Language of document : ECLI:EU:C:2012:600

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 2 de outubro de 2012 (1)

Processo C‑399/11

Processo penal

contra

Stefano Melloni

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Constitucional (Espanha)]

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Processos de entrega entre os Estados‑Membros — Decisões proferidas num processo em que o interessado não compareceu pessoalmente — Execução de uma pena aplicada à revelia — Possibilidade de revisão da sentença — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 53.°»





1.        O presente reenvio prejudicial convida o Tribunal de Justiça a interpretar e, eventualmente, a apreciar a validade do artigo 4.°‑A, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (2), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (3), e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido. Pede igualmente ao Tribunal que especifique, pela primeira vez, o âmbito do artigo 53.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.        O presente processo constitui um bom exemplo da maneira como deve ser encarada a coexistência dos diferentes instrumentos de proteção dos direitos fundamentais. Tem origem numa jurisprudência do Tribunal Constitucional (Espanha) por força da qual a execução de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma sentença proferida à revelia deve estar sempre subordinada à condição de a pessoa sobre a qual recai o mandado poder ser novamente julgada no Estado‑Membro de emissão. Ora, o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro dispõe, designadamente, que, quando essa pessoa teve conhecimento do julgamento previsto e conferiu mandato a um advogado para a representar neste julgamento, a entrega não pode estar dependente de uma condição desse tipo.

3.        Com as três questões que decidiu submeter ao Tribunal de Justiça, o Tribunal Constitucional pede‑lhe que avalie as diferentes vias suscetíveis de lhe permitirem manter a sua jurisprudência, incluindo no âmbito da aplicação da decisão‑quadro.

4.        Assim, a aplicação geral da condição segundo a qual a execução de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma sentença proferida à revelia exige que a pessoa condenada possa ser novamente julgada no Estado‑Membro de emissão pode resultar de uma interpretação da redação, da sistemática e dos objetivos do artigo 4.°‑A da decisão‑quadro?

5.        Em caso de resposta negativa, este artigo é compatível com os artigos 47.°, segundo parágrafo, e 48.°, n.° 2, da Carta, que asseguram ao arguido, respetivamente, o direito a um processo equitativo e o respeito dos direitos da defesa? Além disso, o direito da União deve atribuir a estes direitos fundamentais uma proteção mais alargada em comparação com o nível de proteção que lhe é garantido pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»)?

6.        No caso de a análise das duas primeiras questões mostrar que o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro, conjugado com os artigos 47.°, segundo parágrafo, e 48.°, n.° 2, da Carta, se opõe a que o Tribunal Constitucional mantenha a sua jurisprudência no domínio relativo ao mandado de detenção europeu, o artigo 53.° da Carta confere‑lhe essa possibilidade?

I —    Quadro jurídico

A —    Direito primário da União

7.        O artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta dispõe:

«Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.»

8.        Nos termos do artigo 48.°, n.° 2, da Carta:

«É garantido a todo o arguido o respeito dos direitos de defesa.»

9.        Nos termos do artigo 52.°, n.° 3, da Carta:

«Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

10.      O artigo 53.° da Carta prevê:

«Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respetivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as Convenções internacionais em que são Partes a União ou todos os Estados‑Membros, nomeadamente a [CEDH], bem como pelas Constituições dos Estados‑Membros.»

B —    Direito derivado da União

11.      O artigo 1.° da decisão‑quadro dispõe:

«[…]

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia.»

12.      Nos termos do artigo 5.° da Decisão‑Quadro 2002/584:

«A execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita pelo direito do Estado‑Membro de execução a uma das seguintes condições:

1.      Quando o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência, a entrega só pode efetuar‑se se a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes assegurando à pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu a possibilidade de interpor um recurso ou de requerer um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão e de estar presente no julgamento;

[…]».

13.      O artigo 2.°, n.° 2, da Decisão‑Quadro 2009/299 dispõe:

«No artigo 5.° [da Decisão‑Quadro 2002/584], é suprimido o n.° 1.»

14.      Em substituição desta disposição suprimida, o artigo 2.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2009/299 introduz um artigo 4.°‑A na Decisão‑Quadro 2002/584.

15.      Como indica o artigo 1.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2009/299, esta tem por objetivos «reforçar os direitos processuais das pessoas contra as quais seja instaurado um processo penal, facilitar a cooperação judiciária em matéria penal e melhorar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre Estados‑Membros».

16.      O artigo 1.°, n.° 2, da Decisão‑Quadro 2009/299 dispõe, além disso, que «[a] presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.° do Tratado, incluindo o direito de defesa das pessoas contra as quais seja instaurado um processo penal, nem prejudica quaisquer obrigações que nesta matéria incumbam às autoridades judiciárias».

17.      O artigo 4.°‑A da decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«1.      A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado‑Membro de emissão:

a)      Foi atempadamente

i)      notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto,

e

ii)      informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

ou

b)      Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efetivamente representada por esse defensor no julgamento;

ou

c)      Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial:

i)      declarou expressamente que não contestava a decisão,

ou

ii)      não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

ou

d)      Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas:

i)      será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial,

e

ii)      será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente.

[…]».

II — O litígio no processo principal e as questões prejudiciais

18.      Por despacho de 1 de outubro de 1996, a Primeira Secção da Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional (Secção Penal da Audiencia Nacional) (Espanha) declarou que se justificava a extradição para Itália de Stefano Melloni (a seguir «recorrente»), para aí ser julgado pelos factos constantes dos mandados de detenção n.os 554/1993 e 444/1993, emitidos, respetivamente, em 13 de maio e em 15 de junho de 1993 pelo Tribunale di Ferrara (Itália). Depois de lhe ter sido concedida liberdade sob fiança de 5 000 000 ESP, pagas no dia seguinte, o recorrente fugiu, pelo que não chegou a ser entregue às autoridades italianas.

19.      Por decisão de 27 de março de 1997, o Tribunale di Ferrara declarou a revelia do recorrente, dado que tinha fugido à justiça, e ordenou que as notificações passassem a ser feitas aos advogados da sua confiança e por ele designados. Por acórdão de 21 de junho de 2000, proferido pelo Tribunale di Ferrara, seguidamente confirmado por um acórdão de 14 de março de 2003 da Corte d´Appello di Bologna (Itália), o recorrente foi condenado à revelia na pena de dez anos de prisão, como autor do crime de falência fraudulenta. Por decisão de 7 de junho de 2004, a Quinta Secção Penal de la Corte Suprema di Cassazione negou provimento ao recurso interposto pelos advogados do recorrente. Em 8 de junho de 2004, o Procurador‑Geral da República na Corte d´Appello di Bologna emitiu o mandado de detenção europeu n.° 271/2004, para execução da pena proferida pelo Tribunale di Ferrara.

20.      Na sequência da detenção do recorrente pela polícia espanhola, o Juzgado Central de Instrucción n.° 6 (Espanha), por despacho de 2 de agosto de 2008, decidiu remeter o mandado de detenção europeu n.° 271/2004 à Primeira Secção da Sala de lo Penal da Audiencia Nacional.

21.      O recorrente opôs‑se à sua entrega às autoridades italianas, argumentando, em primeiro lugar, que, na fase de recurso, tinha designado outro advogado revogado o mandato dos dois anteriores, aos quais, apesar disso, continuaram a ser dirigidas as notificações. Em segundo lugar, afirmou que a lei processual italiana não prevê a possibilidade de interpor recurso das condenações proferidas à revelia e que, consequentemente, o mandado de detenção europeu deveria, se fosse caso disso, estar subordinado à condição de a República Italiana garantir a possibilidade de ser interposto recurso do acórdão.

22.      Por despacho de 12 de setembro de 2008, a Primeira Secção da Secção Penal da Audiencia Nacional decidiu entregar o recorrente às autoridades italianas para cumprimento da pena a que fora condenado pelo Tribunale di Ferrara, por autoria do crime de falência fraudulenta, não considerando provado que os advogados designados pelo recorrente tivessem deixado de o representar a partir de 2001 e considerando que os direitos da defesa deste tinham sido respeitados, uma vez que teve conhecimento do processo que ia ser instaurado, que se colocou voluntariamente numa situação de revelia e que designou dois advogados para o representarem e defenderem, os quais, nessa qualidade, intervieram em primeira, segunda e terceira instâncias, esgotando assim as vias de recurso.

23.      O recorrente interpôs no Tribunal Constitucional um «recurso de amparo» (4) contra o despacho da Primeira Secção da Sala de lo Penal da Audiencia Nacional, de 12 de setembro de 2008. Em apoio deste recurso, alega uma violação das exigências absolutas que emanam do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 24.°, n.° 2, da Constituição espanhola. Com efeito, foi violado o conteúdo essencial de um processo equitativo de um modo que lesa a dignidade humana, por ter sido permitida a extradição para países que, em caso de crime muito grave, validam as condenações à revelia, sem sujeitar a entrega da pessoa condenada à condição de esta poder impugnar essas condenações a fim de salvaguardar os seus direitos de defesa. O recorrente sustenta igualmente que o seu recurso tem especial importância do ponto de vista constitucional porque o despacho de 12 de setembro de 2008 se afastou da doutrina consolidada deste Tribunal Constitucional, segundo a qual, em caso de condenações por crimes graves proferidas na ausência do acusado, a entrega da pessoa condenada deve estar subordinada à possibilidade de revisão do acórdão (5).

24.      Por despacho de 18 de setembro de 2008, a Primeira Secção do Tribunal Constitucional admitiu o «recurso de amparo» e suspendeu a execução do despacho de 12 de setembro de 2008. Através de uma decisão de 1 de março de 2011, por proposta da Primeira Secção deste, o Plenário avocou o «recurso de amparo».

