Language of document : ECLI:EU:C:2019:499

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

13 de junho de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2001/23/CE — Transferências de empresas — Manutenção dos direitos dos trabalhadores — Conceito de “trabalhador” — Alteração substancial das condições de trabalho em detrimento do trabalhador»

No processo C‑317/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Portugal), por Decisão de 23 de abril de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de maio de 2018, no processo

Cátia Correia Moreira

contra

Município de Portimão

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: F. Biltgen, presidente de secção, J. Malenovský (relator) e C. G. Fernlund, juízes,

advogado‑geral: G. Hogan,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação de C. Correia Moreira, por M. Ramirez Fernandes, advogado,

–        em representação do Município de Portimão, por J. Abreu Rodrigues, advogado,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, T. Paixão, A. Pimenta e T. Nunes, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. França e M. Kellerbauer, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.°, n.° 2, TUE e do artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos (JO 2001, L 82, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Cátia Correia Moreira ao Município de Portimão (Portugal) a respeito da legalidade da cessação do seu contrato de trabalho.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        A Diretiva 2001/23 constitui uma codificação da Diretiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO 1977, L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122), conforme alterada pela Diretiva 98/50/CE do Conselho, de 29 de junho de 1998 (JO 1998, L 201, p. 88) (a seguir «Diretiva 77/187»).

4        Os considerandos 3 e 8 da Diretiva 2001/23 enunciam:

«(3)      É necessário adotar disposições para proteger os trabalhadores em caso de mudança de empresário especialmente para assegurar a manutenção dos seus direitos.

[...]

(8)      Por motivos de segurança e de transparência jurídicas, foi conveniente esclarecer o conceito jurídic[o] de transferência à luz da jurisprudência do [Tribunal de Justiça]. Esse esclarecimento não alterou o âmbito da Diretiva [77/187], tal como é interpretado pelo Tribunal de Justiça.»

5        O artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23 dispõe:

«a)      A presente diretiva é aplicável à transferência para outra entidade patronal de uma empresa, estabelecimento ou parte de empresa ou estabelecimento, quer essa transferência resulte de uma cessão convencional quer de uma fusão.

b)      Sob reserva do disposto na alínea a) e das disposições seguintes do presente artigo, é considerada transferência, na aceção da presente diretiva, a transferência de uma entidade económica que mantém a sua identidade, entendida como um conjunto de meios organizados, com o objetivo de prosseguir uma atividade económica, seja ela essencial ou acessória.

c)      A presente diretiva é aplicável a todas as empresas, públicas ou privadas, que exercem uma atividade económica, com ou sem fins lucrativ[o]s. A reorganização administrativa de instituições oficiais ou a transferência de funções administrativas entre instituições oficiais não constituem uma transferência na aceção da presente diretiva.»

6        O artigo 2.° desta diretiva prevê:

«1.      Na aceção da presente diretiva, entende‑se por:

[...]

d)      “Trabalhador”: qualquer pessoa que, no Estado‑Membro respetivo, esteja protegida como trabalhador pela legislação laboral nacional;

2.      A presente diretiva não afeta as disposições nacionais no que diz respeito à definição do contrato ou da relação de trabalho.

[...]»

7        O artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da referida diretiva dispõe:

«Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.»

8        Nos termos do artigo 4.° da mesma diretiva:

«1.      A transferência de uma empresa ou estabelecimento ou de uma parte de empresa ou de estabelecimento não constitui em si mesma fundamento de despedimento por parte do cedente ou do cessionário. Esta disposição não constitui obstáculo aos despedimentos efetuados por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças da força de trabalho.

Os Estados‑Membros podem prever que o primeiro parágrafo não se aplique a certas categorias delimitadas de trabalhadores não abrangidos pela legislação ou práticas dos Estados‑Membros em matéria de proteção contra o despedimento.

2.      Se o contrato de trabalho ou a relação de trabalho for rescindido pelo facto de a transferência implicar uma modificação substancial das condições de trabalho em detrimento do trabalhador, a rescisão do contrato ou da relação de trabalho considera‑se como sendo da responsabilidade da entidade patronal.»

