Language of document : ECLI:EU:C:2019:590

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 10 de julho de 2019(1)

Processo C467/18

Rayonna prokuratura Lom

contra

EP,

com intervenção de:

HO

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Rayonen sad Lukovit (Tribunal Regional de Lukovit, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Diretivas 2012/13/UE, 2013/48/UE e (UE) 2016/343 — Âmbito de aplicação — Atuação policial — Inquérito penal pelo Ministério Público — Processo penal especial de adoção de medidas médicas coercivas — Internamento em hospital psiquiátrico ao abrigo de uma lei diferente da lei penal — Fiscalização jurisdicional efetiva do respeito dos direitos do suspeito ou acusado à informação e ao acesso a um advogado — Presunção de inocência — Pessoas vulneráveis»






1.        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a aplicação das Diretivas 2012/13/UE (2), 2013/48/UE (3) e (UE) 2016/343 (4) no processo penal que correu contra o suspeito de um crime grave que, desde o momento da sua detenção, apresentava sintomas de demência, pelo que foi internado num hospital psiquiátrico.

2.        Essas diretivas estabelecem «normas mínimas comuns sobre a proteção […] dos suspeitos e arguidos [em processo penal]», que visam «reforçar a confiança nos sistemas de justiça penal entre os Estados‑Membros e, deste modo, facilitar o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal» (5).

3.        A respeito desta finalidade, poder‑se‑ia perguntar se as três diretivas se destinam a ser aplicadas em processos penais cujas decisões não serão previsível e razoavelmente objeto de reconhecimento mútuo entre os Estados‑Membros. Esta objeção não foi, até ao momento, acolhida pelo Tribunal de Justiça (6). Talvez no futuro, em função da evolução dos reenvios prejudiciais nesta matéria específica, seja oportuno precisar essa corrente jurisprudencial.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Diretiva 2012/13

4.        O artigo 1.o («Objeto») da Diretiva 2012/13 dispõe:

«A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada. […]»

5.        O artigo 2.o («Âmbito de aplicação») da Diretiva 2012/13 estabelece:

«1.      A presente diretiva é aplicável a partir do momento em que a uma pessoa seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro de que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.

[…]»

6.        O artigo 3.o («Direito a ser informado sobre os direitos») da Diretiva 2012/13 especifica:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:

a)      O direito de assistência de um advogado;

[…]

c)      O direito de ser informado da acusação, nos termos do artigo 6.o;

[…]

2.      Os Estados‑Membros asseguram que as informações prestadas por força do n.o 1 devem ser dispensadas oralmente ou por escrito, em linguagem simples e acessível, tendo em conta as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis.»

7.        Nos termos do artigo 4.o («Carta de Direitos aquando da privação da liberdade») da Diretiva 2012/13:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que seja prontamente entregue uma Carta de Direitos por escrito aos suspeitos ou acusados que forem detidos ou presos. Estes devem ter a oportunidade de ler a Carta de Direitos e devem poder conservá‑la na sua posse durante todo o período em que estiverem privados da sua liberdade.

[…]»

8.        O artigo 6.o («Direito à informação sobre a acusação») da Diretiva 2012/13 dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados recebam informações sobre o ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados de ter cometido. Estas informações são prestadas prontamente e com os detalhes necessários, a fim de garantir a equidade do processo e de permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa.

2.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que sejam detidos ou presos sejam informados das razões para a sua detenção ou prisão, incluindo o ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados ter cometido.

3.      Os Estados‑Membros asseguram que, pelo menos aquando da apresentação da fundamentação da acusação perante um tribunal, sejam prestadas informações detalhadas sobre a acusação, incluindo a natureza e qualificação jurídica da infração penal, bem como a natureza da participação do acusado.

4.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados sejam prontamente informados das alterações nas informações prestadas nos termos do presente artigo caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo.»

2.      Diretiva 2013/48

9.        Nos termos do artigo 1.o («Objeto») da Diretiva 2013/48:

«A presente diretiva estabelece regras mínimas relativas aos direitos dos suspeitos ou acusados em processo penal […] de terem acesso a um advogado e de informarem um terceiro da sua privação de liberdade, bem como de comunicarem, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares.»

10.      Em conformidade com o artigo 2.o («Âmbito de aplicação») da Diretiva 2013/48:

«1.      A presente diretiva aplica‑se às pessoas suspeitas ou acusadas em processos penais, a partir do momento em que são informadas pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro, por notificação oficial ou outro meio, de que são suspeitas ou acusadas de terem cometido uma infração penal, independentemente de serem ou não privadas de liberdade. A presente diretiva aplica‑se até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se a pessoa suspeita ou acusada cometeu a infração, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja aplicada ou que um eventual recurso seja apreciado.

[…]

3.      A presente diretiva aplica‑se também, nas mesmas condições que as previstas no n.o 1, às pessoas que não [são] suspeitas nem acusadas mas que, no decurso de um interrogatório pela polícia ou por outra autoridade de aplicação da lei, passem a ser suspeitas ou acusadas.

[…]»

11.      Nos termos do artigo 3.o («Direito de acesso a um advogado em processo penal») da Diretiva 2013/48:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos e acusados tenham direito de acesso a um advogado em tempo útil e de forma a permitir‑lhes exercer de forma efetiva os seus direitos de defesa.

2.      Os suspeitos e acusados devem ter acesso a um advogado sem demora injustificada. Em qualquer caso, os suspeitos ou acusados devem ter acesso a um advogado a partir dos seguintes momentos, conforme o que ocorrer primeiro:

a)      Antes de serem interrogados pela polícia ou por qualquer outra autoridade judicial ou de aplicação da lei;

b)      Quando uma autoridade de investigação ou outra autoridade competente leve a cabo uma diligência de investigação ou de recolha de provas nos termos do n.o 3, alínea c);

c)      Sem demora injustificada, após a privação de liberdade;

d)      Caso tenham sido citados para comparecer perante um tribunal competente em matéria penal, em tempo útil antes de comparecerem perante esse tribunal.

