Language of document : ECLI:EU:C:2005:6

Conclusions

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
CHRISTINE STIX‑HACKL
apresentadas em 11 de Janeiro de 2005 (1)



Processo C-265/03



Igor Simutenkov

contra

Ministerio de Educación y Cultura

e

Real Federación Española de Fútbol


[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Audiencia Nacional (Espanha)]


«Artigo 23.° do Acordo de Parceria e Cooperação CE/Federação da Rússia – Livre circulação de trabalhadores – Limitação do número de jogadores de Estados terceiros não pertencentes ao EEE – Futebol»






I – Observações introdutórias

1.       No presente processo de reenvio prejudicial, está em causa a interpretação do Acordo de Parceria e Cooperação que estabelece uma cooperação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Federação da Rússia, por outro  (2) (a seguir «acordo»), mais precisamente, o efeito directo e o significado do seu artigo 23.° em matéria de condições de trabalho. O processo principal tem como objecto uma regulamentação de uma federação desportiva que limita o número de jogadores de futebol de Estados terceiros em determinadas competições.

II – Quadro jurídico

A – Direito comunitário

2.       O artigo 23.°, n.° 1, do acordo tem, designadamente, o seguinte teor:

«1. Sob reserva da legislação, condições e procedimentos aplicáveis em cada Estado‑Membro, a Comunidade e os seus Estados‑Membros assegurarão que os trabalhadores russos legalmente empregados no território de um Estado‑Membro não sejam discriminados com base na nacionalidade em relação aos nacionais desse Estado‑Membro, em matéria de condições de trabalho, remuneração ou despedimento.»

B – Direito nacional

3.       A licença de jogador de futebol é um documento emitido pela Real Federación Española de Fútbol (a seguir «RFEF») que permite a prática deste desporto como jogador federado e o alinhamento em jogos e competições oficiais como jogador de determinado clube, de acordo com o artigo 129.2. do Regulamento Geral da RFEF. Entre as competições oficiais de âmbito nacional, cabe referir os Campeonatos Nacionales (campeonatos nacionais) da Liga de Primera y Segunda División (Primeira e Segunda Divisões), o Campeonato de España/Copa de S.M. el Rey e a Supercopa. Para a participação nestas competições é, por conseguinte, necessária a posse da respectiva licença federativa.

4.       O artigo 173 do Regulamento Geral determina:

«Para a inscrição e obtenção de licença como profissionais, sem prejuízo das excepções previstas no presente Livro, os futebolistas deverão preencher o requisito geral da posse da nacionalidade espanhola ou a [nacionalidade] de qualquer dos países que constituem a União Europeia ou o Espaço Económico Europeu.»

O artigo 176 do Regulamento Geral dispõe:

«1.    Os clubes inscritos em competições oficiais de âmbito nacional e com carácter profissional poderão inscrever jogadores estrangeiros não comunitários em número fixado nos acordos celebrados para esse efeito entre a RFEF, a Liga Nacional de Fútbol Profesional e a Asociación de Futbolistas Españoles, nos quais se regulamentará, além disso, o número de futebolistas dessa classe que podem participar no jogo simultaneamente.

2.      Nos termos do acordo celebrado entre tais organismos em 28 de Maio de 1999, a regulamentação nesta matéria, a contar da época de 2000/2001 até à época de 2004/2005, ambas inclusive, será a seguinte [...]

3.      Os futebolistas que se integrem no regime previsto por este artigo ficam enquadrados na organização federativa com idênticos direitos e obrigações e sob a mesma regulamentação que os inscritos com base na regra geral.»

5.       A parte do n.° 2 do artigo 176 não transcrita literalmente refere‑se ao número de licenças para cada época desportiva (na Primeira Divisão, 5 no que respeita à época de 2000/2001, 4 para cada uma das 3 épocas seguintes e 3 no que respeita à época de 2004/2005; na Segunda Divisão, 4 para a época de 2000/2001, 3 para cada uma das duas épocas seguintes e 2 para a última) e ao número de jogadores não comunitários que podem ser alinhados simultaneamente (3 para a Primeira Divisão em cada uma das cinco épocas e, na Segunda Divisão, 3 em cada uma das duas primeiras e 2 em cada uma das três épocas seguintes).

