Language of document : ECLI:EU:C:2020:872

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

29 de outubro de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Segurança social — Regulamento (CE) n.o 883/2004 — Artigo 20.o, n.o 2 — Diretiva 2011/24/UE — Artigo 8.o, n.os 1 e 5, bem como n.o 6, alínea d) — Seguro de doença — Cuidados hospitalares dispensados num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de afiliação — Recusa de autorização prévia — Tratamento hospitalar que pode ser eficazmente assegurado no Estado‑Membro de afiliação — Artigo 21.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Diferença de tratamento baseada na religião»

No processo C‑243/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Augstākās tiesa (Senāts) (Supremo Tribunal, Letónia), por Decisão de 8 de março de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de março de 2019, no processo

A

contra

Veselības ministrija,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev (relator), presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Segunda Secção, A. Kumin, T. von Danwitz e P. G. Xuereb, juízes,

advogado‑geral: G. Hogan,

secretário: M. Aleksejev, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 13 de fevereiro de 2020,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A, por S. Brady, barrister, P. Muzny, avocat, e E. Endzelis, advokāts,

–        em representação do Veselības ministrija, por I. Viņķele e R. Osis, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo letão, inicialmente por I. Kucina e L. Juškeviča, e em seguida por L. Juškeviča e V. Soņeca, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, M. Horoszko e M. Malczewska, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann, A. Szmytkowska e I. Rubene, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de abril de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 883/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à coordenação dos sistemas de segurança social (JO 2004, L 166, p. 1, e retificação no JO 2004, L 200, p. 1), do artigo 8.o, n.o 5, da Diretiva 2011/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2011, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços (JO 2011, L 88, p. 45), do artigo 56.o TFUE e do artigo 21.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe A ao Veselības ministrija (Ministério da Saúde, Letónia) a respeito da recusa em conceder uma autorização que permita ao filho de A beneficiar de cuidados de saúde cobertos pelo orçamento do Estado letão noutro Estado‑Membro.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Regulamento n.o 883/2004

3        Os considerandos 4 e 45 do Regulamento n.o 883/2004 estabelecem:

«(4)      É necessário respeitar as características próprias das legislações nacionais de segurança social e elaborar unicamente um sistema de coordenação.

[…]

(45)      Atendendo a que o objetivo da ação encarada, designadamente a adoção de medidas de coordenação a fim de garantir o exercício efetivo do direito à livre circulação de pessoas, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros e pode, pois, devido à dimensão e aos efeitos da ação prevista, ser melhor alcançado ao nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no mesmo artigo, o presente regulamento não excede o necessário para atingir aquele objetivo.»

4        O artigo 20.o, n.os 1 a 3, deste regulamento, com a epígrafe «Viagem com o objetivo de receber prestações em espécie — Autorização para receber tratamento adequado fora do Estado‑Membro de residência», tem a seguinte redação:

«1.      Salvo disposição em contrário no presente regulamento, uma pessoa segurada que viaje para outro Estado‑Membro com o objetivo de receber prestações em espécie durante a estada deve pedir autorização à instituição competente.

2.      A pessoa segurada autorizada pela instituição competente a deslocar‑se a outro Estado‑Membro para aí receber o tratamento adequado ao seu estado beneficia das prestações em espécie concedidas, a cargo da instituição competente, pela instituição do lugar de estada, de acordo com as disposições da legislação por ela aplicada, como se fosse segurada de acordo com essa legislação. A autorização deve ser concedida sempre que o tratamento em questão figure entre as prestações previstas pela legislação do Estado‑Membro onde o interessado reside e onde esse tratamento não possa ser prestado dentro de um prazo clinicamente seguro, tendo em conta o seu estado de saúde atual e a evolução provável da doença.

3.      Os n.os 1 e 2 aplicam‑se, com as devidas adaptações, aos familiares da pessoa segurada.»

 Diretiva 2011/24

5        Os considerandos 1, 4, 6, 7, 8, 29 e 43 da Diretiva 2011/24 estabelecem:

«(1)      Nos termos do n.o 1 do artigo 168.o do Tratado [FUE], deve ser assegurado um elevado nível de proteção da saúde na definição e execução de todas as políticas e ações da União. Tal implica que terá igualmente de ser assegurado um elevado nível de proteção da saúde humana quando a União adotar atos ao abrigo de outras disposições do Tratado.

[…]

(4)      Não obstante a possibilidade de os doentes receberem cuidados de saúde transfronteiriços nos termos da presente diretiva, os Estados‑Membros continuam a ser responsáveis pela prestação de cuidados de saúde seguros, de elevada qualidade, eficazes e em quantidade suficiente aos cidadãos no respetivo território. Além disso, a transposição da presente diretiva para as legislações nacionais e a sua aplicação não deverão constituir um incentivo para que os doentes efetuem tratamentos fora do respetivo Estado‑Membro de afiliação.

[…]

(6)      Tal como foi confirmado em várias ocasiões pelo Tribunal de Justiça […], a seguir designado “Tribunal de Justiça”, reconhecendo embora a sua natureza específica, todos os tipos de cuidados médicos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do Tratado [FUE].

(7)      A presente diretiva respeita e não prejudica a liberdade de cada Estado‑Membro decidir que tipo de cuidados de saúde considera adequado. Nenhuma disposição da presente diretiva deverá ser interpretada de molde a pôr em causa as opções éticas fundamentais dos Estados‑Membros.

(8)      Algumas questões relacionadas com os cuidados de saúde transfronteiriços, em particular o reembolso dos custos relativos a cuidados de saúde prestados num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro em que o beneficiário dos cuidados reside, já foram abordadas pelo Tribunal de Justiça. A presente diretiva visa assegurar uma aplicação mais geral e eficaz dos princípios estabelecidos pelo Tribunal de Justiça de forma avulsa.

[…]

(29)      Os doentes que procurem receber cuidados de saúde noutro Estado‑Membro em circunstâncias diferentes das previstas no Regulamento [n.o 883/2004] deverão também poder beneficiar dos princípios de livre circulação de doentes, serviços e bens, em conformidade com o Tratado [FUE] e com as disposições da presente diretiva. Deverá ser garantida aos doentes a assunção dos custos desses cuidados de saúde, num montante pelo menos equivalente ao do reembolso devido, caso fossem prestados no Estado‑Membro de afiliação. Esta medida deverá respeitar plenamente a responsabilidade dos Estados‑Membros de determinarem o nível de cobertura dos riscos de doença disponível para os seus cidadãos e deverá evitar qualquer efeito significativo no financiamento dos sistemas nacionais de cuidados de saúde.

