Language of document : ECLI:EU:C:2005:579

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

F. G. JACOBS

apresentadas em 27 de Setembro de 2005 1(1)

Processo C‑341/04

Eurofood IFSC Ltd

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Supreme Court of Ireland (Irlanda)]





1.        O presente processo, reenviado pela Supreme Court of Ireland, tem origem na insolvência do grupo de empresas Parmalat. Trata‑se, em especial, da questão de saber se o regulamento relativo aos processos de insolvência (2) exige que uma filial irlandesa da empresa‑mãe italiana Parmalat SpA (a seguir «Parmalat») seja liquidada na Irlanda ou na Itália.

 O regulamento relativo ao processo de insolvência

2.        O regulamento sucedeu à Convenção da União Europeia relativa aos processos de insolvência (a seguir «Convenção»), ela própria o culminar de mais de 25 anos de debates e negociações. A Convenção não entrou em vigor, uma vez que o Reino Unido não a assinou até ao termo do prazo acordado de 23 de Maio de 1996 (3). Contudo, o texto do regulamento é, para efeitos do presente processo, idêntico em todos os seus aspectos materiais ao texto da Convenção (4). Nestas condições, entendo que o relatório explicativo da Convenção, elaborado pelo professor Virgós e pelo Sr. Schmit (a seguir «relatório Virgós‑Schmit») (5), pode fornecer indicações úteis para a interpretação do regulamento (6).

3.        O regulamento foi adoptado com base nos artigos 61.°, alínea c), CE e 67.°, n.° 1, CE, por iniciativa da Alemanha e da Finlândia (7). Prevê, no essencial, a atribuição de competência e o direito aplicável e o mútuo reconhecimento dos processos de insolvência dentro do seu âmbito de aplicação, nomeadamente dos «processos colectivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico» (8). O regulamento não tem quaisquer disposições sobre grupos de empresas; cada empresa sujeita a um processo de insolvência é um «devedor» a título próprio, para efeitos do regulamento (9).

4.        O segundo considerando refere:

«O bom funcionamento do mercado interno exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz. A aprovação do presente regulamento é necessária para alcançar esse objectivo.»

5.        O quarto considerando refere:

«Para assegurar o bom funcionamento do mercado interno, há que evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou acções judiciais de um Estado‑Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável (forum shopping).»

6.        A primeira frase do décimo primeiro considerando refere:

«O presente regulamento reconhece que não é praticável instituir um processo de insolvência de alcance universal em toda a Comunidade […].»

7.        O décimo terceiro considerando refere:

«O ‘centro dos interesses principais’ do devedor deve corresponder ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, pelo que é determinável por terceiros.»

8.        O décimo sexto considerando refere:

«O órgão jurisdicional competente para abrir o processo de insolvência principal deve poder ordenar a adopção de medidas provisórias e cautelares a partir da apresentação do requerimento para abertura do processo. [...] [O] síndico provisório designado antes da abertura do processo principal deve estar habilitado a requerer, nos Estados‑Membros em que se encontre qualquer estabelecimento do devedor, as medidas cautelares admissíveis nos termos das legislações desses Estados.»

9.        O vigésimo segundo considerando refere:

«O presente regulamento deve prever o reconhecimento imediato de decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como de decisões proferidas em conexão directa com esses processos. Assim sendo, o reconhecimento automático deve conduzir a que os efeitos conferidos ao processo pela lei do Estado de abertura se estendam a todos os outros Estados‑Membros. O reconhecimento das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros tem de assentar no princípio da confiança mútua. Neste contexto, os motivos do não reconhecimento devem ser reduzidos ao mínimo. A resolução de conflitos entre os órgãos jurisdicionais de dois Estados‑Membros que se considerem competentes para proceder à abertura do processo principal dever‑se‑á regular por este mesmo princípio. A decisão proferida pelo órgão jurisdicional que proceder à abertura em primeiro lugar deve ser reconhecida nos demais Estados‑Membros, sem que estes estejam habilitados a submeter a decisão desse órgão jurisdicional a quaisquer formalidades de reconhecimento.»

10.      O vigésimo terceiro considerando refere:

«[…] Salvo disposição em contrário do presente regulamento, deve aplicar‑se a lei do Estado‑Membro de abertura do processo (lex concursus). […] A lex concursus determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.»

11.      O artigo 1.°, n.° 1, dispõe:

«O presente regulamento é aplicável aos processos colectivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico.»

12.      O artigo 2.° inclui as seguintes definições para efeitos do regulamento:

«a)      ‘Processos de insolvência’, os processos colectivos a que se refere o n.° 1 do artigo 1.° A lista destes processos consta do Anexo A;

b)      ‘Síndico’, qualquer pessoa ou órgão cuja função seja administrar ou liquidar os bens de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido ou fiscalizar a gestão dos negócios do devedor. A lista destas pessoas e órgãos consta do Anexo C;

[...]

e)      ‘Decisão’, quando se utilize em relação à abertura de um processo de insolvência ou à nomeação de um síndico, a decisão de um órgão jurisdicional competente para abrir um processo dessa natureza ou para nomear um síndico.

f)      ‘Momento de abertura do processo’, o momento em que a decisão de abertura produz efeitos, independentemente de essa decisão ser ou não definitiva».

13.      O Anexo A inclui (sob a epígrafe «Irlanda») «Compulsory winding up by the court» [liquidação obrigatória pelo tribunal]. O Anexo C inclui (sob a epígrafe «Irlanda») «Provisional liquidator» [síndico provisório] (10).

14.      O artigo 3.° do regulamento dispõe, no que ao caso importa:

«1.   Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume‑se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária.

2.     No caso do centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado‑Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado‑Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território».

15.      O artigo 3.° tem o efeito de distinguir entre dois tipos de processo de insolvência. Os previstos no artigo 3.°, n.° 1, nomeadamente os processos abertos pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde está situado o centro dos interesses principais do devedor, são geralmente denominados «processos [de insolvência] principais». Os previstos no artigo 3.°, n.° 2, nomeadamente os processos abertos pelos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro onde o devedor possui um estabelecimento, e limitados aos bens situados nesse Estado, são geralmente denominados «processos [de insolvência] secundários».

16.      O artigo 4.°, n.° 1, fixa a regra geral de que «a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado‑Membro em cujo território é aberto o processo […]». O artigo 4.°, n.° 2 especifica que a lei do Estado de abertura do processo «determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência».

17.      O primeiro parágrafo do artigo 16.°, n.° 1, dispõe:

«Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro competente por força do artigo 3.°, é reconhecida em todos os outros Estados‑Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo.»

18.      O artigo 26.° dispõe:

«Qualquer Estado‑Membro pode recusar o reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro ou execução de uma decisão proferida no âmbito de um processo dessa natureza, se esse reconhecimento ou execução produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição.»

19.      O artigo 38.° dispõe:

«Se o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro competente por força do n.° 1 do artigo 3.° designar um síndico provisório a fim de assegurar a conservação dos bens do devedor, esse síndico provisório está habilitado a requerer quaisquer medidas de conservação ou de protecção dos bens do devedor que se encontrem noutro Estado‑Membro, previstas na lei desse Estado, pelo período compreendido entre o requerimento de abertura de um processo de insolvência e a decisão de abertura.»

 Disposições aplicáveis do direito irlandês

20.      A section 212 do Companies Act 1963 atribui competência à High Court para presidir à liquidação de qualquer empresa.

21.      A section 215 desse Act dispõe que o pedido de liquidação de uma empresa a submeter ao órgão jurisdicional deverá ser apresentado por petição pela empresa ou por qualquer credor ou credores.

22.      A section 220 prevê o seguinte:

«1. Sempre que, antes da apresentação de um pedido de liquidação de uma empresa pelo tribunal, seja aprovada pela empresa uma deliberação de liquidação voluntária, considerar‑se‑á que a liquidação da empresa se inicia no momento da aprovação da deliberação e, a não ser que o órgão jurisdicional entenda por bem instruir de outra forma, em caso de erro ou fraude comprovados, todos os procedimentos realizados no âmbito da liquidação voluntária serão considerados válidos.

2. Nos outros casos, considera‑se que a liquidação de uma empresa por um tribunal se inicia no momento da apresentação do pedido de liquidação.»

23.      A section 226(1) determina que o tribunal pode nomear um síndico provisório, a qualquer momento depois da apresentação de um pedido de liquidação e antes da primeira nomeação de síndicos, a qual é feita, por força da section 225, no momento do despacho de liquidação. Nos termos da section 229(1), uma vez nomeado, o síndico provisório é obrigado a «assegurar a guarda dos bens ou a colocar sob o seu controlo todos os bens e direitos que a empresa possa ou pareça poder reclamar judicialmente» (section 229(1) do Act).

 Antecedentes empresariais do processo de insolvência

24.      Os seguintes factos – e os factos resumidos na secção a seguir – foram retirados do pedido de decisão prejudicial.

25.      A Eurofood IFSC Ltd (a seguir «Eurofood») é uma empresa constituída e registada na Irlanda. É filial a 100% da Parmalat, uma empresa constituída em Itália, que operava através das suas filiais em mais de 30 países em todo o mundo. O objectivo principal da empresa era a prestação de serviços de financiamento a empresas do grupo Parmalat.

26.      A sede da Eurofood situa‑se no International Financial Services Centre, em Dublin (a seguir «IFSC»). O IFSC foi criado com o objectivo de ter um local para serviços financeiros comercializados a nível internacional, a serem prestados a pessoas ou organismos não residentes. A Eurofood levava a cabo a sua actividade no IFSC, tal como exigido por lei.

27.      O Bank of America NT, (a seguir «Bank of America»), banco com sede nos Estados Unidos da América, com sucursais em Dublin e Milão, administrava quotidianamente a Eurofood, nos termos de um contrato de administração.

28.      A Eurofood realizou as seguintes três grandes operações financeiras:

a)      em 29 de Setembro de 1998, emitiu títulos de crédito através de investimento privado num montante total de 80 000 000 USD (a fim de garantir um empréstimo concedido pelo Bank of America a empresas venezuelanas do grupo Parmalat);

b)      em 29 de Setembro de 1998, emitiu títulos de crédito através de investimento privado num montante total de 100 000 000 USD (para financiar um empréstimo concedido pela Eurofood a empresas brasileiras do grupo Parmalat).

c)      foi celebrado um acordo Swap com o Bank of America, em 10 de Agosto de 2001.