25.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que reconheceu, no seu acórdão 91/2000, já referido, que o conteúdo vinculativo dos direitos fundamentais é mais reduzido quando estes são considerados ad extra, ou seja, num contexto transnacional, e que apenas as exigências mais básicas e as mais elementares podem ser associadas ao artigo 24.° da Constituição espanhola e tidas em conta na determinação de uma inconstitucionalidade «indireta». No entanto, constitui uma violação «indireta» das exigências do direito a um processo equitativo, lesando o conteúdo essencial do referido processo de um modo que afeta a dignidade humana, a decisão dos órgãos jurisdicionais espanhóis de permitirem a extradição para Estados que, em casos de crime muito grave, validam as condenações à revelia sem sujeitar a entrega da pessoa condenada à condição de esta poder impugnar essas condenações a fim de salvaguardar os seus direitos de defesa.

26.      O órgão jurisdicional de reenvio recorda ainda que esta jurisprudência é igualmente aplicável no quadro do procedimento de entrega instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584, por duas razões, a saber, que a condição imposta à entrega de uma pessoa condenada é inerente ao conteúdo essencial do direito constitucional a um processo equitativo e que o artigo 5.° da Decisão‑Quadro 2002/584 previa a possibilidade de a execução de um mandado de detenção europeu emitido para cumprimento de uma condenação proferida à revelia ser, «ao abrigo do direito do Estado‑Membro de execução», sujeita, designadamente, à condição de «a autoridade judicial de emissão dar garantias consideradas suficientes para assegurar à pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu a possibilidade de pedir um novo julgamento que salvaguarde os direitos de defesa no Estado‑Membro emissor e de ser julgada na sua presença» (acórdão do Tribunal Constitucional 177/2006, já referido).

27.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que, no seu acórdão 199/2009, de 28 de setembro, julgou procedente o «recurso de amparo» interposto de um despacho no qual a Audiencia Nacional permitiu a entrega da pessoa em causa à Roménia, em execução de um mandado de detenção europeu, para cumprimento de uma pena de quatro anos de prisão proferida em julgamento à revelia, sem indicar a exigência de a condenação em questão poder ser revista. Para o efeito, o Tribunal Constitucional rejeitou a argumentação da Audiencia Nacional segundo a qual a condenação não foi verdadeiramente proferida à revelia, uma vez que o recorrente mandatou um advogado que compareceu em juízo como seu defensor particular.

28.      Segundo o Tribunal Constitucional, a dificuldade resulta de a Decisão‑Quadro 2009/299 ter suprimido o artigo 5.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e introduzido um novo artigo 4.°‑A. Ora, o referido artigo 4.°‑A A impede «[a recusa da] execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão» se esta, «tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efetivamente representada por esse defensor no julgamento». No processo que deu origem a esta ação de fiscalização de constitucionalidade, segundo refere o órgão jurisdicional de reenvio, verifica‑se que o recorrente mandatou dois advogados da sua confiança, aos quais o Tribunale di Ferrara notificou a realização futura do julgamento, pelo que aquele tinha conhecimento do mesmo. Verifica‑se igualmente que o recorrente foi efetivamente defendido por esses dois advogados no julgamento que teve lugar em primeira instância, assim como nos posteriores recursos de segunda e terceira instâncias.

29.      Portanto, para o órgão jurisdicional de reenvio, coloca‑se a questão de saber se a decisão‑quadro se opõe a que os órgãos jurisdicionais espanhóis subordinem a entrega do recorrente à possibilidade de a condenação em questão ser revista.

30.      De passagem, o Tribunal Constitucional rejeita a argumentação do Ministério Público segundo a qual não é necessário o reenvio prejudicial porque a decisão‑quadro de 2009 é inaplicável ratione temporis ao litígio no processo principal. Com efeito, o objeto da lide principal não consiste em determinar se o despacho de 12 de setembro de 2008 infringiu a Decisão‑Quadro 2009/299, mas sim se infringiu indiretamente o direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 24.°, n.° 2, da Constituição espanhola. Ora, a Decisão‑Quadro 2009/299 deve ser tomada em consideração para determinar o conteúdo deste direito que produz efeitos ad extra, porque constitui o direito da União aplicável no momento da apreciação da constitucionalidade. A sua tomada em consideração é também imposta pelo princípio de interpretação conforme do direito nacional com as decisões‑quadro (6).

31.      À luz das considerações precedentes, o Tribunal Constitucional decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 4.°‑A, n.° 1, da Decisão Quadro 2002/584/JAI, na sua redação em vigor dada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI, deve ser interpretado no sentido de que impede as autoridades judiciais nacionais, nos casos indicados nessa mesma disposição, de sujeitar a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a condenação em causa poder ser objeto de novo julgamento ou de recurso a fim de garantir os direitos de defesa da pessoa sobre a qual recai o mandado?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o n.° 1, do artigo 4.°‑A, da Decisão Quadro 2002/584/JAI é compatível com as exigências que resultam do direito de ação efetivo e do direito a um processo equitativo, previsto no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia assim como dos direitos de defesa garantidos no artigo 48.°, n.° 2, da mesma Carta?

3)      Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, o artigo 53.° da Carta, interpretado de modo sistemático em conjugação com os direitos reconhecidos nos artigos 47.° e 48.° da Carta, permite que um Estado‑Membro sujeite a entrega de uma pessoa que tenha sido condenada à revelia à condição de essa condenação poder ser objeto de novo julgamento ou de recurso no Estado requerente, conferindo assim a esses direitos um nível de proteção mais elevado do que aquele que decorre do direito da União Europeia, a fim de evitar uma interpretação que limite ou lese um direito fundamental reconhecido pela Constituição desse Estado‑Membro?»

32.      O Ministério Público, os Governos espanhol, belga, alemão, italiano, neerlandês, austríaco, polaco, português e do Reino Unido, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas no presente processo.

33.      O recorrente, o Ministério Público, os Governos alemão e neerlandês, o Conselho e a Comissão apresentaram as suas alegações na audiência de 3 de julho de 2012.

III — Análise

34.      Antes de analisar estas três questões, há que responder aos argumentos apresentados pelo Ministério Público, pelos Governos belga, alemão e do Reino Unido, bem como pelo Conselho, que alegaram que o presente pedido de decisão prejudicial deve ser considerado inadmissível.

A —    Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

35.      Foram invocados dois argumentos principais em apoio da inadmissibilidade do presente reenvio prejudicial.

36.      Em primeiro lugar, a Decisão‑Quadro 2009/299 é inaplicável ratione temporis à entrega em causa no processo principal, pelo que o Tribunal de Justiça não é competente, no âmbito do presente processo, para a interpretar e apreciar a sua validade. Com efeito, tanto a data em que o mandado de detenção europeu n.° 271/2004 foi emitido (8 de junho de 2004) como a data em que a Audiencia Nacional decidiu entregar o recorrente às autoridades italianas (12 de setembro de 2008) são anteriores à data em que a Decisão‑Quadro 2009/299 foi adotada.

37.      Em segundo lugar, a circunstância de a República Italiana ter feito uso da possibilidade proporcionada pelo artigo 8.°, n.° 3, da Decisão‑Quadro 2009/299 de adiar até 1 de janeiro de 2014 a aplicação da mesma ao reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento pelas autoridades competentes italianas (7) aponta no sentido do caráter hipotético das questões apresentadas, pelo que uma resposta às mesmas é desprovida de utilidade para a decisão da causa principal.

38.      Recorde‑se que, segundo o Tribunal de Justiça, a presunção de pertinência que está associada às questões apresentadas a título prejudicial pelos órgãos jurisdicionais nacionais só pode ser excluída em casos excecionais, quando se verifique de forma manifesta que a solicitada interpretação das disposições do direito da União referidas nessas questões não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, ou quando o problema for de natureza hipotética e o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são apresentadas. Salvo nestas hipóteses, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir sobre as questões prejudiciais que lhe são apresentadas (8).

39.      No presente caso, não me deparo com nenhuma das hipóteses que, a título excecional, podem justificar a inadmissibilidade de um reenvio prejudicial.

40.      Importa, em primeiro lugar, excluir o primeiro argumento relativo à inaplicabilidade ratione temporis da Decisão‑Quadro 2009/299 ao processo de entrega em causa no processo principal.

41.      Com efeito, resulta da redação do artigo 8.°, n.° 2, da Decisão‑Quadro 2009/299 que esta «é aplicável, a contar de [28 de março de 2011], ao reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento». Esta disposição deve ser entendida no sentido de que, a contar de 28 de março de 2011, quando deliberar sobre o reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento, independentemente de estas decisões serem anteriores ou posteriores a esta data, a autoridade judicial de execução deve aplicar as disposições pertinentes da Decisão‑Quadro 2009/299.

42.      Esta solução é coerente com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, segundo a qual geralmente se entende que as normas processuais se aplicam a todos os litígios pendentes à data da sua entrada em vigor, ao contrário do que sucede com as normas substantivas, que são habitualmente interpretadas no sentido de que não se aplicam a situações ocorridas antes da sua entrada em vigor (9).

43.      Visto que o artigo 4.°‑A da decisão‑quadro se limita a fixar as condições em que o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida no termo de um processo em que o arguido não compareceu pessoalmente, deve considerar‑se que as disposições do referido artigo 4.°‑A são normas processuais (10).

44.      O artigo 4.°‑A da decisão‑quadro destina‑se, pois, a ser aplicado à entrega objeto do processo principal, que continua pendente.

45.      No que respeita à declaração pela qual a República Italiana invocou a possibilidade facultada pelo artigo 8.°, n.° 3, da Decisão‑Quadro 2009/299 de adiar, o mais tardar, até 1 de janeiro de 2014, a aplicação desta ao reconhecimento e execução das decisões proferidas na ausência do arguido no julgamento pelas autoridades italianas, não considero que a mesma possa implicar a inadmissibilidade do presente reenvio prejudicial, com o fundamento de que, por si mesma, tornaria inútil uma resposta do Tribunal de Justiça para a decisão da causa principal.