[…]»

12.      O artigo 12.o («Vias de recurso») da Diretiva 2013/48 diz:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados em processos penais e as pessoas procuradas no âmbito de processos de execução de mandados de detenção europeus disponham de vias de recurso efetivas nos termos da lei nacional em caso de violação dos direitos que lhes são conferidos pela presente diretiva.

[…]»

13.      O artigo 13.o («Pessoas vulneráveis») da Diretiva 2013/48 estabelece:

«Os Estados‑Membros asseguram que as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis sejam tidas em conta na aplicação da presente diretiva.»

3.      Diretiva 2016/343

14.      Em conformidade com o artigo 1.o («Objeto») da Diretiva 2016/343:

«A presente diretiva estabelece normas mínimas comuns respeitantes:

a)      a certos aspetos do direito à presunção de inocência em processo penal;

b)      ao direito de comparecer em julgamento em processo penal.»

15.      O artigo 2.o («Âmbito de aplicação») da Diretiva 2016/343 estabelece:

«A presente diretiva aplica‑se às pessoas singulares que são suspeitas da prática de um ilícito penal ou que foram constituídas arguidas em processo penal e a todas as fases do processo penal, isto é, a partir do momento em que uma pessoa é suspeita da prática de um ilícito penal ou é constituída arguida ou é suspeita ou acusada de ter cometido um alegado ilícito penal, até ser proferida uma decisão final sobre a prática do ilícito penal e essa decisão ter transitado em julgado.»

16.      O artigo 3.o («Presunção de inocência») da Diretiva 2016/343 prevê:

«Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido se presume inocente enquanto a sua culpa não for provada nos termos da lei.»

17.      O artigo 6.o («Ónus da prova») da Diretiva 2016/343 dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que recai sobre a acusação o ónus da prova da culpa do suspeito ou do arguido, sem prejuízo da obrigação que incumbe ao juiz ou ao tribunal competente de procurarem elementos de prova, tanto incriminatórios como ilibatórios, e do direito da defesa de apresentar provas em conformidade com o direito nacional aplicável.

[…]»

18.      O artigo 10.o («Vias de recurso») da Diretiva 2016/343 prevê:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido dispõem de uma via de recurso efetiva em caso de violação dos direitos que lhe são conferidos pela presente diretiva.

2.      Sem prejuízo das normas e dos sistemas nacionais em matéria de admissibilidade de provas, os Estados‑Membros asseguram que, na apreciação das declarações feitas por um suspeito ou por um acusado ou das provas obtidas em violação do direito de guardar silêncio e do direito de não se autoincriminar, sejam respeitados os direitos de defesa e a equidade do processo.»

B.      Direito búlgaro

1.      Código Penal

19.      O artigo 33.o do Nakazatelen kodeks (Código Penal) refere que não é penalmente responsabilizado quem tiver atuado num estado de demência que o impeça de entender a natureza ou o significado dos seus atos ou de controlar a sua conduta (7).

20.      Em conformidade com o artigo 89.o do Código Penal, quem tiver praticado um ato perigoso para a sociedade em estado de inimputabilidade pode ser sujeito a tratamento compulsivo em hospital psiquiátrico especializado.

2.      Código de Processo Penal

21.      O artigo 24.o, n.o 1, do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, a seguir «NPK») prevê que não seja instaurado um processo penal ou que o existente seja arquivado quando os atos praticados não constituam um crime.

22.      O artigo 46.o do NPK regula as funções do Ministério Público no processo penal. Compete‑lhe o exercício da ação penal e a direção do inquérito.

23.      O artigo 70.o do NPK diz respeito ao processo de internamento preventivo num hospital psiquiátrico do arguido que padeça de doença mental. O internamento é decidido pela autoridade judicial a pedido do Ministério Público, na sequência de um ato processual em que é necessária a intervenção de um defensor.

24.      O n.o 1, ponto 2, e o n.o 3 do artigo 94.o do NPK exigem a intervenção obrigatória de um defensor no processo penal se o arguido sofrer de perturbações mentais, ordenando que o órgão competente designe um advogado como defensor.

25.      O artigo 242.o, n.o 2, do NPK, no capítulo dedicado às diligências do Ministério Público no termo do inquérito, exige que este fiscalize se durante a investigação foram respeitados os direitos processais do arguido. Caso assim não aconteça, deverá requerer a sanação dos vícios ou saná‑los ele próprio.

26.      O artigo 243.o, n.o 1, ponto 1, do NPK dispõe que o Ministério Público arquiva o processo penal nos casos do artigo 24.o, n.o 1 (ou seja, quando os factos não preencham um tipo legal de crime).

27.      Em conformidade com o artigo 247.o do NPK, relativo à realização do julgamento, este começa com a leitura do despacho de acusação do Ministério Público.

28.      Segundo o artigo 248.o do NPK, compete ao juiz relator, designadamente, verificar se durante a fase de inquérito foram respeitados os direitos processuais do acusado (n.o 2, ponto 3). Caso assim não tenha acontecido, deverá identificar as violações detetadas e remeter o processo ao Ministério Público para que as corrija em conformidade com o artigo 242.o, n.o 2.

29.      O artigo 427.o do NPK inicia a secção dedicada à aplicação de medidas médicas coercivas do artigo 89.o do Código Penal. Estas medidas são propostas pelo Ministério Público e a decisão do tribunal de primeira instância que as aplica é passível de recurso para uma instância superior.

30.      Os artigos 428.o a 431.o do NPK regem o processo de adoção dessas medidas, o qual inclui uma audiência com intervenção do Ministério Público e do defensor da pessoa em causa.

3.      Lei da Saúde

31.      Nos termos do seu artigo 155.o da Zakon za zdraveto (Lei da Saúde), as pessoas com perturbações mentais que necessitem de tratamento especial (definidas no artigo 146.o) são sujeitas a internamento e tratamento compulsivo quando a sua doença as possa levar a cometer um crime, pondo em risco os seus familiares e outras pessoas próximas e a sociedade em geral, ou a atentar de forma grave contra a sua própria saúde.