29.      As obrigações da Eurofood decorrentes das duas primeiras operações eram garantidas pela Parmalat.

30.      Os credores da Eurofood no âmbito das duas primeiras operações (a seguir «titulares de certificados») detêm actualmente um crédito superior a 122 milhões de USD. A Eurofood não pode pagar as suas dívidas.

 Processo de insolvência na Irlanda e na Itália

 Itália

31.      Em fins de 2003, descobriu‑se que a Parmalat se encontrava numa grave crise financeira, o que levou à insolvência de muitas das suas empresas principais.

32.      Em 23 de Dezembro de 2003, o Parlamento italiano aprovou o Decreto legislativo n.° 347, permitindo a administração extraordinária de empresas com mais de mil trabalhadores e dívidas superiores a mil milhões de EUR.

33.      Em 24 de Dezembro de 2003, a Parmalat entrou num processo de administração extraordinária por decisão do Ministero delle Attivita Produttive (Ministério das Actividades de Produção). O Dr. Enrico Bondi foi nomeado administrador extraordinário.

34.      Em 27 de Dezembro de 2003, o Tribunale civile e penale di Parma (a seguir «tribunal de Parma») confirmou que a Parmalat se encontrava insolvente e colocou‑a sob administração extraordinária.

 Irlanda

35.      Em 27 de Janeiro de 2004, o Bank of America apresentou na High Court of Ireland (a seguir «órgão jurisdicional irlandês») um pedido de liquidação da Eurofood, alegando que esta se encontrava em situação de insolvência e reclamou uma dívida superior a 3,5 milhões de USD.

36.      Na mesma data, o Bank of America pediu igualmente, ex‑parte, a nomeação de um síndico provisório. Nessa data, o órgão jurisdicional irlandês nomeou Pearse Farrell síndico provisório da Eurofood, com poderes para tomar posse de todos os activos da empresa, gerir os seus negócios, abrir uma conta bancária em seu nome e contratar os serviços de um solicitor.

 Itália

37.      Em 9 de Fevereiro de 2004, o Ministro italiano das Actividades de Produção admitiu a Eurofood, enquanto empresa do grupo, na administração extraordinária da Parmalat.

38.      Em 10 de Fevereiro, o tribunal de Parma proferiu um despacho no qual reconhecia ter sido apresentado um pedido de declaração de insolvência da empresa e fixava o dia de 17 de Fevereiro de 2004 como data da audiência relativa a esse pedido.

39.      Nessa audiência, P. Farrell foi legalmente representado no tribunal de Parma. No entanto, apesar de um despacho do tribunal e do que P. Farrell descreveu como «repetidos pedidos por escrito e orais» dirigidos ao Dr. Enrico Bondi, P. Farrell não recebeu nenhum dos documentos apresentados no tribunal de Parma, incluindo a petição ou os documentos nos quais o Dr. Enrico Bondi se pretendia basear.

40.      Em 20 de Fevereiro de 2004, o tribunal de Parma proferiu a decisão que abriu o processo de insolvência da Eurofood, declarou a empresa em situação de insolvência, determinou que o seu centro dos interesses principais se situava em Itália e nomeou o Dr. Enrico Bondi administrador extraordinário.

 Irlanda

41.      O órgão jurisdicional irlandês analisou o pedido do Bank of America de liquidação da Eurofood na audiência que teve lugar de 2 a 4 de Março de 2004. Nela estiveram representados o Bank of America, P. Farrell, os titulares de certificados e o Director of Corporate Enforcement (11). Em 23 de Março de 2004, o órgão jurisdicional irlandês decidiu que:

«1)      Tinha sido aberto na Irlanda um processo de insolvência na data da apresentação da petição.

2)      O centro dos interesses principais da Eurofood estava situado na Irlanda e, por conseguinte, o processo aberto na Irlanda em 27 de Janeiro de 2004 constituía o processo principal de insolvência na acepção do regulamento.

3)      A pretendida abertura de um processo principal de insolvência pelo tribunal de Parma era contrária ao considerando vigésimo segundo e ao artigo 16.° do regulamento e não podia alterar o facto de já ter sido instaurado um processo de insolvência na Irlanda.

4)      O facto de o Dr. Enrico Bondi não ter notificado os credores da Eurofood da realização da audiência no tribunal de Parma, não obstante as instruções deste tribunal nesse sentido, e o facto de não ter facultado a P. Farrell a petição e outros documentos em que este se baseava antes da audiência, determinam a inexistência de um processo regular, que autoriza os tribunais irlandeses a recusarem o reconhecimento da decisão do tribunal de Parma nos termos do artigo 26.° do regulamento.

42.      À luz destas conclusões e dada a circunstância de a Eurofood se encontrar em situação de insolvência grave, o órgão jurisdicional irlandês proferiu um despacho de liquidação da Eurofood e nomeou P. Farrell síndico. O órgão jurisdicional irlandês não reconheceu a decisão do tribunal de Parma de 20 de Fevereiro.

 Recurso e questões prejudiciais

43.      O Dr. Enrico Bondi impugnou na Supreme Court a decisão do órgão jurisdicional irlandês. Os principais assuntos de debate na audiência de recurso versaram sobre as questões de saber se o processo de insolvência tinha sido aberto em primeiro lugar na Irlanda ou em Itália, se o centro dos interesses principais da empresa se situava na Irlanda ou em Itália e se a decisão do tribunal de Parma tinha sido adoptada sem um processo regular, pelo que a decisão não poderia ser reconhecida.

44.      A Supreme Court decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais relativas a estas três áreas controvertidas:

«1)      Quando seja apresentado num Tribunal competente na Irlanda um pedido de liquidação de uma empresa que se encontra em situação de insolvência e, enquanto se aguarda a decisão sobre a liquidação, o tribunal profere um despacho que nomeia um síndico provisório com poderes para tomar posse do activo da empresa, administrar os seus negócios, abrir uma conta bancária e nomear um solicitor, produzindo todos estes actos o efeito jurídico de retirar aos administradores da empresa quaisquer poderes para agir, essa decisão, juntamente com a apresentação do pedido, constituem uma decisão de abertura do processo de insolvência na acepção do artigo 16.°, interpretado à luz dos artigos 1.° e 2.°, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência?

2)      Se a resposta à primeira questão for negativa, a apresentação à High Court, na Irlanda, de um pedido de liquidação obrigatória de uma empresa por este Tribunal constitui a abertura do processo de insolvência para efeitos do referido regulamento, por força da disposição legislativa irlandesa [Section 220(2) do Companies Act 1963] que considera que a liquidação da empresa tem início na data da apresentação do pedido?

3)      O artigo 3.° do referido regulamento, em conjugação com o artigo 16.°, implicam que um tribunal de um Estado‑Membro diferente daquele em que se situa a sede da empresa e diferente daquele em que a empresa efectua normalmente a administração dos seus interesses e de modo determinável por terceiros, mas onde o processo de insolvência tenha sido aberto em primeiro lugar, tem competência para abrir o processo principal de insolvência?

4)      Quando,

a)      a sede de uma empresa‑mãe e a sede da sua filial se situem em dois Estados‑Membros diferentes,

b)      a empresa filial efectue normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros e com total e regular observância da sua própria identidade social no Estado‑Membro onde está situada a sua sede, e

c)      a empresa‑mãe, devido à participação que detém no capital e ao seu poder para nomear administradores, possa controlar, e controle de facto, a política da empresa filial,

         são factores decisivos, para determinar o «centro dos interesses principais», os referidos na alínea b), supra, ou, pelo contrário, os referidos na alínea c), supra?

5)      Quando seja manifestamente contrário à ordem pública de um Estado‑Membro permitir que uma decisão judicial ou administrativa produza efeitos jurídicos relativamente a pessoas ou entidades cujo direito a um processo e audição equitativos não tenham sido respeitados na adopção da referida decisão, esse Estado‑Membro está obrigado, por força do artigo 17.° do referido regulamento, a reconhecer uma decisão dos tribunais de outro Estado‑Membro destinada a abrir um processo de insolvência de uma empresa, numa situação em que o juiz do primeiro Estado‑Membro está convencido de que a decisão em questão foi tomada em violação desses princípios e, em particular, quando o recorrente no segundo Estado‑Membro se tenha recusado, não obstante os pedidos e em violação do despacho do juiz do segundo Estado‑Membro, a fornecer ao síndico provisório da empresa, devidamente nomeado segundo a legislação do primeiro Estado‑Membro, cópia dos documentos fundamentais em que se baseia o pedido? »

45.      Foram apresentadas observações escritas pelo Dr. Enrico Bondi, por P. Farrell, pelo Director of Corporate Enforcement, pelo Bank of America, pelos titulares de certificados, pelos Governos austríaco, checo, finlandês, francês, alemão, húngaro, irlandês e italiano e pela Comissão. Com excepção dos Governos austríaco, alemão e húngaro, estas partes estiveram representadas na audiência.

46.      P. Farrell explica que está convencionado que um síndico provisório não participa, na audiência em que se discute a petição de liquidação, em qualquer debate sobre o mérito da causa; de forma análoga, quando é interposto recurso para a Supreme Court da decisão da High Court de liquidação da empresa, o síndico não pode discutir o mérito do recurso. Por conseguinte, P. Farrell considera inapropriado qualquer pedido dirigido ao Tribunal de Justiça de apreciação das questões prejudiciais em causa; não obstante, faz algumas observações, que julga poderem servir de auxílio ao Tribunal de Justiça, relativas a certas questões factuais que considera relevantes para a resposta à quinta questão prejudicial.

 Primeira questão: a «decisão de abertura de um processo de insolvência»

47.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, quando seja apresentado num Tribunal competente na Irlanda um pedido de liquidação de uma empresa que se encontra em situação de insolvência e o tribunal profere um despacho, enquanto se aguarda a decisão sobre a liquidação, que nomeia um síndico provisório com poderes para tomar posse do activo da empresa, administrar os seus negócios, abrir uma conta bancária e nomear um solicitor, produzindo todos estes actos o efeito jurídico de retirar aos administradores da empresa quaisquer poderes para agir, essa decisão, juntamente com a apresentação do pedido, constitui uma decisão que determin[a] a abertura do processo de insolvência na acepção do artigo 16.° do regulamento.

