do tribunal da pessoa condenada por um período de 10 anos, uma vez extinta a pena privativa de liberdade principal e imediata com a duração de 3 anos. Esta pena acessória figura entre os elementos que devem ser mencionados num mandado de detenção europeu nos termos do artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (2), e, em caso afirmativo, quais são as consequências da falta desta menção?

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        O artigo 1.o da decisão‑quadro, com a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», prevê:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [TUE].»

4.        De acordo com o artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro, um mandado de detenção europeu «pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado‑Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses».

5.        O artigo 3.o enumera os motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu, ao passo que o artigo 4.o enuncia os motivos de não execução facultativa (3).

6.        O artigo 4.o‑A da decisão‑quadro contém regras pormenorizadas quanto às circunstâncias em que a execução de um mandado de detenção europeu pode ser recusada, se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão (4).

7.        O artigo 6.o, n.os 1 e 2, da decisão‑quadro define «a autoridade judiciária de emissão» como «a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado» e «a autoridade judiciária de execução» como «autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o mandato de detenção europeu nos termos do direito desse Estado».

8.        O artigo 8.o, n.o 1, da decisão‑quadro, com a epígrafe «Conteúdo e formas do mandado de detenção europeu», dispõe:

«O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:

a)      Identidade e nacionalidade da pessoa procurada;

b)      Nome, endereço, número de telefone e de fax, e endereço de correio eletrónico da autoridade judiciária de emissão;

c)      Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 1.o e 2.o;

d)      Natureza e qualificação jurídica da infração, nomeadamente à luz do artigo 2.o;

e)      Descrição das circunstâncias em que a infração foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação da pessoa procurada na infração;

f)      Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado‑Membro de emissão para essa infração;

g)      Na medida do possível, as outras consequências da infração.»

9.        Nos termos do artigo 11.o, n.o 1, da decisão‑quadro, quando uma pessoa procurada for detida, a autoridade judiciária de execução competente informa‑a, em conformidade com o seu direito nacional, «da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu, bem como da possibilidade ao seu dispor de consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão.»

10.      O artigo 13.o da decisão‑quadro diz respeito ao consentimento da pessoa procurada na sua entrega:

«1.      Se a pessoa detida declarar que consente na sua entrega, esse consentimento e, se for caso disso, a renúncia expressa ao benefício da ‘regra da especialidade’ a que se refere o n.o 2 do artigo 27.o devem ser declarados perante a autoridade judiciária de execução, em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro de execução.

2.      Cada Estado‑Membro toma as medidas necessárias para que o consentimento e, se for caso disso, a renúncia referidos no n.o 1, sejam recebidos em condições que demonstrem que a pessoa os exprimiu voluntariamente e em plena consciência das consequências do seu ato. Para o efeito, a pessoa procurada tem o direito de ser assistida por um defensor.

3.      O consentimento e, se for caso disso, a renúncia referidos no n.o 1 devem ser exarados em auto, nos termos do direito nacional do Estado‑Membro de execução.

4.      O consentimento é em princípio irrevogável. […]»

11.      Segundo o artigo 14.o da decisão‑quadro, «[a] pessoa procurada, se não consentir na sua entrega como previsto no artigo 13.o, tem o direito de ser ouvida pela autoridade judiciária de execução, em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro de execução.»

12.      O artigo 15.o da decisão‑quadro refere‑se à decisão sobre a entrega:

«1.      A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

2.      Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, em especial, em conexão com os artigos 3.o a 5.o e o artigo 8.o, podendo fixar um prazo para a sua receção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 17.o

3.      A autoridade judiciária de emissão pode, a qualquer momento, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução.»

13.      O artigo 17.o, n.o 1, da decisão‑quadro estabelece que um mandado de detenção europeu deve ser «tratado e executado com urgência». Em conformidade com os n.os 2 e 3 deste artigo, nos casos em que a pessoa procurada consinta na sua entrega, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 10 dias a contar da data do consentimento, ao passo que, nos outros casos, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada. O n.o 6 deste artigo dispõe que qualquer recusa de execução de um mandado de detenção europeu deve ser fundamentada.

14.      O artigo 19.o da decisão‑quadro diz respeito à audição da pessoa procurada, nos casos em que esta não consente na sua entrega:

«1.      A pessoa procurada é ouvida por uma autoridade judiciária, coadjuvada por outra pessoa designada em conformidade com o direito do Estado‑Membro do tribunal requerente.

2.      A pessoa procurada é ouvida em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução e as condições são fixadas por acordo mútuo entre a autoridade judiciária de emissão e a autoridade judiciária de execução.

3.      A autoridade judiciária de execução competente pode designar uma outra autoridade judiciária do seu Estado‑Membro para tomar parte na audição da pessoa procurada, no sentido de assegurar a correta aplicação do presente artigo e das condições que tiverem sido fixadas.»

15.      O artigo 27.o da decisão‑quadro, com a epígrafe «Eventuais procedimentos penais por outras infrações», estipula o seguinte:

«1.      Cada Estado‑Membro tem a faculdade de notificar ao Secretariado‑Geral do Conselho que, nas suas relações com os outros Estados‑Membros que tenham apresentado a mesma notificação, se presume dado o consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue, salvo se, num caso específico, a autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.

2.      Exceto nos casos previstos nos n.os 1 e 3, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

[…]»

16.      Por força do seu artigo 31.o, n.o 1, a decisão‑quadro substitui as disposições correspondentes de diferentes convenções aplicáveis em matéria de extradição entre os Estados‑Membros, designadamente a Convenção Europeia de Extradição (5) e a Convenção relativa à Extradição entre os Estados‑Membros da União Europeia (6).

17.      O formulário do mandado de detenção europeu, que consta do anexo da decisão‑quadro, contém um campo c), «Indicações relativas à duração da pena», cujos pontos 1 e 2 são denominados, respetivamente, «Duração máxima da pena ou medida de segurança privativas de liberdade aplicável à(s) infração/infrações» e «Duração da pena ou medida de segurança privativas da liberdade proferida».

18.      O campo f) do formulário do mandado de detenção europeu é com a epígrafe «Outras circunstâncias pertinentes para o processo» e indica que estas informações são facultativas.

 Direito belga

19.      Nos termos do artigo 34.obis do Código Penal belga, a colocação à ordem do tribunal é uma pena acessória que, nos casos previstos na lei, pode ou deve ser decretada para proteger a sociedade de pessoas que tenham praticado crimes graves contra a integridade de outras pessoas. A execução da pena acessória é regulada pelos artigos 95.o, n.o 2, a 95.o, n.o 30, da Lei de 17 de maio de 2006, relativa ao estatuto jurídico externo das pessoas condenadas a uma pena privativa de liberdade e aos direitos reconhecidos à vítima no quadro das modalidades de execução da pena (a seguir «lei de 17 de maio de 2006»).