32.      Os artigos 156.o da Lei da Saúde e seguintes preveem o processo de adoção da medida de internamento, cuja decisão compete ao tribunal de primeira instância da residência da pessoa a quem diz respeito. É imprescindível o requerimento do Ministério Público, a existência de um parecer pericial psiquiátrico e uma audiência em que intervenham a pessoa em causa (se o seu estado de saúde o permitir), o seu defensor e o psiquiatra.

33.      O artigo 165.o, n.o 1, prevê a aplicação supletiva do NPK.

II.    Factos na origem do litígio e questões prejudiciais

34.      Na madrugada de 26 de agosto de 2015, foi encontrado um corpo sem vida e com sinais de violência na via pública da povoação de Medkovets (Lom, Bulgária).

35.      Por volta das 6 horas, quando os agentes da polícia chegaram ao domicílio da vítima, encontraram o filho desta, EP, cujas pernas estavam manchadas de sangue. Das suas respostas a um primeiro interrogatório, nas quais reconhecia ter cometido o crime (8), deduzia‑se que sofria de problemas de saúde mental, pelo que foi detido e conduzido ao serviço de psiquiatria do hospital de Lom, Bulgária.

36.      Em 26 de agosto de 2015, foi feita visita ao local do crime e foram ouvidas as testemunhas. Estas declararam que EP sofria de uma doença mental e que tinha sido internado várias vezes. Um parecer pericial psiquiátrico concluiu que sofria de esquizofrenia paranoide e que, entre 25 e 26 de agosto de 2015, se encontrava num estado de transtorno mental permanente, pelo que não conseguia compreender a natureza e a importância dos seus atos.

37.      Em 12 de setembro de 2015, o Rayonen sad Lom (Tribunal Regional de Lom, Bulgária) ordenou o internamento de EP num hospital psiquiátrico, ao abrigo de um procedimento previsto na Lei da Saúde. Esta situação manteve‑se, pelo menos, até à data de apresentação do pedido de decisão prejudicial.

38.      Em 7 de julho de 2016, a Okrazhna prokuratura Montana (Ministério Público de Montana) suspendeu o processo penal instaurado contra EP, por considerar que «o arguido foi internado compulsivamente e o seu estatuto processual correto ainda não foi determinado».

39.      O Apelativna prokuratura Sofia (Ministério Público junto do Tribunal de Recurso de Sófia, Bulgária), na qualidade de superior hierárquico do Ministério Público de Montana, ordenou ao mesmo a reabertura do processo penal, por ser improcedente a sua suspensão, o que aconteceu em 29 de dezembro de 2017.

40.      Em 1 de março de 2018, o Ministério Público de Montana arquivou o processo penal, por se tratar de «um ato deliberado cometido por EP em estado de inimputabilidade», pelo que deviam ser tomadas medidas médicas coercivas.

41.      A decisão do Ministério Público foi notificada unicamente à filha da vítima e tornou‑se definitiva em 10 de março de 2018.

42.      A respeito de uma questão de competência negativa entre o Rayonen sad Lom (Tribunal Regional de Lom) e o Rayonen sad Lukovit (Tribunal Regional de Lukovit, Bulgária), o Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação, Bulgária) decidiu que o Rayonen sad Lukovit (Tribunal Regional de Lukovit) era competente para decidir do processo penal sobre o internamento de EP, em conformidade com o NPK.

43.      Neste contexto, o Rayonen sad Lukovit (Tribunal Regional de Lukovit) submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O presente processo de aplicação de medidas médicas coercivas que constituem uma forma de coerção estatal contra pessoas que, de acordo com as conclusões do Ministério Público, cometeram um ato que constitui um risco para a sociedade é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13/UE relativa ao direito à informação em processo penal e da Diretiva 2013/48/UE relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal?

2)      As regras processuais búlgaras que regulam o procedimento especial de aplicação de medidas médicas coercivas ao abrigo dos artigos 427.o e seguintes do NPK [Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal búlgaro)] — nos termos das quais o tribunal não tem competência para devolver o processo ao Ministério Público e convidá‑lo a sanar os erros processuais essenciais cometidos no âmbito do processo pré‑contencioso, permitindo‑lhe apenas deferir ou indeferir o pedido de aplicação de medidas médicas coercivas — constituem uma via de recurso efetiva na aceção do artigo 12.o da Diretiva 2013/48/UE e do artigo 8.o da Diretiva 2012/13/UE, conjugados com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que garante à pessoa o direito de contestar em tribunal quaisquer violações dos seus direitos cometidas no âmbito do processo pré‑contencioso?

3)      A Diretiva 2012/13/UE e a Diretiva 2013/48/UE são aplicáveis aos processos penais (pré‑contenciosos) quando o direito nacional, designadamente o Nakazatelno‑protsesualen kodeks, não conhece a figura jurídica do “suspeito” e o Ministério Público não constitui formalmente a pessoa arguido no processo pré‑contencioso, por partir do pressuposto de que a pessoa cometeu o homicídio objeto da investigação em estado de inimputabilidade, razão pela qual arquiva o processo penal sem notificar a pessoa em causa, e pede ao órgão jurisdicional que aplique medidas médicas coercivas contra a referida pessoa?

4)      Deve a pessoa em relação à qual foi solicitado um tratamento médico compulsivo ser considerada “suspeita” na aceção do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13/UE e do artigo 2.o, n.o 3, da Diretiva 2013/48/UE, se, aquando da primeira visita ao local do crime e das medidas de investigação iniciais na residência da vítima e do seu filho, um agente de polícia, depois de ter encontrado vestígios de sangue no corpo daquele, o interrogou sobre os motivos que o levaram a matar a sua mãe e a arrastar o corpo desta para a rua e o algemou depois da resposta a estas questões? Em caso de resposta afirmativa a esta questão, deve a pessoa em causa ser informada logo nessa altura nos termos do artigo 3.o, n.o 1, conjugado com o n.o 2 da Diretiva 2012/13/UE, e nessa situação, de que forma devem ser tomadas em consideração as necessidades específicas da pessoa na aceção do n.o 2 quando os agentes da polícia tinham conhecimento de que a pessoa em causa sofre de uma perturbação mental?

