Language of document : ECLI:EU:C:2011:841

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NIILO JÄÄSKINEN

apresentadas em 15 de dezembro de 2011 (1)

Processo C‑378/10

VALE Építési ft.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Magyar Köztársaság Legfelsőbb Bírósága (Supremo Tribunal da Hungria)]

«Liberdade de estabelecimento — Artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE — Transferência da sede social de uma sociedade constituída num Estado‑Membro para outro Estado‑Membro com alteração do direito nacional aplicável (‘nova constituição transfronteiriça de uma sociedade de capitais’) — Regulamentação nacional que não permite inscrever no registo comercial, como antecessora jurídica de uma sociedade, uma sociedade constituída noutro Estado‑Membro — Regulamentação nacional que permite inscrever essa menção se a referida antecessora for uma sociedade constituída na Hungria»





I —    Introdução

1.        O reenvio prejudicial do presente processo tem por objeto a problemática da mobilidade transfronteiriça das sociedades no seio do mercado único. A questão submetida ao Tribunal de Justiça versa sobre a interpretação dos artigos 43.° CE e 48.° CE, que passaram a artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE. Foi apresentada no âmbito de uma reclamação na sequência da transferência transfronteiriça de uma sociedade de direito italiano para a Hungria através da transferência da sua sede social, implicando o cancelamento da sua inscrição no registo italiano de sociedades, a alteração do direito aplicável e a sua nova constituição numa sociedade de direito húngaro como a sucessora universal da referida sociedade italiana.

2.        A regulamentação húngara em causa no presente caso permite inscrever no registo nacional de sociedades, como antecessora jurídica de uma sociedade, uma sociedade constituída na Hungria. Em contrapartida, a referida regulamentação não permite a inscrição se a antecessora for uma sociedade constituída noutro Estado‑Membro, como é o caso no processo principal.

3.        O presente processo insere‑se numa série de acórdãos do Tribunal de Justiça relativos ao direito europeu das sociedades, nomeadamente os acórdãos Daily Mail and General Trust, Centros, Überseering, Inspire Art, SEVIC Systems e Cartesio (2). Porém, apresenta um aspeto inovador, dado que o Tribunal de Justiça é exortado a pronunciar‑se sobre o alcance das obrigações de um Estado‑Membro de acolhimento em caso de «nova constituição transfronteiriça de uma sociedade de capitais»(3).

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

4.        O direito primário e o direito derivado da União não contêm disposições que rejam a nova constituição transfronteiriça de uma sociedade de um Estado‑Membro nem a transferência internacional da sua sede estatutária(4).

5.        Contudo, o Regulamento (CE) n.° 2157/2001 do Conselho, de 8 de outubro de 2001, relativo ao estatuto da sociedade europeia (SE), prevê (5), no seu artigo 8.°, disposições pormenorizadas em matéria de transferência da sede de uma SE. Também o Regulamento (CE) n.° 1435/2003 do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativo ao Estatuto da Sociedade Cooperativa Europeia (SCE) (6) abre às cooperativas europeias uma possibilidade de transferência da sua sede. Além disso, a Diretiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada (7), estabeleceu um enquadramento jurídico para estas fusões.

B —    Direito nacional

6.        As disposições essenciais do direito nacional encontram‑se em dois diplomas (8).

7.        Por um lado, trata‑se da lei relativa ao registo das sociedades, a Lei n.° V de 2006, relativa à publicidade das sociedades, ao procedimento judicial de registo das sociedades e à sua liquidação voluntária (A cégnyilvánosságról, a bírósági cégeljárásról és a végelszámolásról szóló 2006. évi V. törvény, a seguir «lei relativa ao registo das sociedades») (9). As disposições pertinentes desta lei figuram nos artigos 24.° a 29.° e 57.°, n.° 4.

8.        Por outro, trata‑se da Lei n.° IV de 2006, relativa às sociedades comerciais (A gazdasági társaságokról szóló 2006. évi IV. törvény, a seguir «lei relativa às sociedades comerciais») (10). As disposições pertinentes desta lei para os fins do processo em apreço figuram, nomeadamente, nos artigos 69.°, n.° 1, 71.°, 73.°, 74.° e 75.°

III — Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9.        A VALE Costruzioni Srl (a seguir «VALE Costruzioni»), uma sociedade de responsabilidade limitada italiana, foi inscrita no registo comercial de Roma (Itália) em 16 de novembro de 2000.

10.      Em 3 de fevereiro de 2006, a VALE Costruzioni solicitou o cancelamento da sua inscrição no referido registo, indicando a sua intenção de transferir a sua sede social para a Hungria para aí prosseguir a sua atividade e de cessar a sua atividade em Itália.

11.       As autoridades competentes para o registo comercial em Roma deferiram este pedido e cancelaram o registo da VALE Costruzioni em 13 de fevereiro de 2006. Como resulta dos autos, no registo, sob a epígrafe «Cancelamento do registo e transferência de sede», encontra‑se a seguinte inscrição: «a sociedade foi transferida para a Hungria». O extrato do registo comercial italiano revela que a VALE Costruzioni designou a Hungria como o país da sua sede, indicando o endereço situado em Budapeste (Hungria).

12.      Nove meses depois, em 14 de novembro de 2006, em Roma, o gerente da VALE Costruzioni e outra pessoa singular aprovaram os estatutos da VALE Építési kft (a seguir «VALE Építési»), sociedade de responsabilidade limitada de direito húngaro, para efeitos da sua inscrição no registo comercial húngaro. O preâmbulo do pacto social indica que «a sociedade originariamente constituída em Itália, ao abrigo do direito italiano, decidiu transferir a sua sede para a Hungria e exercer a sua atividade nos termos do direito húngaro». Segundo o pacto social, liberaram metade do capital social requerido, de acordo com a legislação húngara, e transferiram‑no, em 14 de dezembro de 2006, para a conta aberta em nome da VALE Építési na Hungria. O pacto social situa a sede social no mesmo endereço em Budapeste.

13.      Em 19 de janeiro de 2007, o representante legal da VALE Építési apresentou um pedido de registo da sociedade ao Fővárosi Bíróság [Tribunal da Comarca de Budapeste, Hungria, operando como cégbíróság (tribunal das sociedades)]. No seu pedido, mencionou a VALE Costruzioni como a antecessora jurídica da VALE Építési.