20.      Segundo o artigo 95.o, n.o 2, da lei de 17 de maio de 2006, a colocação à ordem do tribunal é decretada depois de extinta a pena principal. O Tribunal de Execução das Penas decide, antes de extinta a pena principal, se o condenado colocado à ordem do tribunal continua privado de liberdade, ou se fica em liberdade, sujeito a vigilância. O condenado é privado da sua liberdade se existir o risco de que venha a cometer infrações graves atentatórias da integridade física de terceiros, que, em caso de colocação em liberdade sob vigilância, não possam ser evitadas através da imposição de determinadas condições. Na audiência, o Governo belga confirmou que a privação da liberdade adicional não é automática, dependendo antes da análise do caso individual do condenado.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

21.      Por acórdão contraditório do hof van beroep (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), de 1 de fevereiro de 2013, IK, nacional belga, foi condenado numa pena de prisão principal de três anos, por um crime de atentado ao pudor de um menor de menos de dezasseis anos, sem violência nem ameaça (a seguir «pena principal»). No mesmo acórdão, e pela mesma infração, foi ainda colocado à ordem do Tribunal de Execução das Penas (Bélgica), por um período de dez anos (a seguir «pena acessória»).

22.      Tendo IK fugido para os Países Baixos após a sentença, a autoridade judiciária belga competente emitiu, em 27 de agosto de 2014, um mandado de detenção europeu contra IK. Este mandado identificava‑o, fazia referência à pena principal, à natureza e qualificação legal das infrações, bem como às disposições legais aplicáveis, e apresentava uma explicação dos factos. No entanto, o mandado de detenção europeu não se referia à pena acessória a que IK também tinha sido condenado.

23.      Após a detenção de IK nos Países Baixos, o rechtbank Amsterdam, internationale rechtshulpkamer (Tribunal de Amesterdão, Secção de Cooperação Judiciária Internacional, Países Baixos) autorizou, por decisão de 8 de março de 2016, a entrega de IK ao Reino da Bélgica para efeitos de execução da pena privativa de liberdade.

24.      IK foi, nessa sequência, entregue às autoridades belgas e aí preso. A reclusão fundamentava‑se na sua condenação à pena principal, cujo termo foi fixado em 12 de agosto de 2018, bem como na colocação à ordem do tribunal, por um período de dez anos.

25.      Previamente ao termo da pena principal, no âmbito do processo relativo à pena acessória aplicada a IK, o diretor do estabelecimento prisional de Wortel (Bélgica) e o Ministério Público emitiram um parecer no sentido da privação da liberdade de IK. Em 21 de junho e 19 de julho de 2018, o strafuitvoeringsrechtbank Antwerpen (Tribunal de Execução das Penas de Antuérpia, Bélgica) organizou audiências a fim de decidir da pena acessória.

26.      Aquando desse processo, IK defendeu que a entrega efetuada pelas autoridades neerlandesas não tinha por objeto a pena acessória. Segundo este, o Tribunal de Execução de Penas não podia ordenar uma privação de liberdade para execução dessa pena, atendendo a que o mandado de detenção europeu emitido pelas autoridades belgas não lhe fazia referência.

27.      Em seguida, em 2 de julho de 2018, a autoridade emitente competente no strafuitvoeringsrechtbank te Antwerpen (Tribunal de Execução de Penas de Antuérpia) dirigiu, ao abrigo do artigo 27.o da decisão‑quadro, às autoridades neerlandesas um pedido de consentimento adicional para a pena de colocação à ordem do tribunal aplicada a IK. Considerando que esse consentimento adicional apenas podia ser concedido para efeitos de julgamento ou de condenação por uma infração diferente daquela pela qual a entrega foi permitida, e considerando que não era o que se verificava no caso, as autoridades neerlandesas indeferiram tal pedido.

28.      Por sentença de 31 de julho de 2018, o strafuitvoeringsrechtbank te Antwerpen (Tribunal de Execução das Penas de Antuérpia) rejeitou a argumentação de IK e decidiu manter a prisão. Para execução da sentença, IK permaneceu preso até o strafuitvoeringsrechtbank (Tribunal de Execução das Penas) tomar nova decisão.

29.      Em 3 de agosto de 2018, IK interpôs um recurso de cassação desta sentença no Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica, a seguir «órgão jurisdicional de reenvio»). Segundo o fundamento único de recurso invocado, o mandado de detenção europeu emitido pelo Ministério Público belga apenas refere a pena privativa de liberdade aplicada a IK. Consequentemente, relativamente à pena acessória, não existe nenhum mandado de detenção europeu emitido pelas autoridades belgas e a entrega pelo órgão jurisdicional neerlandês com base no mandado de detenção europeu das autoridades belgas não pode ter essa pena por objeto.

30.      À luz do fundamento apresentado por IK, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da [decisão‑quadro] ser interpretado no sentido de que basta que uma autoridade judiciária emitente refira, no mandado de detenção europeu, a pena privativa de liberdade aplicada e, portanto, não a pena acessória aplicada pela mesma infração e na mesma decisão judicial, como a colocação à ordem do tribunal (terbeschikkingstelling), a qual apenas conduzirá à privação efetiva de liberdade após a execução da primeira pena privativa de liberdade, e apenas depois de uma decisão expressa do strafuitvoeringsrechtbank (Tribunal de Execução das Penas) nesse sentido?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve o artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da [decisão‑quadro] ser interpretado no sentido de que a entrega pelo Estado‑Membro da autoridade judiciária competente para a execução, com base num mandado de detenção europeu, que apenas faça referência à pena privativa de liberdade aplicada e não à pena acessória de colocação à ordem do tribunal […], a qual foi aplicada pela mesma infração e na mesma decisão judicial, tem o efeito de, no Estado‑Membro da autoridade judiciária emitente, se poder passar à efetiva privação da liberdade em cumprimento dessa pena acessória?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, deve o artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da [decisão‑quadro] ser interpretado no sentido de que o facto de a autoridade judiciária emitente não referir, no mandado de detenção europeu, a pena acessória decretada de colocação à ordem do tribunal tem por efeito que a pena acessória, da qual se pode presumir que a autoridade judiciária não tinha conhecimento, não pode levar à efetiva privação da liberdade no Estado‑Membro emitente do mandado?»

31.      Foram apresentadas observações escritas por IK, pelos Governos belga e neerlandês, bem como pela Comissão Europeia. Estas partes e os Governos irlandês e polaco apresentaram observações orais na audiência realizada em 22 de outubro de 2018.

 Quanto à aplicação da tramitação prejudicial urgente

32.      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Em apoio do seu pedido, invoca o facto de IK se encontrar preso na Bélgica, dependendo a sua manutenção em detenção diretamente da resposta dada pelo Tribunal de Justiça às questões prejudiciais.

33.      A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação da decisão‑quadro, que faz parte dos domínios a que se refere o título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. Este reenvio é, por conseguinte, suscetível de ser submetido a tramitação prejudicial urgente, em conformidade com o artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

34.      Em segundo lugar, quanto ao critério relativo à urgência, importa, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tomar em consideração a circunstância de a pessoa em causa no processo principal estar atualmente privada de liberdade e de a sua manutenção em detenção depender da resolução do litígio no processo principal. Por outro lado, a situação da pessoa em causa deve ser apreciada tal como se apresenta à data do exame do pedido de tratamento do reenvio prejudicial segundo a tramitação prejudicial urgente (7).

35.      Ora, no caso em apreço, por um lado, é pacífico que, nessa data, IK estava privado de liberdade. Por outro lado, a sua manutenção em detenção depende das consequências decorrentes da falta de menção, no mandado de detenção europeu em causa no processo principal, da pena acessória. Segundo as explicações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, a medida de detenção de que é objeto atualmente foi aplicada depois de extinta a pena principal.