[…]

(43)      Os critérios associados à concessão de autorização prévia deverão ser justificados à luz das razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de legitimar os entraves à livre circulação dos cuidados de saúde, tais como requisitos de planeamento relacionados com o objetivo de garantir um acesso suficiente e permanente a uma gama equilibrada de tratamentos de elevada qualidade no Estado‑Membro em questão ou com o desejo de controlar os custos e evitar, tanto quanto possível, o desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos. O Tribunal identificou várias considerações que podem ser invocadas: o risco de prejudicar gravemente o equilíbrio financeiro de um sistema de segurança social, o objetivo de manter, por razões de saúde pública, um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos e o objetivo de manter a capacidade de tratamento ou uma especialidade médica no território nacional, essenciais para a saúde pública e mesmo para a sobrevivência da população […]»

6        O artigo 7.o da Diretiva 2011/24, com a epígrafe «Princípios gerais de reembolso dos custos», dispõe:

«1.      Sem prejuízo do Regulamento [n.o 883/2004] e dos artigos 8.o e 9.o, o Estado‑Membro de afiliação assegura o reembolso dos custos suportados pela pessoa segurada que receba cuidados de saúde transfronteiriços se os cuidados de saúde em questão figurarem entre as prestações a que a pessoa segurada tem direito no Estado‑Membro de afiliação.

[…]

3.      Cabe ao Estado‑Membro de afiliação determinar, a nível local, regional ou nacional, os cuidados de saúde a cuja assunção de custos a pessoa segurada tem direito e o limite de assunção desses custos, independentemente do local de prestação dos cuidados de saúde em causa.

4.      Os custos dos cuidados de saúde transfronteiriços são reembolsados e pagos diretamente pelo Estado‑Membro de afiliação até ao limite que teria sido assumido pelo Estado‑Membro de afiliação caso esses cuidados tivessem sido prestados no seu território, sem exceder contudo os custos reais dos cuidados de saúde recebidos.

Caso a totalidade dos custos incorridos com cuidados de saúde transfronteiriços exceda o nível que os custos teriam tido se os cuidados de saúde tivessem sido prestados no seu território, o Estado‑Membro de afiliação pode, ainda assim, decidir reembolsar a totalidade dos custos.

[…]

8.      O Estado‑Membro de afiliação não pode sujeitar o reembolso dos custos de cuidados de saúde transfronteiriços a autorização prévia, exceto nos casos previstos no artigo 8.o

9.      O Estado‑Membro de afiliação pode restringir a aplicação das regras relativas ao reembolso dos cuidados de saúde transfronteiriços com base em razões imperiosas de interesse geral, tais como requisitos de planeamento relacionados com o objetivo de garantir um acesso suficiente e permanente a uma gama equilibrada de tratamentos de elevada qualidade no Estado‑Membro em questão ou com o desejo de controlar os custos e evitar, tanto quanto possível, o desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos.

[…]»

7        Nos termos do artigo 8.o desta diretiva, com a epígrafe «Cuidados de saúde que podem ser sujeitos a autorização prévia»:

«1.      O Estado‑Membro de afiliação pode prever um sistema de autorização prévia para o reembolso dos custos dos cuidados de saúde transfronteiriços, nos termos do presente artigo e do artigo 9.o O sistema de autorização prévia, incluindo os critérios e a aplicação dos mesmos e as decisões individuais de recusa da concessão de autorização prévia, não deve ir além do necessário e deve ser proporcional ao objetivo visado e não pode constituir um meio de discriminação arbitrária ou um entrave injustificado à livre circulação dos doentes.

2.      Os cuidados de saúde que podem ser sujeitos a autorização prévia ficam limitados aos cuidados de saúde que:

a)      Estejam sujeitos a requisitos de planeamento relacionados com o objetivo de garantir um acesso suficiente e permanente a uma gama equilibrada de tratamentos de elevada qualidade no Estado‑Membro em questão ou com o desejo de controlar os custos e evitar, tanto quanto possível, o desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos, e:

i)      que impliquem o internamento hospitalar do doente durante, pelo menos, uma noite, ou

ii)      exijam o recurso a infraestruturas ou equipamentos médicos altamente especializados e onerosos;

[…]

5.      Sem prejuízo do disposto nas alíneas a) a c) do n.o 6, o Estado‑Membro de afiliação não pode recusar conceder uma autorização prévia se o doente tiver direito aos cuidados de saúde em questão, nos termos do artigo 7.o, e se os cuidados de saúde em causa não puderem ser prestados no seu território num prazo útil fundamentado do ponto de vista médico, com base numa avaliação objetiva da situação clínica do doente, da história e da evolução provável da sua doença, do grau de dor por ele suportado e/ou da natureza da sua incapacidade no momento em que foi apresentado ou renovado o pedido de autorização.

6.      O Estado‑Membro de afiliação pode recusar conceder uma autorização prévia pelas seguintes razões:

[…]

d)      Se os cuidados de saúde em causa puderem ser prestados no seu território num prazo útil fundamentado do ponto de vista médico, tendo em conta o estado de saúde e a evolução provável da doença do paciente em causa.»

 Direito letão

8        O artigo 293.o do Ministru kabineta noteikumi Nr. 1529 «Veselības aprūpes organizēšanas un finansēšanas kārtība» (Decreto do Conselho de Ministros n.o 1529, relativo à Organização e ao Financiamento dos Cuidados de Saúde), de 17 de dezembro de 2013 (Latvijas Vēstnesis, 2013, n.o 253), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto n.o 1529»), dispunha:

«Em aplicação do [Regulamento n.o 883/2004] e do Regulamento (CE) n.o 987/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, que estabelece as modalidades de aplicação do [Regulamento n.o 883/2004 (JO 2009, L 284, p. 1)], o [serviço de saúde] emite os seguintes documentos que atestam o direito de uma pessoa beneficiar, noutro Estado‑Membro da [União Europeia] ou do [Espaço Económico Europeu (EEE)] ou na Suíça, de cuidados de saúde financiados pelo orçamento de Estado:

[…]

293.o 2. O formulário S2, intitulado “Declaração do direito a um tratamento planeado” (a seguir “formulário S2”), que permite beneficiar dos cuidados de saúde planeados indicados no formulário, no país e no prazo aí indicados […]»

9        Nos termos do artigo 310.o deste decreto:

«O [Serviço de Saúde] deve emitir o formulário S2 às pessoas que tenham o direito de beneficiar de cuidados de saúde cobertos pelo orçamento de Estado e que pretendam receber cuidados de saúde planeados noutro Estado‑Membro da União, no EEE ou na Suíça, se estiverem preenchidos os seguintes requisitos cumulativos:

310.o 1.      Os cuidados de saúde devem estar abrangidos pelo orçamento de Estado em conformidade com as regras aplicáveis a tais cuidados;

310.o 2.      À data da apreciação do pedido, nenhum dos prestadores de cuidados de saúde referidos no artigo 7.o deste regulamento puder garantir tais cuidados de saúde, tendo o prestador em causa emitido um parecer fundamentado nesse sentido;

310.o 3.      Os cuidados em causa forem necessários para que as funções vitais ou o estado de saúde da pessoa não sofram uma deterioração irreversível, tendo em consideração o estado de saúde da pessoa no momento em que é examinada e a evolução previsível da doença.»