III – Matéria de facto, processo principal e questão prejudicial

6.       Igor Simutenkov é um nacional russo autorizado a residir e a trabalhar no Reino de Espanha. Ao abrigo do contrato de trabalho que celebrou com o Club Deportivo Tenerife, Igor Simutenkov presta serviços como jogador profissional de futebol e é titular da licença federativa para os jogadores não provenientes da Comunidade ou do EEE. Em Janeiro de 2001, através do seu clube, requereu à RFEF que substituísse a sua licença por uma de jogador comunitário ao abrigo do acordo. A Federação indeferiu esse requerimento com base nos artigos 173 e seguintes do seu Regulamento Geral e no acordo celebrado em 28 de Maio de 1999 entre a RFEF e a Liga Nacional de Fútbol Profesional.

7.       Na sequência desse indeferimento, Igor Simutenkov propôs uma acção contra a RFEF no Juzgado de lo Social (Tribunal Social) n.° 3 de Santa Cruz de Tenerife, na qual pedia a protecção do seu direito fundamental a não ser discriminado em razão da sua nacionalidade russa.

8.       A acção foi julgada procedente pelo Juzgado de lo Social n.° 3 de Santa Cruz de Tenerife, que, por sentença de 19 de Abril de 2001, declarou a existência de um tratamento discriminatório e lhe reconheceu o direito a ser tratado, para todos os efeitos nas suas condições de trabalho, da mesma forma que um nacional comunitário. A sentença não transitou em julgado por ter sido suscitado um conflito de competências.

9.       O Tribunal Supremo declarou competente o Juzgado Central de lo Contencioso Administrativo. Por sentença de 22 de Outubro de 2002, este último negou provimento ao recurso interposto por Igor Simutenkov.

10.     Igor Simutenkov interpôs recurso dessa sentença para a Audiencia Nacional (Sala de lo Contencioso Administrativo) que decidiu, em 4 de Março de 2003, submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão para decisão a título prejudicial:

«O artigo 23.° do Acordo de Parceria e Cooperação que estabelece uma parceria entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Federação [da Rússia], por outro, assinado em Corfu em 24 de Junho de 1994, opõe‑se a que uma federação desportiva aplique a um desportista profissional de nacionalidade russa, contratado regularmente por um clube espanhol de futebol, uma regulamentação por força da qual os clubes só podem utilizar nas competições de âmbito nacional um número limitado de jogadores de Estados terceiros não pertencentes ao Espaço Económico Europeu?»

IV – Apreciação

11.     Relativamente ao teor da questão prejudicial e ao seu exame, observe‑se que é necessário esclarecer a questão prévia de saber se a norma relevante do acordo é directamente aplicável, não obstante o órgão jurisdicional nacional não ter colocado expressamente essa questão.

A – Quanto ao efeito directo do artigo 23.° do acordo

12.     Segundo jurisprudência assente, uma disposição de um acordo celebrado pela Comunidade com Estados terceiros é de aplicação directa quando contiver uma obrigação clara e precisa que não esteja subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adopção de qualquer acto posterior.

13.     Esta condição deve ser apreciada à luz de dois aspectos. Em primeiro lugar, a disposição deve ser examinada individualmente com base na sua letra. Em segundo lugar, há que apreciar o acordo enquanto tal, isto é, o seu objecto e espécie (também designados natureza e finalidade ou objectivo e contexto). O Tribunal de Justiça optou por este método quer no que se refere aos acordos europeus  (3) quer quanto aos acordos de cooperação  (4) .

1.     Apreciação individual da disposição

14.     A apreciação individual do artigo 23.° do acordo deve tomar por base a respectiva letra. Nessa apreciação, há que ter em conta a circunstância de que as disposições do direito comunitário são redigidas em várias línguas e que as diferentes versões linguísticas fazem igualmente fé. A interpretação de uma disposição de direito comunitário implica assim a comparação das suas versões linguísticas  (5) .

15.     Essa comparação das diferentes versões do artigo 23.°, n.° 1, do acordo demonstra que a sua redacção e o seu significado não são coincidentes em todas as versões linguísticas. Das dez línguas que faziam fé no momento da assinatura do acordo decorre o seguinte quadro: enquanto sete línguas  (6) , inclusive a versão russa, permitem concluir que existe uma obrigação, designadamente de «garantir», três versões linguísticas  (7) fazem alusão a um compromisso no sentido de serem feitos esforços. Nos termos da versão grega, «a Comunidade e os seus Estados‑Membros empreenderão esforços», segundo a versão espanhola, «velarão por que […]», e, nos termos da versão neerlandesa, «zelarão […]».