46.      Com efeito, não é contestado que o artigo 4.°‑A da decisão‑quadro, de um ponto de vista material, está vocacionada para regular o tipo de situação em causa no processo principal. Além disso, a data de 1 de janeiro de 2014 constitui um limite máximo, nada impedindo a República Italiana de optar por uma data mais próxima, ou mesmo de alterar a sua declaração.

47.      É, pois, certo que uma resposta do Tribunal de Justiça às questões apresentadas pelo Tribunal Constitucional, o mais tardar em 1 de janeiro de 2014, será útil para permitir não só que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre o «recurso de amparo» que lhe foi submetido, mas também que a autoridade judicial de execução delibere sobre o processo de entrega.

48.      A natureza específica do «recurso de amparo» submetido ao Tribunal Constitucional aponta igualmente no sentido da admissibilidade do presente reenvio. Com efeito, através deste recurso, esse órgão jurisdicional deve efetuar uma fiscalização de constitucionalidade que tome necessariamente em consideração o direito da União e, em especial, a Carta, como exige o artigo 10.°, n.° 2, da Constituição espanhola. Como o Tribunal Constitucional especifica na sua decisão de reenvio, é indispensável tomar em consideração o direito da União para determinar o conteúdo constitucionalmente protegido do direito a um processo equitativo (11).

49.      A fiscalização que o Tribunal Constitucional deve efetuar é equiparável àquela que um órgão jurisdicional constitucional pode efetuar no âmbito da fiscalização a priori de constitucionalidade de uma lei de transposição da Decisão‑Quadro 2009/299. Ora, se, para efetuar essa fiscalização, esse órgão jurisdicional questionasse o Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade desta decisão‑quadro, o Tribunal de Justiça aceitaria certamente responder, apesar de o prazo de transposição da referida decisão‑quadro não ter ainda terminado (12).

50.      Dado que o presente reenvio prejudicial deve, em minha opinião, ser considerado admissível, analisarei sucessivamente as três questões apresentadas pelo Tribunal Constitucional.

B —    Quanto à primeira questão

51.      Pela sua primeira questão, o Tribunal Constitucional pretende saber, no essencial, se o artigo 4.°‑A, n.° 1, alíneas a) e b), da decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que impede as autoridades judiciais nacionais, nos casos indicados nessa mesma disposição, de sujeitarem a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a pessoa sobre a qual recai o mandado ter direito a um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão.

52.      O Tribunal Constitucional expõe do seguinte modo as dúvidas que tem quanto à resposta a dar a esta questão. Em primeiro lugar, em sua opinião, o artigo 4.°, n.° 1‑A, da decisão‑quadro pode ser interpretado de forma literal no sentido de que impede as autoridades judiciárias de execução de recusarem a execução do mandado de detenção europeu, mas não necessariamente de a subordinarem a condições, como a possibilidade de um novo julgamento. Em segundo lugar, ainda que essa interpretação literal deva ser recusada, o artigo 1.°, n.° 3, da decisão‑quadro pode conduzir a esse resultado.

53.      Não partilho das dúvidas apresentadas pelo Tribunal Constitucional quanto ao sentido a dar ao artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro. Com efeito, a análise da redação, da sistemática e do objetivo desta disposição demonstra que, nos casos referidos, a autoridade judiciária de execução não pode sujeitar, de maneira geral, a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a pessoa sobre a qual o mesmo recai ter direito a um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão.

54.      Resulta da redação do artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro que este estabelece um motivo facultativo de não execução de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade, se a pessoa que é objeto do mesmo não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão. Esta faculdade tem quatro exceções, nas quais a autoridade judiciária de execução fica privada da possibilidade de recusar a execução do mandado de detenção europeu em causa.

55.      Como indica o sexto considerando da Decisão‑Quadro 2009/299, o legislador da União pretendeu «estabelece[r] as condições em que não devem ser recusados o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida na sequência de um julgamento no qual a pessoa não tenha estado presente. As condições são alternativas; quando uma delas se encontra preenchida, a autoridade de emissão, ao preencher a secção pertinente do mandado de detenção europeu […], garante que os requisitos foram ou serão preenchidos, o que deveria ser suficiente para efeitos de execução da decisão com base no princípio do reconhecimento mútuo».

56.      As situações referidas no artigo 4.°‑A, n.° 1, alíneas a) e b), da decisão‑quadro podem ser classificadas em duas categorias.

57.      A primeira categoria reúne as alíneas a) e b) desta disposição. Delas resulta que a autoridade judiciária de execução não pode recusar a execução do mandado de detenção europeu quer quando a pessoa que é objeto do mesmo foi notificada pessoalmente ou informada por outros meios da data e do local previstos para o julgamento e de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento, quer quando a referida pessoa, tendo tido conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor, designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal, e foi efetivamente representada por esse defensor no julgamento.

58.      Tendo em conta a descrição dos factos da lide principal, tal como resulta da decisão de reenvio, a situação do recorrente corresponde mais especificamente à situação prevista no artigo 4.°‑A, n.° 1, alínea b), da decisão‑quadro. Recorde‑se, com efeito, que o recorrente mandatou dois advogados da sua confiança, que o Tribunale di Ferrara notificou da subsequente realização do julgamento, pelo que ele tinha conhecimento do mesmo. Demonstrou‑se também que o recorrente foi efetivamente defendido por esses dois advogados no processo subsequente, em primeira instância e posteriormente, nos recursos de segunda e terceira instâncias.

59.      Da leitura do artigo 4.°‑A, n.° 1, alíneas a) e b), da decisão‑quadro, impõe‑se observar que a redação destas duas alíneas não faz nenhuma referência à exigência de que, nestas situações, a pessoa que é objeto do mandado de detenção deva poder ser novamente julgada no Estado‑Membro de emissão.

60.      Uma análise do conjunto do disposto no artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro mostra que as situações previstas nas alíneas c) e d) desta disposição, que constituem a segunda categoria, são, na realidade, as únicas em que a pessoa que é objeto do mandado de detenção pode beneficiar do direito a um novo julgamento.

61.      A maneira como o legislador da União pretendeu tratar estas hipóteses distingue‑se amplamente da lógica subjacente ao artigo 5.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584. Recorde‑se que esta disposição permitia, sob certas condições, à autoridade judiciária de execução subordinar a entrega à condição de a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes para assegurar à pessoa sobre a qual recaía o mandado de detenção europeu a possibilidade de requerer um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão e de estar presente no julgamento. Incumbia à autoridade judiciária de execução apreciar se estas garantias eram suficientes.

62.      Em contrapartida, o artigo 4.°‑A, n.° 1, alíneas c) e d), da decisão‑quadro suprime a margem de apreciação da autoridade judiciária de execução, a qual deve confiar nas informações constantes do mandado de detenção europeu. Assim, a autoridade judiciária de execução tem a obrigação de executar o mandado de detenção europeu quando este indique, substancialmente, quer que a pessoa sobre a qual recai o mandado, depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento dentro do prazo aplicável, quer que a pessoa sobre a qual recai o mandado não foi notificada pessoalmente da decisão, mas será notificada pessoalmente da mesma sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do seu direito a novo julgamento e do prazo para o requerer.

63.      A sistemática do artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro revela, pois, que só as alíneas c) e d) desta disposição tratam da situação em que a pessoa sobre a qual recai o mandado tem o direito a um novo julgamento e que, inversamente, as alíneas a) e b) da referida disposição enumeram as situações em que a pessoa sobre a qual recai o mandado não pode reivindicar esse direito. Cabe referir que, no que respeita a estas duas últimas alíneas, a posição do legislador da União é mais precisa mas não difere, no fundamental, da que prevalece no âmbito do artigo 5.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584. Com efeito, uma leitura a contrario desta disposição mostra que a mesma já excluía a possibilidade de subordinar a entrega à existência de um novo julgamento no caso de a pessoa em causa ter sido notificada pessoalmente ou informada por outros meios da data e do local da audiência que deu lugar à decisão proferida à revelia.

64.      Nas alíneas a) e b) do artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro, o legislador da União, no essencial, confirmou que, uma vez que a pessoa sobre a qual recai o mandado tenha tido conhecimento do processo previsto e tenha sido informada de que podia ser proferida uma decisão em caso de não comparência ou que, tendo tomado conhecimento do processo previsto, mandatou um advogado para a defender, essa pessoa deve‑se considerar que essa renunciou a comparecer no seu julgamento, pelo que não pode invocar um direito a um novo julgamento.

65.      Permitir, de modo geral, à autoridade judiciária de execução que, nestes casos, subordine a entrega da pessoa sobre a qual recai o mandado à possibilidade de um novo julgamento equivale a acrescentar um motivo que pode levar a uma recusa de execução do mandado de detenção europeu. Isso contraria a vontade claramente expressa pelo legislador da União de estabelecer, de forma exaustiva, por razões de segurança jurídica, os casos em que se deve considerar que os direitos processuais de uma pessoa que não compareceu pessoalmente no seu julgamento não foram violados e que, consequentemente, o mandado de detenção europeu deve ser executado.

66.      Os objetivos prosseguidos pelo legislador da União, quando adotou o artigo 4.°‑A da decisão‑quadro, confirmam que ele não pretendeu deixar às autoridades judiciárias de execução a possibilidade de subordinar a execução do mandado de detenção europeu à condição de a pessoa que é objeto do mesmo poder beneficiar de um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão.

67.      Ao adotar a Decisão‑Quadro 2009/299, o legislador da União pretendeu corrigir os erros do regime previsto no artigo 5.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e aperfeiçoá‑lo, de modo a obter um melhor equilíbrio entre o objetivo de reforçar os direitos processuais das pessoas contra as quais seja instaurado um processo penal e o de facilitar a cooperação judiciária em matéria penal, em especial, melhorando o reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre os Estados‑Membros (13).