48.      Esta questão surge por causa da cronologia das fases iniciais dos processos irlandês e italiano. Em 27 de Janeiro de 2004, o Bank of America apresentou ao órgão jurisdicional irlandês um pedido de liquidação da Eurofood e este tribunal nomeou P. Farrell síndico provisório. Em 20 de Fevereiro de 2004, o tribunal de Parma declarou a Eurofood em situação de insolvência e nomeou o Dr Bondi administrador extraordinário. Em 23 de Março de 2004, o órgão jurisdicional irlandês decidiu que tinha sido aberto na Irlanda um processo de insolvência na data da apresentação da petição. Se a nomeação de P. Farrell em conjugação com a apresentação da petição de 27 de Janeiro de 2004 constitui uma «decisão que determin[a] a abertura de um processo de insolvência» na acepção do artigo 16.° do regulamento, o tribunal de Parma será obrigado, por força desta disposição, a reconhecer essa decisão.

49.      O Dr. Enrico Bondi e os Governos austríaco, francês e italiano defendem que a questão deve ser respondida negativamente: a apresentação da petição e a nomeação de um síndico provisório não constituem uma «decisão que determin[a] a abertura de um processo de insolvência» na acepção do artigo 16.° O Bank of America, o Director of Corporate Enforcement, os titulares de certificados, os Governos irlandês, checo, finlandês e alemão e a Comissão sustentam a tese inversa.

50.      Começarei por abordar a posição destas últimas partes, de que a primeira questão prejudicial deve ser respondida afirmativamente. Analisarei, a seguir, os argumentos do Dr. Enrico Bondi e dos Governos austríaco, francês e italiano a favor de uma resposta negativa.

51.      Concordo com a alegação de que a primeira questão requer uma resposta afirmativa. No meu entender, esta abordagem decorre do objecto, da finalidade, da estrutura e da letra do regulamento.

52.      O segundo considerando refere o objectivo de que «os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz». O quarto considerando refere a necessidade de «evitar quaisquer incentivos que levem as partes [no processo de insolvência] a transferir bens ou acções judiciais de um Estado‑Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável (forum shopping)». O artigo 16.° exige que qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro competente, seja reconhecida em todos os outros Estados‑Membros logo que produza efeitos no Estado onde foi proferida. O vigésimo segundo considerando refere que o reconhecimento das decisões «tem de assentar no princípio da confiança mútua».

53.      Neste contexto, e como salientam o Governo checo e a Comissão, é imperativo que o reconhecimento seja conferido numa fase inicial do processo. É por esse motivo, presumivelmente, que o artigo 16.° exige o reconhecimento a partir do momento em que a decisão produz efeitos no direito nacional e que o artigo 2.°, alínea f), prevê que essa regra se aplica independentemente de a decisão ser ou não final (12).

54.      Neste contexto, sempre que um órgão jurisdicional nacional, ao apreciar um pedido de liquidação com fundamento em insolvência, nomear um síndico provisório «com poderes para tomar posse do activo da empresa, administrar os seus negócios, abrir uma conta bancária e nomear um solicitor, produzindo todos estes actos o efeito jurídico de retirar aos administradores da empresa quaisquer poderes para agir», parece coerente com o objectivo do regulamento que a nomeação seja considerada uma decisão de abertura de um processo de insolvência.

55.      No que diz respeito à letra do regulamento, tanto «decisão» como «processo de insolvência» estão definidos.

56.      O artigo 2.°, alínea a) define «processos de insolvência» como «os processos colectivos a que se refere o n.° 1 do artigo 1.°» e acrescenta: «A lista destes processos consta do Anexo A». No caso da Irlanda, a «compulsory winding‑up by the Court» [liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional] consta deste Anexo como um dos processos de insolvência.

57.      Por conseguinte, parece que o processo perante o órgão jurisdicional nacional pode ser considerado a abertura do «processo de insolvência» na acepção do regulamento.

58.      O artigo 2.°, alínea e), define «‘decisão’, quando se utilize em relação à abertura de um processo de insolvência ou à nomeação de um síndico, a decisão de um órgão jurisdicional competente para abrir um processo dessa natureza ou para nomear um síndico».

59.      O artigo 2.°, alínea b), define «síndico», como «qualquer pessoa ou órgão cuja função seja administrar ou liquidar os bens de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido ou fiscalizar a gestão dos negócios do devedor» e acrescenta que «[a] lista destas pessoas e órgãos consta do Anexo C». No caso da Irlanda, a lista inclui o «provisional liquidator» [síndico provisório].

60.      Por conseguinte, parece que a decisão de um órgão jurisdicional irlandês de nomear um síndico provisório, constante do Anexo C do regulamento, no contexto de uma liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional, constante do Anexo A do mesmo diploma, constitui uma «decisão que determin[a] a abertura de um processo de insolvência» na acepção do artigo 16.° Esta perspectiva ganha ainda mais força se recordarmos que a nomeação de um síndico provisório é a primeira forma possível de intervenção do órgão jurisdicional num processo de liquidação compulsória nos termos da lei irlandesa.

61.      Não considero que a análise supra por referência à inclusão do «provisional liquidator» [síndico provisório] irlandês no Anexo C implique um raciocínio «invertido e ilógico», conforme descrito nas observações do Dr. Enrico Bondi. Pelo contrário, a nomeação de um tal titular de cargo parece central no conceito de «decisão que determin[a] a abertura de um processo de insolvência».

62.      É certo que o artigo 2.°, alínea e), podia ser interpretado de forma mais estrita como definindo «‘decisão’ em relação à abertura de um processo de insolvência» de modo a incluir «a decisão de um órgão jurisdicional competente para abrir um processo dessa natureza» e, separadamente, «‘decisão’, quando se utilize em relação [...] à nomeação de um síndico» de modo a incluir «a decisão de um órgão jurisdicional competente [...] para nomear um síndico». Nesse caso, poder‑se‑ia alegar que uma decisão de nomeação de um síndico não constituía uma decisão de abertura de um processo de insolvência na acepção desta definição.

63.      No entanto, como salienta o órgão jurisdicional nacional no pedido de decisão prejudicial, a definição no artigo 2.°, alínea e), da nomeação de um síndico como uma «decisão» não parece servir nenhuma das finalidades do regulamento se não beneficiar do reconhecimento previsto no artigo 16.° Com efeito, o regulamento não prevê disposições que visem especificamente as decisões de nomeação de um síndico. Além disso, também como refere o órgão jurisdicional de reenvio, a nomeação de um síndico é uma componente essencial do conceito de «processo colectivo de insolvência» na acepção do artigo 1.°, n.° 1.

64.      Por último, ainda relativamente a este ponto, e como alega o Director of Corporate Enforcement, a definição no artigo 2.°, alínea e), pode destinar‑se a reflectir a realidade de que, em diferentes ordens jurídicas, existem diferentes formas de iniciar um processo de insolvência, em vez de distinguir entre a decisão de um órgão jurisdicional de abrir um processo de insolvência, por um lado, e a nomeação de um síndico, por outro; o objectivo da definição é, por conseguinte, garantir que o regulamento confere o reconhecimento automático do processo de insolvência aberto das duas formas.

65.      Por conseguinte, parece mais natural interpretar o artigo 2.°, alínea e), como definindo «‘decisão’ quando se utilize em relação à abertura de um processo de insolvência» de modo a incluir «a decisão de um órgão jurisdicional competente para […] nomear um síndico» e, portanto, como apoiando a perspectiva exposta no n.° 60.

66.      Foram apresentados vários argumentos contra esta perspectiva.

67.      Em primeiro lugar, o Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano sustentam que o regulamento distingue, especialmente, entre os conceitos de «requerimento» e de «abertura», o que corresponde precisamente às fases irlandesas da «petição» [petition] e do «despacho de liquidação» [winding‑up order]. Neste contexto, o Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano referem o décimo sexto considerando e o artigo 38.° do regulamento.

68.      De forma análoga, estas partes sustentam que o «síndico provisório» não é mais do que o «síndico provisório» a que se refere o artigo 38.°, também descrito no décimo sexto considerando como «síndico provisório designado antes da abertura do processo principal»; por conseguinte, a sua nomeação não pode abrir o processo principal.

69.      Em sentido idêntico, o Governo austríaco alega que, uma vez que um «síndico provisório» apenas tem poderes limitados nos termos do artigo 38.° do regulamento, ele não pode ser um «síndico» na acepção da definição do artigo 2.°, alínea b), que se refere a «qualquer pessoa ou órgão cuja função seja administrar ou liquidar os bens de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido ou fiscalizar a gestão dos negócios do devedor».

70.      Parece‑me, no entanto, que estes argumentos ignoram as disposições mais gerais do regulamento acima referido e a sua aplicação ao presente processo e não compreendem a finalidade mais específica do artigo 38.° Esta disposição complementa o artigo 29.° que prevê que o síndico do processo de insolvência principal na acepção do regulamento pode requerer a abertura de um processo secundário (13). Sempre que tenha sido requerida a abertura do processo principal, mas ainda não tenha sido nomeado um síndico na acepção do regulamento, o artigo 38.° prevê que um «síndico provisório», nomeado pelo órgão jurisdicional competente para abrir o processo de insolvência principal, poderá tomar medidas de conservação dos bens do devedor que se encontrem noutro Estado‑Membro «pelo período compreendido entre o requerimento de abertura de um processo de insolvência e a decisão de abertura». No entanto, o síndico provisório nomeado no processo de liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional irlandês é abrangido pela definição de «síndico» para efeitos do regulamento em geral e do artigo 29.° em especial (14).

71.      Além disso, o despacho de nomeação do síndico provisório, no presente processo, confere‑lhe poderes extensivos (tomar posse do activo da Eurofood, administrar os seus negócios, abrir uma conta bancária em seu nome e nomear um solicitor); o papel do síndico provisório é, por conseguinte, muito mais abrangente do que o papel do administrador provisório aparentemente considerado no artigo 38.°

72.      Sempre que, além disso, seja apresentada uma petição de processo de insolvência de um dos tipos constantes do Anexo A do regulamento e, na mesma data, o órgão jurisdicional nomeie um síndico de um dos tipos constantes do Anexo C do mesmo diploma, como no presente processo, parece‑me óbvio que o «processo de insolvência» na acepção do artigo 1.°, n.° 1, do regulamento foi aberto. Não vejo como é que o artigo 38.° pode ser relevante nestas circunstâncias.

73.      De um modo mais geral, daí não decorre necessariamente, em minha opinião, que a apresentação da petição de liquidação compulsória, em conjugação com a nomeação de um síndico na acepção do regulamento não possa ser uma «decisão de abertura de um processo de insolvência» na acepção do artigo 16.° pela simples razão de esta petição poder ser considerada um «requerimento de abertura do processo de insolvência».