36.      Nestas circunstâncias, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 10 de setembro de 2018, sob proposta do juiz‑relator, ouvida a advogada‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação prejudicial urgente.

 Análise

 Observações preliminares

 Quanto ao alcance, objetivos e âmbito de aplicação da decisãoquadro

37.      A decisão‑quadro marca a passagem do sistema de extradição de pessoas procuradas, baseado no conceito de soberania dos Estados, para o sistema de entrega, cujo fundamento consiste na confiança mútua entre os Estados‑Membros.

38.      Esta abordagem está em consonância com as conclusões do Conselho Europeu de Tampere, segundo as quais deverá ser abolido entre os Estados‑Membros o processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado e substituí‑lo por uma simples transferência destas pessoas (8). Esta iniciativa enquadra‑se igualmente no objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça (9).

39.      Deste modo, as relações de cooperação clássicas que prevaleceram entre Estados‑Membros até à adoção da decisão‑quadro dão lugar a um sistema novo de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado (10). Neste contexto, a entrega é pedida e efetuada no seio de um sistema jurídico supranacional de integração, em que os Estados renunciam parcialmente à sua soberania (11). Os elementos‑chave da rutura com o direito de extradição introduzidos pela decisão‑quadro são a generalização da entrega dos nacionais (12), a supressão parcial da dupla criminalização (13) e o enquadramento dos motivos de recusa de execução nas listas exaustivas (14). A mudança em relação ao antigo sistema pretende‑se «radical» (15).

40.      Esta passagem do sistema de extradição ou sistema de entrega foi igualmente sublinhada repetidas vezes pelo Tribunal de Justiça, desde o primeiro acórdão relativo à decisão‑quadro (16) até hoje (17).

41.      Deste modo, o mandado de detenção europeu foi concebido como um sistema destinado a substituir o processo de extradição a fim de facilitar a entrega de uma pessoa procurada que se encontra num Estado‑Membro diferente daquele onde o mandado foi emitido. Esta conceção resulta muito claramente da definição enunciada no artigo 1.o, n.o 1, da decisão‑quadro, segundo a qual o mandado de detenção europeu é uma decisão judicial que visa a detenção da pessoa procurada num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de emissão, tendo em vista a sua entrega a este último.

42.      Neste contexto, os objetivos da decisão‑quadro estão claramente enunciados.

43.      Resulta, em especial, do artigo 1.o, n.os 1 e 2, e dos considerandos 5 e 7 da decisão‑quadro que esta tem por objeto instituir um sistema de entrega, entre autoridades judiciárias, das pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos da execução de sentenças ou de procedimento penal, baseado no princípio do reconhecimento mútuo. A decisão‑quadro pretende, assim, ao instituir este sistema simplificado e mais eficaz, facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros (18).

44.      Este sistema aplica o princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu descreveu, nas suas Conclusões de Tampere, como a «pedra angular» da cooperação judiciária (19). Este princípio é subjacente à cooperação judiciária em matéria penal na União (20). Exige um elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros, designadamente no que se refere ao respeito do direito da União e dos direitos fundamentais reconhecidos por este mesmo direito (21). A aplicação do princípio do reconhecimento mútuo leva a que cada autoridade judiciária nacional reconheça ipso facto, através de controlos mínimos, o pedido de entrega de uma pessoa apresentado pela autoridade judiciária de outro Estado‑Membro (22).

45.      O âmbito de aplicação do mandado de detenção europeu é claramente definido pela decisão‑quadro. Deste modo, o âmbito de aplicação abrange a detenção e a entrega de uma pessoa para efeitos quer de procedimento penal, quer de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade (23). No primeiro caso, o «limiar» fixado pela decisão‑quadro refere que os factos suscetíveis de procedimento penal devem ser punidos pelo Estado‑Membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração não inferior a 12 meses; no segundo caso, que a sanção deve ter uma duração não inferior a quatro meses (24).

46.      O formulário constante do anexo da decisão‑quadro reflete o âmbito de aplicação do mandado de detenção europeu, assim como a distinção entre as hipóteses de pena possível e de pena proferida. Deste modo, no campo c), com a epígrafe «Indicações relativas à duração da pena», o formulário prevê a referência, no ponto 1, à duração máxima da pena ou medida de segurança privativas de liberdade «aplicável» (e observo, a este respeito, que este não se refere à pena mínima, o que permite verificar que nos encontramos acima do limiar de doze meses) e, no ponto 2, à duração da pena ou medida de segurança privativas de liberdade «proferida».

47.      O presente processo diz respeito precisamente à segunda hipótese, isto é, a execução de uma pena ou medida de segurança proferida.

 Quanto ao princípio da especialidade

48.      O Governo neerlandês baseia‑se no princípio da especialidade para concluir que a pena acessória não pode ser executada, visto que o Estado‑Membro de execução não tinha conhecimento da mesma. Parece‑me, pois, necessário esclarecer, desde já, o eventual alcance deste princípio no presente processo.

49.      O conceito de especialidade tem a sua origem no direito de extradição. Este conceito consiste na ideia de limitar os factos pelos quais o extraditado será julgado após a sua extradição àqueles que determinaram a sua entrega (25). Neste sentido, a Convenção de 1957 estabelecia, no seu artigo 14.o, uma regra de especialidade nos termos da qual a pessoa extraditada não será alvo de ação judicial, nem julgada, nem detida, nem sujeita a uma restrição da sua liberdade por um facto anterior à sua entrega diferente daquele que fundamentou a extradição. No seu artigo 10.o, a Convenção de 1996 contém igualmente este princípio, com um âmbito de aplicação reduzido.

50.      No direito de extradição, o princípio da especialidade limita os poderes do Estado de emissão para o qual a pessoa foi extraditada com vista a proteger esta pessoa de uma condenação ou de uma pena relacionada com factos diferentes daqueles pelos quais esta foi extraditada. A justificação para este princípio residia no receio de que o Estado que pede a extradição limitasse o seu pedido aos atos em relação aos quais a extradição foi concedida, para depois sujeitar a pessoa extraditada a um procedimento penal por outros crimes, por exemplo políticos (26).

51.      Na lógica de confiança mútua que constitui a pedra angular do mandado de detenção europeu, a proposta de decisão‑quadro previa uma rutura com este princípio e propunha a sua supressão, juntamente com a supressão do princípio da dupla incriminação (27). Todavia, o texto final da decisão‑quadro consagrou este princípio no artigo 27.o, com a epígrafe «Eventuais procedimentos penais por outras infrações», inserido no capítulo 3, relativo aos «Efeitos da entrega».

52.      Deste modo, em conformidade com o artigo 27.o, n.o 2, da decisão‑quadro, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue (28). Esta regra está ligada à soberania do Estado‑Membro de execução e confere à pessoa procurada o direito de apenas ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração pela qual tiver sido entregue (29).

53.      É óbvio, tanto pela história e conteúdo do princípio da especialidade como pela sua formulação no contexto da decisão‑quadro, incluindo a redação do artigo 27.o da mesma, que este princípio diz apenas respeito (i) às infrações cometidas antes da entrega e que (ii) são diferentes da ou das infrações pelas quais a pessoa foi entregue. Nenhum elemento permite concluir que o princípio da especialidade exclui igualmente a execução de outras penas privativas de liberdade. A extensão do âmbito de aplicação deste princípio a outros elementos colidiria, na minha opinião, com o sistema instituído pela decisão‑quadro, fundado na confiança mútua num objetivo de simplificação dos processos de entrega.