10      O artigo 323.o 2 do Decreto n.o 1529 dispunha que cabia ao serviço de saúde competente decidir conceder uma autorização prévia para um tratamento planeado de cirurgia cardíaca no hospital num Estado‑Membro da União, num Estado‑Membro do EEE ou na Suíça.

11      O artigo 324.o 2 deste decreto previa que o serviço de saúde recusava conceder a autorização prévia nas seguintes condições:

«324.o 2.      Quando os cuidados de saúde possam ser prestados na Letónia no seguinte prazo (exceto numa situação em que não seja possível esperar devido ao estado de saúde da pessoa e à evolução previsível da doença e na medida em que tal seja indicado no documento médico referido no artigo 325.o 2 ou no artigo 325.o 3 do presente decreto):

[…]

324.o 2.2.      no caso dos cuidados hospitalares referidos nos artigos 323.o 2 e 323.o 3: doze meses;

[…]»

12      O artigo 328.o do referido decreto dispunha:

«O [Serviço de Saúde] reembolsa as pessoas com direito a receber na Letónia cuidados de saúde cobertos pelo Tesouro Público das despesas de saúde que tenham suportado com os seus próprios recursos, por cuidados de saúde recebidos noutro Estado‑Membro da União ou do EEE ou na Suíça;

328.o 1.      Nos termos do disposto no Regulamento n.o 883/2004 e no Regulamento n.o 987/2009, e nas condições aplicadas aos custos dos cuidados de saúde pelo Estado em que as referidas pessoas tenham recebido os cuidados, e em conformidade com a informação recebida da instituição competente do Estado‑Membro da União ou do EEE ou da Confederação Suíça relativamente ao montante a reembolsar às referidas pessoas, quando:

[…]

328.o 1.2.      O [Serviço de Saúde] tenha adotado a decisão de emitir às referidas pessoas um formulário S2, mas estas tenham suportado com os seus próprios recursos os custos dos cuidados de saúde recebidos.

328.o 2.      Em conformidade com a tabela de preços dos serviços de saúde em vigor no momento em que as referidas pessoas receberam esses serviços, ou em conformidade com o montante das compensações previsto na legislação sobre o procedimento de compensação pelos custos de aquisição de medicamentos e dispositivos médicos destinados a tratamentos ambulatórios no momento da aquisição dos medicamentos e dispositivos médicos em questão, quando:

328.o 2.1.      As referidas pessoas tenham recebido cuidados de saúde planeados (incluindo os que necessitam de autorização prévia), com exceção da situação a que se refere o artigo 328.o 1.2., e, em conformidade com o procedimento previsto no presente decreto, na [Letónia] os referidos cuidados de saúde sejam cobertos pelo Tesouro Público.

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      O filho do recorrente no processo principal, filho menor que sofre de uma malformação cardíaca congénita, devia ser submetido a uma operação de coração aberto.

14      O recorrente no processo principal, inscrito no sistema de saúde letão, opôs‑se a que se procedesse a uma transfusão de sangue no momento dessa operação pelo facto de ser testemunha de Jeová. Uma vez que esta operação não era possível na Letónia sem que se procedesse a uma transfusão de sangue, o recorrente no processo principal pediu ao Nacionālais Veselības dienests (Serviço Nacional de Saúde, Letónia) (a seguir «Serviço de Saúde») que emitisse um formulário S2 para o seu filho, que autoriza uma pessoa a beneficiar de determinados cuidados de saúde planeados, designadamente, num Estado‑Membro da União que não seja o seu Estado de afiliação, para que o seu filho fosse submetido à referida operação na Polónia. Por Decisão de 29 de março de 2016, o Serviço de Saúde recusou emitir esse formulário. Por Decisão de 15 de julho de 2016, o Ministério da Saúde confirmou a decisão do Serviço de Saúde com o fundamento de que a operação em causa podia ser realizada na Letónia e que só a situação clínica e as limitações físicas de uma pessoa deviam ser tidas em consideração para emitir o referido formulário.

15      O recorrente no processo principal intentou uma ação no administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância, Letónia) com vista a obter, a proveito do seu filho, um ato administrativo favorável que reconhecesse o direito de beneficiar dos cuidados de saúde planeados. Por Sentença de 9 de novembro de 2016, esse órgão jurisdicional julgou a ação improcedente.

16      Chamado a pronunciar‑se em sede de recurso, o Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional, Letónia), por um Acórdão de 10 de fevereiro de 2017, confirmou a referida sentença com o fundamento de que deviam estar preenchidos os requisitos cumulativos indicados no artigo 310.o do Decreto n.o 1529 para que fosse emitido o formulário S2. Ora, esse órgão jurisdicional salientou que a prestação médica em causa no processo principal, que é um cuidado de saúde financiado pelo orçamento do Estado letão, era, na verdade, necessária para evitar a deterioração irreversível das funções vitais ou do estado de saúde do filho do recorrente no processo principal, mas que, no momento da apreciação do pedido de emissão do formulário S2, o hospital confirmou que essa prestação podia ser efetuada na Letónia. Além disso, o referido órgão jurisdicional considerou que não se podia deduzir do facto de o recorrente no processo principal ter recusado essa transfusão a impossibilidade de o hospital em causa prestar o referido tratamento médico e concluiu que não estava preenchido um dos requisitos exigidos para a emissão do formulário S2.