14.      O referido tribunal, competente em primeira instância para o registo comercial, indeferiu o pedido de inscrição no registo apresentado pela VALE Építési. A referida sociedade interpôs recurso para o Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Regional de Budapeste), o qual confirmou o despacho de indeferimento. O Fővárosi Ítélőtábla decidiu que, segundo as regras do registo comercial húngaro, uma sociedade constituída e registada em Itália não pode transferir a sua sede para a Hungria e não pode ser inscrita no registo comercial húngaro sob a forma solicitada. Indicou que, nos termos da lei relativa ao registo das sociedades, não é possível mencionar como antecessora jurídica uma sociedade que não seja húngara e que só os elementos taxativamente enumerados nos artigos 24.° a 29.° da referida lei podem figurar no registo comercial.

15.      A VALE Építési interpôs recurso de cassação para o Magyar Köztársaság Legfelsőbb Bírósága (Supremo Tribunal da República da Hungria), órgão jurisdicional de reenvio. A VALE Építési alegou que a decisão impugnada violava os artigos 43.° CE e 48.° CE, que são diretamente aplicáveis, uma vez que esta não fazia nenhuma distinção entre, por um lado, a transferência internacional da sede de uma sociedade, a qual não implicaria a modificação da personalidade jurídica de origem da sociedade nem a alteração do direito aplicável, e, por outro, a transformação internacional de uma sociedade, que implicaria essa alteração.

16.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a dificuldade prática do presente processo radica no facto de o registo comercial estar organizado segundo um sistema de «casas», sendo o conteúdo das diversas casas determinado pelos artigos 24.° a 29.° da lei relativa ao registo das sociedades. Se uma sociedade comercial pretender exercer a sua liberdade de estabelecimento não através da transferência da sua sede social para a Hungria, mas sim criando uma sociedade húngara nova, e pretender indicar nos seus estatutos que exerceu anteriormente as suas atividades noutro Estado‑Membro, só pode fazer referência a essa circunstância através da indicação da data da transformação. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio confirma a apreciação do Fővárosi Bíróság, referindo que a transferência da sede social, que implica uma nova constituição da sociedade nos termos do direito húngaro e a menção da sua antecessora jurídica italiana, como pede a VALE Építési, não pode ser considerada, em direito húngaro, uma transformação.

17.      Nestas circunstâncias, a jurisdição nacional decidiu suspender a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O Estado‑Membro de acolhimento deve ter em consideração o disposto nos artigos 43.° CE e 48.° CE quando uma sociedade constituída noutro Estado‑Membro (Estado‑Membro de origem) para aí transfira a sua sede, sendo — por esse motivo — cancelada a sua inscrição no registo do Estado‑Membro de origem, aprovando os seus sócios um novo pacto social, elaborado em conformidade com o direito do Estado‑Membro de acolhimento, e pedindo a referida sociedade a sua inscrição no registo comercial do Estado‑Membro de acolhimento em conformidade com o direito deste último?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, devem os artigos 43.° CE e 48.° CE ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação ou prática de um Estado‑Membro (de acolhimento) que nega a uma sociedade legalmente constituída em conformidade com o direito de outro Estado‑Membro (de origem) o direito de transferir a sua sede social para o Estado‑Membro de acolhimento e aí continuar a exercer a sua atividade ao abrigo do direito deste último?

3)      Para a resposta à segunda questão, importa ter em conta o motivo pelo qual o Estado‑Membro de acolhimento recusa a inscrição da sociedade requerente no registo comercial, e mais concretamente:

—      o facto de no pacto social entregue no Estado‑Membro de acolhimento a sociedade mencionar como sua antecessora jurídica a sociedade constituída no Estado‑Membro de origem, em cujo registo comercial a sua inscrição foi cancelada, e solicitar que a referida antecessora seja mencionada como a sua própria antecessora jurídica no registo comercial do Estado‑Membro de acolhimento?

—      a questão de saber se, em caso de transformação internacional intracomunitária, o Estado‑Membro de acolhimento é obrigado, quando examina um pedido de registo de inscrição de uma sociedade no seu registo comercial, a ter em conta o ato através do qual o Estado‑Membro de origem averbou a transferência da sede social no seu registo comercial e, em caso de resposta afirmativa, em que medida?

4)      Pode o Estado‑Membro de acolhimento examinar um pedido de registo de inscrição no seu registo comercial, apresentado por uma sociedade que procedeu a uma transformação internacional intracomunitária, aplicando as disposições do seu direito interno que regulam a transformação das sociedades a nível nacional, ou seja, exigindo que a sociedade em causa satisfaça todos os requisitos que o seu direito interno impõe em caso de transformação nacional (por exemplo, elaboração de um balanço e de um inventário dos ativos) ou, pelo contrário, impõem os artigos 43.° CE e 48.° CE que este Estado introduza uma distinção entre as transformações internacionais intracomunitárias e as transformações a nível nacional e, em caso de resposta afirmativa, em que medida?»

IV — Processo no Tribunal de Justiça

18.      O pedido de decisão prejudicial foi registado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 28 de julho de 2010. A sociedade VALE Építési, os Governos húngaro e alemão, a Irlanda, os Governos italiano, austríaco e do Reino Unido, a Comissão Europeia e o Órgão de Fiscalização da EFTA apresentaram observações escritas.

19.      A fim de completar os elementos do processo, o Tribunal de Justiça dirigiu ao Governo italiano e ao representante legal da VALE Építési questões para resposta por escrito relativas ao alcance das disposições do direito italiano, bem como aos factos dos autos. As respostas foram registadas na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de julho de 2011.

20.      A VALE Építési, os Governos húngaro e alemão, a Irlanda, os Governos italiano, austríaco e do Reino Unido, bem como a Comissão Europeia e o Órgão de Fiscalização da EFTA, estiveram representados na audiência, que se realizou em 14 de setembro de 2011.

V —    Análise

A —    Considerações introdutórias

21.      Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio procura saber se o direito da União se aplica e, em caso afirmativo, com que efeitos, em caso de transferência da sede social, ou até de transformação, de uma sociedade de capitais constituída legalmente no Estado‑Membro A e, em seguida, cancelada no registo comercial do referido Estado‑Membro, com vista à transferência e ao registo no Estado‑Membro B, com alteração do direito aplicável. Uma vez que as disposições do direito húngaro não autorizam o registo dessa sociedade com a menção de uma sociedade de outro Estado‑Membro como sua antecessora jurídica, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a solução possível, à luz das disposições do direito da União relativas à liberdade de estabelecimento.

22.      À luz da problemática apresentada ao Tribunal de Justiça, proponho tratar as questões em duas partes: a primeira, relativa à aplicabilidade dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE (11) em matéria de transformação das sociedades; a segunda, relativa aos efeitos das disposições que se referem à liberdade de estabelecimento sobre as disposições nacionais suscetíveis de constituírem restrições à liberdade de estabelecimento.