5)      Disposições nacionais como as do caso vertente que permitem, de facto, a privação de liberdade por internamento compulsivo numa instituição psiquiátrica em aplicação de um procedimento previsto na Zakon za zdraveto (Lei da Saúde) (medida preventiva compulsória ordenada quando se demonstre que a pessoa sofre de uma doença mental e que existe o risco de a pessoa cometer um crime, mas não no caso de um crime já cometido) são compatíveis com o artigo 3.o da Diretiva (UE) 2016/343 relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência, quando a verdadeira razão que justificou a abertura do procedimento é o ato que originou um processo penal contra a pessoa internada compulsivamente e contorna‑se, desta forma, o direito a um processo equitativo em caso de detenção de acordo com os requisitos do artigo 5.o, n.o 4, da CEDH, ou seja, um processo no âmbito do qual o tribunal tem competência para verificar tanto a observância das regras processuais como a suspeita que levou à detenção, bem como a legalidade do objetivo prosseguido por essa medida, verificação esta a que o tribunal está obrigado quando a pessoa tiver sido detida no âmbito do procedimento previsto no Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal búlgaro)?

6)      O conceito de “presunção de inocência” na aceção do artigo 3.o da Diretiva (UE) 2016/343 abrange também a presunção de que os inimputáveis não cometeram o ato que constitui um risco para a sociedade de que são acusados pelo Ministério Público até prova em contrário realizada de acordo com as regras processuais (no âmbito de um processo penal e com respeito dos direitos de defesa)?

7)      Disposições nacionais que estabelecem os diversos poderes do órgão jurisdicional relativamente à fiscalização oficiosa da legalidade do processo pré‑contencioso, consoante:

1)      o tribunal aprecia um despacho de acusação do Ministério Público em que se alega que uma pessoa mentalmente sã cometeu um homicídio (artigo 249.o, n.o 1, em conjugação com o n.o 4, do NPK), ou

2)      o tribunal aprecia um pedido do Ministério Público em que se alega que uma pessoa cometeu um homicídio mas que, por essa pessoa sofrer de uma perturbação mental, o ato não configura um crime, e em que se pede que seja decretado judicialmente um tratamento médico compulsivo,

garantem às pessoas vulneráveis o direito a um recurso efetivo, tal como consagrado no artigo 13.o, conjugado com o artigo 12.o da Diretiva 2013/48/UE e no artigo 8.o, n.o 2, conjugado com o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13/UE, e são as diferentes competências do tribunal — que dependem da natureza do processo que, por sua vez, depende da questão de saber se o autor do crime está mentalmente são e pode ser penalmente responsabilizado — compatíveis com o princípio da não discriminação consagrado no artigo 21.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

44.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 17 de julho de 2018, acompanhado de um pedido de tramitação urgente que não foi deferido.

45.      Apresentaram observações escritas EP, os Governos da República Checa e dos Países Baixos, bem como a Comissão Europeia. Não se considerou necessária a realização de uma audiência.

IV.    Apreciação

A.      Observações preliminares

46.      A função do Tribunal de Justiça ao responder às questões prejudiciais consiste em fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio a interpretação das normas de direito da União que lhe possa ser útil para dirimir o litígio. No entanto, não lhe compete emitir juízos sobre a matéria de facto nem sobre a atuação das autoridades nacionais competentes no decurso dos processos, de natureza penal ou outra, que tenham precedido o reenvio prejudicial.

47.      Também não cabe ao Tribunal de Justiça, no exercício das suas funções de interpretação do direito da União, determinar se, numa situação particular, as disposições de qualquer uma das diretivas aplicáveis ao processo penal foram respeitadas (9) e se efetivamente se verificaram as violações dos direitos em causa (10).

48.      As diretivas cuja interpretação é requerida pelo órgão jurisdicional de reenvio contêm regras relativas à atuação das autoridades competentes para salvaguardar, no processo penal, os direitos dos suspeitos ou dos acusados, sob uma tripla perspetiva: i) estes últimos devem receber informação sobre os seus direitos processuais e sobre a acusação contra eles formulada (Diretiva 2012/13); ii) podem ter acesso a um advogado e informar um terceiro da sua privação de liberdade, com o qual poderão comunicar (Diretiva 2013/48); e iii) gozam da presunção de inocência (Diretiva 2016/343).

49.      Uma vez que essas três diretivas apenas dizem respeito ao processo penal, não são aplicáveis aos internamentos psiquiátricos ordenados por razões estritamente médicas, em conformidade com as leis que regulamentam a saúde pública. Estes internamentos estão, efetivamente, sujeitos a uma fiscalização jurisdicional, pois é a liberdade das pessoas que está em jogo, mas isso não significa que os processos que os deliberam tenham natureza penal.

50.      Segundo as informações constantes dos autos, neste processo coexistiram dois tipos de intervenções:

–      a correspondente à aplicação da Lei da Saúde (artigos 155.o e seguintes), ao abrigo da qual o Rayonen sad Lom (Tribunal Regional de Lom) optou, antes de mais, pelo internamento de EP num hospital psiquiátrico;

–      a correspondente ao processo penal instaurado pelo Ministério Público, na sequência de cujo arquivamento o órgão jurisdicional de reenvio [o Rayonen sad Lukovit (Tribunal Regional de Lukovit)] tem de proferir a decisão final sobre o internamento, em conformidade com o NPK. Só neste processo se aplicam as três diretivas acima referidas.

51.      Assim, da resposta do Tribunal de Justiça ficam excluídas as questões relativas à aplicação das diretivas ao procedimento da Lei da Saúde. Esta última autoriza o internamento compulsivo de pessoas com anomalias psíquicas que as possam levar a cometer um crime, pondo em risco os seus familiares e outras pessoas e a sociedade, ou a atentar de forma grave contra a sua própria saúde.

52.      Trata‑se de um procedimento para o qual é competente a autoridade judicial, que, na sequência da tramitação de uma fase de inquérito, optará, se o considerar adequado, pela detenção numa instituição psiquiátrica por períodos de tempo prorrogáveis. Não tem, assim, natureza de um processo penal, e, por conseguinte, não está abrangido pelo objeto de nenhuma das diretivas mencionadas (o artigo 1.o de todas elas, ao definir o seu objeto respetivo, restringe‑o ao processo penal).