16.     Para apurar o significado do artigo 23.° do acordo, poder‑se‑ia adoptar como ponto de partida o mínimo comum a todas as versões linguísticas e reconhecer apenas um compromisso no sentido de serem feitos esforços. Porém, esse método não tem a seu favor argumentos convincentes nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça.

17.     Uma outra via de solução consistiria em determinar qual é o texto mais claro, ou seja, em eliminar textos atípicos  (8) ou versões que contenham erros de tradução  (9) . Não obstante esse método ser, em princípio, possível e ser igualmente encontrado na jurisprudência do Tribunal de Justiça, não permite, no entanto, uma solução convincente na presente constelação, em que não é justamente apenas um texto que diverge de todos os restantes.

18.     A favor do primado das versões linguísticas que estabelecem uma obrigação é igualmente invocável um método de interpretação referido pela Comissão, nomeadamente o do carácter determinante da maioria das versões linguísticas. Esse método também encontra expressão na jurisprudência do Tribunal de Justiça  (10) . Em sentido contrário, é certamente possível alegar, na linha de argumentação do Tribunal de Justiça, que, em determinadas condições, há que favorecer uma única versão linguística face à maioria  (11) .

19.     Este argumento impõe o recurso a um método completamente diferente, designadamente o que consiste em partir do texto original, isto é, a versão do acordo que serviu de base para as traduções para as restantes línguas. No caso em apreço, trata‑se do texto na língua utilizada nas negociações, o inglês. Esse texto («shall ensure») estabelece inequivocamente uma obrigação.

20.     Atendendo às divergências linguísticas, afigura‑se, no entanto, necessário analisar a intenção das partes contratantes e a finalidade da disposição a interpretar  (12) .

21.     Neste contexto, há que referir que não é sempre feita a distinção entre esta fase do exame e a segunda fase  (13) , que inclui a análise de elementos como o objectivo, a finalidade e a natureza do acordo.

22.     A intenção das partes contratantes reveste uma importância decisiva para a interpretação do artigo 23.°, n.° 1, do acordo. No sentido de que as referidas partes quiseram estabelecer uma obrigação clara que vai para além de um mero compromisso no sentido de serem feitos esforços é possível invocar os documentos apresentados pela Comissão, que foram utilizados na preparação das negociações contratuais.

23.     O carácter obrigatório do artigo 23.°, n.° 1, do acordo é ainda corroborado pelo seu confronto com acordos análogos. Decorre da comparação com o artigo 24.°, n.° 1, do acordo celebrado com a Ucrânia  (14) , e com o artigo 23.°, n.° 1, do acordo celebrado com a Moldávia  (15) , que estas duas disposições paralelas empregam expressamente os termos «esforçar‑se‑ão para assegurar».

24.     A favor de que o artigo 23.°, n.° 1, do acordo prescreve uma obrigação que excede um mero compromisso no sentido de serem feitos esforços refira‑se ainda o facto, documentado nas actas das negociações contratuais, de que a Rússia expressou o desejo de que assim fosse.

25.     Contra o carácter obrigatório e, por conseguinte, contra o efeito directo do artigo 23.° do acordo é eventualmente possível invocar a seguinte restrição constante da parte inicial do seu n.° 1: «Sob reserva da legislação, condições e procedimentos aplicáveis em cada Estado‑Membro […]»

26.     Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre uma regulamentação semelhante prevista em acordos europeus, a expressão «sem prejuízo das condições e modalidades aplicáveis em cada Estado‑Membro» não pode, porém, ser interpretada no sentido de que permite aos Estados‑Membros sujeitarem a condições ou restringirem de forma discricionária a aplicação do princípio da não discriminação previsto nessa disposição, pois essa interpretação teria como resultado esvaziar de substância essa disposição e, desse modo, privá‑la de qualquer efeito útil  (16) .

27.     Conclui‑se da análise individual do artigo 23.°, n.° 1, do acordo que quer o texto original – inglês – e a maioria das versões linguísticas quer a intenção das partes no processo de negociação permitem concluir que existe uma obrigação clara da Comunidade e dos Estados‑Membros e, por conseguinte, que essa disposição tem efeito directo.

2.     Teor e finalidade do acordo

28.     Mesmo que a observação individual de uma disposição, cujo efeito directo deve ser examinado, permita concluir que a mesma tem efeito directo, importa ainda examinar se esse resultado é confirmado pelo objecto e pela espécie (também designados natureza e finalidade ou objectivo e contexto) do acordo.