23.      Contudo, três pontos merecem, desde logo, ser abordados antes de se dar início à análise das questões prejudiciais. Em primeiro lugar, determinados intervenientes manifestaram dúvidas quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial. Em segundo lugar, parece‑me indispensável clarificar a terminologia a empregar. Por último, uma terceira questão prévia essencial diz respeito à existência jurídica da VALE Costruzioni no momento da apresentação do pedido de registo na Hungria.

B —    Sobre a admissibilidade

24.      Nas suas observações escritas, o Governo do Reino Unido e o Órgão de Fiscalização da EFTA referem que, no que diz respeito às duas últimas questões, a decisão de reenvio contém lacunas suscetíveis de provocar a inadmissibilidade das questões submetidas. Com efeito, referem que a referida decisão não especifica as consequências jurídicas no direito italiano inerentes ao cancelamento da inscrição da VALE Costruzioni no registo comercial. O Governo húngaro e a Comissão alegam que não resulta da referida decisão se a VALE Costruzioni exerceu ou não uma atividade económica após o seu cancelamento. Os Governos húngaro, austríaco e do Reino Unido observam também que os estatutos da VALE Építési foram aprovados por intervenientes diferentes dos sócios da VALE Costruzioni. Por fim, segundo a Irlanda, não é claro se a transferência da sede «social» visa a sede estatutária ou a sede real.

25.      No entanto, a admissibilidade das questões prejudiciais não me parece suscitar dúvidas, conforme resulta, na minha opinião, da jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual, no âmbito do procedimento nos termos do artigo 267.° TFUE, desde que as questões submetidas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça, em princípio, tem de se pronunciar (12). O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (13).

26.      Ora, manifestamente, não é o caso no presente processo. Apesar das imprecisões da decisão de reenvio quanto às particularidades do direito italiano, parece‑me que o Tribunal de Justiça dispõe de elementos suficientes para poder pronunciar‑se. As questões submetidas inserem‑se corretamente no âmbito jurídico e factual, dizendo respeito a um problema real suscetível de ter consequências transversais para a globalidade do mercado único. Além disso, estas questões ainda não foram objeto de uma resposta precisa por parte do Tribunal de Justiça.

27.      Por último, a problemática das consequências jurídicas inerentes ao cancelamento da inscrição de uma sociedade de capitais no registo comercial italiano, facto expressamente mencionado pela jurisdição nacional, parece ser particularmente complexa e estar longe de uma interpretação unívoca.

C —    Sobre a qualificação precisa a atribuir ao caso concreto

28.      Parece‑me essencial especificar a terminologia a empregar para definir a natureza do ato de estabelecimento da VALE Építési por parte de pessoas que exerceram uma atividade económica sob a forma de uma sociedade de responsabilidade limitada no direito italiano, a saber, a VALE Costruzioni, pretendendo que a VALE Építési seja sucessora da VALE Costruzioni. A este respeito, a primeira questão que se coloca é a de saber se existem situações comparáveis no direito interno húngaro.

29.      Resulta dos autos que uma sociedade húngara de responsabilidade limitada pode, obviamente, transferir a sua sede de uma localidade para outra no interior do país. Neste caso, a forma jurídica e a lei aplicável não sofrem alterações e a pessoa jurídica continua a ser a mesma.

30.      Além disso, segundo o direito húngaro, «uma sociedade comercial pode ser constituída por transformação (ou seja, por alteração da forma da sociedade, fusão e cisão)» (14). Uma sociedade de responsabilidade limitada pode ser transformada, por exemplo, numa sociedade anónima. No momento desta alteração da forma da sociedade, é criada uma nova pessoa jurídica. Porém, esta é a sucessora universal da pessoa jurídica transformada, a qual perde a sua capacidade jurídica aquando da transformação (15). Segundo a legislação húngara, a alteração da forma da sociedade pode também ocorrer por transferência da sede no interior do país (16).

31.      A operação realizada no presente processo distingue‑se da transferência da sede a nível nacional, na medida em que a sua execução carece da constituição de uma nova pessoa jurídica e do cancelamento do registo da sociedade existente, uma vez que a legislação húngara não prevê a transferência transfronteiriça da sede de uma sociedade constituída no estrangeiro.

32.      Adicionalmente, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, segundo o direito húngaro, a situação da mobilidade de uma sociedade como a do caso em discussão não pode ser qualificada de «transformação de uma sociedade», dado que o direito das sociedades húngaro só conhece as três formas de transformação acima mencionadas.

33.      Acresce que, no direito da União, a VALE Costruzioni e a VALE Építési são sociedades com a mesma forma social, a saber, sociedades de responsabilidade limitada (17). É evidente que não há necessidade, na ordem jurídica nacional, de prever a transformação de uma sociedade de responsabilidade limitada numa sociedade semelhante se não se tratar de uma fusão ou de uma cisão.

34.      Tendo em conta as considerações precedentes, parece‑me útil qualificar a operação realizada no caso em apreço de «nova constituição transfronteiriça de uma sociedade». Esta operação implica a transferência da sede social com alteração da lei aplicável (sendo esta alteração resultante da necessidade de constituir uma nova sociedade nos termos do direito do Estado‑Membro de acolhimento para poder continuar as atividades da sociedade original), bem como o cancelamento do registo da sociedade original no país de origem.

35.      Realço também que o objetivo pretendido no caso em apreço pelas sociedades e pelos seus sócios poderia ter sido igualmente concretizado com uma fusão transfronteiriça, através da qual a VALE Costruzioni teria sido objeto de fusão com a VALE Építési nos termos da Diretiva 2005/56 (18).

D —    Sobre a existência jurídica da VALE Costruzioni por força do direito italiano

1.      Observações preliminares

36.      Como o Tribunal de Justiça salientou em diversas ocasiões, uma sociedade só existe através da legislação nacional que determina a sua constituição e o seu funcionamento (19). Nessa perspetiva, trata‑se neste caso da transformação de uma sociedade de responsabilidade limitada de direito italiano numa sociedade de direito húngaro. Porém, esta transformação não está prevista pela legislação atual da União (20) nem pelo direito húngaro.

37.      Importa sublinhar que a parte requerente no âmbito do processo de registo na Hungria é uma sociedade húngara em formação (a saber, a VALE Építési) que, aparentemente, possui capacidade limitada para agir no plano processual, ainda que não esteja registada. Além disso, segundo as informações prestadas na audiência pelo representante legal da VALE Építési, a referida sociedade húngara possui ativos correspondentes a uma parte do capital social exigido para o registo, bem como uma gerência e sócios, que não são, contudo, idênticos aos da sociedade italiana.

38.      Ora, dado que a inscrição da VALE Costruzioni no registo comercial italiano foi cancelada, coloca‑se a questão da própria existência de uma antecessora da VALE Építési.