54.      Por conseguinte, refuto a argumentação avançada pelo Governo neerlandês, que me parece basear‑se na antiga lógica do sistema de extradição fundada numa abordagem assente na soberania nacional.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

55.      Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio procura, em substância, saber se o artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro exige que a pena acessória seja mencionada no mandado de detenção europeu.

56.      O artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro estabelece que o mandado de detenção europeu deve conter informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo, relativas à «pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado».

57.      Estas informações devem ser mencionadas no campo c) do formulário, constante do anexo da decisão‑quadro, com a epígrafe «Indicações relativas à duração da pena», e cujo ponto 2 prevê que seja indicada a duração da pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

58.      O conceito de «pena» não é definido pela decisão‑quadro. Este conceito deve ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme na União, independentemente das regras materiais e processuais, que, pela sua natureza, são divergentes, em matéria penal, nos diferentes Estados‑Membros (30). Esta interpretação deve ter em conta os termos desta disposição, o seu contexto e os objetivos da regulamentação de que faz parte (31).

59.      O termo «pena» significa, em conformidade com o seu sentido habitual e a sua etimologia (32), uma punição, um castigo. Em matéria penal, esta punição está prevista na lei e é aplicada como uma sanção por um órgão jurisdicional em nome e em defesa do interesse público.

60.      A decisão‑quadro exige igualmente que esta pena, para cuja execução uma pessoa é procurada, seja «proferida» por uma decisão definitiva.

61.      Infere‑se claramente do contexto da decisão‑quadro que o legislador da União tinha a intenção de incluir no conceito de «pena» as restantes medidas privativas de liberdade (33). Assim, ainda que o artigo 8.o, n.o 1, alínea f), mencione apenas a «pena» proferida, creio, à luz do campo c) do formulário constante da decisão‑quadro, que se deve compreender este termo como incluindo igualmente as medidas privativas de liberdade.

62.      Todavia, o mandado de detenção europeu que constitui o objeto da decisão‑quadro refere‑se unicamente à execução das «penas» ou das «medidas de segurança» que são privativas de liberdade (34). Deste modo, no meu entender, as «penas» e «medidas de segurança» que não sejam privativas de liberdade não devem ser mencionadas no campo c) do formulário constante do anexo da decisão‑quadro.

63.      Quanto ao conteúdo do conceito de «privação de liberdade», observo que o Tribunal de Justiça considerou que medidas que restrinjam seguramente a liberdade de movimento da pessoa em causa, como uma obrigação de permanência na habitação por um período de nove horas durante a noite, acompanhada de uma vigilância dessa pessoa através de uma pulseira eletrónica, uma obrigação de apresentação diária ou várias vezes por semana num posto de polícia a horas fixas e uma proibição de solicitar a emissão de documentos que permitam viajar para o estrangeiro, não são de tal modo restritivas que delas possa resultar um efeito privativo de liberdade (35). A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem corrobora esta interpretação. Com efeito, declarou‑se que as medidas que obriguem a pessoa em causa a apresentar‑se uma vez por mês à autoridade policial responsável pela vigilância, a manter contactos com o centro psiquiátrico do hospital em causa, a residir num determinado local, a não se afastar do município em que residia e a permanecer na sua habitação entre as 22 h 00 e as 7 h 00 do dia seguinte não constituíam uma privação de liberdade na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH») (36).

64.      Passando agora ao objetivo da decisão‑quadro, é jurisprudência constante que esta pretende facilitar e acelerar a cooperação judiciária (37).

65.      No âmbito deste sistema, parece‑me que as informações exigidas pelo artigo 8.o, n.o 1, da decisão‑quadro têm o duplo objetivo de fornecer ao Estado‑Membro de execução as informações necessárias para a entrega da pessoa procurada e de garantir a esta pessoa o respeito dos seus direitos (voltarei a este aspeto mais à frente, nos n.os 106 e seguintes).

66.      No que diz respeito mais precisamente à ratio do artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro, no campo c) do anexo desta decisão, «Indicações relativas à duração da pena», esta parece‑me corretamente descrita no anexo III do manual. Estas informações têm por finalidade «registar [a ultrapassagem] dos limiares de duração das penas previstos no artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro».

67.      Consequentemente, a pena, para cuja execução se solicita a entrega, é uma informação fundamental para atingir estes objetivos. Além disso, a duração da pena é um elemento mencionado especificamente no campo c) do formulário constante do anexo da decisão‑quadro.

68.      Ora, coloca‑se a questão de saber se uma pena acessória, aplicada no mesmo acórdão que aplica a pena principal privativa de liberdade, constitui uma «pena proferida» na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro. Resulta das informações apresentadas ao Tribunal de Justiça que esta pena consiste na colocação à ordem do Tribunal de Execução das Penas por um período de dez anos. A pena acessória tem início após a extinção da pena principal. Só existe uma privação de liberdade suplementar se o Tribunal de Execução das Penas decidir nesse sentido.

69.      Assinalo, antes de mais, que esta pena acessória ilustra perfeitamente as infinitas nuances que as sanções penais podem assumir a nível nacional. Reconheço plenamente as dificuldades que essas especificidades podem representar para a autoridade judiciária de emissão, quando se trata de preencher os campos do formulário do mandado de detenção europeu que, no final, constitui uma solução «prêt‑à‑porter» [pronto‑a‑vestir], e do qual, com o objetivo de simplificar a entrega das pessoas procuradas, devem constar todas as informações necessárias.

70.      O que fazer com esta pena acessória, cuja natureza «privativa de liberdade», nos termos do direito da União, e eventual duração, mesmo que seja proferida no mesmo acórdão que a pena principal, permanecem incertas no momento em que o juiz nacional preenche o formulário do mandado de detenção europeu?

71.      Refuto a abordagem da Comissão, segundo a qual se deveria mencionar esta informação no campo c), ponto 1, do formulário constante do anexo da decisão‑quadro, parte prevista para o caso em que o mandado de detenção europeu é «emitido para efeitos de procedimento penal» (38). Esta interpretação parece‑me incorreta, visto que, para responder a uma especificidade nacional, designadamente a colocação à ordem de um tribunal de direito belga, não respeita a estrutura binária do sistema instituído pela decisão‑quadro, que sublinha claramente a diferença entre um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de procedimento penal, por um lado, e um mandado de detenção europeu emitido para execução de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por outro (39). Com efeito, esta interpretação poderia prejudicar a clareza e a legibilidade do mandado de detenção europeu. Isto teria como consequência comprometer os objetivos da decisão‑quadro, designadamente a simplificação dos processos de entrega mediante utilização de um formulário uniforme a nível da União Europeia (40).

72.      É o juiz nacional quem dispõe de todas as informações necessárias sobre esta pena acessória para determinar, à luz das considerações acima expostas, se esta corresponde ao conceito de «pena proferida» previsto no artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro e, por conseguinte, deve ser mencionada no campo c), ponto 2, do formulário do mandado de detenção europeu.