9        A redação do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23 é, em substância, idêntica à do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 77/187.

 Direito português

10      O artigo 8.°, n.° 4, da Constituição dispõe:

«As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercido das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.»

11      O artigo 47.°, n.° 2, da Constituição prevê:

«Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.»

12      Nos termos do artigo 53.° da Constituição:

«É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.»

13      O artigo 11.° do Código do Trabalho dispõe:

«Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob autoridade destas.»

14      Nos termos do artigo 161.° do Código do Trabalho:

«Pode ser exercido, em comissão de serviço, cargo de administração ou equivalente, de direção ou chefia diretamente dependente da administração ou de diretor‑geral ou equivalente, funções de secretariado pessoal de titular de qualquer desses cargos, ou ainda, desde que instrumento de regulamentação coletiva de trabalho o preveja, funções cuja natureza também suponha especial relação de confiança em relação a titular daqueles cargos e funções de chefia.»

15      O artigo 162.°, n.os 1, 2 e 5, do Código do Trabalho dispõe:

«1.      Pode exercer cargo ou funções em comissão de serviço um trabalhador da empresa ou outro admitido para o efeito.

2.      No caso de admissão de trabalhador para exercer cargo ou funções em comissão de serviço, pode ser acordada a sua permanência após o termo da comissão.

[...]

5.      O tempo de serviço prestado em regime de comissão de serviço conta para efeitos de antiguidade do trabalhador como se tivesse sido prestado na categoria de que este é titular.»

16      O artigo 163.°, n.os 1 e 2, do Código do Trabalho enuncia:

«1.      Qualquer das partes pode pôr termo à comissão de serviço, mediante aviso prévio por escrito, com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, consoante aquela tenha durado, respetivamente, até dois anos ou período superior.

2.      A falta de aviso prévio não obsta à cessação da comissão de serviço, constituindo a parte faltosa na obrigação de indemnizar a contraparte nos termos do artigo 401.°»

17      O artigo 285.° do Código do Trabalho dispõe:

«1.      Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem‑se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores, bem como a responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral.

2.      O transmitente responde solidariamente pelas obrigações vencidas até à data da transmissão, durante o ano subsequente a esta.

3.      O disposto nos números anteriores é igualmente aplicável à transmissão, cessão ou reversão da exploração de empresa, estabelecimento ou unidade económica, sendo solidariamente responsável, em caso de cessão ou reversão, quem imediatamente antes tenha exercido a exploração.

4.      O disposto nos números anteriores não é aplicável em caso de trabalhador que o transmitente, antes da transmissão, transfira para outro estabelecimento ou unidade económica, nos termos do disposto no artigo 194.°, mantendo‑o ao seu serviço, exceto no que respeita à responsabilidade do adquirente pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral.

5.      Considera‑se unidade económica o conjunto de meios organizados com o objetivo de exercer uma atividade económica, principal ou acessória.

6.      Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto no n.° 1 e na primeira parte do n.° 3.»

18      O artigo 62.° da Lei n.° 50/2012, de 31 de agosto, que aprova o regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais e revoga as Leis n.os 53‑F/2006, de 29 de dezembro, e 55/2011, de 15 de novembro (Diário da República, 1.a série, n.° 169, de 31 de agosto de 2012), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, relativo à dissolução das empresas locais, prevê:

«1.      Sem prejuízo do disposto no artigo 35.° do Código das Sociedades Comerciais, as empresas locais são obrigatoriamente objeto de deliberação de dissolução, no prazo de seis meses, sempre que se verifique uma das seguintes situações:

[...]

5.      Ao pessoal em efetividade de funções nas empresas locais que incorram numa das situações previstas no n.° 1, que não se encontre ao abrigo de instrumentos de mobilidade previstos na Lei n.° 12‑A/2008, de 27 de fevereiro, aplica‑se o regime do contrato de trabalho, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

6.      As empresas locais em processo de liquidação podem ceder às entidades públicas participantes os seus trabalhadores contratados ao abrigo do regime do contrato de trabalho, nos termos do disposto no artigo 58.° da Lei n.° 12‑A/2008, de 27 de fevereiro, na exata medida em que estes se encontrem afetos e sejam necessários ao cumprimento das atividades objeto de integração ou internalização.