74.      Em todo o caso, não me parece que o regulamento revele «um padrão muito claro» no que diz respeito às «três fases» de «petição», «nomeação provisória» e «abertura», conforme alegado nas observações escritas do Dr. Enrico Bondi. Para além do artigo 38.° que, conforme explicado acima, se refere a uma situação específica que pode surgir no contexto de um processo secundário (15), e de uma outra referência no terceiro parágrafo do n.° 1 do artigo 25.°, o qual também se refere a medidas de preservação interlocutórias, não existe qualquer outra sugestão no corpo do regulamento de que o processo exija necessariamente um «requerimento» separado de abertura seguido, após um lapso de tempo, pela «decisão de abertura de um processo de insolvência».

75.      O Dr. Enrico Bondi refere, além disso, que o «contraste entre o pedido e a abertura resulta, por exemplo, de forma clara, do artigo 3.°, n.° 4». Esta disposição, no entanto, limita‑se a referir o requerimento de abertura de um processo (secundário), sem sugerir um lapso de tempo necessário entre as duas fases.

76.      O artigo 38.° é, assim, a única disposição, no articulado do regulamento que faz uma tal distinção, uma incidência manifestamente insuficiente para daí se deduzir um «padrão muito claro». No meu entender, o artigo 38.° limita‑se a prever uma situação que pode surgir no contexto de um tipo de processo de insolvência nacional que, de facto, envolva duas fases separadas, no intervalo das quais poderá, em certas circunstâncias, ser adequado nomear um síndico provisório; não se pode deduzir do artigo 38.° que todos os tipos de processo de insolvência envolvam necessariamente duas fases.

77.      Além disso, resulta de forma clara do seu preâmbulo que o regulamento não pretende harmonizar o direito nacional. O décimo primeiro considerando refere: «O presente regulamento reconhece que não é praticável instituir um processo de insolvência de alcance universal em toda a Comunidade». De facto, nem uma legislação com base nos artigos 61.°, alínea c), CE e 67.°, n.° 1, CE poderia desta forma harmonizar o direito nacional.

78.      Em segundo lugar, o Dr. Enrico Bondi alega que, sob a epígrafe «Irlanda», no Anexo A do regulamento, não consta qualquer processo de insolvência denominado «provisional liquidation» [liquidação provisória]. No meu entender, isso parece‑me, no entanto, irrelevante para o presente processo, que se refere a uma liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional, abrangida pelo âmbito de aplicação do regulamento por força da sua inclusão na lista do Anexo A.

79.      Foram ainda apresentados vários argumentos no sentido de que os processos do tipo em questão não são abrangidos pelo âmbito de aplicação do regulamento porque, por uma razão ou por outra, não cabem na definição do artigo 1.°, n.° 1, que se refere aos «processos colectivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico».

80.      Assim, o Dr. Enrico Bondi sustenta que a liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional irlandês só é abrangida pelo âmbito de aplicação do regulamento se se tratar de um processo de insolvência nos termos do artigo 1.°, n.° 1, e, por conseguinte, apenas se, no órgão jurisdicional nacional tiver sido feita prova bastante do fundamento da competência para apreciação da insolvência (16). Até à decisão do despacho de liquidação, não existe qualquer conclusão quanto à insolvência. O Governo italiano fez alegações semelhantes na audiência.

81.      Em meu entender, este argumento não pode ser aceite. No presente processo, a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio pressupõe que a petição apresentada é um pedido «de liquidação de uma empresa insolvente». Nestas circunstâncias, não seria adequado que o Tribunal de Justiça questionasse a premissa subjacente.

82.      O Dr. Enrico Bondi alega ainda que, no contexto de uma liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional irlandês, o regime legal de realização e distribuição do activo e de identificação e consideração dos pedidos dos credores só produz efeitos depois de proferido o despacho de liquidação; só neste momento, por conseguinte, é que existe um verdadeiro processo «colectivo» em matéria de insolvência na acepção do artigo 1.°, n.° 1, do regulamento.

83.      Contudo, este argumento faz, no meu entender, uma interpretação incorrecta da estrutura do regulamento. Embora o artigo 1.°, n.° 1, contenha, efectivamente, uma definição do processo de insolvência abrangido pelo âmbito de aplicação do regulamento, esta disposição não pode ser interpretada abstraindo das definições do artigo 2.°

84.      O artigo 2.°, alínea a), tem como efeito que a lista dos «processos colectivos a que se refere o artigo 1.°, n.° 1» «consta do Anexo A». Existe consenso entre os analistas do regulamento de que «logo que o processo tenha sido incluído na lista, o regulamento se aplica sem outro controlo pelos órgãos jurisdicionais dos outros Estados‑Membros» (17). Uma vez que a liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional irlandês consta do Anexo A, não considero que a aplicação do regulamento a esse processo possa ser questionada com o fundamento de que não se encontram presentes certos aspectos da definição o artigo 1.°, n.° 1.

85.      Em todo o caso, o órgão jurisdicional de reenvio refere, no pedido de decisão prejudicial, que o síndico provisório «representa e é obrigado a proteger os interesses de todos os credores e a tomar posse do activo».

86.      Por último, o Governo francês refere‑se às quatro condições que, com base na redacção do artigo 1.°, n.° 1, deverão ser satisfeitas para que o processo de insolvência seja abrangido pelo âmbito de aplicação do regulamento: o processo deve ser colectivo, o devedor deve estar insolvente, deve haver uma inibição total ou parcial do devedor e deve ser nomeado um síndico. O Governo francês alega que, uma vez que a definição de «processo de insolvência» constante do artigo 2.°, alínea a), e do Anexo A não inclui a nomeação de um síndico provisório, tal nomeação não pode constituir um «processo de insolvência» na acepção do regulamento.

87.      Mais uma vez, no entanto, este argumento parece‑me trair uma interpretação incorrecta da estrutura do regulamento. A liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional irlandês consta do Anexo A. O síndico provisório, mencionado na lista do Anexo C, foi nomeado no contexto de um processo desse tipo. Em meu entender, estes elementos são suficientes.

88.      Concluo, por conseguinte, quanto à primeira questão prejudicial, que, quando seja apresentado num Tribunal competente na Irlanda um pedido de liquidação de uma empresa que se encontra em situação de insolvência, e enquanto se aguarda a decisão sobre a liquidação, o tribunal profere um despacho que nomeia um síndico provisório com poderes para tomar posse do activo da empresa, gerir os seus negócios, abrir uma conta bancária e nomear um solicitor, produzindo todos estes actos o efeito jurídico de retirar aos administradores da empresa quaisquer poderes para agir, essa decisão, juntamente com a apresentação do pedido, constitui uma decisão de abertura do processo de insolvência na acepção do artigo 16.°  do regulamento.

 Segunda questão: o momento da abertura do processo

89.      Com a sua segunda questão, que só é colocada se a resposta à primeira questão for negativa, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se a apresentação à High Court da Irlanda, de um pedido de liquidação obrigatória de uma empresa por este Tribunal constitui a abertura do processo de insolvência para efeitos do regulamento, por força da disposição legislativa irlandesa (section 220(2) do Companies Act 1963 (18)) que considera que a liquidação da empresa tem início na data da apresentação do pedido.

90.      Uma vez que, na minha perspectiva, a primeira questão do órgão jurisdicional nacional deverá ter uma resposta negativa, torna‑se desnecessário responder à segunda questão prejudicial. No entanto, se esta questão se levantasse, poderia ser respondida de forma muito breve, de acordo com as seguintes linhas.

91.      O Dr. Enrico Bondi e os Governos finlandês, francês, alemão e italiano sustentam que a segunda questão deve ser respondida negativamente, enquanto o Bank of America, o Director of Corporate Enforcement, os titulares de certificados, os Governos austríaco, checo e irlandês e a Comissão consideram que esta deve ser respondida afirmativamente. Concordo com esta última posição.

92.      O artigo 16.°, n.° 1, do regulamento, que se refere ao reconhecimento das decisões de abertura de um processo de insolvência, exige o reconhecimento a partir do momento em que a decisão «produza efeitos no Estado de abertura do processo». Assim, é o direito nacional que determina o momento em que a decisão produz efeitos. Isto é coerente com o artigo 4.° que prevê que, em termos gerais, a lei do Estado de abertura do processo é a lei «aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos» incluindo a abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. O vigésimo terceiro considerando (19) deixa bem claro que esta lei inclui normas processuais e materiais. Por conseguinte, não posso aceitar a afirmação do Dr. Enrico Bondi de que o regulamento «se sobrepõe», de certa forma, às disposições da lei nacional. É importante também recordar que o regulamento não se destina a ser uma medida de harmonização (20).

93.      A section 220(2) do Irish Companies Act 1963 dispõe que, no caso de uma liquidação compulsória pelo órgão jurisdicional (como acontece no presente processo), «considera‑se que» a liquidação «se inicia no momento da apresentação do pedido de liquidação».

94.      Os termos desta disposição, aplicável por força do regulamento, parecem‑me responder, de forma conclusiva, à segunda questão do órgão jurisdicional nacional.

95.      Poderia acrescentar‑se, como assinalaram os titulares de certificados, que o relatório Virgós‑Schmit reconhece, de forma explícita, a existência de doutrinas nacionais de retroactividade que referem que a lei do Estado de abertura do processo de insolvência «determina as condições a satisfazer, o modo como a nulidade e a anulabilidade actuam (automaticamente, atribuindo ao processo efeitos retroactivos ou na sequência de uma acção instaurada pelo síndico, etc.) e as consequências jurídicas da nulidade e da anulabilidade» (21).

 Terceira questão: controlo da competência

96.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, quando o processo de insolvência tenha sido aberto em primeiro lugar por um órgão jurisdicional do Estado‑Membro onde se situa a sede da empresa e onde a empresa administra normalmente os seus interesses de modo determinável por terceiros, um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro diferente tem competência para abrir um processo principal de insolvência.

97.      Esta questão coloca‑se sempre que, como no presente processo, os órgãos jurisdicionais de dois Estados‑Membros se considerem competentes para conhecer da insolvência de uma empresa. O regulamento não prevê expressamente esta situação. No essencial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, numa situação destas, o órgão jurisdicional de um desses Estados‑Membros pode pronunciar‑se sobre a competência do órgão jurisdicional do outro Estado‑Membro.

98.      O órgão jurisdicional de reenvio refere o artigo 3.°, n.° 1, que determina que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência e o artigo 16.°, n.° 1, que determina que qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro competente por força do artigo 3.°, deverá ser reconhecida em todos os outros Estados‑Membros.