39.      Tendo em conta a necessidade de clarificar um determinado número de elementos do direito nacional, o Tribunal de Justiça convidou a VALE Építési e o Governo italiano a pronunciarem‑se sobre questões suplementares.

2.      Posições da VALE Építési e do Governo italiano

40.      A primeira questão dirigida pelo Tribunal de Justiça ao Governo italiano relacionava‑se com as condições que devem ser preenchidas por uma sociedade italiana que pretenda transformar‑se, através da transferência da sede estatutária, em sociedade regulada pelo direito de outro Estado‑Membro. Na sua resposta, o referido governo confirma que o direito italiano admite a transferência da sede legal de uma sociedade constituída em Itália para outro Estado. Segundo o direito italiano, a transferência da sede estatutária só produz efeitos se tiver sido efetuada em conformidade com a regulamentação dos dois Estados‑Membros em causa. De acordo com o referido governo, a sociedade só continua a existir como pessoa coletiva de direito italiano se os Estados entre os quais a transferência é realizada estiverem de acordo sobre as consequências desta operação. Quando a transferência da sede é acompanhada pelo desejo da sociedade de deixar de ser abrangida pelo direito italiano, o cancelamento do registo só pode ser efetuado após a inscrição da sociedade no estrangeiro (21).

41.      A segunda questão formulada pelo Tribunal de Justiça ao Governo italiano dizia respeito aos efeitos, no direito italiano, do cancelamento da inscrição de uma sociedade no registo. Segundo o referido governo, na sequência da reforma do direito das sociedades italiano de 2003, o cancelamento do registo das sociedades de responsabilidade limitada tem um efeito extintivo. Contudo, a questão continua a colocar‑se no momento em que subsistem ou surgem relações jurídicas ou ativos após o cancelamento do registo. É no entanto possível proceder à anulação do cancelamento do registo da sociedade de capitais, o que implica que a sociedade em causa continua a ser considerada ativa, até prova em contrário. Na audiência, o Governo italiano indicou que a menção atualmente inscrita no registo comercial, «foi transferida para a Hungria», poderá ser anulada com efeito retroativo, por meio de um pedido de anulação dos sócios, caso o cancelamento do registo da sociedade tenha tido por base uma decisão ilegal. Nessa hipótese, o problema relativo à existência ou inexistência da VALE Costruzioni desaparecerá forçosamente.

42.      A questão dirigida à VALE Építési dizia especialmente respeito aos elementos que demonstram a vontade, por parte da VALE Costruzioni, de proceder a uma transformação. Na sua resposta, a VALE Építési sublinha reiteradamente que a transformação e a transferência da sede social para a Hungria da VALE Costruzioni se baseiam na intenção de exercer, de forma real e permanente, uma atividade económica. A VALE Építési alega que esta decisão, tomada em boa e devida forma pela VALE Costruzioni muito antes do cancelamento do registo das sociedades, comprova uma intenção constante e explícita dos sócios, a qual não foi afetada pelo intervalo de tempo relativamente significativo decorrido entre o cancelamento do registo da VALE Costruzioni em Itália e o pedido de registo da VALE Építési na Hungria.

3.      Apreciação

43.      Tendo em conta o que antecede, a situação pode ser analisada sob dois ângulos diferentes.

44.      Por um lado, a VALE Costruzioni já não existe na aceção do direito italiano e a transferência aceite pelo direito italiano não pode ser concluída, dado que a sociedade já não existe. No entanto, coloca‑se então a questão de saber a quem pertencem os ativos da sociedade, nomeadamente o capital liberado com vista ao registo na Hungria, e quem é responsável pelas obrigações da sociedade em relação a terceiros (22). Em particular, impõe‑se refletir sobre a natureza da relação entre os sócios da sociedade cujo registo foi cancelado.

45.      Por outro lado, a VALE Építési ainda não existe na qualidade de pessoa coletiva no direito húngaro, dado que o seu registo foi recusado na Hungria. Todavia, esta sociedade em formação teve a legitimidade jurídica exigida para agir como parte perante o órgão jurisdicional nacional, bem como perante o Tribunal de Justiça.

46.      Estes dois aspetos podem originar debates metafísicos, baseados nas teorias clássicas relativas à existência e à natureza das pessoas coletivas, com incidência, nomeadamente, sobre a continuidade das suas identidades no tempo em caso de transformação ou de sucessão. Porém, penso que, para efeitos da aplicação das disposições do direito da União relativas à liberdade de estabelecimento, as realidades da vida económica prática deverão ter maior importância do que os aspetos teóricos do direito das pessoas coletivas.

47.      A este respeito, quero recordar a fórmula do advogado‑geral Darmon no processo Daily Mail and General Trust a respeito da finalidade do direito de estabelecimento, segundo a qual estabelecer‑se consiste em «integrar‑se numa economia nacional» e que «[a] própria noção de estabelecimento é económica. Implica sempre um vínculo económico efetivo» (23). Adicionalmente, como o advogado‑geral La Pergola constatou no processo Centros, «[O] direito de estabelecimento é essencial para a aplicação dos objetivos constantes do Tratado [CE], que pretende garantir, indistintamente a todos os cidadãos comunitários, a liberdade de empresa económica mediante os instrumentos fornecidos pelo direito nacional, assegurando a chance de inserção no mercado» e «trata‑se de proteger a oportunidade de uma iniciativa económica e, em conjunto com esta, a liberdade comercial de utilizar os instrumentos previstos para este efeito nas ordens jurídicas dos Estados‑Membros» (24).

48.      No caso da VALE Costruzioni, trata‑se de uma entidade económica constituída ao abrigo do direito italiano pelos sócios, das suas obrigações mútuas, dos ativos sociais e de um objetivo social de prossecução da atividade económica da sociedade VALE Costruzioni na Hungria, sob a forma de uma sociedade correspondente de direito húngaro. Mesmo que esta entidade tenha perdido a sua personalidade jurídica segundo o direito italiano e a sua sucessora ainda não a tenha adquirido segundo o direito húngaro, a VALE Építési ou os seus sócios deveriam poder invocar a liberdade de estabelecimento na Hungria para aí continuar uma atividade económica, tal como definida nos estatutos da sociedade cujo registo foi cancelado e nos estatutos da sociedade em formação.

49.      Este aspeto relativo à intenção dos sócios parece‑me primordial na análise da aplicabilidade da liberdade de estabelecimento (25). Não é a sociedade italiana, provavelmente inexistente nesta fase, mas capaz de renascer, que invoca a liberdade de estabelecimento, mas antes a sociedade húngara em formação e as pessoas singulares que lhe estão associadas.