73.      Ao proceder a esta apreciação, devem, na minha opinião, ser tidos em conta os seguintes elementos.

74.      Atendendo ao facto de que a pena acessória corresponde apenas a uma eventualidade e de que pode não resultar numa pena suplementar privativa de liberdade (único objeto de um mandado de detenção europeu em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro), seria possível mencioná‑la na qualidade de «outras consequências da infração», nos termos do artigo 8.o, n.o 1, alínea g), e, consequentemente, no campo f) do formulário do mandado de detenção, com a epígrafe «Outras circunstâncias pertinentes para o processo (facultativo)». O manual explica que este campo não está, regra geral, preenchido, mas que pode, após julgamento, ser utilizado para mencionar, por exemplo, «a ausência ilegal de prisão». Saliento que a inclusão destas informações no mandado de detenção europeu é feita «na medida do possível» (41). Ora, a importância das consequências que esta pena pode ter para o condenado (no presente processo até dez anos de privação da liberdade) leva‑me a concluir que seria mais adequado optar pelo ponto 2 do campo c) do formulário. Em contrapartida, as penas não privativas de liberdade podem inscrever‑se no campo c) do formulário.

75.      Deste modo, quando a pena acessória constitui um todo indivisível com a pena principal (42), proferida na mesma decisão judicial, e quando tem natureza privativa de liberdade, creio que corresponde ao conceito de «pena proferida» na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea f). O facto de a forma da sua execução não ser ainda conhecida não é suficiente, em si mesmo, para dispensar o Estado‑Membro de emissão da obrigação de dela informar o Estado‑Membro de execução. A este respeito, saliento que a hipótese em que a duração exata desta pena não é previamente conhecida parece ser contemplada no manual, o qual estabelece que, para preencher o campo c) do formulário constante do anexo da decisão‑quadro, «no caso de ter sido aplicada uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, a sua duração pode ser indeterminada, p. ex., prisão perpétua ou pena que inclua tratamento psiquiátrico» (43).

76.      De qualquer modo, na audiência, o Governo belga confirmou que a prática deste Estado‑Membro consiste em mencionar a pena acessória no campo c), ponto 2, do formulário constante do anexo da decisão‑quadro, e que uma pena acessória, como a que está em causa no processo principal, é um dos elementos a mencionar neste campo.

77.      Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão no sentido que uma pena acessória, como a que está em causa no presente processo, deve ser mencionada no campo c), ponto 2, do mandado de detenção europeu, por força do artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro.

 Quanto à segunda e terceira questões

78.      Parece‑me que a segunda e terceira questões estão intimamente ligadas e são submetidas em função da resposta, afirmativa ou negativa, a dar à primeira questão. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio solicita, em substância, esclarecimentos quanto à possibilidade de manter IK preso, em execução da pena acessória, consoante o Tribunal de Justiça considere que basta que o mandado de detenção europeu apenas mencione a pena principal, ou que considere que a pena acessória também deve estar mencionada no mandado de detenção europeu.

79.      Já expliquei na minha resposta à primeira questão que uma pena acessória, como a que está em causa no presente processo, deve ser mencionada no mandado de detenção europeu, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro. Assim, não me parece ser necessário explorar a hipótese da segunda questão submetida pelo Tribunal de Justiça. Todavia, a título exaustivo, noto que, caso o Tribunal de Justiça considere que não é necessário mencionar, no mandado de detenção europeu, uma pena acessória como a que está em causa no presente processo, não vejo como esta falta de menção pode impedir a execução desta pena.

80.      Debruço‑me agora sobre a questão das consequências da falta de menção da pena acessória no mandado de detenção europeu para a privação de liberdade da pessoa em causa, em execução dessa pena.

81.      A este respeito, gostaria de salientar, desde já, que no sistema de cooperação judiciária instituído pela decisão‑quadro, os Estados‑Membros são soberanos no que se refere ao seu direito penal nacional, nomeadamente quanto à definição das infrações, aos procedimentos penais, às penas aplicadas e à sua execução.

82.      O alcance do mandado de detenção europeu está claramente descrito e delimitado no artigo 1.o, n.o 1, da decisão‑quadro: detenção e entrega duma pessoa procurada. A estes aspetos se limitam também os efeitos jurídicos desta decisão judiciária.

83.      Trata‑se de um «círculo» que se abre com a emissão do mandado de detenção europeu em conformidade com o artigo 8.o da decisão‑quadro, e que passa pela sua transmissão (artigos 9.o e 10.o), pela detenção da pessoa procurada pelo Estado‑Membro de execução, pela informação da pessoa procurada e sua eventual audição (artigos 11.o, 14.o e 19.o), pela sua detenção ou libertação provisória (artigo 12.o) e pela decisão sobre a entrega e sua notificação (artigos 15.o a 18.o e 22.o). O «círculo» encerra‑se então com a execução do mandado de detenção europeu que é efetuada por meio da entrega (artigos 23.o a 25.o).

84.      A meu ver, os efeitos deste processo não podem ultrapassar o âmbito de aplicação e o objetivo da decisão‑quadro, isto é, a entrega da pessoa procurada. Os poucos efeitos deste processo que continuam a produzir‑se para além da entrega são claramente definidos no capítulo 3 da decisão‑quadro. Trata‑se do princípio da especificidade, acima examinado nos n.os 49 e seguintes, e de certas limitações à possibilidade de entrega ou de extradição posterior.

85.      É à luz do que precede que se devem estabelecer as consequências decorrentes da falta de menção da existência de uma pena acessória no mandado de detenção europeu.

86.      Em primeiro lugar, gostaria de salientar que esta falta de menção não afeta de forma alguma a validade do mandado de detenção europeu.

87.      Antes de mais, a decisão‑quadro não prevê o conceito de mandado de detenção europeu «inválido». Este foi introduzido pela jurisprudência, nomeadamente pelo Acórdão Bob‑Dogi, num contexto muito específico (44).

88.      Ora, o presente processo distingue‑se do processo Bob‑Dogi, no qual o Tribunal de Justiça declarou que o não cumprimento de uma exigência de regularidade cujo respeito constitui uma condição da validade do mandado de detenção europeu deve, em princípio, levar a autoridade judiciária de execução a não dar seguimento a esse mandado de detenção (45).

89.      Com efeito, no processo Bob‑Dogi, tratava‑se da execução de um mandado de detenção europeu baseado nesse mesmo mandado e não num mandado de detenção nacional ou noutra decisão nacional. O Tribunal de Justiça declarou que o artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da decisão‑quadro inclui uma exigência de regularidade cujo respeito constitui uma condição da validade do mandado de detenção europeu, e cujo não cumprimento deve, em princípio, levar a autoridade judiciária de execução a não dar seguimento a esse mandado de detenção. Contudo, antes de agir deste modo, essa autoridade deve, em aplicação do artigo 15.o, n.o 2, da decisão‑quadro, solicitar à autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão que lhe seja comunicada com urgência toda a informação complementar necessária a fim de saber se a falta de indicação, no mandado de detenção europeu, da existência de um mandado de detenção nacional se explica pelo facto de esse mandado de detenção nacional prévio e distinto do mandado de detenção europeu efetivamente não existir ou de esse mandado existir, mas não ter sido referido. De facto, a autoridade judiciária de execução só poderá não dar seguimento ao mandado de detenção europeu quando a base legal desse mandado, designadamente, no caso em apreço, o mandado de detenção nacional, efetivamente não exista (46).