99.      O Bank of America, o Director of Corporate Enforcement, os titulares de certificados e o Governo irlandês consideram que os processos de insolvência estrangeiros só têm de ser reconhecidos se o órgão jurisdicional estrangeiro for objectivamente competente e que a terceira questão deverá, portanto, obter resposta afirmativa.

100. Estas partes sustentam que a obrigação que recai sobre os órgãos jurisdicionais dos outros Estados‑Membros, de reconhecer uma decisão de abertura de um processo de insolvência num determinado Estado‑Membro, nos termos do artigo 16.°, n.° 1, só se aplica se o Estado‑Membro onde foi aberto o processo de insolvência «for competente nos termos do artigo 3.°» e, portanto, apenas no caso de o centro dos interesses principais do devedor estar situado nesse Estado‑Membro. Apenas os órgãos jurisdicionais de um único Estado‑Membro têm competência para abrir o processo principal de insolvência e estes são os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor; resulta de forma bastante clara do regulamento que uma empresa só pode ter um centro dos interesses principais. O critério da localização do centro dos interesses principais do devedor é um critério objectivo. Um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro não pode abrir um processo principal de insolvência relativamente a uma pessoa colectiva devedora quando nem a sua sede nem o local onde esta efectua normalmente a administração dos seus interesses de modo determinável por terceiros se situem nesse Estado‑Membro. Assim, qualquer órgão jurisdicional confrontado com a possibilidade de ter sido aberto um processo de insolvência noutra jurisdição terá de determinar se o outro órgão jurisdicional tinha, de facto, competência nos termos do artigo 3.° e, mais especificamente, se: a) o órgão jurisdicional que pretende ter determinado a localização do centro dos interesses principais aplicou os critérios jurídicos correctos e se b) os factos são compatíveis com tal conclusão. Embora o vigésimo segundo considerando do regulamento determine que «a decisão proferida pelo órgão jurisdicional que proceder à abertura em primeiro lugar deve ser reconhecida», verifica‑se que esta exigência não se reflecte no texto principal do regulamento.

101. O Dr. Enrico Bondi, os Governos austríaco, checo, finlandês, francês, húngaro e italiano e a Comissão sustentam que a terceira questão do órgão jurisdicional nacional deve ser respondida negativamente. Eu concordo.

102. Em meu entender, esta conclusão resulta, em especial, do princípio da confiança mútua subjacente ao regulamento e expresso no vigésimo segundo considerando. Este considerando refere:

«O reconhecimento das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros tem de assentar no princípio da confiança mútua. Neste contexto, os motivos do não reconhecimento devem ser reduzidos ao mínimo. A resolução de conflitos entre os órgãos jurisdicionais de dois Estados‑Membros que se considerem competentes para proceder à abertura do processo principal dever‑se‑á regular por este mesmo princípio. A decisão proferida pelo órgão jurisdicional que proceder à abertura em primeiro lugar deve ser reconhecida nos demais Estados‑Membros, sem que estes estejam habilitados a submeter a decisão desse órgão jurisdicional a quaisquer formalidades de reconhecimento» (22).

103. É certo que o texto do regulamento não inclui uma disposição no mesmo sentido do vigésimo segundo considerando (23). No entanto, a importância do princípio contido nesse considerando é confirmada pelo relatório Virgós‑Schmit, que refere que os «órgãos jurisdicionais dos Estados requeridos não podem controlar a competência do órgão jurisdicional do Estado de origem, mas apenas verificar se a decisão emana de um órgão jurisdicional de um Estado Contratante que se considera competente nos termos do artigo 3.°», e é aceite por muitos comentadores (24).

104. Se uma qualquer parte num processo de insolvência entender que o órgão jurisdicional que procedeu à abertura do processo principal errou ao considerar‑se competente nos termos do artigo 3.°, terá de procurar a solução adequada na ordem jurídica nacional do Estado‑Membro onde se situa o órgão jurisdicional, com a possibilidade de apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, sempre que adequado (25).

105. Concluo, por conseguinte, em resposta à terceira questão prejudicial, que quando o processo de insolvência tenha sido aberto em primeiro lugar por um tribunal de um Estado‑Membro onde se situa a sede da empresa e onde a empresa efectua normalmente a administração dos seus interesses e de modo determinável por terceiros, os tribunais de um Estado‑Membro diferente não têm competência para abrir o processo principal de insolvência.

 Quarta questão: o «centro dos interesses principais do devedor»

106. Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio solicita uma indicação quanto aos factores decisivos para efeitos de determinação do «centro dos interesses principais do devedor» na acepção do artigo 3.°, n.° 1, do regulamento.

107. O artigo 3.°, n.° 1, recorde‑se, atribui competência para abrir processos de insolvência aos «órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor» e acrescenta que «se presume, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária». Esta disposição estabelece, portanto, uma presunção juris tantum. O décimo terceiro considerando acrescenta que o centro dos interesses principais do devedor «deve corresponder ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, pelo que é determinável por terceiros».

108. A quarta questão baseia‑se numa situação em que: i) o devedor é uma empresa filial, ii) a sua sede e a da sua empresa‑mãe situam‑se em dois Estados‑Membros diferentes e iii) a empresa filial efectua normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros e com total e regular observância da sua própria identidade social no Estado‑Membro onde está situada a sua sede. O órgão jurisdicional nacional pretende saber se, nestas condições, a presunção de que o centro dos interesses principais da empresa filial se situa no Estado‑Membro da sua sede é ilidida quando, além disso, a empresa‑mãe, devido à participação que detém no capital e ao seu poder para nomear administradores, possa controlar, e controle de facto, a política da empresa filial.

109. O Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano consideram que esta última circunstância é suficiente para ilidir a presunção; o Bank of America, o Director of Corporate Enforcement, os titulares de certificados, os Governos austríaco, checo, finlandês, francês, alemão, húngaro e irlandês e a Comissão sustentam a tese inversa.

110. Concordo que o facto do controlo pela empresa‑mãe não é suficiente para ilidir a presunção do artigo 3.°, n.° 1, do regulamento de que o centro dos interesses principais da empresa filial se situa no Estado‑Membro onde a sua sede se encontra. Parece‑me que este ponto de vista resulta da estrutura e da redacção do regulamento. Antes de continuar a analisar o regulamento, no entanto, gostaria de responder a alguns dos argumentos apresentados pelo Dr. Enrico Bondi e pelo Governo italiano em apoio da posição contrária.

111. Estas duas partes baseiam‑se sobretudo no relatório Virgós‑Schmit, que refere: «Sempre que estejam em causa sociedades e pessoas colectivas, a Convenção presume, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais do devedor é o local da respectiva sede estatutária. Este local corresponde normalmente à sede do devedor» (26). O Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano sustentam que, se tiver de ser demonstrado que o centro dos interesses principais se situa num Estado diferente daquele onde está situada a sede estatutária da empresa, terá, consequentemente, de ser demonstrado que as funções de tipo «sede» são exercidas noutro local. O foco deve ser colocado nas funções da sede, mais do que simplesmente na localização desta, porque uma «sede» pode ser tão nominal como uma sede estatutária, se as funções de sede não forem levadas a cabo nesse local. Nas empresas transnacionais, a sede estatutária é, muitas vezes, escolhida por razões legais ou fiscais e não tem qualquer ligação real com o local onde as funções de sede são, de facto, levadas a cabo. Isso é especialmente assim no caso dos grupos de empresas, em que as funções da sede da empresa filial são frequentemente levadas a cabo no local onde são realizadas as funções da sede da empresa‑mãe do grupo.

112. Estas alegações parecem‑me razoáveis e convincentes. Contudo, não me parecem auxiliar muito na resposta à questão. Em especial, não demonstram que o controlo pela empresa‑mãe da política de uma empresa filial determine o «centro dos interesses principais» dessa filial na acepção do regulamento.

113. Em segundo lugar, o Dr. Enrico Bondi sustenta que a «determinabilidade por terceiros» do centro dos interesses principais não é fundamental no conceito de «centro dos interesses principais». Assim se depreende do próprio décimo terceiro considerando, no qual se declara que o «centro dos interesses principais» do devedor «deve corresponder ao local onde o devedor efectua normalmente a administração dos seus interesses», por outras palavras, no caso de uma empresa, onde são exercidas as funções da sede. O décimo terceiro considerando continua «pelo que é determinável por terceiros»; por outras palavras, é porque as funções da sede da empresa são exercidas num determinado Estado‑Membro que o centro dos interesses principais é determinável nesse Estado.

114. Mais uma vez, concordo com esta análise. No entanto, parece‑me servir de pouco, uma vez que a quarta questão do órgão jurisdicional nacional pressupõe que a empresa filial «efectua normalmente a administração dos seus interesses» no Estado‑Membro onde a sua sede se situa.

115. Em terceiro lugar, o Dr. Enrico Bondi sustenta que existe uma diferença importante entre «determinável» [ascertainable] e «determinado» [ascertained]. A questão da determinabilidade implica procurar saber onde são efectivamente realizadas as funções da sede: trata‑se de um processo objectivo e não deve ser confundido com o testemunho subjectivo dos credores particulares sobre o local onde pensavam situar‑se o centro dos interesses principais. A meu ver, no entanto, a distinção entre «determinado» e «determinável» não é relevante para os problemas suscitados pela quarta questão do órgão jurisdicional nacional, uma vez que tanto o décimo terceiro considerando como a referida questão utilizam o termo «determinável».

116. Passando à essência da quarta questão prejudicial, entendo que, quando as sedes da empresa‑mãe e da sua filial se situem em dois Estados‑Membros diferentes, o facto (assumido pelo órgão jurisdicional de reenvio) de a empresa filial efectuar normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros e com total e regular observância da sua própria identidade social no Estado‑Membro onde está situada a sua sede será, em princípio, decisivo para a determinação do «centro dos seus interesses principais».

117. Parece‑me óbvio que nada se pode inferir necessariamente do facto de um devedor‑empresa ser uma empresa filial de outra empresa. O regulamento aplica‑se a empresas individuais e não a grupos de empresas; em especial, não regula a relação entre empresa‑mãe e filial. De acordo com a estrutura do regulamento, a competência existe para cada devedor com uma entidade jurídica separada. A empresa filial e a empresa‑mãe possuem identidades jurídicas separadas. Por conseguinte, cada empresa filial dentro de um grupo deve ser considerada individualmente. Isto é confirmado pelo artigo 3.°, n.° 1, segundo o qual «[se presume], até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária», e o décimo terceiro considerando, que refere que o centro dos interesses principais do devedor «deve corresponder ao local onde o devedor exerce [...] a administração dos seus interesses] (27).