29.     Invocando o artigo 31.°, n.° 1, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 23 de Maio de 1969, o Tribunal de Justiça afirmou relativamente à interpretação de acordos que «um tratado deve ser interpretado de boa fé, segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado no seu contexto, e à luz dos respectivos objecto e fim»  (17) .

30.     A redacção de uma disposição não é, só por si, decisiva, como demonstra o facto de o Tribunal de Justiça ter interpretado uma disposição de um acordo, que inclusivamente reproduzia literalmente uma disposição do Tratado CE, uma vez da mesma forma que interpreta a disposição do Tratado CE e outra vez de forma distinta  (18) .

31.     No que se refere ao artigo 23.°, n.° 1, do acordo, a doutrina dominante defende que esta disposição não é directamente aplicável. Os fundamentos invocados a favor desta tese são que o artigo 27.° do acordo prevê a formulação de recomendações pelo Conselho de Cooperação  (19) ou que o acordo apenas prossegue um objectivo restrito  (20) .

32.     Em seguida, importa assim examinar o acordo à luz da sua essência e finalidade ou à luz do objectivo que visa alcançar.

33.     A este respeito, é, por um lado, possível afirmar que, em todo o caso, comparado com o acordo comercial anteriormente celebrado com a Rússia, o acordo significa uma evolução. Por outro lado, o acordo fica aquém dos designados acordos europeus sob vários pontos de vista. Em primeiro lugar, no que se refere ao seu conteúdo material, uma vez que o acordo nem sequer institui uma zona de comércio livre e também fica aquém das disposições dos acordos europeus justamente em matéria de livre circulação. Em segundo lugar, as disposições institucionais também apresentam uma série de diferenças, designadamente o mecanismo de resolução de litígios.

34.     Acrescente‑se que o acordo não visa uma associação e muito menos uma adesão da parte contratante não pertencente à União Europeia, como é, por exemplo, o caso do acordo celebrado com a Eslováquia, que constituiu o objecto do processo Deutscher Handballbund contra Kolpak.

35.     Na minha opinião, não é, porém, decisivo para o reconhecimento do efeito directo de uma disposição de um acordo que este contenha uma referência expressa à perspectiva de adesão.

36.     Esta conclusão também resulta de jurisprudência entretanto assente em matéria de acordos de cooperação, como os celebrados com a Argélia e com Marrocos. Relativamente a Marrocos, o Tribunal de Justiça afirmou, nesta matéria, o seguinte:

«[O] acordo tem como objectivo […] promover a cooperação entre as partes contratantes, nomeadamente no domínio da mão‑de‑obra. A circunstância de o acordo se destinar, fundamentalmente, a favorecer o desenvolvimento económico de Marrocos e de se limitar a estabelecer uma cooperação entre as partes, sem ter por finalidade a associação ou a futura adesão de Marrocos às Comunidades, não é susceptível de impedir a aplicabilidade directa de algumas das suas disposições»  (21) .

37.     É certo que o acordo celebrado com a Rússia partilha inclusivamente de uma característica dos acordos europeus num determinado ponto. Assim, o referido acordo também tem como objectivo a «integração progressiva» da parte contratante. Este aspecto constituiu para o Tribunal de Justiça uma das circunstâncias determinantes para apreciar o efeito directo de determinadas disposições dos acordos europeus  (22) .

38.     Infere‑se ainda de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça em matéria de acordos de cooperação que é suficiente, no que se refere ao objectivo de um acordo, que as partes contratantes promovam uma cooperação global, nomeadamente no domínio da mão‑de‑obra, para que a regulamentação consagrada nesse acordo seja adequada a regular directamente a situação jurídica dos particulares  (23) .

39.     A disposição que define os objectivos dos acordos de cooperação celebrados com a Argélia e com Marrocos é do seguinte teor:

«O presente Acordo entre a Comunidade Económica Europeia e […] tem por objectivo promover uma cooperação global entre as partes contratantes tendo em vista contribuir para o desenvolvimento económico e social […] e favorecer o reforço das suas relações. Para este efeito, serão aprovadas e executadas disposições e acções no domínio da cooperação económica, técnica e financeira, bem como nos domínios comercial e social.»