90.      No processo Bob‑Dogi, o mandado de detenção europeu tinha sido emitido com vista à entrega para efeitos de procedimentos penais, mas sem uma decisão nacional que constituísse a sua base jurídica. Como sublinhou o advogado‑geral Y. Bot, tratava‑se da inexistência de uma base jurídica nacional que desqualificava o ato enquanto mandado de detenção europeu e não de uma irregularidade formal que podia ser sanada pela utilização do quadro de cooperação previsto no artigo 15.o, n.o 1, da decisão‑quadro (47).

91.      Dois elementos distinguem o presente processo do processo Bob‑Dogi. Em primeiro lugar, trata‑se de um mandado europeu para efeitos de execução de uma pena, e, das informações fornecidas ao Tribunal de Justiça, resulta que esta pena foi proferida em conformidade com o direito nacional pelos órgãos jurisdicionais nacionais competentes por acórdão de 1 de fevereiro de 2013. A sentença com força executiva que constitui a base legal do mandado de detenção europeu em questão, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da decisão‑quadro, é, portanto, existente — foi, aliás, mencionada no campo b), ponto 2, do mandado de detenção europeu. Em segundo lugar, também a pena privativa de liberdade de duração superior ao limiar imposto pelo artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro existe efetivamente. Por conseguinte, não se verifica a inexistência de uma base jurídica nacional no que se refere à pena principal e à pena acessória.

92.      Além disso, a irregularidade que consiste na falta de menção da pena acessória é, como o Governo belga explicou na audiência, um esquecimento por parte da autoridade de emissão (ouso mesmo acrescentar que, dada a dificuldade em determinar a natureza exata de pena acessória acima analisada, nos n.os 69 e seguintes, e a confusão que surgiu na audiência no que diz respeito ao campo adequado para mencioná‑la, este esquecimento me parece bastante desculpável). Este erro formal em nada invalida a existência da base jurídica nacional necessária. De resto, este poderia ter sido facilmente corrigido no decurso do processo de entrega se algum dos atores do processo (designadamente, a autoridade de emissão, a autoridade de execução ou a pessoa procurada) o tivesse detetado.

93.      Por conseguinte, esta irregularidade não afeta a validade do mandado de detenção europeu e não pode constituir uma razão para não lhe dar seguimento.

94.      Por outro lado, noto que a falta desta informação não pode tão‑pouco constituir um motivo de não execução do mandado de detenção europeu.

95.      O artigo 1.o, n.o 2, da decisão‑quadro aplica o princípio do reconhecimento mútuo e consagra a regra segundo a qual os Estados‑Membros são obrigados a executar qualquer mandado de detenção europeu com base nesse princípio e em conformidade com as disposições da decisão‑quadro. Assim, as autoridades judiciárias de execução só podem, em princípio, recusar executar esse mandado pelos motivos, exaustivamente enumerados, de não execução previstos na decisão‑quadro, e a execução do mandado de detenção europeu apenas pode ser subordinada a uma das condições taxativamente enumeradas na mesma. Por conseguinte, enquanto a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, a recusa de execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita. Assim, a decisão‑quadro enuncia expressamente, no artigo 3.o, os motivos de não execução obrigatória e, nos artigos 4.o e 4.o‑A, os motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, bem como, no artigo 5.o, as garantias a fornecer pelo Estado‑Membro de emissão em casos especiais (48).

96.      Não se pode deixar de observar que a não indicação, no mandado de detenção europeu, da existência de uma pena acessória não figura entre os motivos de não execução enumerados nos artigos 3.o, 4.o e 4.o‑A da decisão‑quadro e não é tão‑pouco abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 5.o desta última.

97.      Neste contexto, e uma vez que se concluiu que a falta de menção da pena acessória no mandado de detenção europeu não constitui uma irregularidade que afete a validade do referido mandado nem um motivo de não execução do mesmo, quais deverão ser as eventuais consequências desta irregularidade?

98.      Para responder a esta questão, há que ter em consideração o duplo objetivo da obrigação de indicar a pena proferida no mandado de detenção europeu.

99.      Em primeiro lugar, trata‑se de fornecer ao Estado‑Membro de execução as informações necessárias para a entrega da pessoa em causa e de lhe permitir exercer o seu controlo sobre esse mandado (mesmo que esse controlo seja mínimo). A indicação da pena visa, portanto, verificar que o mandado é abrangido pelo âmbito de aplicação da decisão‑quadro, ou seja, que a pena proferida é privativa de liberdade e superior a quatro meses em conformidade com o artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro (49). Esta indicação visa igualmente assegurar o respeito da garantia prevista no artigo 5.o, n.o 2, da decisão‑quadro no que diz respeito às penas ou medidas de segurança privativas da liberdade com caráter perpétuo.

100. Em segundo lugar, trata‑se de assegurar o respeito dos direitos da pessoa procurada. Nos termos do artigo 11.o, n.o 1, da decisão‑quadro, esta pessoa tem o direito de ser informada da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu e de consentir ao não na sua entrega.

101. Para atingir estes objetivos, o sistema instituído pela decisão‑quadro prevê procedimentos em caso de informações incompletas ou em falta. Estes procedimentos estão à disposição dos diferentes atores do processo de entrega, designadamente do Estado‑Membro de emissão, do Estado‑Membro de execução e da pessoa procurada, de forma a assegurar em relação a cada um deles o respeito pelos seus direitos e prerrogativas respetivos mediante um «controlo» que se pretende multilateral, de maneira a não comprometer a eficácia do sistema.

102. Assim, o Estado‑Membro de emissão pode, a qualquer momento e por iniciativa própria, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução, em conformidade com o artigo 15.o, n.o 3, da decisão‑quadro.

103. Por sua vez, de acordo com o artigo 15.o, n.o 2, da decisão‑quadro, o Estado‑Membro de execução pode, caso constate que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes ou incompletas, pedir a comunicação das informações complementares que considere necessárias para tomar uma decisão sobre a entrega da pessoa em causa (50). Esta comunicação entre as autoridades de emissão e de execução constitui um elemento essencial da cooperação judiciária em que o sistema de reconhecimento mútuo se baseia (51).

104. Sublinho que, no regime simplificado de entrega de pessoas procuradas instituído pela decisão‑quadro, o conteúdo do mandado de detenção europeu previsto no seu artigo 8.o, n.o 1, corresponde às informações que visam fornecer os elementos formais mínimos e suficientes para permitir às autoridades judiciárias de execução darem rapidamente seguimento ao mandado de detenção europeu, adotando com urgência a sua decisão quanto à entrega. Só quando considerar que não dispõe de todos os elementos formais necessários é que a autoridade judiciária de execução recorrerá, em última instância, ao procedimento previsto no artigo 15.o, n.o 2 (52).

105. A posição da pessoa procurada é particularmente importante, sobretudo quando as autoridades competentes de emissão e de execução não detetaram (e não estariam possivelmente em posição de detetar) essa irregularidade.

106. A pessoa procurada beneficia de garantias ao longo do processo de entrega que lhe permitem fazer valer os seus direitos e invocar eventuais irregularidades do mandado de detenção europeu.

107. A este respeito, observo que, embora as obrigações impostas aos Estados‑Membros pela decisão‑quadro se refiram a matérias que são essencialmente processuais, isso não significa que o legislador não teve em conta os direitos fundamentais e os direitos humanos na adoção da decisão‑quadro. Pelo contrário: fê‑lo de diversas formas (53).