53.      O órgão jurisdicional de reenvio argumenta que a prática nacional permite que uma pessoa que cometeu um crime em estado de demência seja internada compulsivamente num hospital psiquiátrico mediante a aplicação da Lei da Saúde, sem dar cumprimento à tramitação habitual do processo penal (11). Mesmo que isto fosse assim, o que importa agora é o facto de o procedimento da Lei da Saúde não ter natureza penal. Se eventualmente for utilizado de forma inadequada, as soluções para esta disfunção de facto devem encontrar‑se no próprio direito nacional (12).

54.      A minha análise não corresponderá ao enunciado das nove perguntas prejudiciais, cujo conteúdo, além disso, se sobrepõe. Prefiro analisar separadamente cada uma das diretivas para deduzir da sua interpretação os elementos de apreciação que possam ajudar o órgão jurisdicional de reenvio.

B.      Incidência da Diretiva 2012/13

1.      Quanto aos direitos a respeitar

55.      A Diretiva 2012/13 contém regras que visam a garantia, no processo penal, de determinados direitos dos suspeitos ou dos acusados. Concretamente, reconhece‑lhes o direito de receber prontamente informação sobre alguns direitos processuais e de ser informados da acusação contra eles formulada.

56.      É qualificada de suspeita a pessoa a quem a autoridade competente comunica que existem indícios da sua participação na prática de uma infração penal (artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13).

57.      À qualidade de suspeito pode acrescer a de detido ou preso. Os artigos 4.o e 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 referem‑se especificamente a esta situação, para obrigar os Estados‑Membros a assegurar que a alguém nessas condições «seja prontamente entregue uma Carta de Direitos por escrito» (artigo 4.o) e que seja informado das razões para a sua detenção ou prisão (artigo 6.o).

58.      O conceito de acusado situa‑se num nível qualitativamente superior, uma vez que implica que a autoridade competente (geralmente, o Ministério Público) já tenha formulado uma acusação específica, atribuindo‑lhe a autoria de uma infração penal.

59.      Como é lógico, a garantia destes direitos cabe à autoridade que intervém em cada uma das fases processuais. Assim deve acontecer, nomeadamente quando, num contexto penal (13), os órgãos policiais procedem a uma detenção (14) ou quando o Ministério Público formula a acusação.

60.      Em conformidade com o seu artigo 2.o, n.o 1, a Diretiva 2012/13 é aplicável até ao termo do processo. Tal significa que «[a] decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado».

61.      Esta redação permite incluir nos seus termos a hipótese em que um processo penal não termina com uma condenação, em sentido estrito, mas sim com uma medida de segurança que se traduz no internamento compulsivo, num hospital psiquiátrico ou similar, da pessoa declarada inimputável em razão da sua demência.

62.      De facto, num âmbito próximo, o artigo 1.o, alínea b), da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI (15) define como «condenação» «qualquer pena ou medida de segurança privativa de liberdade, proferida por um período determinado ou indeterminado, em virtude da prática de uma infração penal, no âmbito de um processo penal». Mais especificamente, o artigo 9.o, n.o 1, alínea k), daquela decisão‑quadro refere «[se a] condenação imposta implicar uma medida do foro médico ou psiquiátrico».

63.      Uma vez assentes estas premissas, a análise das regras processuais nacionais em conjugação com a Diretiva 2012/13 permite dar uma resposta ao órgão jurisdicional de reenvio.

64.      Segundo o NPK, um processo penal pode terminar com a absolvição e, além desta, com a aplicação quer de uma pena (nos termos do processo ordinário) quer de uma medida médica coerciva (em conformidade com o processo especial dos seus artigos 427.o e seguintes). A reação à prática do crime, isto é, a pena, converte‑se em medida de internamento psiquiátrico compulsivo quando o autor do ato criminoso o levou a efeito numa situação de inimputabilidade mental.

65.      Para aplicar quer a pena quer a medida médica coerciva, enquanto consequência da prática do crime (16), a lei nacional exige a tramitação de um verdadeiro processo penal, o que implica que, no decurso deste, têm de ser respeitados os direitos protegidos pela Diretiva 2012/13. Não creio que possam ser afastadas, em nenhuma das duas hipóteses, as garantias que essa diretiva prevê.

66.      Diferente é o facto de, precisamente devido à condição psíquica do suspeito ou do acusado, a informação obrigatória que lhe deve ser prestada sobre os seus direitos poder ser objeto de algumas adaptações. Em alguns casos de particular demência, a entrega à pessoa em causa de um impresso de que constem os seus direitos é inútil, pois não consegue entendê‑los, e tanto esta diligência como a comunicação das acusações formuladas contra ela podem ser efetuadas na pessoa do seu defensor, uma vez que, como passarei a expor, a assistência deste último é perfeitamente insubstituível.

67.      O artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 obriga, com efeito, a que a informação sobre os direitos dos suspeitos ou acusados seja prestada tendo em conta a situação daqueles, quando se trate de «pessoas vulneráveis». Esta expressão abrange os portadores de graves deficiências mentais, cuja compreensão da informação pode ser quase nula.

68.      O objetivo dessa prevenção é o de que a informação possa ser recebida e assimilada pelo seu destinatário. Assim o comprova o «Roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais» (17), ao explicar a «medida E» («Garantias especiais para suspeitos ou acusados vulneráveis») e ao referir que, «[p]ara garantir a equidade do processo, é importante que se dê especial atenção aos suspeitos ou acusados incapazes de compreender ou de acompanhar o conteúdo ou o significado do processo devido, por exemplo, à sua idade ou ao seu estado mental ou físico» (18).

69.      No caso de doentes mentais portadores de incapacidade psiquiátrica grave (como parece acontecer neste processo), a transmissão da informação pode tornar aconselhável a assistência de um terceiro que atue em seu nome (19). De qualquer forma, cabe ao direito nacional arbitrar as soluções necessárias a completar a capacidade das pessoas que não estão em condições de agir por si próprias (20).

2.      Vias de recurso para a proteção dos direitos

70.      Segundo o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, deve assegurar‑se que os suspeitos ou acusados a quem não tenha sido facultada a informação exigível (nos termos dessa diretiva) possam impugnar esta omissão «de acordo com os procedimentos previstos no direito nacional».