40.     Na disposição análoga do acordo, mais precisamente no artigo 1.°, estipula‑se que a parceria com a Rússia tem os seguintes objectivos: «promover o comércio e o investimento e relações económicas harmoniosas entre as partes com base em princípios da economia de mercado, incentivando assim o seu desenvolvimento sustentável»; «proporcionar uma base para uma cooperação nos domínios económico, social, financeiro e cultural, fundada nos princípios do benefício mútuo, da responsabilidade mútua e do apoio mútuo»; «proporcionar um quadro adequado para a integração progressiva da Rússia numa zona mais vasta de cooperação na Europa» e «criar as condições necessárias para a futura implantação de uma zona de comércio livre entre a Comunidade e a Rússia, que abranja praticamente a totalidade do comércio de mercadorias entre as partes, bem como condições que permitam a liberdade de estabelecimento de sociedades, de comércio transfronteiras de serviços e de circulação de capitais».

41.     Decorre assim da comparação dos objectivos do acordo com os dos acordos de cooperação que uns e outros coincidem em muitos aspectos.

42.     Por último, a diferença de denominação entre o capítulo («Capítulo I – Condições de Trabalho») no qual o artigo 23.°, n.° 1, do acordo está inserido e o capítulo correspondente nos acordos europeus («Capítulo I – Circulação dos trabalhadores») também não constitui um argumento contra o efeito directo do artigo 23.°, n.° 1.

43.     Embora o facto de a parte na qual o capítulo I do acordo se encontra ter a epígrafe «Título IV – Disposições relativas a actividades empresariais e investimentos» permita efectivamente concluir que a terminologia diverge e que o conteúdo material também é diferente do dos acordos europeus, não permite, porém, extrair quaisquer conclusões sobre os efeitos das disposições nele incluídas.

44.     Face ao exposto, a natureza e a finalidade ou o objectivo e o contexto do acordo permitem concluir que a disposição que constitui o objecto do processo tem efeito directo.

45.     Resta ainda examinar se as disposições dos artigos 27.° e 48.° do acordo se opõem ao efeito directo do artigo 23.°

46.     O artigo 27.° também não se opõe ao efeito directo do artigo 23.° do acordo. Aquela disposição prevê que o Conselho de Cooperação formulará recomendações relativas à aplicação do disposto nos artigos 23.° e 26.°

47.     É, desde logo, possível invocar a redacção do artigo 27.°, que se limita a referir actos jurídicos sob a forma de «recomendação», contra a conclusão com base nesse artigo de que a aplicação do artigo 23.° depende da adopção de um acto jurídico posterior. A função atribuída pelo artigo 27.° ao Conselho de Cooperação é, portanto, no que se refere ao artigo 23.°, limitada – visa facilitar a sua aplicação – e não pode, em nenhum caso, ser entendida no sentido de que faz depender a aplicabilidade directa da proibição de discriminação de uma condição, designadamente da adopção de um acto jurídico  (24) .

48.     Esta conclusão é, de resto, conforme à jurisprudência assente relativa aos acordos de cooperação celebrados com a Argélia e Marrocos. Segundo essa jurisprudência, a proibição de discriminação no domínio da segurança social tem efeito directo, não obstante o Conselho de Cooperação não ter ainda exercido os seus poderes de execução, isto é, não ter adoptado quaisquer medidas de aplicação dos princípios fixados nas disposições pertinentes do acordo  (25) .

49.     O disposto no artigo 48.° do acordo também não obsta a que o artigo 23.°, n.° 1, estabeleça uma obrigação clara. Nos termos do artigo 48.°, «[p]ara efeitos do presente título, nenhuma disposição do acordo impede as partes de aplicar as suas disposições legislativas e regulamentares respeitantes à entrada, estadia, trabalho, condições de trabalho, estabelecimento de pessoas singulares e prestação de serviços, desde que essa aplicação não anule ou comprometa as vantagens resultantes, para qualquer das partes, de uma disposição específica do acordo».

50.     O artigo 48.° do acordo corresponde quase literalmente quer ao artigo 59.° do acordo celebrado com a Eslováquia quer ao artigo 58.° do acordo celebrado com a Polónia. O Tribunal de Justiça  (26) concluiu relativamente a estas duas últimas disposições que as mesmas não se opõem ao efeito directo.

3.     Conclusão

51.     A análise conjunta de todos os aspectos essenciais para a determinação do efeito directo de uma disposição de um acordo conduz à conclusão de que o artigo 23.°, n.° 1, do acordo deve ser interpretado no sentido de que a obrigação nele consagrada de a Comunidade e os seus Estados‑Membros assegurarem que os nacionais russos já legalmente empregados no território de um Estado‑Membro não sejam discriminados com base na nacionalidade em relação aos nacionais desse Estado‑Membro, em matéria de condições de trabalho, remuneração ou despedimento, tem efeito directo.