108. Com efeito, a decisão‑quadro comporta referências expressas a esses direitos. É o que decorre claramente, por exemplo, dos considerandos 10, 12 e 13. Mais fundamentalmente, o artigo 1.o, n.o 3, prevê que a decisão‑quadro não deve ter por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados no atual artigo 6.o TUE. Por outro lado, o respeito da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia impõe‑se, tal como resulta do seu artigo 51.o, n.o 1, aos Estados‑Membros e, por conseguinte, aos seus órgãos jurisdicionais, quando estes aplicam o direito da União. Este é o caso quando a autoridade judiciária de emissão e a autoridade judiciária de execução aplicam as disposições nacionais adotadas em execução da decisão‑quadro (54).

109. A decisão‑quadro contém igualmente um certo número de disposições específicas destinadas a proteger os direitos da pessoa procurada. No contexto do processo de entrega, o legislador europeu garantiu o respeito do direito de ser ouvido no Estado‑Membro de execução de modo a não comprometer a eficácia do mecanismo do mandado de detenção europeu (55).

110. Deste modo, nos termos do artigo 11.o, n.o 1, da decisão‑quadro, a pessoa procurada tem o direito de ser informada da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu. Além disso, o artigo 11.o, n.o 2, e o artigo 13.o, n.o 2, da decisão‑quadro preveem que a pessoa procurada tem o direito de ser assistida por um defensor quando consente na sua entrega e, eventualmente, renuncia à regra da especialidade. Por outro lado, por força dos artigos 14.o e 19.o da decisão‑quadro, a pessoa procurada, se não consentir na sua entrega e for objeto de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de um procedimento penal, dispõe do direito de ser ouvida pela autoridade judiciária de execução nas condições determinadas de comum acordo com a autoridade judiciária de emissão (56).

111. Resulta das informações fornecidas ao Tribunal de Justiça que IK não ignorava nem a existência nem a duração da pena, incluindo da pena acessória. Na audiência, o seu advogado afirmou mesmo que IK não consentiu na sua entrega, razão pela qual esta última foi decidida pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), mas que IK não invocou nesse tribunal a falta de menção da pena acessória no mandado de detenção europeu.

112. IK teve, portanto, oportunidade de invocar a irregularidade do mandado de detenção europeu durante o processo de entrega. Além disso, com exceção de algumas referências de ordem geral aos direitos decorrentes do artigo 6.o CEDH e do artigo 48.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais, IK não invocou, nem nas suas observações escritas, nem na audiência, nenhuma violação dos seus direitos fundamentais no decurso do processo de entrega ou mesmo fora deste.

113. Volto agora à imagem do círculo que utilizei acima (n.o 83) para descrever o alcance e os efeitos do mandado de detenção europeu e do processo de entrega.

114. No presente processo, quando este círculo se abriu com a emissão do mandado de detenção europeu destinado à entrega de IK e que este último foi detido, IK teve oportunidade de invocar a falta de menção da pena acessória no mandado de detenção europeu. Não tendo procedido deste modo durante o procedimento de execução do mandado de detenção europeu, o círculo fechou‑se com a execução do referido mandado e a sua entrega às autoridades belgas. Por conseguinte, IK já não pode invocar esta irregularidade material três anos mais tarde, no âmbito de um processo sem qualquer relação com o mandado de detenção europeu, que consiste em decidir das modalidades de execução da pena acessória.

115. Admitir o contrário excederia os limites do processo de entrega, bem como o alcance da decisão judiciária que é o mandado de detenção europeu.

116. Na mesma ótica, rejeito igualmente a argumentação da Comissão, segundo a qual a autoridade judiciária de emissão teria sempre a possibilidade de informar a autoridade judiciária de execução da existência da pena acessória mediante o procedimento previsto no artigo 15.o, n.os 2 e 3, da decisão‑quadro.

117. Esta solução é, creio eu, contrária tanto ao sistema de entrega instituído pela decisão‑quadro como à redação e ao objetivo do artigo 15.o, n.os 2 e 3.

118. De facto, a epígrafe do artigo 15.o é clara: este procedimento de informações complementares aplica‑se com vista à adoção da decisão de entrega. Ademais, este artigo foi inserido no capítulo 2 da decisão‑quadro, com a epígrafe «Processo de entrega». Portanto, o objetivo desta disposição consiste em permitir à autoridade judiciária de emissão a obtenção das informações necessárias para conceder a entrega. Alargar este procedimento para além do processo de entrega não teria em conta o facto de que o sistema estabelecido pela decisão‑quadro (i) tem um alcance limitado pelo seu artigo 1.o, n.o 1, à detenção e à entrega da pessoa procurada, e (ii) pretende‑se célere e eficaz. Perpetuar eventuais trocas entre as autoridades judiciárias de emissão e de execução até mesmo muitos anos depois da execução de um mandado de detenção europeu parece‑me inútil e potencialmente prejudicial para a eficácia do sistema.

119. Decorre do que precede que o sistema estabelecido pela decisão‑quadro não permite pôr em causa a execução de uma pena acessória nacional pelo facto de esta não ter sido mencionada num mandado de detenção europeu que foi executado.

120. Por razões de exaustividade, acrescento que a argumentação apresentada ao Tribunal de Justiça, segundo a qual, quando o mandado de detenção europeu foi emitido apenas em relação à pena principal e a decisão de entrega diz apenas respeito a esta pena, é unicamente esta pena que pode ser executada pelo Estado de emissão, não encontra fundamento na decisão‑quadro. Esta argumentação parece‑me alicerçar‑se numa ótica de extradição e de soberania nacional em que o Estado requerente não pode ir além dos elementos abrangidos pelo consentimento do Estado requerido. Ora, no contexto do espaço de liberdade, segurança e justiça, impregnado de confiança mútua, já não se trata de pôr em contacto dois Estados soberanos, o requerente e o requerido, que atuam em posições autónomas (57). Pelo contrário, trata‑se de cooperar lealmente para alcançar os objetivos da decisão‑quadro que convergem para a entrega célere e eficaz das pessoas procuradas.

121. Por conseguinte, proponho responder à segunda e terceira questões submetidas à apreciação do Tribunal de Justiça no sentido de que a falta de menção de uma pena acessória (como a que está em causa no presente processo) no mandado de detenção europeu na origem da entrega da pessoa em causa não pode impedir a execução desta pena quando a mesma foi proferida em conformidade com as disposições nacionais relevantes.

 Conclusão

122. Pelos fundamentos expostos, proponho ao Tribunal de Justiça responder às questões submetidas pelo Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica) nos seguintes termos:

1)      Uma pena acessória, como a que está em causa no presente processo, deve ser mencionada no campo c), ponto 2, do mandado de detenção europeu, por força do artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, na redação que lhe foi dada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009.

2)      A falta de menção de uma pena acessória (como a que está em causa no presente processo) no mandado de detenção europeu na origem da entrega da pessoa em causa não pode impedir a execução desta pena quando a mesma foi proferida em conformidade com as disposições nacionais relevantes.


1      Língua original: francês.


2      Decisão‑Quadro de 13 de junho de 2002 (JO 2002, L 190, p. 1), na redação que lhe foi dada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «decisão‑quadro»).


3      É pacífico que nenhum destes motivos é relevante no caso em apreço.


4      Aquando da audiência, o representante de IK confirmou que o artigo 4.o‑A não era aplicável ao caso em apreço.


5      Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris, em 13 de dezembro de 1957 (a seguir «Convenção de 1957»).