50.      Isto assente, é irrelevante, para efeitos da aplicabilidade da liberdade de estabelecimento, se a VALE Costruzioni continuou a existir após fevereiro de 2006 ou se a VALE Costruzioni deixou de existir precocemente devido a uma inscrição eventualmente errada efetuada no registo comercial de Roma. De qualquer modo, existem pessoas singulares, nacionais de um Estado‑Membro, que exerceram a liberdade de estabelecimento num Estado‑Membro e que continuam a ter a intenção de a exercer noutro. Assim, a situação é abrangida tanto pelo artigo 54.° TFUE como pelo artigo 49.° TFUE.

51.      Relativamente à aplicabilidade das referidas disposições do Tratado FUE, importa referir que a nacionalidade dos sócios não deve desempenhar um papel decisivo: se se tratar de nacionais italianos, o elemento transfronteiras para a Hungria está presente e, mesmo que se trate de nacionais húngaros, a solução será idêntica, dado que, nesse caso, os sócios estarão a repatriar a empresa de Itália para o seu país de origem.

52.      Em contrapartida, a continuidade da existência jurídica da primeira sociedade no momento do nascimento jurídico da sociedade destinada a suceder‑lhe legalmente reveste um outro aspeto relativo às condições estabelecidas pelo Estado‑Membro de acolhimento para que a sociedade em formação possa ser considerada a sucessora da primeira sociedade. A legislação italiana e as disposições análogas do direito da União (26) partem do princípio de que a sucessão só é possível se a sucessora existir antes de a antecessora perder a sua capacidade jurídica. O alcance deste princípio deve ser apreciado no âmbito da terceira e quarta questões.

E —    Sobre a aplicabilidade da liberdade de estabelecimento no presente processo (primeira e segunda questões)

53.      A mobilidade das sociedades no seio do mercado único pode assumir diferentes formas, como a criação de filiais ou de sucursais, a transferência da sede ou a fusão transfronteiriça. A problemática do direito das sociedades é abrangida, por um lado, pela liberdade de estabelecimento, no plano do direito primário, e, por outro lado, por uma aplicação legislativa mais específica, no plano do direito derivado.

54.      É evidente que a harmonização legislativa neste domínio está longe de estar realizada na União Europeia. Todavia, o legislador da União já interveio nos domínios específicos.

55.      Por exemplo, o Regulamento n.° 2157/2001 (27) prevê que uma sociedade europeia poderá transferir a sua sede de um Estado‑Membro para outro Estado‑Membro conservando a sua personalidade jurídica, sem que essa transferência origine a criação de uma nova pessoa coletiva. No entanto, essa transferência comporta necessariamente uma alteração no que diz respeito ao direito nacional aplicável à sociedade. Também o Regulamento n.° 1435/2003 (28) permite este tipo de transferência de sede no caso das cooperativas europeias. Além disso, a Diretiva 2005/56 contempla situações em que uma sociedade é objeto de fusão com uma sociedade constituída noutro Estado‑Membro.

56.      O fenómeno da transferência da sede não é, portanto, estranho ao direito da União. Naturalmente, a possibilidade prevista pelos atos legislativos acima referidos aplica‑se apenas aos tipos de sociedades abrangidos por esses atos. Também é verdade que esta possibilidade existe e que a abordagem proposta pelo legislador da União é bastante coerente nos três domínios.

57.      Relativamente à transformação de uma pessoa coletiva de uma ordem jurídica para outra, com exceção dos três casos acima mencionados, não existe qualquer disposição ao nível da União. Por conseguinte, no estado atual do direito da União, compete aos Estados‑Membros regulamentar as modalidades relativas a uma transformação desta natureza. A este respeito, deve recordar‑se que o artigo n.° 293.° CE convida os Estados‑Membros a entabular entre si, sempre que necessário, negociações destinadas a garantir, em benefício dos seus nacionais, o reconhecimento mútuo das sociedades, a manutenção da personalidade jurídica em caso de transferência da sede de um Estado‑Membro para outro e a possibilidade de fusão de sociedades sujeitas a legislações nacionais diferentes. Ora, o artigo 293.° CE foi revogado pelo Tratado de Lisboa, de modo que o direito primário deixou de prever a possibilidade de celebração de acordos entre os Estados‑Membros relativos ao reconhecimento mútuo das sociedades.

58.      No entanto, apesar das diferentes dificuldades jurídicas que se prendem com o direito das sociedades, o direito fiscal nacional e o direito privado internacional, tem cabido ao Tribunal de Justiça dar os principais impulsos no sentido de fazer evoluir o direito da União em matéria de sociedades, através dos seus acórdãos de princípio precursores da mobilidade transfronteiriça das sociedades.

59.      Assim, as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento garantem o direito de estabelecimento noutro Estado‑Membro não apenas aos nacionais da União nos termos do artigo 49.° TFUE, mas também às sociedades definidas no artigo 54.° TFUE. Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, essas disposições visam, nomeadamente, assegurar o benefício do tratamento nacional no Estado‑Membro de acolhimento, mas opõem‑se também a qualquer obstáculo ao estabelecimento, noutro Estado‑Membro, de um nacional de um Estado‑Membro ou de uma sociedade constituída em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro (29).

60.      Com efeito, os Estados‑Membros devem, nomeadamente após o acórdão Überseering, já referido, reconhecer as sociedades validamente constituídas ao abrigo da legislação do Estado‑Membro da sua proveniência, mesmo na ausência de uma conexão material com esse Estado. Uma vez validamente criada, esta entidade pode exercer a liberdade de estabelecimento no seio da União (30).

61.      Esta mobilidade, consagrada pela jurisprudência, pode ter o seu limite nas medidas nacionais que sejam suscetíveis de afetar ou de tornar menos atraente o exercício de liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE. Todavia, estas medidas só são admissíveis se respeitarem quatro condições, a saber: aplicação não discriminatória, justificação por razões imperiosas de interesse geral, natureza adequada para garantir a realização do objetivo prosseguido e não ultrapassagem do que é necessário para atingir esse objetivo (31).

62.      O referido limite materializa‑se igualmente na noção de abuso de direito que os Estados‑Membros podem especificar e aplicar (32).

63.      Independentemente da interpretação muito ampla das disposições relativas à liberdade de estabelecimento, que constitui uma noção autónoma do direito da União, um outro limite à mobilidade das sociedades decorre das regras ao abrigo das quais a sociedade em questão foi constituída e cuja pertinência o Tribunal de Justiça sublinha. No processo Überseering, o Tribunal de Justiça sublinhou também que as modalidades da transferência de sede são determinadas pela legislação nacional em conformidade com a qual a referida sociedade foi constituída (33).