B – O teor do artigo 23.°, n.° 1, do acordo: alcance da obrigação

52.     No presente processo, discute‑se se o artigo 23.°, n.° 1, do acordo se opõe a uma regulamentação como a que está em causa na acção principal. Quanto a esta questão, há que tomar por base a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao teor da regulamentação sobre a livre circulação do artigo 39.° CE e examinar se o artigo 23.°, n.° 1, do acordo é do mesmo teor, em todo o caso, com respeito a uma regulamentação como a da acção principal.

53.     Em ligação com o alcance da proibição de discriminação consagrada no artigo 23.°, n.° 1, do acordo, há que determinar se a regulamentação em causa na acção principal constitui uma condição de emprego. Nesta questão importa distinguir dois elementos: em primeiro lugar, há que analisar se as regulamentações de federações desportivas também se encontram abrangidas e, em segundo lugar, deve determinar‑se o alcance da proibição de discriminação do artigo 23.°, n.° 1, do acordo.

54.     O ponto de partida para determinar o conteúdo normativo do artigo 23.°, n.° 1, do acordo é o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Deutscher Handballbund contra Kolpak, que incidiu sobre o teor de uma regulamentação de outro acordo, concretamente o artigo 38.° do acordo celebrado com a Eslováquia, que é comparável ao artigo 23.°, n.° 1, do acordo.

55.     Relativamente à aplicabilidade do artigo 38.° do acordo celebrado com a Eslováquia a regulamentações de uma federação desportiva, o Tribunal de Justiça concluiu que essa disposição também se aplica a uma regra instituída por uma federação desportiva como a Deutscher Handballbund, que determina as condições de exercício de uma actividade assalariada por desportistas profissionais  (27) .

56.     O artigo 23.°, n.° 1, do acordo contém, como ponto essencial, uma obrigação quase literalmente idêntica à do artigo 38.°, n.° 1, do acordo celebrado com a Eslováquia, designadamente a de que os nacionais da parte contratante legalmente empregados no território de um Estado‑Membro não sejam objecto de um tratamento discriminatório com base na nacionalidade, em matéria de condições de trabalho, remuneração ou despedimento, em relação aos nacionais desse Estado‑Membro.

57.     Em consequência, como no processo Deutscher Handballbund contra Kolpak, estão preenchidas as condições para aplicar, de igual modo, ao artigo 23.°, n.° 1, do acordo os princípios desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça no processo Bosman  (28) a respeito do artigo 39.° CE.

58.     Quanto à questão de saber se a regulamentação controvertida no processo principal constitui uma condição de emprego, foi alegado no presente processo que as licenças regulam o acesso ao mercado de trabalho e não podem ser consideradas condições de emprego. É, porém, pacífico que as disposições que regulam o acesso ao mercado de trabalho não são abrangidas pelo artigo 23.°, n.° 1, do acordo.

59.     Contudo, decorre claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça  (29) que cláusulas como as que estão em causa no processo principal não têm por objecto a contratação de jogadores profissionais, que não é limitada, mas a possibilidade de os clubes inscritos nas federações os utilizarem num encontro oficial, e, por outro lado, que a participação nesses encontros constitui o objecto essencial da actividade desses jogadores.

60.     Na medida em que uma regra desportiva como a que está em causa no processo principal tem uma incidência directa sobre a participação em competições de um jogador de futebol profissional russo já regularmente empregado segundo a legislação nacional do Estado‑Membro de acolhimento, essa regra tem por objecto as condições de trabalho na acepção do artigo 23.°, n.° 1, do acordo.

61.     Esta apreciação jurídica também não é modificada pelas diferenças entre as regulamentações desportivas em causa no processo principal, em especial a sua natureza jurídica, e as regulamentações desportivas subjacentes ao processo Deutscher Handballbund contra Kolpak.

62.     Resta assim examinar se a regulamentação em causa no processo principal conduz a uma discriminação proibida nos termos do artigo 23.°, n.° 1, do acordo.

63.     Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça  (30) , relativa ao artigo 39.°, n.° 2, CE, que esta disposição se opõe à aplicação de regras adoptadas por federações desportivas nos termos das quais, nos encontros das competições por elas organizadas, os clubes desportivos apenas podem fazer alinhar um número limitado de jogadores profissionais nacionais de outros Estados‑Membros.

64.     O artigo 23.°, n.° 1, do acordo confere aos trabalhadores de nacionalidade russa regularmente empregados no território de um Estado‑Membro um direito à igualdade de tratamento em matéria de condições de trabalho que tem o mesmo âmbito que aquele que é reconhecido, em termos similares, aos nacionais dos Estados‑Membros pelo artigo 39.°, n.° 2, CE.