68.      Como indica o terceiro considerando da Decisão‑Quadro 2009/299, o legislador da União partiu da constatação de que a Decisão‑Quadro 2002/584, na versão anterior, permite «que a autoridade de execução exija à autoridade de emissão que forneça garantias consideradas suficientes assegurando à pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu a possibilidade de requerer um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão e de estar presente no julgamento». O legislador da União observa que, no âmbito deste regime, «[a] suficiência dessa garantia é questão a decidir pela autoridade de execução, pelo que se torna difícil saber exatamente quando pode a execução ser recusada».

69.      Perante estas incertezas, que eram suscetíveis de diminuir a eficácia do mecanismo de reconhecimento mútuo das decisões judiciárias proferidas à revelia, o legislador da União considerou necessário «prever motivos comuns claros para o não reconhecimento das decisões proferidas na sequência de um julgamento em que o arguido não tenha estado presente» (14). Portanto, a Decisão‑Quadro 2009/299 tem por objetivo «precisar esses motivos comuns para permitir à autoridade de execução executar a decisão não obstante a não comparência da pessoa no julgamento, no pleno respeito dos direitos de defesa» (15).

70.      Todas estas indicações demonstram que, ao suprimir a possibilidade de entrega condicional prevista no artigo 5.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, o legislador da União pretendeu melhorar o reconhecimento mútuo das decisões judiciárias proferidas à revelia, enquanto reforça os direitos processuais das pessoas. A solução que adotou, e que consiste em prever de forma exaustiva em que situações se deve considerar que a execução de um mandado de detenção europeu emitido com vista à execução de uma decisão proferida à revelia não infringe os direitos da defesa, é incompatível com a manutenção de uma possibilidade de a autoridade judiciária de execução subordinar essa execução à condição de a condenação em causa poder ser revista com o objetivo de garantir os direitos da defesa da pessoa sobre a qual recai o mandado.

71.      Na sua decisão de reenvio, o Tribunal Constitucional evoca a ideia de que os artigos 1.°, n.° 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, e 1.°, n.° 2, da Decisão‑Quadro 2009/299 podem permitir manter essa possibilidade.

72.      Recorde‑se que resulta destes dois artigos, de conteúdo substancialmente idêntico, que estas decisões‑quadro não têm por efeito modificar a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e os princípios jurídicos fundamentais, tais como estão consagrados no artigo 6.° TUE, de que faz parte o direito da defesa das pessoas que são objeto de ações penais. A tese do órgão jurisdicional de reenvio equivale a considerar que a obrigação de respeitar os direitos fundamentais pode permitir que a autoridade judiciária de execução recuse executar o mandado de detenção europeu, designadamente nos casos referidos no artigo 4.°‑A, n.° 1, alíneas a) a d), da decisão‑quadro, quando a pessoa sobre a qual o mesmo recai não puder ser novamente julgada. Na realidade, esta tese leva a que se questione a validade desta disposição face aos direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União, na medida em que a referida disposição confere uma proteção insuficiente do direito a um processo equitativo e dos direitos da defesa, que constituem o objeto da primeira questão.

C —    Quanto à segunda questão

73.      Com a sua segunda questão, o Tribunal Constitucional pede ao Tribunal de Justiça que declare se o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro é compatível com as exigências que resultam dos artigos 47.°, segundo parágrafo, e 48.°, n.° 2, da Carta.

74.      Segundo as anotações relativas a estas duas últimas disposições (16), o artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta corresponde ao artigo 6.°, n.° 1 da CEDH, e o artigo 48.°, n.° 2, da Carta corresponde mais especificamente ao artigo 6.°, n.° 3, da CEDH. Por força do artigo 52.°, n.° 3, da Carta, na medida em que esta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção, sem que esta disposição obste a que o direito da União confira uma proteção mais ampla. Portanto, analisarei a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa às garantias que devem acompanhar os julgamentos à revelia, antes de verificar se o direito da União devia ou não conceder uma proteção mais ampla na matéria.

75.      Os princípios gerais em matéria de julgamentos à revelia foram sintetizados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no seu acórdão Sejdovic c. Itália, de 1 de março de 2006 (17), e recentemente reafirmadas nos seus acórdãos Haralampiev c. Bulgária, de 24 de abril de 2012, e Idalov c. Rússia, de 22 de maio de 2012.

76.      Segundo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, «a faculdade do ‘acusado’ de estar presente no julgamento decorre do objeto e do fim do artigo [6.° da CEDH] no seu conjunto» (18). Considera que, «[e]mbora os julgamentos à revelia não sejam, em si mesmos, incompatíveis com o artigo 6.° da [CEDH], contudo, há denegação da justiça quando um indivíduo condenado in abstentia não puder ser julgado de novo por um órgão jurisdicional, depois de o ter ouvido, sobre a procedência da acusação, quanto à matéria de facto e ao direito, se não tiver sido demonstrado que ele renunciou ao seu direito de comparecer na audiência de julgamento e de se defender […] ou que teve a intenção de se subtrair à justiça» (19).

77.      Além disso, este Tribunal considera que «a obrigação de garantir ao arguido o direito de estar presente na audiência — quer no seu primeiro julgamento, quer no novo julgamento — é um dos elementos essenciais do artigo 6.° [da CEDH] […]. Portanto, a recusa de reabrir um processo que decorreu por contumácia, na ausência de quaisquer indicações de que o arguido renunciou ao seu direito de comparecer foi considerada como uma ‘flagrante denegação de justiça’, o que corresponde ao conceito de processo ‘manifestamente contrário às disposições do artigo 6.° [da CEDH] ou aos princípios nele consagrados’» (20).

78.      Resulta ainda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que «nem a letra nem o espírito do artigo 6.° da [CEDH] impedem uma pessoa de renunciar de sua livre vontade às garantias de um processo equitativo, de modo expresso ou tácito […]. No entanto, para tomar em consideração, na perspetiva da [CEDH], a renúncia ao direito de participar na audiência deve estar demonstrada de maneira inequívoca e ser acompanhada de um mínimo de garantias correspondentes à sua gravidade […]. Além disso, não deve colidir com nenhum interesse público importante» (21). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu também que « só se pode considerar que um arguido renunciou implicitamente, pelo seu comportamento, a um direito importante resultante do artigo 6.° da [CEDH] se ele tiver demonstrado que podia razoavelmente prever as consequências do seu comportamento a este respeito» (22).

79.      Quando avalia se o processo nacional em causa cumpre as exigências de um processo equitativo na aceção do artigo 6.° da CEDH, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem atribui uma grande importância a que a ausência do arguido no seu julgamento não seja sancionada derrogando o direito a um advogado (23). Com efeito, «[a]inda que não absoluto, o direito de qualquer arguido a ser efetivamente defendido por um advogado, se necessário oficioso, é um dos elementos fundamentais do processo equitativo. Um arguido não perde esse benefício apenas pelo facto de não estar presente na audiência» (24). Segundo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, «[é] […] de crucial importância para a equidade do sistema penal que o arguido seja defendido de forma adequada tanto em primeira instância como em sede de recurso» (25). Assim, «[m]esmo que o legislador deva poder desencorajar as ausências injustificadas, não pode sancioná‑las, derrogando o direito a um advogado» (26), e «[c]abe aos tribunais assegurar o caráter equitativo de um processo e, consequentemente, garantir a um advogado que, de forma evidente, nele intervém para defender o seu cliente na ausência deste, tenha a oportunidade de o fazer» (27).

80.      À luz dos elementos precedentes, considero que o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro respeita não só as exigências estabelecidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas também procede à sua codificação com a finalidade de garantir a sua aplicação em caso de execução de um mandado de detenção europeu emitido para executar uma decisão proferida num julgamento em que a pessoa sobre a qual recai o mandado não compareceu pessoalmente.

81.      Assim, as alíneas a) e b) desta disposição estabelecem as condições nas quais se deve considerar que a pessoa sobre a qual recai o mandado renunciou voluntariamente e de forma inequívoca a estar presente no seu julgamento, pelo que deixa de poder reivindicar o direito a uma nova audiência de julgamento. O artigo 4.°‑A, n.° 1, alínea b), da decisão‑quadro constitui uma inflexão ao artigo 4.°‑A, n.° 1, alínea a), da mesma, ao regular a situação em que a pessoa sobre a qual recai o mandado, tendo tomado conhecimento do julgamento previsto, optou deliberadamente por ser representada por um advogado em lugar de comparecer pessoalmente no julgamento (28), o que pode demonstrar que esta pessoa renunciou a participar pessoalmente no seu julgamento, ainda que garantindo o seu direito de defesa. Por último, as alíneas c) e d) do artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro destinam‑se a abranger as situações em que a pessoa sobre a qual recai o mandado, não estando abrangida pelas alíneas a) ou b) desta disposição, tem direito a novo julgamento ou a recurso.

82.      Em conformidade com os objetivos estabelecidos pelo artigo 1.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2009/299, o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro permite, portanto, reforçar os direitos processuais das pessoas contra as quais seja instaurada uma ação penal, procedendo a um alinhamento do direito da União pelo nível de proteção definido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na sua jurisprudência, facilitando a cooperação judiciária em matéria penal, especialmente ao melhorar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre os Estados‑Membros.

83.      Considero que o padrão de proteção adotado pelo legislador da União é suficiente e apropriado para alcançar os objetivos referidos e que o respeito dos artigos 47.°, segundo parágrafo, e 48.°, n.° 2, da Carta, não exige que ele opte por uma proteção mais alargada do direito a um processo equitativo e dos direitos da defesa, por exemplo, fazendo do direito a um novo julgamento uma exigência absoluta independente do comportamento adotado pela pessoa sobre a qual recai o mandado.

84.      Além de não encontrar razões para ir além da posição equilibrada adotada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o Tribunal de Justiça não pode apoiar‑se nas tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros para aplicar um nível de proteção mais alargado. Com efeito, o fato de a Decisão‑Quadro 2009/299 resultar de uma iniciativa de sete Estados‑Membros e ter sido adotada por todos os Estados‑Membros permite presumir, com certeza suficiente, que a grande maioria dos Estados‑Membros não partilha da conceção adotada pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (29).