[...]

11.      O disposto nos n.os 6 a 10 aplica‑se apenas aos trabalhadores detentores de contrato de trabalho por tempo indeterminado que tenham sido admitidos pelo menos um ano antes da data da deliberação de dissolução da empresa local, aos quais, no caso de constituição de relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado, não é devida qualquer compensação pela extinção do anterior posto de trabalho.

[...]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19      Em 19 de abril de 2005, C. Correia Moreira celebrou com a Expo Arade, Animação e Gestão do Parque de Feiras e Exposições de Portimão, EM, um contrato de formação em posto de trabalho.

20      Em 2 de janeiro de 2006, C. Correia Moreira celebrou com a referida empresa um contrato de trabalho com prazo certo de 1 ano, para o desempenho de funções de técnico de recursos humanos.

21      Em 1 de novembro de 2008, C. Correia Moreira celebrou com a Portimão Urbis, EM, SA (a seguir «Portimão Urbis»), um contrato de comissão de serviço, para o desempenho de funções de chefe da Unidade de Gestão Administrativa e de Recursos Humanos. Este contrato durou até 30 de junho de 2010.

22      Em 1 de julho de 2010, C. Correia Moreira celebrou com a Portimão Urbis um novo contrato de comissão de serviço, para o desempenho das mesmas funções. As partes revogaram este contrato em 1 de julho de 2013.

23      Na mesma data, celebrou com a Portimão Urbis um novo contrato de comissão de serviço, para o desempenho de funções de gestora da Unidade de Gestão Administrativa e de Recursos Humanos, mas com redução da sua remuneração ilíquida.

24      Em 15 de outubro de 2014, o Município de Portimão aprovou a dissolução e liquidação da Portimão Urbis no âmbito de um plano que previa a internalização de uma parte das atividades desta empresa no Município e a externalização das outras atividades para outra empresa municipal, a saber, a Empresa Municipal de Águas e Resíduos de Portimão, EM, SA (a seguir «EMARP»).

25      O Município de Portimão e a EMARP mantiveram em vigor todos os direitos consagrados nos contratos de trabalho celebrados pela Portimão Urbis.

26      C. Correia Moreira figurava na lista dos trabalhadores «internalizados» do Município de Portimão, que celebraram com este um acordo de cedência de interesse público, e foi afeta a serviços administrativos e de gestão de recursos humanos. Entre 1 de janeiro de 2015 e 20 de abril de 2017, desempenhou funções como técnica superior na área de atividade funcional de recursos humanos no Município de Portimão.

27      Em julho de 2015, os trabalhadores abrangidos pelo plano de internacionalização, entre os quais C. Correia Moreira, foram informados pelo Município de Portimão de que a sua candidatura ao concurso previsto implicaria, caso fossem admitidos, o seu ingresso no primeiro escalão da função pública, com um prazo de permanência mínima no mesmo escalão de dez anos. Os trabalhadores que foram «externalizados» para a EMARP não ficaram sujeitos a esse concurso.

28      Foi aberto um procedimento concursal, ao qual C. Correia Moreira se candidatou. No termo do mesmo, e apesar de ter ficado classificada em primeiro lugar na lista, foi informada de que a sua remuneração seria inferior à que recebia na Portimão Urbis, o que ela não aceitou.

29      Em 26 de abril de 2017, a Portimão Urbis comunicou a C. Correia Moreira a caducidade do seu contrato de trabalho por encerramento da empresa.

30      Em 2 de janeiro de 2018, foi registado na Conservatória do Registo Comercial o encerramento da liquidação da Portimão Urbis.

31      C. Correia Moreira pediu ao Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Portugal) que declarasse a existência de uma transmissão do contrato de trabalho que mantinha com a Portimão Urbis para o Município de Portimão, a partir de 1 de janeiro de 2015, por força da transmissão do estabelecimento em que estava integrada. Por força dessa transmissão, pede ao órgão jurisdicional de reenvio que reconheça que a cessação do contrato de trabalho que ocorreu depois disso é ilícita e deve ser determinada a sua integração no Município de Portimão, nas mesmas condições que lhe eram aplicadas na Portimão Urbis, desde 1 de janeiro de 2015.