64.      No acórdão Cartesio, o Tribunal de Justiça decidiu igualmente que «um Estado‑Membro dispõe da faculdade de definir não só o vínculo de dependência exigido a uma sociedade para que esta possa ser considerada constituída em conformidade com o seu direito nacional e suscetível, a esse título, de beneficiar do direito de estabelecimento como o vínculo de dependência exigido para manter essa mesma qualidade posteriormente. Tal faculdade engloba a possibilidade de esse Estado‑Membro não permitir a uma sociedade constituída ao abrigo do seu direito nacional conservar essa qualidade quando decida reorganizar‑se noutro Estado‑Membro mediante a deslocação da sua sede para o território deste último, rompendo dessa forma o vínculo de dependência previsto pelo direito nacional do Estado‑Membro de constituição» (34).

65.      Visa‑se assim, no entanto, uma situação na qual não existe nenhuma alteração do direito aplicável. Ora, como o Tribunal de Justiça também já teve ocasião de sublinhar no acórdão Cartesio, o caso de transferência da sede de uma sociedade constituída ao abrigo do direito de um Estado‑Membro para outro Estado‑Membro, sem alteração do direito que lhe é aplicável, deve ser distinguido do caso de deslocação de uma sociedade de um Estado‑Membro para outro com alteração do direito nacional aplicável, dado que a sociedade passa a ter uma forma prevista no direito do Estado‑Membro para o qual se desloca (35). Neste último caso, a faculdade, evocada no acórdão Cartesio, não pode, em particular, justificar que o Estado‑Membro de constituição, ao impor a dissolução e a liquidação dessa sociedade, a impeça de se transformar numa sociedade de direito nacional do outro Estado‑Membro, desde que este o permita (36).

66.      Daqui resulta que uma alteração do direito aplicável tem necessariamente incidência sobre a aplicabilidade da liberdade de estabelecimento.

67.      Quando se trate, em contrapartida, do Estado‑Membro de acolhimento, há que sublinhar a solução consagrada no acórdão SEVIC Systems, relativo à recusa discriminatória do registo de uma fusão transfronteiriça, ainda que a legislação nacional preveja a possibilidade da inscrição de fusões nacionais. Segundo o Tribunal, «[o] âmbito de aplicação do direito de estabelecimento abrange qualquer medida que permita, ou mesmo que apenas facilite, o acesso a um Estado‑Membro diferente do da sede e o exercício de uma atividade económica nesse Estado, possibilitando a participação efetiva dos operadores económicos em causa na vida económica do referido Estado‑Membro, nas mesmas condições aplicáveis aos operadores nacionais» (37).

68.      Como o Órgão de Fiscalização da EFTA assinala, deve reconhecer‑se às sociedades, no seio do mercado único, a faculdade de escolher livremente o direito das sociedades que lhes é aplicável. Tal liberdade de escolha permitiria às sociedades escolher as condições económicas mais favoráveis e o sistema de direito das sociedades mais vantajoso (38). Com efeito, em geral, as sociedades pretendem transferir a sua sede estatutária para outro Estado‑Membro a fim de beneficiarem de melhor acesso a financiamentos e a reduções de custos. Acresce que, atualmente, é possível realizar a maior parte das atividades de uma sociedade noutro Estado‑Membro. A nova constituição transfronteiriça de uma sociedade, aliada a uma alteração do direito aplicável, constitui, deste modo, uma modalidade particular de exercício da liberdade de estabelecimento comparável a operações de fusão transfronteiriça. Esta nova constituição enquadra‑se, portanto, nas atividades económicas em relação às quais os Estados‑Membros devem respeitar a liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.° TFUE.

69.      Em face do exposto, deve ser declarado que os artigos do Tratado FUE relativos à liberdade de estabelecimento são aplicáveis à nova constituição transfronteiriça de uma sociedade que implique uma alteração do direito aplicável, a transferência da sede social, bem como a constituição de uma sociedade em conformidade com o direito do Estado‑Membro de acolhimento que assume os direitos e as obrigações da referida sociedade na qualidade de sucessora jurídica. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se as disposições e as práticas nacionais em causa são suscetíveis de criar obstáculos à referida liberdade fundamental, o que, em minha opinião, parece ser o caso.

F —    Sobre as restrições e a sua justificação (terceira e quarta questões)

70.      No n.° 112 do acórdão Cartesio, o Tribunal de Justiça declarou que a transformação de uma sociedade numa sociedade de direito de outro Estado‑Membro é possível, «desde que este o permita» (39). Parece‑me evidente que o Tribunal de Justiça visa, com o termo «este», o direito do Estado‑Membro de acolhimento. Podemos interpretar o acórdão no sentido de que o Estado‑Membro de acolhimento pode, arbitrariamente, tanto proibir como permitir a operação pela qual a sede social de uma sociedade de capitais e a lei aplicável se alteram? Em minha opinião, não é esse o caso.

71.      Gostaria de recordar que o caso em discussão combina, num âmbito transfronteiriço, elementos de duas operações permitidas e reconhecidas a nível nacional no direito húngaro: a transferência de uma sociedade e a transformação de uma sociedade noutra sob a forma de sucessão jurídica universal entre essas duas entidades. A legislação húngara permite expressamente que a transferência e a transformação se insiram no âmbito de uma operação única (40).

72.      Considero que o princípio da não discriminação, tal como o Tribunal de Justiça o aplicou no acórdão SEVIC Systems, já referido, exige que o Estado‑Membro de acolhimento permita, em princípio, a nova constituição transfronteiriça de uma sociedade.

73.      O Estado‑Membro de acolhimento pode, sem dúvida, impor à sociedade o cumprimento das condições que, segundo o direito nacional, sejam aplicáveis a situações análogas. No entanto, não pode aplicar regras internas suscetíveis de impedir a nova constituição transfronteiriça pelo simples motivo de o direito nacional das sociedades não prever uma operação transfronteiriça dessa natureza. Tal é válido, em especial, para os obstáculos decorrentes das modalidades de inscrição de menções no registo nacional pertinente. No n.° 30 do referido acórdão SEVIC Systems, o Tribunal de Justiça decidiu que o facto de, num Estado‑Membro, se recusar genericamente a inscrição no registo comercial de uma fusão entre uma sociedade com sede nesse Estado e uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro teria o resultado de impedir a realização de fusões transfronteiriças mesmo quando os interesses relacionados com razões imperiosas de interesse geral, como a proteção dos interesses dos credores, dos sócios minoritários e dos trabalhadores, a preservação da eficácia das inspeções fiscais e da lealdade nas transações comerciais, não estivessem ameaçados. De qualquer modo, uma norma como essa iria além do necessário para atingir os objetivos de proteção dos referidos interesses.