85.      Em minha opinião, o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro não suscita nenhuma crítica no que respeita à apreciação da sua validade na perspetiva dos artigos 47.°, segundo parágrafo, e 48.°, n.° 2, da Carta.

86.      Saliente‑se, além disso, que, na medida em que o artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro regula de maneira exaustiva, e de forma satisfatória do ponto de vista da proteção dos direitos fundamentais, a questão do direito a um novo julgamento no âmbito da execução de um mandado de detenção europeu emitido no termo de um julgamento a que a pessoa objeto do mandado não compareceu pessoalmente, os artigos 1.°, n.° 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 e 1.°, n.° 2, da Decisão‑Quadro 2009/299 não devem permitir que as autoridades judiciárias de execução excluam a aplicação do artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro em benefício de uma conceção mais estrita do direito a um processo equitativo e exijam de forma sistemática a possibilidade de um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão, desde que o mandado de detenção europeu indique que a pessoa sobre a qual recai o mandado se encontra numa das situações referidas nas alíneas a) a d) desta última disposição.

87.      Importa agora determinar se o artigo 53.° da Carta confere ao Tribunal Constitucional a possibilidade de, no âmbito da execução da decisão‑quadro, manter a sua interpretação do artigo 24.°, n.° 2, da Constituição espanhola, segundo a qual a entrega de uma pessoa condenada à revelia deve estar subordinada à condição de a condenação poder ser revista no Estado‑Membro de emissão.

D —    Quanto à terceira questão

88.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede, no essencial, ao Tribunal de Justiça que declare se o artigo 53.° da Carta permite que uma autoridade judiciária de execução sujeite, nos termos do seu direito constitucional nacional, a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a pessoa sobre a qual este recai poder ser objeto de novo julgamento no Estado‑Membro de emissão, apesar de a aplicação dessa condição não ser autorizada pelo artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro.

89.      A presente questão leva, assim, o Tribunal de Justiça a especificar o conteúdo e alcance jurídicos a atribuir ao artigo 53.° da Carta.

90.      Na sua decisão de reenvio, o Tribunal Constitucional invoca três interpretações possíveis deste artigo.

91.      A primeira interpretação consiste em equiparar o artigo 53.° da Carta a uma cláusula que estabeleça uma norma mínima de proteção, característica dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a que figura no artigo 53.° da CEDH (30). A Carta impõe assim um padrão mínimo, ao permitir aos Estados‑Membros que apliquem o nível de proteção mais elevado resultante da sua Constituição, evitando assim uma regressão do nível de proteção dos direitos fundamentais.

92.      Nesta hipótese, o artigo 53.° da Carta permite a um Estado‑Membro subordinar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para executar uma sentença proferida à revelia a condições que tenham por objeto evitar uma interpretação que limite ou infrinja os direitos fundamentais reconhecidos pela sua Constituição, e sem que este nível de proteção mais elevado em vigor neste Estado‑Membro deva necessariamente ser alargado aos outros Estados‑Membros através do Tribunal que, por sua vez, o adote. Esta posição equivale a considerar que, numa situação em que o Tribunal não considere necessário que o direito da União atribua uma proteção mais alargada a um direito fundamental em relação ao nível resultante da CEDH, o artigo 53.° da Carta permite a um Estado‑Membro assegurar esse nível superior de proteção deste direito fundamental em aplicação da sua Constituição (31).

93.      A segunda interpretação do artigo 53.° da Carta consiste em considerar que a finalidade deste é delimitar os âmbitos de aplicação respetivos da Carta e, designadamente, das Constituições dos Estados‑Membros, ao recordar, à semelhança do artigo 51.° desta, que, no âmbito de aplicação do direito da União, o nível de proteção dos direitos fundamentais que deve ser aplicado é o que resulta da Carta. Em contrapartida, fora do âmbito de aplicação do direito da União, a Carta não impede a aplicação do nível de proteção dos direitos fundamentais previsto pela Constituição de um Estado‑Membro. Segundo o Tribunal Constitucional, esta leitura do artigo 53.° da Carta, que é explicada pela exigência de uniformidade de aplicação do direito da União, tem por inconveniente, por um lado, privar este artigo do conteúdo jurídico próprio, tornando‑o redundante em relação ao artigo 51.° da Carta e, por outro, reconhecer que a Carta pode causar, nos Estados‑Membros, uma redução do nível de proteção dos direitos fundamentais decorrentes das suas normas constitucionais.

94.      A referida leitura do artigo 53.° da Carta implica que o Tribunal Constitucional deva adaptar a sua jurisprudência relativa à interpretação do artigo 24.° da Constituição espanhola no quadro de aplicação do artigo 4.°‑A da decisão‑quadro. Em contrapartida, fora do âmbito de aplicação da decisão‑quadro, tem a liberdade de aplicar um nível superior de proteção dos direitos fundamentais.

95.      A terceira interpretação do artigo 53.° da Carta proposta pelo Tribunal Constitucional consiste em adotar uma ou outra das duas primeiras interpretações consoante as características do problema concreto de proteção dos direitos fundamentais em causa e o contexto em que ocorre a apreciação do nível de proteção que deve prevalecer (32).

96.      Em minha opinião, há que rejeitar formalmente a primeira interpretação proposta pelo Tribunal Constitucional.

97.      Com efeito, esta interpretação infringe o princípio do primado do direito da União na medida em que este, em cada caso concreto, leva a que seja dada prioridade à norma jurídica que atribua o grau de proteção mais elevado ao direito fundamental em causa. Deste modo, em alguns casos, reconhecer‑se‑ia a proeminência das Constituições nacionais sobre o direito da União.

98.      Ora, é jurisprudência assente que o recurso a disposições nacionais, ainda que de ordem constitucional, com o objetivo de limitar o alcance das disposições do direito da União tem por consequência violar a unidade e a eficácia desse direito e, portanto, não pode ser admitido (33).

99.      Em minha opinião, o artigo 53.° da Carta não deve ser compreendido como uma cláusula que tenha por objeto regular um conflito entre, por um lado, uma norma de direito derivado que, interpretada à luz da Carta, fixa um padrão determinado de proteção de um direito fundamental e, por outro, uma norma retirada de uma Constituição nacional que estabelece um nível de proteção mais elevado do mesmo direito fundamental. Numa tal situação, este artigo não tem nem por objeto nem por efeito dar a prioridade à norma que confere maior proteção oriunda de uma Constituição nacional. Admitir o inverso equivaleria a desrespeitar a jurisprudência assente do Tribunal relativa ao primado do direito da União.

100. Saliente‑se, a este respeito, que de modo nenhum, resulta da redação do artigo 53.° da Carta que este deva ser no sentido de que estabelece uma exceção ao princípio do primado do direito da União. Pelo contrário, pode indicar‑se que os termos «no exercício das respetivas competências», foram escolhidos pelos redatores da Carta para não infringir este princípio (34). Além disso, o referido princípio tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça foi confirmado nas declarações anexas à Ata Final da Conferência Intergovernamental que adotou o Tratado de Lisboa, assinado em 13 de dezembro de 2007 (35).

101. A primeira interpretação apresentada pelo Tribunal Constitucional infringe também uma aplicação uniforme e eficaz do direito da União no interior dos Estados‑Membros.

102. No que respeita ao presente processo, teria, em especial, por efeito pôr seriamente em causa a uniformidade do nível de proteção definido no artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro e poderia criar obstáculos à execução dos mandados de detenção europeus emitidos para efeitos de execução de sentenças proferidas à revelia.

103. Com efeito, esta interpretação teria por consequência deixar aos Estados‑Membros uma margem de apreciação significativa para recusar a entrega em caso de sentenças proferidas à revelia. Tendo em conta o nível de proteção do direito a um processo equitativo em caso de sentença proferida à revelia, que resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e da própria adoção da Decisão‑Quadro 2009/299, a maior parte dos Estados‑Membros não confere certamente a uma pessoa condenada à revelia o direito a um novo julgamento quando essa pessoa renunciou inequivocamente a comparecer ao seu julgamento. A interpretação proposta iria, assim, paralisar a execução pelas autoridades judiciárias espanholas dos mandados de detenção europeus emitidos para efeitos da execução de sentenças proferidas à revelia, por os Estados‑Membros de emissão não poderem garantir um novo julgamento às pessoas sobre as quais recai o mandado. Além disso, a criação de um sistema de geometria variável deste tipo encorajaria os delinquentes a refugiarem‑se nos Estados‑Membros cujas normas constitucionais oferecem melhor proteção do que as outras, desrespeitando assim a eficácia da decisão‑quadro (36).

104. Esta primeira interpretação do artigo 53.° da Carta poria igualmente em causa o princípio de segurança jurídica, uma vez que uma disposição de direito derivado, mesmo que conforme com os direitos fundamentais garantidos pela Carta, poderia ser excluída por um Estado‑Membro com fundamento em violação de uma das suas disposições constitucionais.

105. De maneira mais geral, a primeira interpretação sugerida pelo Tribunal Constitucional contraria as técnicas tradicionais de avaliação do grau de proteção que deve ser assegurado aos direitos fundamentais na União.

106. Com efeito, embora seja verdade que a interpretação dos direitos protegidos pela Carta deve visar um nível elevado de proteção, como se pode deduzir do artigo 52.°, n.° 3, desta e das anotações relativas ao artigo 52.°, n.° 4, da mesma, importa, no entanto, precisar que deve tratar‑se de um nível de proteção adaptado ao direito da União, como aliás especificam estas mesmas anotações.

107. Recorde‑se um princípio que, desde há muito tempo, orientou a interpretação dos direitos fundamentais na União, a saber, que a proteção dos direitos fundamentais na União deve ser assegurada no quadro da estrutura e dos objetivos desta (37). A este respeito, não é indiferente que o preâmbulo da Carta refira os objetivos principais da União, entre os quais figura a criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

108. Portanto, não é possível raciocinar unicamente em termos de nível mais ou menos elevado de proteção dos direitos fundamentais sem ter em conta os imperativos associados à ação da União e à especificidade do direito da União.