6      Convenção estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, assinada em 27 de setembro de 1996 (JO 1996, C 313, p. 11, a seguir «Convenção de 1996»).


7      Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic (C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 58 e jurisprudência referida).


8      V. Conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999, designadamente n.o 35.


9      V. considerando 5 da decisão‑quadro.


10      V. considerando 5 da decisão‑quadro.


11      V. Conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2006:552, n.o 43).


12      Assim, este antigo motivo de recusa de extradição não foi retomado pela decisão‑quadro. V. proposta de decisão‑quadro do Conselho relativa ao mandado de captura europeu e aos procedimentos de entrega entre Estados‑Membros (COM (2001) 522 final), ponto 4.5 (a seguir «proposta de decisão‑quadro»).


13      Artigo 2.o, n.o 2, da decisão‑quadro.


14      Artigos 3.o, 4.o e 4.o‑A da decisão‑quadro.


15      V. Manual europeu sobre a emissão e a execução de um mandado de detenção europeu, Conselho da União Europeia, 8216/1/08 REV 1 COPEN 70 EJN 26 EUROJUST 31 (a seguir «manual»), p. 4. Subscrevo totalmente a abordagem do meu saudoso colega e amigo, o advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer, que sublinha, nas suas Conclusões no processo Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2006:552, n.o 41), que «a passagem da extradição para o mandado de detenção europeu implica um giro copernicano. É óbvio que ambos servem o mesmo fim de entregar um acusado ou um condenado às autoridades de outro Estado, para o julgarem ou executarem a condenação; mas acabam aí as similitudes».


16       Acórdão de 3 de maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2007:261, n.o 28).


17      Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.o 36).


18      Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.o 36).


19      V. Conclusões do Conselho Europeu de Tampere.


20      Artigo 82.o, n.o 1, TFUE.


21      V. considerando 10 da decisão‑quadro e Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo RO (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:644, n.o 42).


22      Proposta de decisão‑quadro, ponto 2.


23      Artigo 1.o, n.o 1, da decisão‑quadro.


24      Artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro.


25      Zaïri, A., Le principe de la spécialité de l'extradition au regard des droits de l'homme, LGDJ, Paris, 1992, p. 30.


26      Blekxtoon, R., «Commentary on an Article by Article basis», Handbook on the European Arrest Warrant, TMC Asser Press, the Hague, 2005, p. 261.


27      Proposta de decisão‑quadro, ponto 4.5, alínea 6), e artigo 41.o da decisão‑quadro proposta.


28      Destaco, a este respeito, a passagem da formulação relativa aos procedimentos penais por «factos» cometidos antes da entrega, utilizada nas Convenções de 1957 e de 1996, à formulação relativa aos procedimentos penais por «outras infrações» constante da decisão‑quadro. A jurisprudência já teve oportunidade de interpretar o conceito de «infração diferente» daquele por que a pessoa foi entregue. Deste modo, no Acórdão de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov (C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669, n.o 57), o Tribunal de Justiça decidiu que, para determinar se se trata ou não de uma «infração diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, há que verificar se os elementos constitutivos da infração, segundo a descrição legal que é feita desta última no Estado‑Membro de emissão, são aqueles em virtude dos quais a pessoa foi entregue e se há uma correspondência suficiente entre os dados que figuram no mandado de detenção e os mencionados no ato processual posterior. São admitidas modificações nas circunstâncias de tempo e de lugar, desde que resultem dos elementos coligidos no decurso do processo que corre no Estado‑Membro de emissão relativamente aos comportamentos descritos no mandado de detenção, não alterem a natureza da infração e não deem origem a motivos de não execução nos termos dos artigos 3.o e 4.o da decisão‑quadro.


29      Acórdão de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov (C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669, n.os 43 e 44).


30      V., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2017, Ardic (C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 63 e jurisprudência referida).


31      Acórdão de 28 de julho de 2016, JZ (C‑294/16 PPU, EU:C:2016:610, n.o 37 e jurisprudência referida).


32      Do latim poena, pena, punição, castigo, do grego antigo «ποινή». O termo «ποινή» significa o castigo por um crime e já era utilizado por Homero com a conotação de «preço do sangue» (Ilíada, 14.483).


33      V. campo c) do formulário constante do anexo da decisão‑quadro.


34      Artigo 1.o, n.o 1, e artigo 2.o, n.o 1, da decisão‑quadro. A proposta de decisão‑quadro explica que o âmbito de aplicação do texto proposto diz respeito à entrega das pessoas que foram objeto de uma sentença transitada em julgado condenando‑as a uma pena de prisão com duração superior ou igual a quatro meses (v. ponto 4.5).


35      Acórdão de 28 de julho de 2016, JZ (C‑294/16 PPU, EU:C:2016:610, n.o 54).


36      TEDH, de 20 de abril de 2010, Villa c. Itália (CE:ECHR:2010:0420JUD001967506), §§ 43 e 44.


37      Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.o 36).


38      V. manual, anexo III.


39      V. artigo 1.o, n.o 1, artigo 2.o, n.o 1, e artigo 8.o, n.o 1, alínea f), da decisão‑quadro e campos b), pontos 1 e 2, e c), pontos 1 e 2, do formulário constante do anexo da decisão‑quadro.


40      V. proposta de decisão‑quadro, ponto 4.5.


41      Artigo 8.o, n.o 1, alínea g), da decisão‑quadro.


42      Esta parece ser a posição da Cour de cassation belga (Tribunal de Cassação) no seu Acórdão (2.a Secção) de 17 de junho de 1975. V., igualmente, Acórdão do TEDH de 24 de junho de 1982, Van Droogenbroeck c. Bélgica (ECLI:CE:ECHR:1983:0425JUD000790677, §§ 39 e 40).


43      V. manual, p. 60.


44      Acórdão de 1 de junho de 2016, BobDogiBobDogiBobDogi (C‑241/15, EU:C:2016:385).


45      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385, n.o 64).


46      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385, n.os 64 a 66).


47      Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:131, n.o 109).


48      Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.os 37 e 38 e jurisprudência referida).


49      Este aspeto foi realçado no anexo III do manual, que refere que o campo c) «tem por finalidade registar o facto de o mandado de detenção europeu ser superior aos limiares de duração das penas».


50      V., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas (C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 91), e de 23 de janeiro de 2018, Piotrowski (C‑367/16, EU:C:2018:27, n.o 60).


51      Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Ardic (C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1013, n.o 81).


52      Acórdão de 23 de janeiro de 2018, Piotrowski (C‑367/16, EU:C:2018:27, n.os 59 e 61).


53      V., a este respeito, minhas Conclusões no processo Radu (C‑396/11, EU:C:2012:648, n.os 36 a 39).


54      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385, n.o 34).


55      Acórdão de 29 de janeiro de 2013, Radu (C‑396/11, EU:C:2013:39, n.o 41).


56      Acórdão de 29 de janeiro de 2013, Radu (C‑396/11, EU:C:2013:39, n.os 41 e 42).


57      Com efeito, no antigo contexto da extradição, o Estado requerente pede a colaboração do Estado requerido, que decide caso a caso se a presta, tendo em atenção razões que transcendem o universo estritamente jurídico e entram no âmbito das relações internacionais, assumindo, portanto, um papel relevante o princípio da oportunidade. V. Conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2006:552, n.os 42 a 45).