65.     Acresce que a regra convertida no processo principal é análoga às cláusulas de nacionalidade que estavam em causa nos processos Bosman e Deutscher Handballbund.

66.     Por conseguinte, as conclusões a que o Tribunal de Justiça chegou na sua jurisprudência, relativa à interpretação do artigo 39.°, n.° 2, CE, também podem ser aplicadas ao artigo 23.°, n.° 1, do acordo.

67.     Face ao exposto, conclui‑se que o artigo 23.°, n.° 1, do acordo obsta à aplicação a Igor Simutenkov de uma regra como a regra controvertida no processo principal, uma vez que esta conduz a que Igor Simutenkov, enquanto nacional russo, embora regularmente empregado num Estado‑Membro, só disponha, em princípio, de uma possibilidade limitada, relativamente aos jogadores nacionais de Estados‑Membros ou nacionais de Estados‑Membros pertencentes ao EEE, de participar em certas competições, designadamente nos Campeonatos Nacionales (campeonatos nacionais) de Liga de Primera y Segunda División (Primeira e Segunda Divisões), no Campeonato de España/Copa de S.M. el Rey e na Supercopa, que constituem, aliás, o objecto essencial da sua actividade enquanto jogador profissional de futebol  (31) .

68.     A regulamentação em causa no processo principal, como as regulamentações subjacentes aos acórdãos Bosman e Deutscher Handballbund contra Kolpak, também não se aplica a encontros específicos entre equipas representativas dos respectivos países, mas a todos os encontros oficiais entre clubes e, portanto, ao essencial da actividade exercida pelos jogadores profissionais  (32) .

69.     Por último, há que referir que não foram invocados no processo quaisquer motivos pelos quais a regulamentação em causa no processo principal deve poder ser considerada justificada por considerações exclusivamente desportivas.

V – Conclusão

70.     Face ao exposto, propõe‑se ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial nos seguintes termos:

«O artigo 23.°, n.° 1, do Acordo de Parceria e Cooperação que estabelece uma parceria ente as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Federação da Rússia, por outro, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação por força da qual uma federação desportiva de um Estado‑Membro aplica a um jogador profissional de nacionalidade russa, contratado regularmente por um clube futebol inscrito nessa federação, uma disposição nos termos da qual os clubes só podem utilizar nas competições de âmbito nacional um número limitado de jogadores de Estados terceiros não pertencentes ao Espaço Económico Europeu.»


1
Língua original: alemão.


2
. – JO L 327, p. 3; Decisão do Conselho e da Comissão, de 30 de Outubro de 1997, relativa à celebração do Acordo de Parceria e de Cooperação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Federação da Rússia, por outro (JO L 327, p. 1).


3
Acórdãos de 27 de Setembro de 2001, Gloszczuk (C‑63/99, Colect., p. I‑6369, n.° 30); de 29 de Janeiro de 2002, Pokrzeptowicz‑Meyer (C‑162/00, Colect., p. I‑1049, n.os 20 e 25); e de 8 de Maio de 2003, Deutscher Handballbund (C‑438/00, Colect., p. I‑4135, n.os 25 e segs.).


4
V., por exemplo, acórdão de 16 de Junho de 1998, Racke (C‑162/96, Colect., p. I‑3655, n.° 31).


5
V., a este respeito, por exemplo, acórdãos de 6 de Outubro de 1982, CILFIT (283/81, Recueil, p. 3415, n.° 18), e de 24 de Outubro de 1996, Kraaijeveld e o. (C‑72/95, Colect., p. I‑5403, n.° 28).


6
. – Que são, além da versão russa, as versões dinamarquesa («sikrer»), alemã («stellen […] sicher»), inglesa («shall ensure»), francesa («assurent»), italiana («evitano») e portuguesa («assegurarão»).


7
. – As versões grega, espanhola e neerlandesa.


8
. – Acórdãos de 1 de Dezembro de 1965, Schwarze (16/65, Recueil, p. 1081, Colect. 1965‑1968, p. 239); de 23 de Outubro de 1975, Matisa (35/75, Recueil, p. 1205, Colect., p. 411); e de 26 de Janeiro de 1984, Universität München (45/83, Recueil, p. 267).


9
. – Acórdão de 12 de Novembro de 1969, Stauder (29/69, Colect. 1969‑1970, p. 157).