118. Embora esta definição não faça referência aos elementos que constituem a «administração», conceito importante no presente processo em que foi alegado que o controlo da política constituía «administração», foi sugerido que a escolha do «centro dos interesses principais» (28) como o principal elemento de conexão na determinação do Estado‑Membro com jurisdição sobre uma empresa insolvente se destina a fornecer um critério cujos atributos de transparência e de determinabilidade objectiva são dominantes (29). Estes conceitos parecem‑me ser elementos plenamente adequados para a determinação da competência no contexto da insolvência, onde é obviamente essencial que os potenciais credores possam determinar, com antecedência, qual o sistema jurídico que deverá apreciar qualquer insolvência que afecte os seus interesses. Nas operações de dívidas transfronteiriças (como as que estão em causa no processo principal), parece‑me ser especialmente importante que o órgão jurisdicional competente para determinar os direitos e os meios legais ao dispor dos credores seja óbvio para os investidores no momento em que efectuam o seu investimento.

119. Sempre que um devedor‑empresa, que seja uma empresa filial, «efectue normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros e com total e regular observância da sua própria identidade social no Estado‑Membro onde está situada a sua sede», as condições de transparência e de determinabilidade estão, por definição, satisfeitas.

120. Em contrapartida, o facto (também pressuposto na questão do órgão jurisdicional nacional) de que a empresa‑mãe, «devido à participação que detém no capital e ao seu poder para nomear administradores, possa controlar, e controle de facto, a política da empresa filial», não satisfaz, na minha perspectiva, essas condições.

121. O mero facto de uma empresa, devido à participação que detém no capital e ao seu poder para nomear administradores, poder controlar a política da empresa filial, mesmo que determinável por terceiros (30), não prova que ela controle, de facto, essa política. Se, por outro lado, a empresa‑mãe controla efectivamente a política da sua filial, esse facto pode não ser facilmente determinável por terceiros (31). A questão do órgão jurisdicional nacional não refere que a existência do controlo seja assim determinável.

122. Isto não significa que o Estado‑Membro cujos órgãos jurisdicionais têm competência para apreciar qualquer insolvência resulte necessariamente do critério puramente formal da localização da sede da empresa filial. Um aspecto inerente ao conceito de «centro dos interesses principais» consiste em garantir que as realidades funcionais possam afastar critérios puramente formais (32). No entanto, qualquer parte que procure ilidir a presunção de que a competência em matéria de insolvência é determinada pela sede estatutária deve demonstrar que os elementos em que se baseia satisfazem os requisitos de transparência e de determinabilidade. Sendo a insolvência um risco previsível, é importante que a competência internacional (que implica a aplicação das leis de um dado Estado em matéria de insolvência) se baseie num local conhecido dos potenciais credores do devedor, permitindo assim que os riscos legais a ser assumidos em caso de insolvência sejam calculados (33).

123. Em meu entender, é significativo que, no presente processo, a questão do órgão jurisdicional nacional se baseie na premissa de que «a empresa filial efectua normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros». Esta descrição satisfaz a definição do décimo terceiro considerando. Entendo que, para apoiar a conclusão de que o centro dos interesses principais da empresa filial se situa num local diferente daquele que resulta dos termos explícitos do décimo terceiro considerando seria necessário um suporte factual sólido do controlo dominante e determinável pela empresa‑mãe.

124. Se, portanto, se demonstrar que a empresa‑mãe do devedor controlava de tal forma as suas políticas e que essa situação era transparente e determinável no período em causa (e não, portanto, de forma meramente retrospectiva), o critério normal pode ser afastado.

125. Por último, gostaria de acrescentar que, na determinação do centro dos interesses principais do devedor, cada caso deve manifestamente ser decidido com base nas suas circunstâncias específicas. Por esse motivo, parece‑me que as decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais referidas nas observações das diversas partes não ajudam a estabelecer regras de aplicação geral.

126. Concluo, por conseguinte que, quando o devedor seja uma empresa filial, a sua sede e a da sua empresa‑mãe se situem em dois Estados‑Membros diferentes e a empresa filial efectue normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros e com total e regular observância da sua própria identidade social no Estado‑Membro onde está situada a sua sede, a presunção de que o centro dos interesses principais da empresa filial se situa no Estado‑Membro da sua sede não é ilidida simplesmente por a empresa‑mãe, devido à participação que detém no capital e ao seu poder para nomear administradores, poder controlar, e controle de facto, a política da empresa filial, nem pelo facto de esse controlo não ser determinável por terceiros.

 Quinta questão: a ordem pública

127. A quinta questão prejudicial refere‑se ao artigo 26.° do regulamento, que prevê que um Estado‑Membro pode recusar o reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro se esse reconhecimento «produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição».

128. Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, quando seja manifestamente contrário à ordem pública de um Estado‑Membro permitir que uma decisão judicial ou administrativa produza efeitos jurídicos relativamente a pessoas ou entidades cujo direito a um processo e a uma audiência equitativos não tenham sido respeitados na adopção da referida decisão, esse Estado‑Membro é obrigado a reconhecer uma decisão dos tribunais de outro Estado‑Membro destinada a abrir um processo de insolvência de uma empresa, quando o juiz do primeiro Estado‑Membro esteja convencido de que a decisão em questão foi tomada em violação desses princípios e, em particular, quando o recorrente no segundo Estado‑Membro se tenha recusado, não obstante o pedido e em incumprimento do despacho do juiz do segundo Estado‑Membro, a fornecer ao síndico provisório da empresa, regularmente nomeado segundo a legislação do primeiro Estado‑Membro, cópia dos documentos fundamentais em que se baseia o pedido.

129. Gostaria de referir, em primeiro lugar, que, se a minha análise da primeira questão prejudicial está correcta, a quinta questão não se põe, em meu entender, uma vez que o processo italiano foi aberto depois do processo irlandês e, por conseguinte, não necessita, de forma alguma, do reconhecimento (pelo menos enquanto processo principal) ao abrigo do regulamento.

130. O Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano entendem que a quinta questão deve ser respondida afirmativamente, mais concretamente no sentido de que, nas circunstâncias descritas, o primeiro Estado‑Membro é obrigado a reconhecer a decisão dos órgãos jurisdicionais do segundo Estado‑Membro. O Bank of America, o Director of Corporate Enforcement, os titulares de certificados, os Governos checo, francês, alemão, húngaro e irlandês e a Comissão adoptam, no essencial, o ponto de vista contrário.

131. Em meu entender, é óbvio, em primeiro lugar e como salientam o Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano, que a excepção da ordem pública prevista no artigo 26.° se destina a ter um alcance limitado. Isso é corroborado pela inclusão nessa disposição da exigência de que os efeitos do reconhecimento devam ser «manifestamente» contrários à ordem pública, pela declaração, no vigésimo segundo considerando do regulamento, de que «os motivos do não reconhecimento devem ser reduzidos ao mínimo» e pelo relatório Virgós‑Schmit, que refere: «A excepção da ordem pública só deverá operar em casos excepcionais» (34).

132. Contudo, as dificuldades surgem quando estas partes – e, de facto, muitas das partes que apresentaram observações escritas em relação à quinta questão – procuram aplicar os requisitos de artigo 26.° aos factos do presente processo.

133. Em meu entender, dada a redacção da quinta questão prejudicial, as partes, nem mesmo do Tribunal de Justiça, podem afastar‑se dos pressupostos de facto que integram os termos em que a questão foi colocada.

134. Esta questão pressupõe expressamente, quando os órgãos jurisdicionais de dois Estados‑Membros pretendem abrir um processo de insolvência e quando o reconhecimento da decisão do órgão jurisdicional no Estado‑Membro B é requerido perante o órgão jurisdicional do Estado‑Membro A: i) que seja manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro A permitir que uma decisão judicial ou administrativa produza efeitos jurídicos relativamente a pessoas ou entidades cujo direito a um processo e a uma audiência equitativos não tenham sido respeitados na adopção da referida decisão e ii) que o órgão jurisdicional de Estado‑Membro A esteja convencido de que a decisão do Estado‑Membro B foi tomada em violação desses princípios.

135. Parece‑me, portanto, irrelevante discutir as diferentes culturas jurídicas dos dois Estados‑Membros envolvidos ou procurar mostrar que os direitos legais do síndico provisório estavam, de facto, salvaguardados.

136. Também concordo com o Dr. Enrico Bondi e com o Governo italiano em que a decisão do Tribunal de Justiça no processo Krombach (35) sugere que o Tribunal de Justiça pode e deve controlar os limites do que pode ser correctamente abrangido pela excepção da ordem pública para que os objectivos fundamentais do reconhecimento e da cooperação não sejam frustrados.

137. Este processo referia‑se ao artigo 27.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas, que obriga os órgãos jurisdicionais de um Estado Contratante a recusarem o reconhecimento da decisão emitida pelos órgãos jurisdicionais de outro Estado contratante «se o reconhecimento for contrário à ordem pública do Estado requerido» (36). Perguntava‑se ao Tribunal de Justiça, no essencial, num caso em que o órgão jurisdicional se tinha recusado a ouvir um arguido, se o reconhecimento da decisão desse órgão jurisdicional podia ser recusado, nos termos do artigo 27.°, n.° 1, apenas com fundamento no facto de o arguido não ter estado presente na audiência.

138. O Tribunal de Justiça observou que o artigo 27.°, n.° 1, deve ser objecto de uma interpretação estrita, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos objectivos fundamentais da Convenção e que o recurso à cláusula de ordem pública deve intervir apenas em casos excepcionais (37). O Tribunal de Justiça continuou, nos seguintes termos:

«Segue‑se que, embora os Estados contratantes permaneçam, em princípio, livres para […] determinar as exigências da sua ordem pública, os limites desse conceito fazem parte da interpretação da convenção.

Assim, embora não caiba ao Tribunal de Justiça definir o conteúdo da ordem pública de um Estado contratante, incumbe‑lhe contudo controlar os limites no quadro dos quais o órgão jurisdicional de um Estado contratante pode recorrer a esse conceito para não reconhecer uma decisão de um órgão jurisdicional de outro Estado contratante.

[...]

De uma jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça [...] decorre que o respeito dos direitos da defesa em qualquer processo instaurado contra uma pessoa e susceptível de culminar num acto que a afecte constitui um princípio fundamental do direito comunitário e deve ser assegurado, mesmo não existindo qualquer regulamentação relativa ao procedimento em causa» (38).