71.      O órgão jurisdicional de reenvio afirma que, no processo especial para decidir o internamento de pessoas inimputáveis (artigos 427.o e seguintes do NPK), ao contrário dos processos ordinários, não podia verificar se ocorreram violações de direitos durante a fase de inquérito a cargo do Ministério Público.

72.      Segundo aquele órgão jurisdicional, se o inquérito do Ministério Público terminar com uma decisão de arquivamento porque o arguido é inimputável, o próprio tribunal poderá aprovar o internamento. Nesse momento, poder‑se‑ão revelar eventuais violações dos direitos anteriores, ocorridas durante o inquérito, sem que o órgão jurisdicional tenha poder para apreciar a oportunidade de sanar os vícios constatados (por exemplo, ordenando a retroação das diligências à fase de inquérito). Só lhe compete, afirma o tribunal a quo, decidir pelo internamento ou recusá‑lo.

73.      O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre se, nestas circunstâncias, é respeitado o direito de acesso às vias de recurso efetivas, na aceção do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, para impugnar o facto de a autoridade competente não ter facultado ou ter recusado ao suspeito ou ao acusado a informação devida.

74.      Embora seja ao órgão jurisdicional de reenvio que compete interpretar o seu próprio direito, não parece que se possa excluir um recurso (com base no artigo 243.o, n.o 3, do NPK) contra a decisão de arquivamento do processo adotada pelo Ministério Público, quando posteriormente se inicia o processo (especial) regido pelo artigo 427.o e seguintes daquele código. Este recurso poderia ter como fundamento a violação dos direitos do suspeito ou do acusado durante a fase anterior à decisão do tribunal que, a requerimento do Ministério Público, se pronuncia sobre o internamento daqueles. Ficaria assim aberta a possibilidade de impugnação, na aceção do artigo 8.o da Diretiva 2012/13.

75.      O órgão jurisdicional de reenvio estará a aceitar esta solução quando, no n.o 62 do despacho de reenvio, refere que, se o artigo 427.o e seguintes do NPK não asseguram uma via de recurso efetiva, «poderia aplicar por analogia a garantia processual prevista para os processos ordinários» (21).

76.      Se essa interpretação não fosse possível, as regras processuais búlgaras, nos termos em que são descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio (22), podiam não garantir o direito a um recurso efetivo incluído no artigo 8.o da Diretiva 2012/13, uma vez que nenhum juiz teria a possibilidade de apreciar se foram respeitados, na fase anterior à do artigo 427.o e seguintes do NPK, os direitos protegidos por essa diretiva. Caberia à ordem jurídica nacional, nessa hipótese, retirar as consequências (se fosse o caso, a eventual retroação de diligências para a correção dos vícios ocorridos) dessas violações, caso afetem gravemente as garantias processuais da pessoa em causa.

77.      Por último, há que não esquecer que, no processo regido pelo artigo 427.o e seguintes do NPK, é obrigatório que o defensor da pessoa em causa esteja presente na audiência a realizar no tribunal que decidirá sobre o seu internamento (23). Como é lógico, nessa audiência, o advogado poderá alegar, em defesa do seu cliente, todos os fundamentos da oposição ao internamento, incluindo os que decorram das eventuais irregularidades que as autoridades competentes tenham cometido durante o inquérito no processo penal.

C.      Incidência da Diretiva 2013/48

1.      Quanto aos direitos a respeitar

78.      A Diretiva 2013/48 assegura aos suspeitos ou acusados que, no processo penal, tenham direito à assistência de um advogado e a informar um terceiro da sua privação de liberdade, com o qual poderão comunicar.

79.      Quanto aos conceitos de suspeito ou de acusado, bem como de autoridades competentes, no âmbito da Diretiva 2013/48, remeto para as considerações expostas a respeito da Diretiva 2012/13. Concretamente, a Diretiva 2013/48 refere expressamente a «polícia ou outra autoridade de aplicação da lei» quando o seu artigo 2.o, n.o 3, estende as condições de aplicação de assistência de um advogado às pessoas que, não sendo inicialmente suspeitas ou acusadas, o passem a ser «no decurso de um interrogatório» levado a efeito por aquelas (24).

80.      Uma vez que, como já foi referido, o NPK prevê um verdadeiro processo penal que pode terminar com a aplicação de uma medida médica coerciva (nos termos do processo especial dos artigos 427.o e seguintes), deve ser assegurada à pessoa objeto desse processo a assistência de um advogado e os outros direitos previstos na Diretiva 2013/48.

81.      Ao contrário do que acontece com a Diretiva 2012/13, o estado mental do suspeito ou do acusado não permite limitar o seu direito de assistência por um advogado, quando se tratar de infrações graves (25). Pelo contrário, reforça esse direito, pois aquele não estará, por exemplo, em condições de renunciar validamente à presença do seu advogado (artigo 9.o da Diretiva 2013/48).

82.      Se, como também já expus, as pessoas portadoras de uma demência podem ser consideradas vulneráveis, agora na aceção do artigo 13.o da Diretiva 2013/48, os Estados‑Membros, ao terem em conta as suas necessidades específicas, deverão favorecer essa assistência de advogado.

83.      Segundo as informações constantes dos autos, o NPK tem em consideração este objetivo, pois, se o grau de incapacidade é suficiente para anular o entendimento, deve ser nomeado imediatamente um advogado para que, simultaneamente com a preparação da defesa, assegure que os restantes direitos são devidamente respeitados. No seu artigo 94.o, n.o 1, ponto 2, o NPK prevê, além disso, que a intervenção de um defensor no processo penal é obrigatória se o arguido sofrer de uma incapacidade física ou mental que o impeça de se defender. Nesse caso, o n.o 3 do mesmo artigo prevê que o órgão competente nomeará como defensor um advogado.

84.      Assim, não parece que a legislação búlgara, cuja incompatibilidade com a Diretiva 2013/48 é questionada pelo órgão jurisdicional de reenvio, se oponha a esta última no que respeita à garantia dos direitos cuja proteção exige. Diferente é o facto de, num processo específico, não terem sido respeitados os requisitos legais.