17      O recorrente no processo principal interpôs recurso de cassação para o órgão jurisdicional de reenvio, alegando, designadamente, que é vítima de discriminação, uma vez que a grande maioria dos inscritos tem a possibilidade de beneficiar dos cuidados de saúde em causa sem renunciar às suas convicções religiosas. O Ministério da Saúde sustenta, por sua vez, que esse recurso é improcedente, uma vez que a regra indicada no artigo 310.o do Decreto n.o 1529 é imperativa e não prevê que a autoridade competente disponha de um poder discricionário quando adota um ato administrativo. Esta regra deve ser lida em conjugação com o artigo 312.o 2 deste decreto, do qual resulta que apenas as justificações médicas diretas são decisivas. O Ministério da Saúde considera que o recorrente no processo principal pede, em substância, que sejam tidos em conta critérios que o legislador nacional não previu. Indica que a regulamentação nacional prevê restrições razoáveis, que garantem, tanto quanto possível, uma afetação racional dos recursos financeiros e que protegem todos os interesses públicos ligados ao acesso a uma medicina de qualidade na Letónia.

18      Em 22 de abril de 2017, o filho do recorrente no processo principal foi submetido a uma operação ao coração na Polónia.

19      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se os serviços de saúde letões podiam recusar a emissão do formulário S2 que permitia essa tomada a cargo com fundamento em critérios exclusivamente médicos ou se esses serviços eram igualmente obrigados a ter em conta, a este respeito, as convicções religiosas de A.

20      Nestas circunstâncias, o Augstākās tiesa (Senāts) (Supremo Tribunal, Letónia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento [n.o 883/2004,] lido em conjugação com o artigo 21.o, n.o 1, da [Carta], ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro pode recusar a autorização prevista no artigo 20.o, n.o 1, do referido regulamento quando no Estado de residência da pessoa está disponível um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não [suscita nenhuma dúvida,] mas cujo método de tratamento utilizado não é compatível com as convicções religiosas da referida pessoa?

2)      Deve o artigo 56.o [TFUE, lido em conjugação com] o artigo 8.o, n.o 5, da Diretiva [2011/24 e] com o artigo 21.o, n.o 1, da [Carta], ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro pode recusar a autorização prevista no artigo 8.o, n.o 1, da referida diretiva quando no Estado‑Membro de afiliação da pessoa está disponível um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não [suscita nenhuma dúvida,] mas cujo método de tratamento utilizado não é compatível com as convicções religiosas da referida pessoa?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

21      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 883/2004, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o Estado‑Membro de residência do segurado recuse conceder a este último a autorização prevista no artigo 20.o, n.o 1, deste regulamento quando esteja disponível nesse Estado‑Membro um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não suscita nenhuma dúvida, mas as convicções religiosas dessa pessoa reprovam o método de tratamento utilizado.

22      Antes de mais, importa recordar que, nos termos dos considerandos 4 e 45 do Regulamento n.o 883/2004, este tem por objetivo coordenar os sistemas de segurança social em vigor nos Estados‑Membros, a fim de garantir o exercício efetivo da livre circulação de pessoas. O referido regulamento procedeu à modernização e à simplificação das regras contidas no Regulamento (CEE) n.o 1408/71 do Conselho, de 14 de junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e atualizada pelo Regulamento (CE) n.o 118/97 do Conselho, de 2 de dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1), mantendo o mesmo objetivo que este último (Acórdão de 6 de junho de 2019, V, C‑33/18, EU:C:2019:470, n.o 41).

23      Nos termos do artigo 20.o, n.o 1, do Regulamento n.o 883/2004, uma pessoa segurada que viaje para outro Estado‑Membro com o objetivo de beneficiar de um tratamento médico deve, em princípio, pedir autorização à instituição competente.

24      O n.o 2, primeira frase, do artigo 20.o do Regulamento n.o 883/2004 tem por objeto conferir um direito às prestações em espécie concedidas, por conta da instituição competente, pela instituição do lugar de estada, segundo as disposições da legislação do Estado‑Membro em que as prestações são concedidas, como se o interessado fosse abrangido por esta última instituição. São, assim, conferidos aos segurados direitos que, de outro modo, estes não possuiriam, dado que, na medida em que implicam uma tomada a cargo pela instituição do lugar de estada segundo a legislação que aplica esta última, esses direitos não poderiam, por hipótese, ser garantidos aos referidos segurados unicamente por força da legislação do Estado‑Membro competente (v., neste sentido, Acórdão de 23 de outubro de 2003, Inizan, C‑56/01, EU:C:2003:578, n.o 22). Por conseguinte, ao abrigo deste regulamento, os segurados beneficiam de direitos que a livre prestação de serviços, conforme consagrada no artigo 56.o TFUE e concretizada pela Diretiva 2011/24 em matéria de cuidados de saúde, lhes não confere.

25      O n.o 2, segunda frase, do artigo 20.o do Regulamento n.o 883/2004 tem por único objetivo identificar as circunstâncias em que se exclui que a instituição competente possa recusar a autorização solicitada com fundamento no n.o 1 deste artigo (v., neste sentido, Acórdão de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 39 e jurisprudência referida). Este n.o 2, segunda frase, indica dois requisitos cujo preenchimento torna obrigatória a emissão, pela instituição competente, da autorização prévia solicitada com fundamento no n.o 1 do mesmo artigo. O primeiro requisito exige que os cuidados em questão figurem entre as prestações previstas pela legislação do Estado‑Membro em cujo território o segurado reside. O segundo requisito exige que os cuidados que o beneficiário pretende receber num Estado‑Membro diferente daquele em cujo território reside não possam, atendendo ao seu estado atual de saúde e à evolução da sua doença, ser‑lhe dispensados no prazo normalmente necessário para obter o tratamento em causa no Estado‑Membro de residência (v., neste sentido, Acórdão de 9 de outubro de 2014, Petru, C‑268/13, EU:C:2014:2271, n.o 30).

26      No caso em apreço, não se contesta que a prestação em causa no processo principal está prevista na legislação letã e que o primeiro requisito que figura no artigo 20.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento n.o 883/2004 está preenchido no processo principal.

27      O órgão jurisdicional de reenvio indica, em contrapartida, que a questão controvertida no processo principal é a de saber se o segundo requisito previsto nesta disposição está preenchido.

28      A este respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que a autorização exigida não pode ser recusada quando um tratamento idêntico ou que apresente o mesmo grau de eficácia não pode ser obtido em tempo oportuno no Estado‑Membro em cujo território reside o interessado (Acórdão de 9 de outubro de 2014, Petru, C‑268/13, EU:C:2014:2271, n.o 31 e jurisprudência referida).

29      Para apreciar se existe esse tratamento, o Tribunal de Justiça precisou que a instituição competente é obrigada a tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam cada caso concreto, tendo devidamente em conta não apenas a situação médica do doente no momento em que a autorização é solicitada e, sendo caso disso, o grau de dor ou a natureza da deficiência deste último mas igualmente os seus antecedentes (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de maio de 2006, Watts, C‑372/04, EU:C:2006:325, n.o 62; de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 66; e de 9 de outubro de 2014, Petru, C‑268/13, EU:C:2014:2271, n.o 32).