139. No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio refere, na sua quinta questão, que, nas circunstâncias aí descritas, permitir que a decisão assim proferida produzisse efeitos seria manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro em questão. Resulta do pedido de decisão prejudicial que esta conclusão foi alcançada após um controlo exaustivo e profundo da conduta do tribunal de Parma pela Supreme Court of Ireland.

140. O Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano, citando o relatório Virgós‑Schmit, sustentam que a interpretação da ordem pública pelo órgão jurisdicional de reenvio expressa na quinta questão é «desrazoavelmente ampla» e «não está coberta pelo artigo 26.°» (39).

141. Embora concorde com estas partes de que resulta do acórdão Krombach que o Tribunal de Justiça deve controlar os limites da ordem pública nacional, entendo que o seu argumento ignora o devido alcance dessa decisão e o essencial do relatório Virgós‑Schmit.

142. No acórdão Krombach, a afirmação do Tribunal de Justiça de que lhe incumbe controlar os limites no quadro dos quais o órgão jurisdicional de um Estado contratante pode recorrer ao conceito de ordem pública para não reconhecer uma decisão de um órgão jurisdicional de outro Estado contratante (40) foi imediatamente seguida por uma referência ao «princípio geral de direito comunitário nos termos do qual qualquer pessoa tem direito a um processo equitativo», inspirado nos direitos fundamentais que são parte integrante dos princípios gerais do direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça e que estão consagrados na Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (41). A importância destes direitos fundamentais impregna a decisão do Tribunal de Justiça (42). À luz destas considerações, entendo que a exigência de um processo equitativo é, em princípio, abrangida pelo âmbito de aplicação da excepção da ordem pública, nos termos do artigo 26.° do regulamento.

143. O relatório Virgós‑Schmit procura restringir as interpretações da ordem pública aos direitos e liberdades protegidos constitucionalmente e às políticas fundamentais do Estado requerido de natureza quer substancial quer processual; de facto, refere que a ordem pública pode «proteger os participantes ou pessoas envolvidas no processo da inobservância de um processo equitativo. A ordem pública não implica um controlo geral da correcção do processo seguido noutro Estado contratante, mas antes das garantias processuais fundamentais, tais como a oportunidade de ser ouvido e o direito de participação no processo». São expressamente mencionados os credores cuja participação é impedida (43).

144. A exigência de um processo equitativo pode ser considerada especialmente importante, dado que o regulamento não permite controlar o mérito da decisão cujo reconhecimento é requerido (44).

145. Assim, a ordem pública a que se refere o artigo 26.° do regulamento abrange claramente, em meu entender, a inobservância de um processo equitativo em que as garantias processuais fundamentais como o direito de ser ouvido e os direitos de participação no processo não tenham sido adequadamente protegidos. Desde que a conduta alegada viole a ordem pública é, em princípio, abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição, cujo teor é claro no sentido de que cabe a cada Estado‑Membro avaliar se a decisão do outro Estado‑Membro ofende a ordem pública do primeiro Estado‑Membro. Em caso afirmativo, a questão de saber se a alegada violação é suficientemente grave para se considerar que a recusa de reconhecimento por esse órgão jurisdicional com base no artigo 26.° é uma questão do direito nacional (45).

146. O Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano alegam ainda que o artigo 26.° só se aplica quando os «efeitos» do reconhecimento proposto forem «manifestamente contrários» à ordem pública desse Estado. O «efeito» no presente processo é o de serem os órgãos jurisdicionais irlandeses obrigados a reconhecer que o seu próprio processo de insolvência é «secundário» e não «principal». Estas partes alegam ter dificuldade em compreender por que motivo um «efeito» tão limitado há‑de ser manifestamente contrário à ordem pública irlandesa.

147. Mais uma vez, no entanto, este argumento parece‑me ignorar os termos no que a questão foi colocada. O órgão jurisdicional nacional refere expressamente que é manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro em questão permitir que uma decisão judicial ou administrativa produza efeitos jurídicos relativamente a pessoas ou entidades cujo direito a um processo e a uma audiência equitativos não tenham sido respeitados na adopção da referida decisão e que está convencido de que a decisão em questão foi tomada em violação desses princípios.

148. Por último, o Dr. Enrico Bondi e o Governo italiano sustentam que o órgão jurisdicional de reenvio parece não se ter apercebido de que, mesmo que um determinado caso seja abrangido pela previsão do artigo 26.°, o Estado‑Membro cuja ordem pública está em causa não é obrigado a recusar o reconhecimento. A palavra «may» [«pode»] é utilizada no artigo 26.°, conferindo ao Estado‑Membro um poder de apreciação para decidir sobre a recusa do reconhecimento. Isso contrasta com a utilização da palavra «shall» [«serão»] no artigo 27.° da Convenção de Bruxelas. Se – como consideram estas partes – essencialmente, P. Farrell teve na Itália uma audiência materialmente equitativa e dado que, não tendo sido esse o caso, ele poderia ter procurado obter reparação das alegadas deficiências processuais por via de recurso, o órgão jurisdicional de reenvio não devia prejudicar o sistema de reconhecimento do regulamento, exercendo o seu poder de apreciação para recusar o reconhecimento.

149. Mais uma vez, no entanto, o primeiro ponto suscitado supra, nomeadamente a alegada audiência equitativa, parece‑me procurar reabrir a discussão dos factos apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio, que refere na questão prejudicial estar convencido de que a decisão do tribunal de Parma foi «tomada em violação [do] direito a um processo e a uma audiência equitativos».

150. Relativamente ao segundo aspecto, nomeadamente a possibilidade de reparação por via de recurso, importa recordar que nas fases iniciais do processo de insolvência, o tempo é, muitas vezes, essencial, pelo que um determinado processo deve ser apreciado no estado em que se encontra. Esta abordagem é consistente com os comentários do relatório Virgós‑Schmit sobre o igualmente urgente contexto das medidas cautelares ex‑parte. O relatório observa que todos os Estados contratantes prevêem tais medidas e continua: «Naturalmente, para que essas medidas sejam constitucionais, estão sujeitas, na maior parte dos Estados, a requisitos especiais que garantam o respeito de um processo equitativo (por exemplo, cumulativamente, uma forte aparência de direito (fumus boni juris), urgência séria, a apresentação de uma garantia pelo requerente, a notificação imediata da pessoa em questão e a possibilidade real de impugnação das medidas adoptadas)» (46). A exigência de que estas condições sejam cumulativas sugere que o incumprimento de uma, como a notificação imediata da pessoa em questão, poderá não ser necessariamente sanada pela existência de outra, como a possibilidade de impugnação (47). O relatório salienta que a questão de saber se estas medidas são ou não reconhecidas «depende de serem ou não compatíveis com a ordem pública do Estado requerido onde a decisão deverá produzir efeitos» (48).

151. Por último, no que diz respeito à redacção do artigo 26.°, é verdade que esta disposição, em contraste com o artigo 27.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas, confere um poder de apreciação ao órgão jurisdicional perante o qual é requerido o reconhecimento. O facto de esse órgão jurisdicional ter a opção de reconhecer o processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro mesmo quando os efeitos de tal reconhecimento seriam manifestamente contrários à sua ordem pública não pode, no entanto, significar que tal será sempre a via correcta, uma vez que essa interpretação esvaziaria o artigo 26.° de qualquer efeito. No presente processo, parece‑me que, com base na hipótese em que a questão é colocada, a qual se baseia, por sua vez, em matéria de facto apurada pelo órgão jurisdicional de reenvio, nada há que sugira que esse órgão jurisdicional tenha exercido de forma incorrecta o seu poder de apreciação ao recusar o reconhecimento.

 Conclusão

152. Nestes termos, proponho que a primeira, terceira, quarta e quinta questões prejudiciais submetidas pela Supreme Court of Ireland sejam respondidas da seguinte forma:

«1)      Quando seja apresentado num Tribunal competente na Irlanda um pedido de liquidação de uma empresa que se encontra em situação de insolvência e o tribunal profira um despacho, enquanto se aguarda a decisão sobre a liquidação, que nomeia um síndico provisório com poderes para tomar posse do activo da empresa, administrar os seus negócios, abrir uma conta bancária e nomear um solicitor, produzindo todos estes actos o efeito jurídico de retirar aos administradores da empresa quaisquer poderes para agir, essa decisão, juntamente com a apresentação do pedido, constituem uma decisão de abertura do processo de insolvência na acepção do artigo 16.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência.

2)      Quando o processo de insolvência for aberto em primeiro lugar por um tribunal de um Estado‑Membro no qual se situa a sede da empresa e no qual a empresa efectua normalmente a administração dos seus interesses de modo verificável por terceiros, os tribunais dos outros Estados‑Membros não têm competência, nos termos do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, para abrir um processo principal de insolvência.

3)      Quando o devedor seja uma empresa filial e a sua sede e a da sua empresa‑mãe se situem em dois Estados‑Membros diferentes e a empresa filial efectue normalmente a administração dos seus interesses de forma determinável por terceiros e com total e regular observância da sua própria identidade social no Estado‑Membro onde está situada a sua sede, a presunção, prevista no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, de que o centro dos interesses principais da empresa filial se situa no Estado‑Membro da sua sede não é ilidida simplesmente por a empresa‑mãe, devido à participação que detém no capital e ao seu poder para nomear administradores, poder controlar, e controle de facto, a política da empresa filial, nem pelo facto de esse controlo não ser determinável por terceiros.

4)      Quando seja manifestamente contrário à ordem pública de um Estado‑Membro permitir que uma decisão judicial ou administrativa produza efeitos jurídicos relativamente a pessoas ou entidades cujo direito a um processo e audição equitativos não tenham sido respeitados na adopção da referida decisão, esse Estado‑Membro não é obrigado, por força do artigo 16.° do Regulamento n.° 1346/2000, a reconhecer uma decisão dos tribunais de outro Estado‑Membro destinada a abrir um processo de insolvência de uma empresa, numa situação em que o juiz do primeiro Estado‑Membro estiver convencido de que a decisão em questão foi tomada em violação desses princípios.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1).


3 – Os antecedentes são descritos nas conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer apresentadas em 6 de Setembro de 2005 no processo Staubitz‑Schreiber (C‑1/04). V., também, Balz, M., «The European Union Convention on insolvency proceedings», American Bankruptcy Law Journal, 1996, pp. 485, 529; Fletcher, I., Insolvency in Private International Law, 1999 (a seguir «Fletcher»), pp. 298‑301; e Burbidge, P., «Cross border insolvency within the European Union: dawn of a new era», European Law Review, 2002, pp. 589, 591.