2.      Quanto às vias de recurso

85.      Se, apesar de tudo, esses direitos tiverem sido violados, as observações que desenvolvi sobre as vias de recurso aplicáveis para impugnar as violações da Diretiva 2012/13 são, mutatis mutandis, transponíveis para a Diretiva 2013/48.

D.      Incidência da Diretiva 2016/343

86.      Esta diretiva reforça, em processo penal, determinados aspetos da presunção de inocência e o direito de as pessoas singulares suspeitas ou acusadas nesse tipo de processo estarem presentes no julgamento.

87.      Os Estados‑Membros não eram obrigados a dar cumprimento à Diretiva 2016/343 antes de 1 de abril de 2018 (26). Em consequência, esta diretiva não se pode esgrimir como norma da União aplicável aos processos penais findos antes dessa data.

88.      Neste processo, segundo o despacho de reenvio e os esclarecimentos ulteriores do órgão jurisdicional de reenvio, o arquivamento definitivo do processo penal anterior ao requerimento, pelo Ministério Público, da medida de internamento verificou‑se em 1 de março de 2018. Nesta decisão, deverão ter sido especificados os factos provados, a intervenção do acusado e a sua condição de inimputável.

89.      As vicissitudes desse processo não podem, assim, ratione temporis, ser analisadas à luz da Diretiva 2016/343. Nessa medida, não é igualmente oponível o artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), pois não consta que existisse, antes de 1 de abril de 2018, nenhum elemento que permitisse aplicar o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

90.      É verdade que, como o processo especial para decidir o internamento de EP ainda está pendente de decisão do órgão jurisdicional de reenvio, a Diretiva 2016/343 será aplicável a esse processo a partir de 1 de abril de 2018. Mas as questões prejudiciais submetidas por aquele órgão jurisdicional não incidem, na verdade, sobre a sua própria atuação no âmbito desse processo, mas sim sobre a das autoridades competentes (designadamente, do Ministério Público) no decurso do processo penal findo em 1 de março de 2018.

91.      Por conseguinte, considero que a resposta a esta parte do reenvio prejudicial se deve limitar a afirmar que a Diretiva 2016/343 não é aplicável aos processos penais findos antes de 1 de abril de 2018. No entanto, para o caso de o Tribunal de Justiça ter um entendimento diferente, exporei a minha opinião a esse respeito.

92.      A presunção de inocência protegida pela Diretiva 2016/343 deve aplicar‑se, nos termos do seu artigo 2.o, «a todas as fases do processo penal […] até ser proferida uma decisão final sobre a prática do ilícito penal e essa decisão ter transitado em julgado».

93.      No tenho dúvidas de que, se fosse aplicável ratione temporis a Diretiva 2016/343, os seus requisitos deveriam ter sido observados no processo penal instaurado contra qualquer suspeito ou acusado, o mesmo acontecendo no caso de apresentar sintomas de demência. O facto de ser o Ministério Público que, no processo penal, protagoniza o inquérito, em nada obsta a que, nesta etapa do processo penal anterior ao julgamento, se deva cumprir a Diretiva 2016/343.

94.      A presunção de inocência protegida pela Diretiva 2016/343 aplica‑se, insisto, em todas as fases de todos os processos penais por crimes graves (27). É irrelevante, para este efeito, que as pessoas a cuja prática criminosa o processo diz respeito sofram de doenças mentais que determinam a declaração da sua inimputabilidade no termo daquele processo.

95.      Devo referir, de qualquer forma, que a presunção de inocência, tal como não se opõe necessariamente à prisão preventiva, também não impede o internamento num hospital psiquiátrico do suspeito da prática de um crime em estado de demência. Também não obsta, como dispõe o artigo 4.o da Diretiva 2016/343, a «decisões preliminares de caráter processual proferidas pelas autoridades judiciárias ou por outras autoridades competentes e baseadas em suspeitas ou em elementos de acusação».

V.      Síntese referida às questões prejudiciais

96.      Com as considerações anteriores creio que se pode dar resposta às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio:

–      quanto às Diretivas 2012/13 e 2013/48, essas considerações dizem respeito ao conteúdo da primeira a quarta questões, ambas incluídas, e da sétima questão (primeira parte);

–      quanto à Diretiva 2016/343, dizem respeito ao conteúdo da quinta e sexta questões.

97.      A sétima questão desdobra‑se numa outra, na qual o órgão jurisdicional de reenvio alude ao artigo 21.o da Carta, perguntando se o princípio da não discriminação se opõe a que as competências de um órgão jurisdicional possam ser diferentes consoante as pessoas objeto do processo sejam ou não mentalmente sãs. Como, em meu entender, a situação dessas pessoas portadoras de uma demência não é comparável com a das que estão no pleno uso das suas faculdades, não é possível falar de discriminação pelo facto de, para as primeiras, se preverem normas processuais específicas. Isto não obsta a que as garantias que, segundo as diretivas já referidas, devem ser respeitadas se tenham de aplicar quer a umas pessoas quer a outras, como já expliquei.

VI.    Conclusão

98.      Face ao exposto, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda ao Rayonen sad Lukovit (Tribunal Regional de Lukovit, Bulgária) nos seguintes termos:

«1)      A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, deve ser interpretada no sentido de que se aplica a todas as fases desse processo, a partir do momento em que as autoridades comunicam a uma pessoa que é suspeita de uma infração penal, o mesmo acontecendo quando essa pessoa sofre de demência.

2)      A Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares, é aplicável, nos períodos nela previstos, aos suspeitos ou aos acusados que se encontrem numa situação de demência.

3)      Os direitos protegidos pelas Diretivas 2012/23 e 2013/48 devem ser respeitados, nos termos por elas estabelecidos, nas diligências de investigação penal levadas a efeito pelos agentes da polícia, na fase de inquérito em processo penal a cargo do Ministério Público e num processo especial de aplicação de medidas médicas coercivas, para os casos de crimes cometidos por pessoas em situação de inimputabilidade mental, tal como o regulado pelos artigos 427.o e seguintes do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal).