30      Decorre desta jurisprudência que o exame de todas as circunstâncias que caracterizam cada caso concreto que devem ser tomadas em consideração atendendo ao artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 883/2004, para determinar se um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia pode ser obtido no Estado‑Membro de residência do segurado, constitui uma avaliação médica objetiva. Por conseguinte, há que concluir que o regime de autorização prévia previsto no artigo 20.o do Regulamento n.o 883/2004 tem exclusivamente em conta a situação médica do doente e não as suas escolhas pessoais em matéria de cuidados médicos.

31      No caso em apreço, é pacífico que a operação em causa no processo principal era necessária para evitar a deterioração irreversível das funções vitais ou do estado de saúde do filho do recorrente no processo principal, tendo em conta o exame do seu estado e a evolução previsível da sua doença. Além disso, esta operação podia ser efetuada na Letónia através de uma transfusão de sangue, e não existia uma razão médica que justificasse recorrer a outro modo de tratamento. O recorrente no processo principal opôs‑se a essa transfusão pelo simples facto de as suas convicções religiosas a tal se oporem e desejou que a operação em causa no processo principal fosse feita sem transfusão, o que não era possível na Letónia.

32      Por conseguinte, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que não existia nenhuma razão médica que justificasse que o filho do recorrente no processo principal não pudesse beneficiar do tratamento disponível na Letónia.

33      Assim, na medida em que o segundo requisito que figura no artigo 20.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento n.o 883/2004 consiste exclusivamente em examinar o estado patológico do doente, os seus antecedentes, a evolução provável da sua doença, o grau da sua dor e/ou a natureza da sua deficiência e não implica, por isso, a tomada em consideração da sua escolha pessoal em matéria de cuidados de saúde, a decisão das autoridades letãs de recusar emitir o formulário S2 não pode ser considerada incompatível à luz desta disposição.

34      No entanto, quando o Estado‑Membro de residência do segurado recusa conceder a autorização prévia prevista no artigo 20.o, n.o 1, do Regulamento n.o 883/2004, esse Estado‑Membro aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, pelo que é obrigado a respeitar os direitos fundamentais garantidos por esta, nomeadamente os consagrados no seu artigo 21.o (Acórdão de 11 de junho de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słupsku, C‑634/18, EU:C:2020:455, n.o 42 e jurisprudência referida).

35      A este respeito, importa recordar que o princípio da igualdade de tratamento constitui um princípio geral do direito da União, consagrado no artigo 20.o da Carta, de que o princípio da não discriminação enunciado no artigo 21.o, n.o 1, da Carta constitui uma expressão particular (Acórdãos de 22 de maio de 2014, Glatzel, C‑356/12, EU:C:2014:350, n.o 43, e de 5 de julho de 2017, Fries, C‑190/16, EU:C:2017:513, n.o 29).

36      Além disso, a proibição de qualquer discriminação baseada na religião ou nas convicções reveste caráter imperativo enquanto princípio geral de direito da União. Consagrada no artigo 21.o, n.o 1, da Carta, esta proibição é, por si só, suficiente para conferir aos particulares um direito que pode ser invocado enquanto tal num litígio que os oponha num domínio abrangido pelo direito da União (Acórdãos de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 76, e de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation, C‑193/17, EU:C:2019:43, n.o 76).

37      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o referido princípio geral exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, exceto se esse tratamento for objetivamente justificado. Uma diferença de tratamento é justificada quando se baseie num critério objetivo e razoável, isto é, quando esteja relacionada com um objetivo legalmente admissível prosseguido pela legislação em causa, e seja proporcionada ao objetivo prosseguido pelo tratamento em questão (Acórdão de 9 de março de 2017, Milkova, C‑406/15, EU:C:2017:198, n.o 55).

38      Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, em primeiro lugar, se a recusa de conceder ao recorrente no processo principal a autorização prévia estabelecida no artigo 20.o, n.o 1, do Regulamento n.o 883/2004 cria uma diferença de tratamento baseada na religião. Se for esse o caso, incumbe‑lhe então examinar, em segundo lugar, se essa diferença de tratamento é baseada num critério objetivo e razoável. Contudo, o Tribunal de Justiça, chamado a conhecer de um pedido de decisão prejudicial, é competente para fornecer, vistos os elementos constantes dos autos, precisões destinadas a orientar o órgão jurisdicional de reenvio na solução do litígio no processo principal (Acórdão de 2 de dezembro de 2009, Aventis Pasteur, C‑358/08, EU:C:2009:744, n.o 50).

39      No caso em apreço, afigura‑se que a regulamentação nacional em causa no processo principal está formulada de forma neutra e não dá origem a uma discriminação direta baseada na religião.

40      Importa igualmente examinar se, vistos os elementos que figuram nos autos, essa recusa introduz uma diferença de tratamento que é indiretamente baseada na religião ou nas convicções religiosas.

41      O órgão jurisdicional de reenvio indica que, contrariamente às pessoas cujo estado, ou o dos seus filhos, exige uma intervenção médica como a que está em causa no processo principal, mas que não são testemunhas de Jeová, as convicções religiosas do recorrente no processo principal afetam a escolha deste último em matéria de cuidados de saúde. Quanto às testemunhas de Jeová, uma vez que a proibição das transfusões de sangue faz parte integrante das suas convicções religiosas, não podem aceitar ser submetidas a uma intervenção médica que implique tais transfusões. Uma vez que o Estado‑Membro de residência não cobre o custo de outro tratamento, autorizado pelas suas convicções religiosas, as despesas por este causadas devem ser suportadas pessoalmente por pessoas como o recorrente no processo principal.

42      Nessa situação, afigura‑se assim que uma diferença indireta de tratamento pode verificar‑se entre, por um lado, os doentes que são submetidos a uma intervenção médica com transfusão de sangue cujos custos são cobertos pela segurança social do Estado‑Membro de residência e, por outro, os doentes que, por razões religiosas, decidem não se submeter a essa intervenção nesse Estado‑Membro e recorrer, noutro Estado‑Membro, a um tratamento ao qual não se opõem as suas convicções religiosas, cujos custos não são cobertos pelo primeiro Estado‑Membro.

43      À luz das considerações precedentes, importa observar que a recusa de conceder ao recorrente no processo principal a autorização prévia prevista no artigo 20.o, n.o 1, do Regulamento n.o 883/2004 cria uma diferença de tratamento indiretamente baseada na religião. Importa, portanto, examinar se essa diferença de tratamento é baseada num critério objetivo e razoável.