109. Os direitos fundamentais a proteger e o nível de proteção que lhes deve ser atribuído refletem as opções de uma determinada sociedade quanto ao justo equilíbrio a alcançar entre os interesses dos indivíduos e os da coletividade a que eles pertencem. Esta determinação está intimamente associada a avaliações que são próprias da ordem jurídica em causa, designadamente em função do contexto social, cultural e histórico desta, e portanto não pode ser automaticamente transposta para outros contextos (38).

110. Interpretar o artigo 53.° da Carta no sentido de que permite aos Estados‑Membros aplicarem, no âmbito de aplicação do direito da União, a sua disposição constitucional que garante um nível de proteção mais elevado do direito fundamental em causa equivaleria, assim, a ignorar que o exercício que consiste em determinar o nível de proteção dos direitos fundamentais a alcançar está estreitamente dependente do contexto em que é efetuado.

111. Assim, ainda que o objetivo seja caminhar para um nível elevado de proteção dos direitos fundamentais, a especificidade do direito da União implica que o nível de proteção resultante da interpretação de uma Constituição nacional não é automaticamente transponível ao nível da União nem oponível no quadro da aplicação do direito da União.

112. No que respeita à avaliação do nível de proteção dos direitos fundamentais que deve ser garantido na ordem jurídica da União, importa ter em conta os interesses específicos que animam a ação da mesma. É o que acontece, designadamente, com a necessária uniformidade de aplicação do direito da União e com os imperativos conexos com a construção de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Estes interesses específicos levam a que se module o nível de proteção dos direitos fundamentais em função dos diferentes interesses em jogo.

113. A Decisão‑Quadro 2009/299 demonstra precisamente que o nível de proteção dos direitos fundamentais deve ser fixado não in abstrato, mas de uma maneira adaptada às exigências associadas à construção de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

114. A este respeito, existe uma conexão evidente entre a aproximação das legislações dos Estados‑Membros em matéria de direitos das pessoas nos processos penais e o reforço da confiança mútua entre estes Estados.

115. Como indica o décimo considerando da decisão‑quadro, «[o] mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros». Além disso, o Tribunal de Justiça teve oportunidade de especificar que a decisão‑quadro visa facilitar e acelerar a cooperação judiciária e, assim, contribuir para realizar o objetivo atribuído à União de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, com base no grau de confiança elevado que deve existir entre os Estados‑Membros (39).

116. Nesta perspetiva, a definição ao nível da União de um padrão comum e elevado de proteção dos direitos da defesa é suscetível de reforçar a confiança que a autoridade judiciária de execução tem na qualidade do processo em vigor no Estado‑Membro de emissão.

117. Como acertadamente indica o Governo espanhol, a Decisão‑Quadro 2009/299 visa resolver o problema suscitado pela existência de diferentes níveis de proteção no quadro da execução de um mandado de detenção europeu em caso de condenação à revelia. Esta decisão‑quadro faz parte das medidas que têm por finalidade criar uma ordem processual europeia, indispensável para tornar mais eficazes os mecanismos de cooperação judiciária na União. Com efeito, na ausência de harmonização das garantias processuais, dificilmente a União podia avançar mais na aplicação do princípio de reconhecimento mútuo e na construção de um verdadeiro espaço de liberdade, de segurança e de justiça. É, aliás, a razão pela qual o artigo 82.°, n.° 2, TFUE, prevê que «[n]a medida em que tal seja necessário para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça, o Parlamento Europeu e o Conselho […] podem estabelecer regras mínimas», as quais podem, designadamente, incidir sobre os direitos individuais em processo penal.

118. A Decisão‑Quadro 2009/299 inscreve‑se nesta lógica, ao visar não só garantir a execução dos mandados de detenção europeus no âmbito de condenações à revelia, mas também que os direitos fundamentais das pessoas sobre as quais recai o mandado, como o direito a um processo equitativo e os direitos da defesa, sejam suficientemente protegidos.

119. A fim de conciliar estes objetivos, o legislador da União fixou o nível de proteção dos direitos fundamentais em questão de modo a não comprometer a eficácia do mecanismo do mandado de detenção europeu.

120. A este respeito, partilho da opinião do Governo espanhol que alega que, embora seja necessário assegurar a execução das decisões jurisdicionais adotadas pelos Estados‑Membros, e no respeito pleno e integral dos direitos fundamentais dos arguidos no âmbito de uma ação penal, é necessário que as garantias processuais de que estes dispõem não sejam utilizadas com o único objetivo de fugir à ação da justiça. É verdade que se trata de respeitar os direitos fundamentais, mas, ao mesmo tempo, de fazer com que, no quadro da dimensão transfronteiriça que é a do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, as garantias processuais não sejam utilizadas para obstarem à execução das decisões judiciais.

121. O artigo 4.°‑A da decisão‑quadro responde precisamente a este intuito de assegurar um melhor cumprimento dos mandados de detenção europeus emitidos para executar sentenças proferidas à revelia, enquanto reforça, de uma maneira adaptada a este objetivo, os direitos processuais das pessoas em causa.

122. Uma interpretação do artigo 53.° da Carta que permita a uma autoridade judiciária de execução, em aplicação de uma disposição constitucional nacional, subordinar de maneira geral a execução de um mandado de detenção europeu emitido para a execução de uma sentença proferida à revelia à condição de a pessoa que dela é objeto poder beneficiar de um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão viria quebrar o equilíbrio alcançado pelo artigo 4.°‑A da decisão‑quadro e, consequentemente, não é admissível.

123. Esclareça‑se ainda que o considerando 12 da decisão‑quadro não pode ser entendido como uma confirmação da primeira interpretação proposta pelo Tribunal Constitucional. Segundo este considerando, esta decisão‑quadro «não impede que cada Estado‑Membro aplique as suas normas constitucionais respeitantes ao direito a um processo equitativo». Em minha opinião, o referido considerando deve ser lido em conjugação com o artigo 1.°, n.° 3, da referida decisão‑quadro. Ora, já acima se que esta disposição está privada de grande parte do seu efeito útil uma vez que, para efeitos da execução de um mandado de detenção europeu emitido com vista à execução de uma sentença proferida à revelia, o nível de proteção do direito a um processo equitativo foi objeto de uma definição comum na União com a adoção do artigo 4.°‑A n.° 1, da decisão‑quadro.

124. Além da interpretação do artigo 53.° da Carta, a terceira questão apresentada pelo Tribunal Constitucional, na realidade, leva a que se questione a margem de manobra de que dispõem os Estados‑Membros para fixar o nível de proteção dos direitos fundamentais que pretendem assegurar no âmbito da aplicação do direito da União. A este respeito, importa distinguir as situações em que existe uma definição na União do nível de proteção que deve ser garantido a um direito fundamental no quadro da execução de uma ação da União e aquelas em que este nível de proteção não foi objeto de uma definição comum.

125. No primeiro caso, como se viu, a fixação do nível de proteção está estreitamente associada aos objetivos da ação da União que está em causa. É o reflexo de um equilíbrio entre a necessidade de assegurar a eficácia da ação da União e a de proteger suficientemente os direitos fundamentais. Nesta situação, é claro que a invocação a posteriori, por um Estado‑Membro, da manutenção do seu nível de proteção mais elevado teria por consequência destruir o equilíbrio alcançado pelo legislador da União e, portanto, comprometer a aplicação do direito da União.

126. No contexto da decisão‑quadro, o seu artigo 4.°‑A, n.° 1, é a expressão de um acordo entre todos os Estados‑Membros para determinar quando uma pessoa condenada à revelia deve ser entregue sem que isso infrinja o seu direito a um processo equitativo e aos seus direitos da defesa. Este consenso entre os Estados‑Membros não deixa espaço à aplicação de níveis nacionais de proteção divergentes.

127. Em contrapartida, no segundo caso, os Estados‑Membros dispõem de uma margem de manobra mais significativa para aplicar, no âmbito de aplicação do direito da União, o nível de proteção dos direitos fundamentais que pretendam assegurar na ordem jurídica nacional, enquanto esse nível de proteção for conciliável com a boa execução do direito da União e não infringir outros direitos fundamentais protegidos por força do direito da União (40).

128. Concluídas estas especificações, importa agora identificar a função desempenhada na Carta pelo artigo 53.°

129. Neste exercício, cumpre, em minha opinião, não subestimar o valor político e simbólico deste artigo (41). Além disso, também em minha opinião, o referido artigo deve ser lido em estreita conexão com os artigos 51.° e 52.° da Carta, dos quais constitui o prolongamento.

130. Nos termos das anotações relativas ao artigo 53.° da Carta, «[e]sta disposição visa preservar o nível de proteção atualmente conferido, no âmbito de aplicação respetivo, pelo direito da União, pelo direito dos Estados‑Membros e pelo direito internacional. Dada a sua importância, é mencionada a CEDH».

131. Os redatores da Carta não podiam abstrair da existência de uma pluralidade de fontes de proteção dos direitos fundamentais que vinculam os Estados‑Membros e, portanto, deviam estabelecer o modo como a Carta deve coexistir com estas últimas. Esse é o objetivo principal do Título VII da Carta, que contém as disposições gerais que regem a interpretação e a aplicação desta. Nesta perspetiva, o artigo 53.° da Carta vem completar os princípios enunciados nos artigos 51.° e 52.° da mesma, ao recordar, por um lado, que, num sistema em que domina o pluralismo das fontes de proteção dos direitos fundamentais, a Carta não se destina a tornar‑se o instrumento exclusivo de proteção destes direitos e, por outro, que esta não pode ter por efeito, em si mesma, infringir ou reduzir o nível de proteção resultante destas diferentes fontes nos respetivos âmbitos de aplicação.