32      Além disso, pede que o Município de Portimão seja condenado a pagar as diferenças salariais entre o vencimento que este estava obrigado a pagar‑lhe, por força dessa transmissão, e o vencimento que efetivamente lhe pagou. Por último, pede que o Município de Portimão seja condenado a pagar‑lhe uma indemnização por danos morais.

33      O Município de Portimão contesta os pedidos de C. Correia Moreira, alegando, em primeiro lugar, que não ocorreu transmissão de estabelecimento, pois a empresa municipal foi dissolvida por imposição legal, tendo‑se este município limitado a avocar competências que lhe incumbiam originariamente; em segundo lugar, que C. Correia Moreira estava a exercer funções em regime de comissão de serviço, não detendo, portanto, a qualidade de trabalhadora da Portimão Urbis; e, em terceiro lugar, que o Município de Portimão se limitou a cumprir o regime legal decorrente do artigo 62.° da Lei n.° 50/2012, de 31 de agosto, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, nos termos do qual todos os funcionários dos municípios são recrutados segundo modalidades específicas e estão sujeitos ao princípio da igualdade no acesso à função pública consagrado no artigo 47.°, n.° 2, da Constituição.

34      Nestas circunstâncias, o Tribunal Judicial da Comarca de Faro decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Entendendo‑se por “trabalhador” qualquer pessoa que, no Estado‑Membro respetivo, esteja protegida como trabalhador pela legislação laboral nacional, poderá a pessoa que tem um contrato de comissão de serviço com a cedente considerar‑se trabalhadora para efeitos do artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva [2001/23] e beneficiar da proteção dada pela legislação em causa?

2)      A legislação da União Europeia, designadamente a referida Diretiva [2001/23], em conjugação com o artigo 4.°, n.° 2, [TUE], opõe‑se a uma legislação nacional que, mesmo em caso de transferência abrangida pela indicada Diretiva, imponha que os trabalhadores se submetam necessariamente a concurso público e fiquem submetidos a novo vínculo com o cessionário por este ser um Município?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

35      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2001/23, nomeadamente o seu artigo 2.°, n.° 1, alínea d), deve ser interpretada no sentido de que uma pessoa que celebrou com o cedente um contrato de comissão de serviço, na aceção da legislação nacional em causa no processo principal, pode ser considerada «trabalhador» e beneficiar, assim, da proteção que esta diretiva concede.

36      Antes de mais, há que salientar que o órgão jurisdicional de reenvio, no seu pedido de decisão prejudicial, refere expressamente o Acórdão de 20 de julho de 2017, Piscarreta Ricardo (C‑416/16, EU:C:2017:574, n.° 46), no qual o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que o artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23 deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo âmbito de aplicação da mencionada diretiva uma situação em que as atividades de uma empresa municipal são transferidas para um município, desde que a identidade da empresa em causa seja mantida após a transferência, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

37      O presente pedido de decisão prejudicial foi apresentado pelo mesmo órgão jurisdicional que questionou o Tribunal de Justiça no processo que deu origem ao acórdão referido no número anterior e tem por objeto uma operação do mesmo tipo que a que estava em causa neste último.

38      Afigura‑se que, no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio não vê nenhum problema específico, no que se refere ao requisito da manutenção da identidade da empresa transferida, uma vez que parte da premissa de que a operação em causa no processo principal é suscetível de ser abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2001/23.

39      Não obstante, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se, no contexto de uma transferência como a que está em causa no processo principal, uma pessoa como a recorrente no processo principal pode ser considerada «trabalhador», na aceção do artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2001/23, tendo em conta a natureza específica do seu contrato com o cedente.

40      A este respeito, importa recordar que, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2001/23, se entende por «trabalhador» qualquer pessoa que, no Estado‑Membro respetivo, esteja protegida como trabalhador pela legislação laboral nacional.

41      Além disso, o artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, desta diretiva dispõe que a mesma diretiva não afeta as disposições nacionais no que diz respeito à definição do contrato de trabalho ou da relação de trabalho.