10
Acórdãos de 7 de Julho de 1988, Moksel (55/87, Colect., p. 3845, n.os 16 e segs.), e de 17 de Outubro de 1996, Konservenfabrik Lubella (C‑64/95, Colect., p. I‑5105, n.° 18).


11
Acórdãos de 15 de Dezembro de 1977, Dufour (76/77, Recueil, p. 2485, Colect., p. 897), e de 28 de Junho de 1979, Lentes e o. (233/78 a 235/78, Recueil, p. 2305).


12
Acórdãos de 13 de Março de 1973, Mij PPW (61/72, Recueil, p. 301, Colect., p. 163); de 21 de Novembro de 1974, Moulijn (6/74, Recueil, p. 1287, Colect., p. 539); de 3 de Março de 1977, Kerry Milk (80/76, Recueil, p. 425, Colect., p. 149); e de 16 de Março de 1977, Liégeois (93/76, Recueil, p. 543, Colect., p. 171).

V., igualmente, acórdãos de 13 de Julho de 1989, Henriksen (173/88, Colect., p. 2763, n.° 11); de 7 de Dezembro de 1995, Rockfon (C‑449/93, Colect, p. I‑4291, n.° 28); e Kraaijeveld e o., já referido na nota 5, n.° 28.


13
Acórdãos de 27 de Outubro de 1977, Bouchereau (30/77, Colect., p. 715); Dufour, já referido na nota 11; e de 24 de Junho de 1981, Elefanten Schuh (150/80, Recueil, p. 1671).


14
JO 1998, L 49.


15
JO 1998, L 181.


16
Acórdão Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.° 29; v., também, acórdão Pokrzeptwicz‑Meyer, já referido na nota 3, n.os 23 e segs.


17
Parecer do Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1991 (1/91, Colect., p. I‑6079, n.° 14), e acórdão de 20 de Novembro de 2001, Jany e o. (C‑268/99, Colect., p. I‑8615, n.° 35).


18
V., por exemplo, acórdãos de 1 de Julho de 1993, Eurim‑Pharm (C‑207/91, Colect., p. I‑3723) e Metalsa (C‑312/91, Colect., p. I‑3751).


19
Cremona, M., «Citizens of Third Countries: movement and employment of migrant workers within the European Union», Legal Issues of European integration, 1997, pp. 87, 112.


20
Cremona, M., já referido na nota 19, pp. 87, 112.

Maresceau, M., e Montaguti, E., «The Relations between the European Union and Central and Eastern Europe: A legal Appraisal», Common Market Law Review, 1995, p. 1327, pp. 1341 e segs., concluem, com base nas bases jurídicas escolhidas, no sentido de uma finalidade política distinta.


21
Em relação ao acordo celebrado com Marrocos, v. acórdão de 31 de Janeiro de 1991, Kziber (C‑18/90, Colect., p. I‑199, n.° 21).


22
Acórdãos Gloszczuk, já referido na nota 3, n.° 50, e Pokrzeptowicz‑Meyer, já referido na nota 3, n.° 42.


23
V. acórdãos Kziber, já referido na nota 21, n.os 15 a 22; de 20 de Abril de 1994, Yousfi (C‑58/93, Colect., p. I‑1353, n.os 16 a 18); de 5 de Abril de 1995, Krid (C‑103/94, Colect., p. I‑719, n.os 21 a 23); de 3 de Outubro de 1996, Hallouzi‑Choho (C‑126/95, Colect., p. I‑4807, n.° 19); e de 15 de Janeiro de 1998, Babahenini (C‑113/97, Colect., p. I‑183, n.° 17).


24
. – Acórdão Kziber, já referido na nota 21, n.° 19.


25
V. acórdãos Kziber, já referido na nota 21; Yousfi, já referido na nota 23; Krid, já referido na nota 23; Hallouzi‑Choho, já referido na nota 23; e Babahenini, já referido na nota 23.


26
Acórdãos Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.° 28, e Pokrzeptowicz‑Meyer, já referido na nota 3, n.° 28.


27
Acórdão Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.° 37.


28
Acórdão de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 87).


29
Acórdãos Bosman, já referido na nota 28, n.° 120, e Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.os 45 e segs.


30
Acórdãos Bosman, já referido na nota 28, n.° 137, e Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.os 48 e segs.


31
V. acórdão proferido no processo Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.° 51.


32
Acórdãos Bosman, já referido na nota 28, n.° 128, e Deutscher Handballbund, já referido na nota 3, n.° 54.