44      O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o objetivo da regulamentação nacional em causa no processo principal poderia ser o de proteger a saúde pública e os direitos de terceiros, mantendo no território nacional uma oferta suficiente, equilibrada e permanente de cuidados hospitalares de qualidade e protegendo a estabilidade financeira do sistema de segurança social.

45      Importa salientar que, quando uma medida nacional esteja integrada no domínio da saúde pública, deve ter‑se em conta o facto de que a saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado FUE.

46      O Tribunal de Justiça considerou, em particular, que o número de infraestruturas hospitalares, a sua repartição geográfica, a sua organização e os equipamentos de que dispõem, ou ainda a natureza dos serviços médicos que estão em condições de fornecer, devem poder ser objeto de uma planificação que responda, em regra geral, a diversas preocupações. Por um lado, essa planificação prossegue o objetivo de garantir, no território do Estado‑Membro em causa, uma acessibilidade suficiente e permanente a uma gama equilibrada de cuidados hospitalares de qualidade. Por outro lado, partilha da vontade de garantir um controlo dos custos e de evitar, na medida do possível, qualquer desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos. Esse desperdício é, com efeito, tanto mais prejudicial quanto é certo que o setor dos cuidados hospitalares gera custos consideráveis e deve responder a necessidades crescentes, ao passo que os recursos financeiros que podem ser consagrados aos cuidados de saúde não são, independentemente do modo de financiamento utilizado, ilimitados (Acórdãos de 12 de julho de 2001, Smits e Peerbooms, C‑157/99, EU:C:2001:404, n.os 76 a 79; de 16 de maio de 2006, Watts, C‑372/04, EU:C:2006:325, n.os 108 e 109; e de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 43).

47      Por conseguinte, não se pode excluir que um risco de prejuízo grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social possa constituir um objetivo legítimo suscetível de justificar uma diferença de tratamento baseada na religião. O objetivo de manter um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos pode igualmente ser abrangido por derrogações por razões de saúde pública, na medida em que esse objetivo contribua para a realização de um nível elevado de proteção da saúde (v., por analogia, em matéria de livre prestação de serviços, Acórdão de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 42 e jurisprudência referida).

48      Como foi recordado no n.o 24 do presente acórdão, o segurado que obteve a autorização prévia prevista no artigo 20.o, n.o 1, do Regulamento n.o 883/2004 deve, em princípio, beneficiar, durante o período fixado pela instituição competente, das prestações em espécie concedidas, por conta da referida instituição, pela instituição do Estado‑Membro de estada, segundo as disposições da legislação por ela aplicada, como se o segurado nela estivesse inscrito. O Tribunal de Justiça salientou, a este respeito, que o direito conferido ao segurado implica, por conseguinte, que os cuidados dispensados sejam primeiro tomados a cargo pela instituição do Estado‑Membro de estada, segundo a legislação que esta última aplica, cabendo à instituição competente reembolsar posteriormente a instituição do Estado‑Membro de estada nas condições previstas no artigo 35.o do Regulamento n.o 883/2004 (v., neste sentido, Acórdão de 12 de abril de 2005, Keller, C‑145/03, EU:C:2005:211, n.os 65 e 66). Nos termos desta última disposição, as prestações em espécie concedidas pela instituição de um Estado‑Membro, por conta da instituição de outro Estado‑Membro, ao abrigo do capítulo a que pertence a referida disposição, dão lugar a um reembolso integral.

49      Daqui resulta que, no caso de as prestações em espécie dispensadas no Estado‑Membro de estada darem lugar a custos mais elevados do que os ligados às prestações que teriam sido dispensadas no Estado‑Membro de residência do segurado, a obrigação de um reembolso integral pode gerar custos adicionais para este último Estado‑Membro.

50      Como acertadamente reconheceu o órgão jurisdicional de reenvio, esses custos adicionais seriam dificilmente previsíveis se, para evitar uma diferença de tratamento baseada na religião, a instituição competente fosse obrigada, ao aplicar o artigo 20.o do Regulamento n.o 883/2004, a ter em conta as convicções religiosas do segurado, uma vez que essas convicções fazem parte do forum internum deste e são, por natureza, subjetivas (v., neste sentido, Acórdão de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation, C‑193/17, EU:C:2019:43, n.o 58 e jurisprudência referida).

51      Além disso, como indicou o Governo italiano nas suas observações escritas, é possível que os sistemas de saúde nacionais possam ser expostos a um grande número de pedidos de autorização para receber cuidados de saúde transfronteiriços baseados em motivos religiosos e não na situação médica do segurado.

52      Se a instituição competente fosse obrigada a ter em conta as convicções religiosas do segurado, esses custos adicionais seriam suscetíveis, atendendo à sua imprevisibilidade e à sua eventual amplitude, de implicar um risco para a necessidade de proteger a estabilidade financeira do sistema de seguro de saúde, que constitui um objetivo legítimo reconhecido pelo direito da União. Daqui resulta que um regime de autorização prévia que não tenha em conta as convicções religiosas do segurado, mas que se centra em critérios exclusivamente médicos, pode reduzir esse risco e afigura‑se, por conseguinte, apto a assegurar esse objetivo.

53      Quanto à necessidade da regulamentação em causa no processo principal, há que recordar que cabe aos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública e a forma como esse nível deve ser alcançado. Dado que esse nível pode variar de um Estado‑Membro para outro, há que reconhecer aos Estados‑Membros alguma margem de apreciação (Acórdão de 12 de novembro de 2015, Visnapuu, C‑198/14, EU:C:2015:751, n.o 118 e jurisprudência referida).

54      Por conseguinte, há que concluir que o Estado‑Membro de afiliação ficaria exposto, na falta de um regime de autorização prévia centrado em critérios exclusivamente médicos, a um encargo financeiro adicional que seria dificilmente previsível e suscetível de implicar um risco para a estabilidade financeira do seu sistema de seguro de saúde.

55      Nestas circunstâncias, a não tomada em consideração das convicções religiosas do interessado, no âmbito do exame de um pedido de autorização prévia para efeitos da tomada a cargo financeira pela instituição competente de cuidados de saúde previstos noutro Estado‑Membro, afigura‑se uma medida justificada à luz do objetivo referido no n.o 52 do presente acórdão, que não excede o que é objetivamente necessário para esse fim e cumpre o requisito da proporcionalidade recordado no n.o 37 do presente acórdão.