132. A Carta não constitui um instrumento isolado e desligado das outras fontes de proteção dos direitos fundamentais. Ela própria prevê que a interpretação das suas disposições deve ser efetuada tendo em devida conta outras fontes de direito, sejam nacionais ou internacionais. É assim que o artigo 52.°, n.° 3, da Carta faz da CEDH um padrão mínimo abaixo do qual o direito da União não pode descer e que o artigo 52.°, n.° 4, dispõe que, na medida em que reconheça direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, tais direitos devem ser interpretados de harmonia com essas tradições (42).

133. Vindo completar estas disposições, o artigo 53.° da Carta especifica que, no quadro da coexistência das diferentes fontes de proteção dos direitos fundamentais, esta não pode conduzir, por si mesma, a uma redução do nível de proteção destes direitos nas diferentes ordens jurídicas. Este artigo visa, assim, confirmar que a Carta impõe um nível de proteção dos direitos fundamentais apenas no âmbito de aplicação do direito da União.

134. Assim, a Carta não pode ter por efeito exigir aos Estados‑Membros que reduzam o nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pela sua Constituição nacional nos casos não abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União. O artigo 53.° da Carta expressa igualmente a ideia de que a adoção desta não deve servir de pretexto a um Estado‑Membro para diminuir a proteção dos direitos fundamentais no âmbito de aplicação do direito nacional.

135. A este respeito, os termos «nos respetivos âmbitos de aplicação» visam, designadamente, tranquilizar os Estados‑Membros quanto ao facto de a Carta não se destinar a substituir‑se à sua Constituição nacional no que respeita ao nível de proteção que assegura no âmbito de aplicação do direito nacional (43). Ao mesmo tempo, a inclusão desta expressão significa que o artigo 53.° da Carta não pode violar o primado do direito da União uma vez que a avaliação do nível de proteção dos direitos fundamentais a alcançar é efetuada no quadro da aplicação do direito da União.

136. Tendo em conta a leitura que faço do artigo 53.° da Carta, proponho, pois, ao Tribunal que declare que este artigo deve ser interpretado no sentido de que não permite que a autoridade judiciária de execução, em aplicação do seu direito constitucional nacional, subordine a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a pessoa sobre a qual este recai poder ser objeto de novo julgamento no Estado‑Membro de emissão, dado que a aplicação dessa condição não é permitida pelo artigo 4.°‑A, n.° 1, da decisão‑quadro.

137. Especifique‑se que a posição que proponho que o Tribunal adote no presente processo não conduz à negação da necessidade de tomar em consideração a identidade nacional dos Estados‑Membros, de que a identidade constitucional faz certamente parte (44).

138. Não ignoro que, como dispõe o artigo 4.°, n.° 2, TUE, a União respeita a identidade nacional dos Estados‑Membros, «refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles» (45). Refira‑se igualmente que o preâmbulo da Carta recorda que, na sua ação, a União deve respeitar a identidade nacional dos Estados‑Membros.

139. Um Estado‑Membro que considere que uma disposição de direito derivado viola a sua identidade nacional pode, assim, contestá‑la com fundamento no artigo 4.°, n.° 2, TUE (46).

140. No entanto, não estamos perante essa situação no quadro do presente processo. A esse respeito, os debates que tiveram lugar, tanto no Tribunal Constitucional como no Tribunal de Justiça convencem‑me de que a determinação do âmbito do direito a um processo equitativo e dos direitos da defesa em caso de sentenças proferidas à revelia não é suscetível de afetar a identidade nacional do Reino de Espanha.

141. Com efeito, além de a determinação do que constitui o «conteúdo absoluto» do direito a defender‑se continuar a ser discutida no próprio Tribunal Constitucional, o próprio Reino de Espanha indicou, na audiência, apoiando‑se designadamente nas exceções existentes no direito espanhol à realização de um novo julgamento após um julgamento à revelia, que a participação do arguido no seu julgamento não faz parte da identidade constitucional do Reino de Espanha.

142. Além disso, em minha opinião, não se pode confundir o que faz parte de uma conceção exigente da proteção de um direito fundamental com uma violação da identidade nacional ou, mais precisamente, da identidade constitucional de um Estado‑Membro. É verdade que, no caso em apreço, se trata de um direito fundamental protegido pela Constituição espanhola cuja importância não pode ser subestimada, mas isso, no entanto, não significa que, neste caso, o artigo 4.°, n.° 2, TUE seja aplicável.

143. Importa, além disso, especificar que tomar em consideração elementos distintivos que caracterizam as ordens jurídicas nacionais faz parte dos princípios que devem orientar a construção de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

144. Com efeito, o artigo 67.°, n.° 1, TFUE dispõe que «[a] União constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados‑Membros». Além disso, o artigo 82.°, n.° 2, TFUE prevê que as regras mínimas que podem ser adotadas pelo Parlamento e pelo Conselho, designadamente no que respeita aos direitos individuais em processo penal, devem ter em conta «as diferenças entre as tradições e os sistemas jurídicos dos Estados‑Membros». Saliente‑se igualmente que o artigo 82.°, n.° 3, TFUE, dispõe que «[q]uando um membro do Conselho considere que um projeto de diretiva a que se refere o n.° 2 prejudica aspetos fundamentais do seu sistema de justiça penal, pode solicitar que esse projeto seja submetido ao Conselho Europeu», ficando suspenso o processo legislativo e, em caso de desacordo persistente, podendo conduzir a uma cooperação reforçada.

145. A adoção do artigo 4.°‑A da decisão‑quadro pelo legislador da União demonstra que os Estados‑Membros pretenderam adotar uma abordagem comum da execução dos mandados de detenção europeus emitidos para executar sentenças proferidas à revelia e que esta abordagem é compatível com a diversidade das tradições e dos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros.

IV — Conclusão

146. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo ao Tribunal Constitucional:

«1)      O artigo 4.°‑A, n.° 1, alíneas a) e b), da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que impede a autoridade judiciária de execução de subordinar, nas situações referidas nesta disposição, a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a pessoa sobre a qual este recai poder ter um novo julgamento no Estado‑Membro de emissão.

2)      O artigo 4.°‑A, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299, é compatível com os artigos 47.°, segundo parágrafo, e 48.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

3)      O artigo 53.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não permite que a autoridade judiciária de execução, em aplicação do seu direito constitucional nacional, subordine a execução de um mandado de detenção europeu à condição de a pessoa sobre a qual este recai poder ser objeto de novo julgamento no Estado‑Membro de emissão, dado que a aplicação dessa condição não é permitida pelo artigo 4.°‑A, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      JO L 190, p. 1.


3 —      JO L 81, p. 24, a seguir «decisão‑quadro».


4 —      Trata‑se de um recurso que tem por objeto garantir a proteção dos direitos e das liberdades fundamentais. São designadamente protegidos, através deste recurso, os direitos definidos nas secções I e II do Capítulo II do Título I da Constituição espanhola, como o direito à igualdade (artigo 14.°), os direitos fundamentais e as liberdades públicas previstos nos artigos 15.° a 29.° desta, e o direito á objeção de consciência (artigo 30.°, n.° 2), contra as violações efetuadas pelos poderes públicos (artigo 53.°, n.° 2).


5 —      O recorrente cita, para o efeito, os acórdãos do Tribunal Constitucional 91/2000, de 30 de março, e 177/2006, de 5 de junho.


6 —      V. acórdão de 16 de junho de 2005, Pupino (C‑105/03, Colet., p. I‑5285, n.° 43).


7 —      V. Declaração sobre o n.° 3 do artigo 8.° da Decisão‑Quadro 2009/299 (JO 2009, L 97, p. 26).


8 —      V., designadamente, acórdão de 28 de junho de 2007, Dell’Orto (C‑467/05, Colet., p. I‑5557, n.° 40), e, no que respeita à apreciação da validade de uma regra de direito da União, acórdão de 8 de julho de 2010, Afton Chemical (C‑343/09, Colet., p. I‑7027, n.os 13 e 14).


9 —      V., designadamente, acórdão de 12 de agosto de 2008, Santesteban Goicoechea (C‑296/08 PPU, Colet., p. I‑6307, n.° 80 e jurisprudência aí referida).


10 —      V., por analogia, acórdão de 1 de julho de 2004, Tsapalos e Diamantakis (C‑361/02 e C‑362/02, Colet., p. I‑6405, n.° 20). Para retomar as expressões utilizadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o processo de mandado de detenção europeu «não incide sobre a procedência de uma acusação em matéria penal» e «a entrega do recorrente às autoridades [competentes] [não é] uma pena aplicada à pessoa sobre a qual recai o mandado pela prática de um delito, mas um processo destinado a permitir a execução de uma sentença» (v. TEDH, decisão Monedero Angora/Espanha, de 7 de outubro de 2008). Dito de outro modo, o processo de mandado de detenção europeu não tem impacto sobre a responsabilidade penal individual, mas visa facilitar a execução de uma decisão em relação à pessoa condenada.


11 —      V., a este respeito, Guillén López, E., «The impact of the European Convention of Human Rights and the Charter of Fundamental Rights of the European Union on Spanish Constitutional law: make a virtue of necessity», Human rights protection in the European legal order: the interaction between the European and the national courts, Intersentia, 2011, p. 309, que especifica, designadamente, que, «with the authorisation for the ratification of the Lisbon Treaty, organic law 1/2008 […] states in Article 2 that: ‘Under the provisions of paragraph 2 of Article 10 of the Spanish constitution and paragraph 8 of Article 1 of the Treaty of Lisbon, the rules relating to fundamental rights and freedoms recognized by the constitution shall be interpreted in accordance with the provisions of the Charter of Fundamental Rights’» (p. 334).