74.      Por conseguinte, deve interpretar‑se, em minha opinião, a condição mencionada no n.° 112 do acórdão Cartesio já referido, no sentido de que o Estado‑Membro de acolhimento tinha, no processo principal, a possibilidade de aplicar as disposições nacionais relativas à constituição e à transformação de uma sociedade de responsabilidade limitada e exigir, em consequência, à VALE Építési as obrigações previstas pelo seu direito interno nessas circunstâncias.

75.      Assim, incumbe à VALE Építési satisfazer o conjunto de condições que a legislação nacional impõe a uma sociedade de responsabilidade limitada no que diz respeito, por exemplo, ao capital social, aos sócios e ao conteúdo dos estatutos. Acresce que o Estado‑Membro de acolhimento pode exigir, para poder verificar a transferência dos ativos e passivos para a nova sociedade, uma continuidade contabilística entre as sociedades e requerer que o balanço de abertura da sociedade a constituir corresponda ao balanço de encerramento da sociedade antecessora. Creio igualmente que o referido Estado‑Membro pode solicitar que os ativos e passivos da sociedade sejam identificados e verificados por um revisor a fim de garantir o cumprimento das regras relativas ao capital social.

76.      Além disso, considero, à semelhança da Comissão, que o Estado‑Membro pode também aplicar regras específicas às situações transfronteiriças, na medida em que tal se justifique pela especificidade das referidas situações, desde que essas regras não sejam nem discriminatórias nem desproporcionadas. Deste modo, por exemplo, quando, no direito nacional, as menções inscritas no registo comercial são oponíveis a terceiros de boa‑fé e têm um efeito constitutivo, implicando, simultaneamente, a responsabilidade não culposa do Estado em caso de inexatidão, não há que aplicar estes princípios aos dados provenientes das autoridades de outros Estados‑Membros, cuja exatidão não pode ser verificada pelo Estado‑Membro de acolhimento.

77.      A questão primordial é, portanto, saber se a sociedade em formação pode exigir que a sociedade do outro Estado‑Membro seja mencionada como sua antecessora jurídica. Parece‑me que esta questão deve ser respondida afirmativamente, desde que a referida sociedade seja capaz de provar que a sucessão foi autorizada pela legislação do Estado‑Membro de origem. Com efeito, considero que a transmissão dos ativos entre a sociedade antecessora e a sociedade em formação só pode ocorrer ao abrigo da ordem jurídica de origem.

78.      Em contrapartida, quando se trata de créditos e outras obrigações da sociedade antecessora, partilho o parecer do Órgão de Fiscalização da EFTA segundo o qual a menção, no registo comercial húngaro, da sucessão jurídica se destina a proteger os credores, uma vez que o acórdão Cartesio, já referido, tornou possível o «desaparecimento» de uma sociedade de um Estado‑Membro sem qualquer liquidação. O direito nacional do Estado de acolhimento deve permitir a uma sociedade dar a conhecer o seu estatuto de sucessora de outra sociedade, o que implica que a sociedade em formação retome o conjunto de direitos e as obrigações da sociedade que a precedeu (41).

79.      Todavia, esta transmissão universal não é possível se a sociedade antecessora já tiver perdido a sua personalidade jurídica no momento do registo da sociedade sucessora. Nessa situação, o titular dos direitos e das obrigações da sociedade será ou uma sociedade de facto desprovida de personalidade jurídica, ou os sócios, tomados coletivamente ou mesmo individualmente. Esta situação não permite uma sucessão jurídica universal entre as duas sociedades. Daqui resulta, a meu ver, que, no caso em apreço, as autoridades húngaras não estão obrigadas a reconhecer a VALE Építési como sucessora jurídica da VALE Costruzioni, exceto se o cancelamento da inscrição da VALE Costruzioni no registo comercial em Itália tiver sido anulado previamente.

VI — Conclusão

80.      Atendendo às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões prejudiciais submetidas pelo Magyar Köztársaság Legfelsőbb Bírósága:

«1)      Os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE são aplicáveis a um caso de nova constituição transfronteiriça de uma sociedade, ou seja, quando uma sociedade constituída num Estado‑Membro (Estado‑Membro de origem) transfere a sua sede social para outro Estado‑Membro (Estado‑Membro de acolhimento), sendo — por esse motivo — cancelada a sua inscrição no registo do Estado‑Membro de origem, aprovando os seus sócios um novo pacto social, elaborado em conformidade com o direito do Estado‑Membro de acolhimento, e pedindo a referida sociedade a sua inscrição no registo comercial do Estado‑Membro de acolhimento em conformidade com o direito deste último.

2)      Os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE opõem‑se a uma regulamentação ou a uma prática de um Estado‑Membro de acolhimento que nega a uma sociedade legalmente constituída em conformidade com o direito de outro Estado‑Membro de origem o direito de transferir a sua sede social para o Estado‑Membro de acolhimento e aí continuar a exercer a sua atividade sob a forma de sociedade constituída em conformidade com o direito desse Estado, exceto se essa restrição for aplicada não discriminatoriamente, for justificada por razões imperiosas de interesse geral, tiver uma natureza adequada a garantir realização do objetivo prosseguido e não ultrapassar o que é necessário para atingir esse objetivo.

3)      Em caso de nova constituição transfronteiriça de uma sociedade, a sociedade em causa deve provar, no seu pedido de registo, através de meios fiáveis e de documentos comprovativos autenticados, que a sociedade constituída no outro Estado‑Membro deve ser considerada sua antecessora jurídica. O facto de a sociedade pedir a inscrição da sua antecessora jurídica no registo comercial do Estado‑Membro de acolhimento não constitui, em si mesmo, razão válida para recusar o seu pedido de inscrição no registo comercial.

4)      Em caso de nova constituição transfronteiriça de uma sociedade, os Estados‑Membros podem exigir a aplicação das disposições do direito das sociedades nacional, relativas às transferências de sede social, bem como às transformações nacionais, desde que estas sejam aplicadas não discriminatoriamente, se justifiquem por razões imperiosas de interesse geral, tenham uma natureza adequada a garantir realização do objetivo prosseguido e não ultrapassem o que é necessário para atingir esse objetivo. Porém, os Estados‑Membros podem também exigir a aplicação de disposições específicas às situações transfronteiriças, desde que as referidas disposições não sejam um ónus mais pesado do que uma transferência de sede ou uma transformação de cariz nacional para as sociedades que pretendam exercer a sua liberdade de estabelecimento.»


1 — Língua original: francês.


2 — Acórdãos de 27 de setembro de 1988, Daily Mail and General Trust (81/87, Colet., p. 5483); de 9 de março de 1999, Centros (C‑212/97, Colet., p. I‑1459); de 5 de novembro de 2002, Überseering (C‑208/00, Colet., p. I‑9919); de 30 de setembro de 2003, Inspire Art (C‑167/01, Colet., p. I‑10155); de 13 de dezembro de 2005, SEVIC Systems (C‑411/03, Colet., p. I‑10805); e de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, Colet., p. I‑9641).