56      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 883/2004, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que o Estado‑Membro de residência do segurado recuse conceder a este último a autorização prevista no artigo 20.o, n.o 1, deste regulamento quando esteja disponível nesse Estado‑Membro um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não suscita nenhuma dúvida, mas as convicções religiosas desse segurado reprovam o modo de tratamento utilizado.

 Quanto à segunda questão

 Quanto à admissibilidade

57      O Ministério da Saúde e os Governos letão e polaco sustentam que a Diretiva 2011/24 não é pertinente no âmbito do processo principal, uma vez que A não pediu autorização prévia para efeitos da tomada a cargo pela instituição competente dos cuidados de saúde transfronteiriços destinados ao seu filho em conformidade com esta diretiva. Além disso, durante a audiência no Tribunal de Justiça, foi igualmente afirmado que A não tinha pedido o reembolso dos cuidados de saúde transfronteiriços recebidos pelo seu filho no prazo de um ano, conforme exigido pela legislação letã que transpôs a Diretiva 2011/24.

58      A este respeito, há que recordar que, na medida em que as questões relativas ao direito da União beneficiam de uma presunção de pertinência, o Tribunal de Justiça só pode rejeitar um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil às questões que lhe são submetidas (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de dezembro de 2006, Cipolla e o., C‑94/04 e C‑202/04, EU:C:2006:758, n.o 25; de 19 de junho de 2012, Chartered Institute of Patent Attorneys, C‑307/10, EU:C:2012:361, n.o 32; e de 9 de outubro de 2014, Petru, C‑268/13, EU:C:2014:2271, n.o 23).

59      No entanto, não é o que se verifica no caso em apreço.

60      Relativamente às razões que levaram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação do artigo 8.o, n.o 5, da Diretiva 2011/24, resulta da decisão de reenvio que, uma vez que a opinião das partes no litígio no processo principal diverge quanto à interpretação desta disposição, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se esta se aplica em caso de recusa, pelas autoridades do Estado‑Membro de residência, de conceder a autorização referida no artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal. O órgão jurisdicional de reenvio considera que a solução do litígio no processo principal depende da resposta a dar a esta questão.

61      A interpretação pedida, bem como o exame da natureza e do alcance do requisito de obter essa autorização prévia, têm por objeto o artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 883/2004 e o artigo 8.o da Diretiva 2011/24, a fim de permitir ao órgão jurisdicional de reenvio saber se A tem direito ao reembolso no Estado‑Membro de afiliação da totalidade ou de parte dos custos dos cuidados de saúde hospitalares transfronteiriços a que se sujeitou o seu filho.

62      Assim, a interpretação solicitada não é manifestamente desprovida de qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal e o problema invocado não é hipotético, mas refere‑se aos factos discutidos pelas partes no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar. Além disso, o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil à questão submetida.

63      Incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se o recorrente no processo principal podia ter pedido a autorização prévia do tratamento em causa no processo principal em conformidade com as disposições nacionais que transpõem o artigo 8.o da Diretiva 2011/24 e se se deve considerar que um pedido de reembolso posterior foi apresentado fora dos prazos previstos pelo direito nacional. Neste contexto, há que considerar que esse pedido que visa um reembolso dentro dos limites previstos no artigo 7.o desta diretiva está, implicitamente, mas necessariamente, incluído num pedido de reembolso integral ao abrigo do Regulamento n.o 883/2004.

64      Daqui resulta que a segunda questão é admissível.

 Quanto ao mérito

65      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da Diretiva 2011/24, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o Estado‑Membro de afiliação de um doente recuse conceder a este último a autorização referida no artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva quando esteja disponível nesse Estado‑Membro um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não suscita nenhuma dúvida, mas as convicções religiosas desse doente reprovam o modo de tratamento utilizado.

66      Como resulta do considerando 8 da Diretiva 2011/24, esta última codificou a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à liberdade de prestação de serviços garantida pelo artigo 56.o TFUE no domínio dos cuidados de saúde, tendo em vista assegurar uma aplicação mais geral e eficaz dos princípios estabelecidos caso a caso por esta jurisprudência.

67      Assim, o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2011/24 dispõe que, sem prejuízo do disposto no Regulamento n.o 883/2004 e sob reserva das disposições dos artigos 8.o e 9.o desta diretiva, o Estado‑Membro de afiliação deve garantir que as despesas efetuadas por uma pessoa segurada que receba cuidados de saúde transfronteiriços sejam reembolsadas, se esses cuidados fizerem parte das prestações a que a pessoa segurada tem direito nesse Estado‑Membro.

68      O artigo 7.o, n.o 4, da Diretiva 2011/24 prevê, por outro lado, que os custos dos cuidados de saúde transfronteiriços são reembolsados e pagos diretamente pelo Estado‑Membro de afiliação até ao limite que teria sido assumido pelo Estado‑Membro de afiliação caso esses cuidados tivessem sido dispensados no seu território, sem exceder, contudo, os custos reais dos cuidados de saúde recebidos.

69      Além disso, o artigo 8.o desta diretiva dispõe que um Estado‑Membro pode sujeitar os cuidados hospitalares a um regime de autorização prévia. No entanto, este artigo precisa que esse regime, incluindo os critérios e a aplicação dos mesmos e as decisões individuais de recusa da concessão de autorização prévia, não deve ir além do necessário e deve ser proporcional ao objetivo visado e não pode constituir um meio de discriminação arbitrária ou um entrave injustificado à livre circulação dos doentes.

70      Por sua vez, o considerando 43 da Diretiva 2011/24 enuncia que os critérios associados à concessão de autorização prévia deverão ser justificados à luz das razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de legitimar os entraves à livre circulação dos cuidados de saúde, tais como requisitos de planificação relacionados com o objetivo de garantir um acesso suficiente e permanente a uma gama equilibrada de tratamentos de elevada qualidade no Estado‑Membro em questão ou com o desejo de controlar os custos e evitar, tanto quanto possível, o desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos.

71      A este respeito, o Governo letão alega, nas suas observações escritas, que o regime de autorização prévia que dá execução ao artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2011/24 visa assegurar um controlo dos custos e garantir um acesso suficiente e permanente a uma gama equilibrada de tratamentos de qualidade. Uma vez que esses objetivos são legítimos, como resulta dos n.os 46 e 47 do presente acórdão, incumbe ainda ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o referido regime se limita ao que é necessário e proporcionado para os alcançar.

72      No que se refere, por um lado, ao objetivo relativo à necessidade de proteger a estabilidade financeira do sistema de segurança social, importa salientar a existência de uma diferença sistémica entre o sistema de reembolso instituído pelo Regulamento n.o 883/2004 e o previsto pela Diretiva 2011/24.