4 – As diferenças são descritas e explicadas nos pontos 1.22 e 1.23 da obra de Moss, G., Fletcher, I., e Isaacs, S., The EC Regulation on Insolvency Proceedings: A Commentary and Annotated Guide, 2002 (a seguir «Moss, Fletcher e Isaacs»). V., também, Virgós, M., e Garcimartín, F., The European Insolvency Regulation: Law and Practice, 2004 (a seguir «Virgós e Garcimartín»), ponto 48, a).


5 – O relatório Virgós‑Schmit, que constituiu a fonte de muitos dos considerandos do regulamento, nunca foi publicado no Jornal Oficial, embora conste como documento do Conselho da União Europeia de 8 de Julho de 1996 – 6500/1/96. No entanto, é possível encontrar a versão final do texto integral em inglês em Moss, Fletcher e Isaacs. V., também, o artigo de M. Balz, referido na nota 3 (a seguir «Balz»). M. Balz presidiu ao grupo do Conselho da União Europeia em matéria de falências, autor da Convenção. Refere que o relatório Virgós‑Schmit foi «discutido extensivamente e foi objecto de acordo dos delegados peritos mas que, ao contrário da Convenção, não foi formalmente aprovado pelo Conselho de Ministros. Apesar disso, deverá constituir uma autoridade considerável para os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros» (nota 51).


6 – De forma análoga, o Tribunal de Justiça remeteu em inúmeras ocasiões para os relatórios explicativos da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186, a seguir «Convenção de Bruxelas») [sobretudo o relatório Jenard sobre a Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1979, C 59, p. 1) e o relatório Schlosser sobre a Convenção relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte à Convenção de Bruxelas (JO 1979, C 59, p. 71)].


7 – Iniciativa da República Federal da Alemanha e da República da Finlândia tendo em vista a adopção de um regulamento do Conselho relativo aos processos de insolvência, apresentada ao Conselho em 26 de Maio de 1999 (JO 1999, C 221, p. 8).


8 – Artigo 1.°, n.° 1.


9 – V. ainda n.° 117, infra.


10 – Após os factos que estão na origem do processo principal, os anexos do regulamento foram alterados pelo Regulamento (CE) n.° 603/2005 do Conselho, de 12 de Abril de 2005 (JO L 100, p. 1); as alterações não são relevantes para o caso em apreço. V., ainda, nota 14.


11 – O Office of the Director of Corporate Enforcement foi criado em Novembro de 2001, ao abrigo do Company Law Enforcement Act 2001. Nos termos deste Act, o Director of Corporate Enforcement é responsável pela promoção da observância do direito das empresas e pela fiscalização das suspeitas de violação da lei.


12 – V., também, o relatório Virgós‑Schmit, que refere: «Todos os processos enumerados no Anexo A têm duas consequências fundamentais: a inibição total ou parcial do devedor e a nomeação de um síndico. Contudo, poderiam surgir distorções se a Convenção apenas se aplicasse a partir do momento em que estas consequências se verificam. As fases iniciais do processo de insolvência podiam ser excluídas do sistema internacional de cooperação da Convenção. Estas consequências são necessárias para que os processos constem das listas do Anexo A. Contudo, a partir do momento em que o processo foi incluído, basta abrir o processo para que a Convenção se aplique desde o início» (ponto 50). Balz refere ainda: «Não é necessário que todos dos elementos do processo de insolvência estejam presentes no momento da abertura. Por exemplo, se um síndico é normalmente nomeado depois da abertura do processo, a Convenção aplica‑se a este processo desde a sua origem» (p. 501).


13 – V. n.° 15, supra.


14 – Refira‑se que um comentador britânico adoptou implicitamente esta posição no contexto da Convenção, quando se discutiam as consequências da nomeação de um síndico provisório no Reino Unido. Nessa altura, a lista do Anexo C não incluía o provisional liquidator [síndico provisório] no Reino Unido (isso foi entretanto alterado pelo Regulamento n.° 603/2005, referido na nota 10). Fletcher refere, a propósito da definição do artigo 2.°, alínea f): «Assim, uma decisão de abertura do processo de insolvência pode ter efeitos extraterritoriais mesmo não se tratando de uma decisão final, desde que os seus efeitos não sejam suspensos pelo órgão jurisdicional que a adoptou. Tal poderia levar a pensar que a nomeação de um síndico provisório por um órgão jurisdicional do Reino Unido podia produzir estas consequências. Contudo, recorde‑se que esse reconhecimento por força do artigo 16.° só é concedido aos processos de insolvência abrangidos pela Convenção e que constem expressamente dos anexos desta. Uma vez que o síndico provisório não está incluído entre os tipos de titular de cargo constantes do Anexo C, o reconhecimento automático de tal nomeação está excluído» (pp. 283 e 284).


15 – Refira‑se que o artigo 38.° pertence ao capítulo III do regulamento, sob a epígrafe «Processo de insolvência secundário».


16 – Parece que, no direito irlandês, uma empresa pode, em determinadas circunstâncias, ser compulsivamente liquidada pelo tribunal, mesmo não se encontrando em situação de insolvência.


17 – Virgós e Garcimartín, ponto 36; v., também, o relatório Virgós‑Schmit, n.os 49 e 50; Moss, Fletcher e Isaacs, n.os 3.02 e 8.07; Balz, p. 502. A situação é ligeiramente diferente para a condição de insolvência, uma vez que nas circunstâncias em que os tipos de processo enumerados no Anexo A podem ser utilizados quer haja ou não insolvência, a condição da insolvência deverá ser adicionalmente satisfeita. No presente processo, contudo, essa questão não se coloca: v. n.° 81, supra.


18 – Referido no n.° 22, supra.


19 – Referido no n.° 10, supra.


20 – V. n.° 77, supra.


21 – Ponto 135 (o sublinhado é meu).


22 –      A não ser que seja invocada a excepção da ordem pública prevista no artigo 26.° O artigo 26.° constitui objecto da quinta questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.


23 – Isto deve‑se, em parte, a razões históricas. Virgós e Garcimartín explicam que, durante as negociações para conversão da Convenção em regulamento, os Estados‑Membros decidiram incorporar no preâmbulo os aspectos do relatório Virgós‑Schmit considerados especialmente relevantes para efeitos de garantir a correcta compreensão das suas normas [ponto 48, alínea a)].


24 – Relatório Virgós‑Schmit, ponto 202, 2); v., também, pontos 79, 215 e 220; Moss, Fletcher e Isaacs, pontos 5.38, 8.47, 8.48 e 8.205; Virgós e Garcimartín, pontos 70 e 402; Balz, pp. 505 e 513; e Fletcher, p. 288.


25 – V. relatório Virgós‑Schmit, ponto 202, e Fletcher, pp. 288 e 289.


26 – N.° 75. Balz diz isto de uma forma um pouco diferente: «No caso do registo de um mero endereço postal, a sede será considerada o centro dos interesses principais» (p. 504).


27 – O sublinhado é meu. V., também, o relatório Virgós‑Schmit, ponto 76, Virgós e Garcimartín, ponto 61, e Balz, p. 503.


28 – Para um relato interessante do enquadramento do conceito de «centro dos interesses principais», v. Virgós e Garcimartín, ponto 46.


29 – Relatório Virgós‑Schmit, ponto 75; Moss, Fletcher e Isaacs, ponto 3.10; e Virgós e Garcimartín, ponto 53.


30 – Há vários requisitos, decorrentes da legislação comunitária, relativos à divulgação pelas empresas do procedimento de nomeação dos directores e da existência de uma relação empresa‑mãe/filial. Contudo, nem todos estes requisitos se aplicam a todas as empresas: a posição varia consoante se trate de empresas públicas ou privadas e, no caso das empresas públicas, de estas estarem ou não cotadas na Bolsa. Além disso, a divulgação nas contas da empresa publicadas é inevitavelmente retrospectiva: uma vez que as contas são necessariamente preparadas e divulgadas após o período a que se referem, não ajudarão os potenciais credores de uma empresa a determinar a localização actual e futura do centro dos interesses principais da empresa.


31 – É talvez por este motivo que Virgós e Garcimartín consideram que «no caso das empresas filiais, o elemento de conexão relevante é o local onde se situa o centro de administração (i. é, a sede) da filial. O facto de as decisões desta empresa filial serem tomadas em conformidade com instruções que emanam da empresa‑mãe ou de accionistas que residem num outro lugar não altera a regra da competência jurisdicional internacional sobre esta empresa» ponto 51). V., também, Virgós e Garcimartín, ponto 61.


32 – Moss, Fletcher e Isaacs, ponto 3.11.


33 – Relatório Virgós‑Schmit, ponto 75.


34 – Ponto 204.


35 – Acórdão de 28 de Março de 2000, Krombach (C‑7/98, Colect., p. I‑1935); v., ainda, o n.° 138, infra. V., também, o acórdão de 11 de Maio de 2000, Renault (C‑38/98, Colect., p. I‑2973).


36 – A disposição equivalente do Regulamento n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), é o artigo 34.° n.° 1; contudo, esta disposição difere da prevista no artigo 27.°, n.° 1, da Convenção, na medida em que, tal como o artigo 26.° do regulamento relativo ao processo de insolvência, o reconhecimento de uma decisão terá de «produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública» para poder ser recusado com esse fundamento.


37 – N.° 21.


38 –      N.os 22, 23 e 42.


39 – Ponto 205.


40 – N.° 23, citado no n.° 138, supra.


41 – N.os 25 a 27.


42 – V., em especial, os n.os 38, 39 e 42 a 44.


43 – Ponto 206.


44 – V. Virgós e Garcimartín, ponto 406.


45 – Relatório Virgós‑Schmit, ponto 207.


46 – Ponto 207.


47 – Note‑se que o órgão jurisdicional de reenvio refere no pedido de decisão prejudicial que esse é, de facto, o caso no direito irlandês: «Numa situação destas, este tribunal não teria permitido que se mantivesse uma decisão equivalente de um órgão jurisdicional ou de um órgão administrativo sob a sua jurisdição. O tribunal teria considerado que a inexistência de um processo equitativo é, em si, de tal forma manifestamente contrária à ordem pública que teria concluído que a decisão tinha sido proferida sem competência e era, consequentemente, nula. Nem esta conclusão seria sanada pelo facto de a decisão poder ser impugnada no mesmo tribunal. Uma violação tão importante da obrigação de respeitar um processo equitativo viciaria todo o processo.»


48 – Ponto 207.