42      Decorre destas duas disposições que, embora a Diretiva 2001/23 vise proteger os trabalhadores, cabe aos Estados‑Membros definir «trabalhador e o seu contrato ou a sua relação de trabalho nas respetivas legislações.

43      Embora o Tribunal de Justiça não seja competente para interpretar o direito nacional (Despacho de 21 de outubro de 2015, Kovozber, C‑120/15, não publicado, EU:C:2015:730, n.° 32 e jurisprudência referida), incumbindo esta competência ao órgão jurisdicional de reenvio, importa salientar que, no caso em apreço, este último observa, na sua decisão de reenvio, que o contrato de comissão de serviço, celebrado com quem já é trabalhador da empresa ou com quem não tem qualquer outra relação laboral prévia, tem sido qualificado de contrato de trabalho.

44      Assim, afigura‑se que uma pessoa como a recorrente no processo principal pode ser considerada «trabalhador», na aceção do artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2001/23, e o seu contrato de comissão de serviço pode ser considerado um contrato de trabalho, na aceção do artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, desta diretiva.

45      No entanto, resulta da decisão de reenvio que a proteção concedida a este tipo de trabalhador difere da concedida a outros trabalhadores, na medida em que a legislação nacional em causa permite pôr termo a um contrato de comissão de serviço mediante simples aviso prévio escrito, num prazo relativamente curto, e sem que seja exigida justa causa.

46      A este respeito, o artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2001/23 limita‑se a exigir que uma pessoa esteja protegida como trabalhador pela legislação nacional em causa, sem, no entanto, insistir num determinado conteúdo ou numa determinada qualidade de proteção.

47      Com efeito, tornar pertinentes as diferenças entre os trabalhadores, consoante o conteúdo ou a qualidade da sua proteção nos termos da legislação nacional, privaria a Diretiva 2001/23 de uma parte do seu efeito útil.

48      Por outro lado, saliente‑se que a Diretiva 2001/23, como decorre do seu considerando 3, visa assegurar a manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de mudança de empresário, e não, sendo caso disso, alargar os seus direitos. Assim, esta diretiva limita‑se a garantir que a proteção de que beneficia uma pessoa, nos termos da legislação nacional em causa, não se deteriora apenas por causa da transferência.

49      Com efeito, a finalidade da referida diretiva é assegurar, tanto quanto possível, a continuação dos contratos ou das relações de trabalho com o cessionário, sem modificação, a fim de impedir que os trabalhadores em causa sejam colocados numa posição menos favorável apenas por causa dessa transferência (v. Acórdão de 6 de abril de 2017, Unionen, C‑336/15, EU:C:2017:276, n.° 18 e jurisprudência referida).

50      Daqui se conclui que a Diretiva 2001/23 assegura que a proteção específica prevista por uma legislação nacional será mantida sem que o seu conteúdo ou a sua qualidade sejam afetados por isso.

51      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão que a Diretiva 2001/23, nomeadamente o seu artigo 2.°, n.° 1, alínea d), deve ser interpretada no sentido de que uma pessoa que celebrou com o cedente um contrato de comissão de serviço, na aceção da legislação nacional em causa no processo principal, pode ser considerada «trabalhador» e beneficiar, assim, da proteção que esta diretiva concede, desde que, todavia, esteja protegida como trabalhador por essa legislação e beneficie de um contrato de trabalho à data da transferência, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto à segunda questão

52      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2001/23, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 2, TUE, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que, em caso de transferência, na aceção desta diretiva, e por o cessionário ser um município, os trabalhadores em causa devem, por um lado, submeter‑se a um processo de concurso público e, por outro, sujeitar‑se a um novo vínculo com o cessionário.

53      Antes de mais, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a circunstância de o cessionário ser uma pessoa coletiva de direito público não permite excluir a existência de uma transferência abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2001/23, quer essa pessoa coletiva seja uma empresa pública que tem a seu cargo um serviço público ou um município. Assim, o Tribunal de Justiça reconheceu que o facto de o cessionário ser um município não obsta, enquanto tal, a que a referida diretiva seja aplicável a uma transferência de atividades de uma empresa para um município (v., neste sentido, Acórdão de 20 de julho de 2017, Piscarreta Ricardo, C‑416/16, EU:C:2017:574, n.os 30 a 32 e jurisprudência referida).