3 — Nas presentes conclusões, referir‑me‑ei à operação que esteve na origem do processo principal como constitutiva de «uma nova constituição transfronteiriça de uma sociedade de capitais». Os motivos desta qualificação serão expostos posteriormente.


4 — Recorda‑se que, na sua Comunicação de 21 de maio de 2003 sobre a modernização do direito das sociedades [COM (2003) 284 final], a Comissão anunciava a sua intenção de elaborar uma proposta para a Décima Quarta Diretiva relativa à transferência de sede de um Estado‑Membro para outro, lançando, a este respeito, uma consulta pública que ficou concluída em 15 de abril de 2004. Ora, até à presente data, a Comissão ainda não adotou nenhuma proposta.


5 — JO L 294, p. 1.


6 — JO L 207, p. 1.


7 — JO L 310, p. 1.


8 — O teor desses diplomas é exposto, na medida em que se afigura pertinente, nos números que se seguem.


9 — Magyar Közlöny 2006/1 (I. 4.), 4 de janeiro de 2006, p. 99.


10 — Magyar Közlöny 2006/1 (I. 4.), 4 de janeiro de 2006, p. 24.


11 — Nova numeração na sequência da entrada em vigor do Tratado de Lisboa.


12 — V., designadamente, acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o. (C‑395/08 e C‑396/08, Colet., p. I‑5119, n.° 18 e jurisprudência citada).


13 — Jurisprudência assente, v., nomeadamente, acórdãos de 7 de junho de 2007, van der Weerd e o. (C‑222/05 a C‑225/05, Colet., p. I‑4233, n.° 22); de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, Colet., p. I‑5667, n.° 27); e acórdão Bruno e o., já referido (n.° 19).


14 — V. artigo 3.°, n.° 3, da lei relativa às sociedades comerciais.


15 — V. artigo 70.°, n.° 1, da lei relativa às sociedades comerciais. De acordo com o artigo 57.°, n.° 3, da lei relativa ao registo das sociedades, «[e]m caso de alteração da forma da sociedade, a transformação da sociedade é declarada ao tribunal de comércio no âmbito territorial do qual a sede social da antecessora jurídica está situada num prazo de sessenta dias a contar da data de celebração ou de adopção do pacto social. À declaração será junto o pedido de cancelamento do registo da sociedade antecessora». Ora, parece resultar do teor deste texto que a alteração da forma da sociedade é concebida mais como uma sucessão universal entre duas pessoas jurídicas com a mesma identidade do que como uma transformação da forma jurídica de uma mesma pessoa jurídica.


16 — V. artigo 57.°, n.° 4, da lei relativa ao registo das sociedades.


17 — No que diz respeito ao regime destas sociedades ao nível europeu, v., por exemplo, De Kluiver, H.‑J., «Europe and the Private Company, An Introduction», in De Kluiver, H.‑J., e Van Gerven, W. M. (ed.), The European private company?, Maklu, Antuérpia, 1995, p. 23. Observo que esta forma entra no âmbito de aplicação da Primeira Diretiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de março de 1968, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.° do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade [v. o respetivo artigo 1.° (JO L 65, p. 8; EE 17 F1 p. 3)], mas está excluída do âmbito de aplicação da Segunda Diretiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de dezembro de 1976, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.° do Tratado, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade [v., igualmente, o respetivo artigo 1.° (JO L 26, p. 1; EE 17 F1 p. 44)].


18 — A técnica da fusão transfronteiriça é utilizada com frequência nos Estados Unidos para alterar, de um Estado federal para outro, a lei aplicável a uma empresa. V. Armour, J., e Ringe, W.‑G., «European Company Law 1999‑2010: Renaissance and Crisis», Common Market Law Review, vol. 48 (2011), n.° 1, pp. 125 a 174, designadamente pp. 161 a 162.


19 — Acórdãos Daily Mail and General Trust (n.° 19) e Cartesio (n.° 104), já referidos.


20 — V. o documento COM (2003) 284 final.


21 — Há que constatar que esta ordem cronológica não parece ter sido respeitada pelas autoridades italianas no caso em apreço.


22 — Esta questão afigura‑se particularmente pertinente quando a sociedade não tiver sido liquidada. Segundo o acórdão Cartesio, já referido (n.° 112), a Itália não pode exigir a liquidação como uma condição prévia da transferência da sede social, com a alteração da lei aplicável.


23 — V. n.os 3 e 5 das conclusões do advogado‑geral Darmon no processo Daily Mail and General Trust, já referido.


24 — V. n.° 20 das conclusões do advogado‑geral La Pergola no processo Centros, já referido.


25 — Recordo que os estatutos da VALE Építési foram aprovados por sócios parcialmente distintos dos da VALE Costruzioni.


26 — V. artigo 8.° do Regulamento n.° 2157/2001, segundo o qual o cancelamento do registo só se efetua após a nova inscrição. V., também, mutatis mutandis, o artigo 13.° da Diretiva 2005/56.


27 — V. artigo 8.° do referido regulamento.


28 — V. artigo 7.° do referido regulamento.


29 — V., neste sentido, nomeadamente, o acórdão Daily Mail and General Trust, já referido (n.os 15 e 16).


30 — Acórdãos Centros (n.° 26), Überseering (n.° 95) e Inspire Art (n.° 137), já referidos.


31 — V., neste sentido, acórdão de 11 de junho de 2009, Comissão/Áustria (C‑564/07, n.° 31 e jurisprudência citada).


32 — V. acórdão de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas (C‑196/04, Colet., p. I‑7995, n.° 51 e jurisprudência citada), bem como os acórdãos Centros (n.° 24) e Inspire Art (n.° 136), já referidos.


33 — Acórdão Überseering, já referido (n.° 70).


34Ibidem (n.° 110).


35Ibidem (n.° 111).


36 — Acórdão Cartesio, já referido (n.° 112).


37 — Acórdão SEVIC Systems, já referido (n.° 18).


38 — V., neste sentido, estudo de impacto da diretiva relativa à transferência transfronteiras da sede estatutária [SEC (2007) 1707, p. 11].


39 — Acórdão Cartesio, já referido (n.° 112).


40 — Artigo 57.° da lei relativa ao registo das sociedades.


41 — No que diz respeito aos efeitos de tal declaração em matéria fiscal, a apreciação deve tomar em consideração, por um lado, a prevenção do abuso de direito e, por outro lado, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa aos obstáculos fiscais à liberdade de estabelecimento.