73      Contrariamente ao artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 883/2004, o artigo 7.o, n.o 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 2011/24 prevê, tal como foi recordado no n.o 68 do presente acórdão, que os custos dos cuidados de saúde transfronteiriços são reembolsados e pagos diretamente pelo Estado‑Membro de afiliação até ao limite que teria sido tomado a cargo pelo Estado‑Membro de afiliação caso esses cuidados tivessem sido dispensados no seu território, e isso sem que o reembolso exceda os custos reais dos cuidados de saúde recebidos.

74      O reembolso previsto no artigo 7.o da Diretiva 2011/24 pode, por conseguinte, estar sujeito a um duplo limite. Por um lado, é calculado com base nas tarifas aplicáveis aos cuidados de saúde no Estado‑Membro de afiliação. Por outro lado, se o nível dos custos dos cuidados de saúde dispensados no Estado‑Membro de acolhimento for inferior ao dos cuidados de saúde dispensados no Estado‑Membro de afiliação, esse reembolso não excede os custos reais dos cuidados de saúde recebidos.

75      Na medida em que o reembolso desses cuidados de saúde ao abrigo da Diretiva 2011/24 está sujeito a esse duplo limite, o sistema de saúde do Estado‑Membro de afiliação não pode estar sujeito a um risco de custos adicionais ligado à tomada a cargo dos cuidados de saúde transfronteiriços como o constatado nos n.os 49 a 54 do presente acórdão.

76      Esta interpretação é, de resto, corroborada pelo considerando 29 da Diretiva 2011/24, que indica expressamente que essa assunção dos custos não pode ter uma incidência considerável no financiamento dos sistemas nacionais de cuidados de saúde.

77      Por conseguinte, no âmbito da Diretiva 2011/24 e diversamente das situações reguladas pelo Regulamento n.o 883/2004, o Estado‑Membro de afiliação não ficará, em princípio, exposto a um encargo financeiro adicional no caso de um cuidado transfronteiriço.

78      Nestas circunstâncias, esse objetivo não é, em princípio, suscetível de ser invocado para justificar a recusa de conceder a autorização prevista no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2011/24 em circunstâncias como as do processo principal.

79      Por outro lado, no que diz respeito ao objetivo relativo à manutenção de uma capacidade de cuidados de saúde ou de uma competência médica, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se o regime letão de autorização prévia que dá execução ao artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2011/24 se limitou ao que era necessário e proporcionado para assegurar esse objetivo, quando o Estado‑Membro de afiliação recusou tomar a cargo os custos do tratamento hospitalar transfronteiriço a que foi sujeito o filho do recorrente no processo principal até ao montante do que teria sido proposto para cuidados de saúde idênticos dispensados neste Estado‑Membro.

80      Assim, se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que não é esse o caso, as autoridades letãs não podem fazer depender o reembolso dos custos desse tratamento dispensado da obtenção, até ao limite do que seria proposto no Estado‑Membro de afiliação para um tratamento idêntico, de uma autorização prévia emitida nos termos do artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da referida diretiva.

81      Em contrapartida, se o referido órgão jurisdicional considerar que esse regime de autorização prévia se limitou ao que era necessário e proporcionado para assegurar o referido objetivo, importa observar que o artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da Diretiva 2011/24 deve ser interpretado no sentido de que esta última disposição apenas tem em conta a situação clínica do doente.

82      Com efeito, nenhum elemento permite justificar seriamente interpretações diferentes no contexto do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 883/2004, por um lado, e no do artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da Diretiva 2011/24, por outro, dado que, em ambos os casos, a questão consiste em saber se os cuidados hospitalares exigidos pelo estado de saúde do interessado podem ser dispensados no território do Estado‑Membro da sua residência dentro de um prazo aceitável que preserve a sua utilidade e a sua eficácia (v., por analogia, Acórdão de 16 de maio de 2006, Watts, C‑372/04, EU:C:2006:325, n.o 60).

83      Assim sendo, quando o Estado‑Membro de afiliação recusa conceder a autorização prévia prevista no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2011/24, com o fundamento de que não estão preenchidos os requisitos que figuram no n.o 5 deste artigo, esse Estado‑Membro aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, pelo que é obrigado a respeitar os direitos fundamentais garantidos por esta, nomeadamente os consagrados no seu artigo 21.o

84      À semelhança das considerações que figuram nos n.os 41 e 42 do presente acórdão, essa recusa introduz uma diferença de tratamento indiretamente baseada na religião. Uma vez que esta diferença de tratamento prossegue um objetivo legítimo relativo à manutenção de uma capacidade de cuidados de saúde ou de uma competência médica, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se a referida diferença é proporcionada. Deve designadamente examinar se a tomada em consideração das convicções religiosas dos doentes, quando da aplicação do artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da Diretiva 2011/24, tem por efeito implicar um risco para o planeamento de tratamentos hospitalares no Estado‑Membro de afiliação.

85      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da Diretiva 2011/24, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o Estado‑Membro de afiliação de um doente recuse conceder a este último a autorização prevista no artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva quando esteja disponível nesse Estado‑Membro um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não suscita nenhuma dúvida, mas as convicções religiosas desse doente reprovam o modo de tratamento utilizado, a menos que essa recusa seja objetivamente justificada por uma finalidade legítima de manutenção de uma capacidade dos cuidados de saúde ou de uma competência médica, e constitua um meio adequado e necessário que permite cumprir essa finalidade, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto às despesas

86      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 883/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à coordenação dos sistemas de segurança social, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que o EstadoMembro de residência do segurado recuse conceder a este último a autorização prevista no artigo 20.o, n.o 1, deste regulamento quando esteja disponível nesse EstadoMembro um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não suscita nenhuma dúvida, mas as convicções religiosas desse segurado reprovam o modo de tratamento utilizado.

2)      O artigo 8.o, n.o 5 e n.o 6, alínea d), da Diretiva 2011/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2011, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, lido à luz do artigo 21.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o EstadoMembro de afiliação de um doente recuse conceder a este último a autorização prevista no artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva quando esteja disponível nesse EstadoMembro um tratamento hospitalar cuja eficácia médica não suscita nenhuma dúvida, mas as convicções religiosas desse doente reprovam o modo de tratamento utilizado, a menos que essa recusa seja objetivamente justificada por uma finalidade legítima de manutenção de uma capacidade dos cuidados de saúde ou de uma competência médica, e constitua um meio adequado e necessário que permite cumprir essa finalidade, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assinaturas


*      Língua do processo: letão.