4)      A Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, não é aplicável aos processos penais definitivamente encerrados antes de 1 de abril de 2018.

5)      O processo para decidir, por razões médicas, o internamento compulsivo num hospital psiquiátrico das pessoas que sofrem de doenças mentais, como o regulado nos artigos 155.o e seguintes da Zakon za zdraveto (Lei da Saúde), não está abrangido pelo âmbito de aplicação das Diretivas 2012/13, 2013/48 e 2016/343.»


1      Língua original: espanhol.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1).


3      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares (JO 2013, L 294, p. 1).


4      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).


5      Considerando 10 da Diretiva 2016/343.


6      Nas Conclusões de 5 de fevereiro de 2019, no processo Moro (C‑646/17, EU:C:2019:95), o advogado‑geral M. Bobek defendeu que «a aplicabilidade da Diretiva 2012/13 não exige que o processo concreto perante o juiz nacional apresente uma dimensão transfronteiriça» (n.o 44). Aduziu, neste sentido, entre outros argumentos, que o Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o. (C‑612/15, EU:C:2018:392), interpretou aquela mesma diretiva sem que, aparentemente, «existisse qualquer elemento transfronteiriço identificável». O Tribunal de Justiça, no Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489), defendeu esta mesma posição.


7      https://www.legislationline.org/documents/section/criminal‑codes/country/39/Bulgaria/show


8      Segundo os agentes da polícia, EP disse‑lhes que tinha matado a mãe porque esta o tinha traído e o tinha denunciado à máfia sérvia. Quando lhe perguntaram por que razão tinha levado o corpo para a estrada, respondeu que era para que o seu jardim não ficasse a cheirar mal.


9      Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o. (C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 81).


10      Conforme consta do seu despacho (n.os 17 e 18), o órgão jurisdicional de reenvio chamou a atenção do Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação) para o facto de EP não ter sido informado dos seus direitos, designadamente do direito de saber do que é acusado, do direito de lhe ser nomeado um defensor ou do direito a impugnar a decisão do Ministério Público. Acrescenta que o Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação) «declarou, sem fundamentar a sua apreciação, que as observações do juiz relator quanto às restrições ao direito de defesa de [EP] eram infundadas».


11      É ao tribunal nacional que cabe a interpretação do seu direito, mas a Lei da Saúde parece oferecer garantias suficientes, dado o procedimento contraditório e a decisão final de um órgão indubitavelmente jurisdicional como o de reenvio.


12      Como decorre do despacho de reenvio, o NPK regula a prisão preventiva e a medida equivalente relativa a pessoas em estado de demência (artigo 70.o), de modo que recorrer ao procedimento da Lei da Saúde poderia dissimular um excesso de jurisdição, a cargo de um juiz sem competências de natureza penal. No entanto, insisto, a solução para este hipotético excesso tem de se encontrar na ordem jurídica nacional, enquanto instrumento para a resolução de um eventual conflito entre os seus órgãos jurisdicionais.


13      Há que ter em conta que a polícia é competente para a instauração e para o tratamento de processos em matéria de infrações administrativas que afetem, por exemplo, a segurança dos cidadãos ou a ordem em locais públicos. Esses processos não têm necessariamente natureza penal.


14      Os considerandos 19 e 28 da Diretiva 2012/13 preveem que a informação ao suspeito ou acusado seja prestada «pelo menos antes da sua primeira entrevista oficial pela polícia». O considerando 22 refere‑se, de modo explícito, àquela informação relativamente às pessoas «[…] privadas da liberdade pela intervenção das autoridades encarregadas da aplicação da lei no contexto de processos penais». (O sublinhado é meu.)


15      Decisão‑Quadro do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27).


16      Deixo de fora, como já referi, o processo de natureza não penal regulado pela Lei da Saúde.


17      Resolução do Conselho de 30 de novembro de 2009 (JO 2009, C 295, p. 1).


18      O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão de 30 de janeiro de 2001, Vaudelle c. França (CE:ECHR:2001:0130JUD003568397, § 65), defendeu que, se a pessoa em causa sofre de perturbações mentais, as autoridades devem tomar medidas suplementares para que possa ser informada detalhadamente da natureza e da causa da acusação contra ela formulada.


19      V. pontos 9 e 10 da Recomendação da Comissão, de 27 de novembro de 2013, sobre as garantias processuais das pessoas vulneráveis suspeitas ou arguidas em processo penal (JO 2013, C 378, p. 8), que utiliza o conceito de «adulto habilitado».


20      O NPK responderá a esta lógica: se o grau de incapacidade é suficiente para anular o entendimento, deve ser nomeado imediatamente um advogado para que, simultaneamente com a preparação da defesa, assegure que os restantes direitos são devidamente respeitados. No seu artigo 94.o, n.o 1, ponto 2, o NPK prevê que a intervenção do defensor no processo penal é obrigatória se o arguido sofrer de uma incapacidade física ou mental que o impeça de se defender. Nesse caso, o n.o 3 do mesmo artigo dispõe que o órgão competente nomeia um advogado como defensor.


21      Esta interpretação não seria estranha à ordem jurídica búlgara: com efeito, a Lei da Saúde, em princípio mais afastada da regulamentação processual geral do que o próprio processo especial de internamento, prevê, no seu artigo 165.o, n.o 1, a aplicação supletiva do NPK.


22      O Governo búlgaro e o Ministério Público recusaram intervir neste processo prejudicial, pelo que a exposição do direito nacional e da sua interpretação se restringe à facultada pelo órgão jurisdicional de reenvio.


23      Artigo 430.o, n.os 2 e 3, do NPK. A pessoa cujo internamento se requer também pode comparecer nessa audiência, exceto se o seu estado de saúde o impedir.


24      É também o que o TEDH entende no seu Acórdão de 10 novembro de 2016, Kuripka c. Ucrânia (CE:ECHR:2016:1110JUD000791807).


25      Relativamente às infrações de menor gravidade, o artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 2013/48 admite determinadas limitações, de modo que as suas garantias se apliquem apenas aos processos instaurados num tribunal competente em matéria penal.


26      Artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343.


27      O artigo 7.o, n.o 6, introduz algumas adaptações para as infrações menores.