12 —      V., por analogia, no que respeita a um recurso de fiscalização da legalidade, interposto perante a High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Administrative Court) (Reino Unido), visando contestar a transposição de uma diretiva apesar de, na data de interposição do recurso, o prazo previsto para a transposição da diretiva ainda não ter terminado e não ter sido adotada nenhuma medida de transposição da mesma, acórdãos de 3 de junho de 2008, Intertanko e o. (C‑308/06, Colet., p. I‑4057, n.os 33 a 35), e Afton Chemical, já referido (n.os 15 a 17).


13 —      V. artigo 1.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2009/299.


14 —      V. quarto considerando da Decisão‑Quadro 2009/299.


15 —      Idem.


16 —      V. Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17).


17 —      Recueil des arrêts et décisions 2006‑II.


18 —      V. TEDH, acórdãos já referidos, Sejdovic c. Itália (§ 81) e Haralampiev c. Bulgária (§ 30).


19 —      V. TEDH, acórdãos Sejdovic c. Itália, já referido (§ 82).


20 —      V. TEDH, acórdãos já referidos, Sejdovic c. Itália (§ 84) e Haralampiev c. Bulgária (§ 31).


21 —      V. TEDH, acórdãos já referidos, Sejdovic c. Itália (§ 86) e Haralampiev c. Bulgária (§32). V., igualmente, TEDH, acórdão Idalov c. Rússia, já referido (§ 172)


22 —      V. TEDH, acórdão Idalov c. Rússia, já referido (§ 173). V., igualmente, no mesmo sentido, TEDH, acórdãos já referidos, Sejdovic c. Itália (§ 87) e Haralampiev c. Bulgária (§33).


23 —      V., designadamente, TEDH, acórdão Medenica c. Suíça, de 14 de junho de 2001, Recueil des arrêts et décisions 2001‑VI, no qual este Tribunal salienta, a propósito da pessoa sobre a qual recai o mandado, que foi informado em tempo útil das ações propostas contra ele e da data do seu processo, que, «quando dos debates, [a sua] defesa era assegurada pelos dois advogados que escolheu» (§ 56).


24 —      V., designadamente, TEDH, acórdão Krombach c. França, de 13 de fevereiro de 2001, Recueil des arrêts et décisions 2001‑II (§ 89). V., igualmente, TEDH, acórdão Sejdovic c. Itália, já referido (§ 91).


25 —      V., designadamente, TEDH, acórdão Sejdovic c. Itália, já referido (§ 91).


26 —      V., designadamente, TEDH, acórdão Van Geyseghem c. Bélgica, de 21 de janeiro de 1999, Recueil des arrêts et décisions 1999‑I (§ 34); e Krombach c. França, já referido (§ 89) e, no mesmo sentido, TEDH, acórdão Sejdovic c. Itália, já referido (§ 92).


27 —      V., designadamente, TEDH, acórdão Sejdovic c. Itália, já referido (§ 93).


28 —      V. considerando 10 da Decisão‑Quadro 2009/299.


29 —      Dito de outro modo, para retomar os termos utilizados pelo Tribunal de Justiça, no n.° 74 do seu acórdão de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão (C‑550/07 P, Colet., p. I‑8301), os debates que tiveram lugar no Tribunal de Justiça no presente processo não revelaram «nenhuma tendência geral» nas ordens jurídicas dos 27 Estados‑Membros a favor da interpretação adotada pelo Tribunal Constitucional.


30 —      Nos termos do artigo 53.° da CEDH, «[n]enhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as Convenções internacionais em que são Partes a União ou todos os Estados‑Membros, nomeadamente a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, bem como pelas Constituições dos Estados‑Membros.»


31 —      O Tribunal Constitucional refere‑se, a este respeito, aos acórdãos de 12 de junho de 2003, Schmidberger (C‑112/00, Colet., p. I‑5659, n.° 74); de 11 de dezembro de 2007, International Transport Workers’ Federation e Finnish Seamen’s Union (C‑438/05, Colet., p. I‑10779, n.° 45), e de 18 de dezembro de 2007, Laval un Partneri (C‑341/05, Colet., p. I‑11767, n.° 93). Resulta dos aspetos referidos nesses acórdãos que a proteção dos direitos fundamentais constitui um interesse legítimo suscetível de justificar, em princípio, uma restrição às obrigações impostas pelo direito da União, mesmo por força de uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado, como a livre circulação de mercadorias ou a livre prestação de serviços.


32 —      A este respeito, o Tribunal Constitucional cita os acórdãos de 14 de outubro de 2004, Omega (C‑36/02, Colet., p. I‑9609, n.os 37 e 38), e Pupino, já referido (n.° 60).


33 —      V., designadamente, acórdãos de 17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft (11/70, Colet. 1969‑1970, p. 625, n.° 3); de 2 de julho de 1996, Comissão/Luxemburgo (C‑473/93, Colet., p. I‑3207, n.° 38), e de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, Colet., p. I‑8015, n.° 61).


34 —      V, neste sentido, Ladenburger, C., «European Union Institutional Report», The Protection of Fundamental Rights Post‑Lisbon: The Interaction between the Charter of Fundamental Rights of the European Union, the European Convention on Human Rights and National Constitutions, Tartu University Press, relatórios do XXV Congresso da FIDE, Talin, 2012, vol. 1, p. 141, especialmente p. 175 e nota de rodapé 124.


35 —      V. Declaração 17, sobre o primado do direito comunitário.


36 —      V. Tinsley, A., «Note on the reference in case C 399/11 Melloni», New Journal of European Criminal Law, vol. 3, ed. 1, 2012, p. 19, em especial, p. 28.O autor refere‑se ao artigo de M. Arroyo Jiménez, intitulado «Sobre la primera cuestión prejudicial planteada por el Tribunal Constitucional — Bases, contenido y consecuencias», Revista Para el Análisis del Derecho, Barcelona, outubro de 2011.


37 —      Acórdão Internationale Handelsgesellschaft, já referido (n.° 4).


38 —      V. Widmann, A.‑M., «Article 53: undermining the impact of the Charter of Fundamental Rights», Columbia journal of European law, vol. 8, 2002, n.° 2, p. 342, em particular, p. 353, e Van De Heyning, C., «No place like home — Discretionary space for the domestic protection of fundamental rights», Human rights protection in the European legal order: the interaction between the European and the national courts, op. cit., p. 65, em particular, p. 81.


39 —      V., designadamente, acórdão de 28 de junho de 2012, West (C‑192/12 PPU, n.° 53 e jurisprudência aí referida).


40 —      Para exemplos de direitos fundamentais com um nível de proteção mais elevado em certos Estados‑Membros em relação ao nível de proteção resultante da CEDH e do direito da União, v. Besselink, L. F. M., «General Report», The Protection of Fundamental Rights Post‑Lisbon: The Interaction between the Charter of Fundamental Rights of the European Union, the European Convention on Human Rights and National Constitutions, op. cit., p. 63, especialmente p. 70. V., igualmente, Ladenburger, C., op. cit., que considera que, «where Union law leaves several ways of implementation without its effectiveness being undermined, then it is hard to see why the national authority should not be authorised to select only such modes of implementation that respect its own constitution» (p. 173).


41 —      V. Bering Liisberg, J., «Does the EU Charter of Fundamental Rights Threaten the Supremacy of Community Law? — Article 53 of the Charter: a fountain of law or just an inkblot?», Jean Monnet Working Paper n.° 4/01, p. 18 e 50.


42 —      A mensagem veiculada pelo artigo 52.°, n.° 4, da Carta é assim resumida por Ladenburger, C., op. cit., p. 179:


      «[T]he step of incorporating a written catalogue into primary law should not lead to construing Union fundamental rights in complete abstraction from the Member States’ constitutional traditions and laws.»


      O artigo 52.°, n.° 6, da Carta, que dispõe que «[a]s legislações e práticas nacionais devem ser plenamente tidas em conta tal como precisado na presente Carta», faz parte desta mesma lógica.


43 —      V. Bering Liisberg, J., op. cit., p. 16 e 35. Nos Estados‑Membros, os órgãos jurisdicionais nacionais têm condições para distinguir que nível de proteção deve ser aplicado em função dos casos que lhes são submetidos e do direito aplicável. V., a este propósito, Besselink, L. F. M., op. cit., que refere que, «in federal states courts are acquainted with the distinction between areas of competence and the differentiated standards which accompany each. At the same time there is little doubt that the various ‘layers’ overlap» (p. 77).


44 —      V., designadamente, a este respeito, Simon, D., «L’identité constitutionnelle dans la jurisprudence de l’Union européenne», L’identité constitutionnelle saisie par les juges en Europe, Éditions A. Pedone, Paris, 2011, p. 27; Constantinesco, V., «La confrontation entre identité constitutionnelle européenne et identités constitutionnelles nationales, convergence ou contradiction? Contrepoint ou hiérarchie?», L’Union européenne: Union de droit, Union des droits —Mélanges en l’honneur de Philippe Manin, Éditions A. Pedone, Paris, 2010, p. 79, e, nesta mesma obra, Mouton, J.‑D., «Réflexions sur la prise en considération de l’identité constitutionnelle des États membres de l’Union européenne», p. 145.


45 —      O Tribunal de Justiça referiu‑se a esta disposição nos seus acórdãos de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein (C‑208/09, Colet., p. I‑13693, n.° 92); de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn (C‑391/09, Colet., p. I‑3787, n.° 86), e de 24 de maio de 2011, Comissão/Luxemburgo (C‑51/08, Colet., p. I‑4231, n.° 124). V., igualmente, n.° 59 das conclusões do advogado‑geral N. Jääskinen, no processo Las (C‑202/11, pendente no Tribunal de Justiça) e n.os 60 e segs. Do pedido de decisão prejudicial no processo JS (C‑253/12, pendente no Tribunal de Justiça).


46 —      V. Besselink, L. F. M., op. cit., que indica que «divergent fundamental rights standards may not be resolved explicitly via provisions like Article 53 of the Charter and of the ECHR, but by reference to Article 4(2) EU. Reliance on divergent fundamental rights standards is then made dependent on whether it forms part of the constitutional identity of a Member State» (p. 136).