54      Todavia, o Tribunal de Justiça precisou, a este propósito, que resulta da redação do artigo 1.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 2001/23 que, para que esta seja aplicável, a transferência deve referir‑se a uma entidade que exerça uma atividade económica com ou sem fins lucrativos e que, em princípio, estão excluídas, a este respeito, as atividades que se enquadram no exercício das prerrogativas de poder público (Acórdão de 20 de julho de 2017, Piscarreta Ricardo, C‑416/16, EU:C:2017:574, n.os 33 e 34 e jurisprudência referida).

55      Decorre da leitura da segunda questão que o órgão jurisdicional de reenvio parece considerar que a transferência em causa no processo principal está abrangida pela Diretiva 2001/23 e, portanto, que as atividades transferidas não se enquadram no exercício de prerrogativas de poder público.

56      Por conseguinte, é exclusivamente com base nesta hipótese, cuja verificação incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, que o Tribunal de Justiça responde à segunda questão.

57      A este respeito, nos termos do artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/23, os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.

58      Ora, como foi recordado no n.° 49 do presente acórdão, a finalidade da Diretiva 2001/23 é impedir que os trabalhadores em causa sejam colocados numa posição menos favorável apenas por causa da transferência.

59      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, por força da legislação nacional aplicável, uma pessoa como a recorrente no processo principal fica obrigada, por causa da transferência, por um lado, a submeter‑se a um processo de concurso e, por outro, a sujeitar‑se a um novo vínculo com o cessionário. Acresce que se, na sequência desse processo de concurso público, a recorrente no processo principal fosse integrada na função pública, sê‑lo‑ia com uma diminuição do seu salário durante um período mínimo de dez anos.

60      Ora, há que considerar que tais exigências, que, por um lado, alteram as condições de trabalho, acordadas com o cedente, de uma pessoa como a recorrente no processo principal e, por outro, podem colocar a trabalhadora numa posição menos favorável do que aquela em que se encontrava antes dessa transferência, contrariam tanto o artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/23 como a finalidade desta diretiva.

61      No que respeita à referência ao artigo 4.°, n.° 2, TUE, feita pelo órgão jurisdicional de reenvio, recorde‑se que esta disposição prevê que a União respeita, nomeadamente, a identidade nacional refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais dos Estados‑Membros.

62      A este respeito, importa observar que a referida disposição não pode ser interpretada no sentido de que, no domínio em que os Estados‑Membros transferiram as suas competências para a União, como em matéria de manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, permite privar um trabalhador da proteção que lhe confere o direito da União em vigor nesse domínio.

63      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que a Diretiva 2001/23, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 2, TUE, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que, em caso de transferência, na aceção desta diretiva, e por o cessionário ser um município, os trabalhadores em causa devem, por um lado, submeter‑se a um processo de concurso público e, por outro, sujeitar‑se a um novo vínculo com o cessionário.

 Quanto às despesas

64      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

1)      A Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos EstadosMembros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos, nomeadamente o seu artigo 2.°, n.° 1, alínea d), deve ser interpretada no sentido de que uma pessoa que celebrou com o cedente um contrato de comissão de serviço, na aceção da legislação nacional em causa no processo principal, pode ser considerada «trabalhador» e beneficiar, assim, da proteção que esta diretiva concede, desde que, todavia, esteja protegida como trabalhador por essa legislação e beneficie de um contrato de trabalho à data da transferência, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

2)      A Diretiva 2001/23, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 2, TUE, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que, em caso de transferência, na aceção desta diretiva, e por o cessionário ser um município, os trabalhadores em causa devem, por um lado, submeterse a um processo de concurso público e, por outro, sujeitarse a um novo vínculo com o cessionário.

Biltgen

Malenovský

Fernlund

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 13 de junho de 2019.

O Secretário

 

O Presidente da Oitava Secção

A. Calot Escobar

 

F. Biltgen


*      Língua do processo: português.