Language of document : ECLI:EU:C:2016:858

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

10 de novembro de 2016 (*)

«Reenvio prejudicial – Tramitação prejudicial urgente – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Mandado de detenção europeu – Decisão‑Quadro 2002/584/JAI – Artigo 1.°, n.° 1 – Conceito de ‘decisão judiciária’ – Artigo 6.°, n.° 1 – Conceito de ‘autoridade judiciária de emissão’ – Mandado de detenção europeu emitido pela Rikspolisstyrelsen (Direção‑Geral da Polícia Nacional, Suécia) para execução de uma pena privativa de liberdade»

No processo C‑452/16 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), por decisão de 16 de agosto de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça no mesmo dia, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra

Krzysztof Marek Poltorak,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, E. Juhász, C. Vajda, K. Jürimäe (relatora) e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 5 de outubro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de K. M. Poltorak, por S. Wester, advocaat,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. Bulterman, H. Stergiou e B. Koopman, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze, M. Hellmann, J. Möller e R. Riegel, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo helénico, por E. Tsaousi, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo finlandês, por S. Hartikainen, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo sueco, por A. Falk, C. Meyer‑Seitz, U. Persson, N. Otte Widgren, H. Shev e F. Bergius, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por R. Troosters e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 19 de outubro de 2016,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.°, n.° 1, e do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24; a seguir «decisão‑quadro»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito da execução, nos Países Baixos, de um mandado de detenção europeu emitido pela Rikspolisstyrelsen (Direção‑Geral da Polícia Nacional, Suécia) (a seguir «direção‑geral da polícia sueca») contra Krzysztof Marek Poltorak com vista à execução, na Suécia, de uma pena privativa de liberdade de um ano e três meses.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 5 a 9 da decisão‑quadro têm a seguinte redação:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)      O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de ‘pedra angular’ da cooperação judiciária.

(7)      Como o objetivo de substituir o sistema de extradição multilateral baseado na Convenção europeia de extradição de 13 de dezembro de 1957 não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros agindo unilateralmente e pode, pois, devido à sua dimensão e aos seus efeitos, ser melhor alcançado ao nível da União, o Conselho pode adotar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade referido no artigo 2.° [UE] e no artigo 5.° [CE]. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade, previsto pelo último artigo citado, a presente decisão não excede o necessário para atingir esse objetivo.

(8)      As decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega.

(9)      O papel das autoridades centrais na execução de um mandado de detenção europeu deve ser limitado a um apoio prático e administrativo.»

4        O artigo 1.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

[…]»

5        Os artigos 3.°, 4.° e 4.°‑A da decisão‑quadro enumeram os motivos de não execução obrigatória e facultativa do mandado de detenção europeu. O artigo 5.° da decisão‑quadro diz respeito às garantias a fornecer pelo Estado‑Membro de emissão em casos especiais.

6        Nos termos do artigo 6.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Determinação das autoridades judiciárias competentes»:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o manda[d]o de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

7        O artigo 7.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Recurso à autoridade central», prevê:

«1.      Os Estados‑Membros podem designar uma autoridade central ou, quando o seu ordenamento jurídico o previr, várias autoridades centrais, para assistir as autoridades competentes.

2.      Um Estado‑Membro pode, se a organização do seu sistema judiciário interno o exigir, confiar à sua autoridade central ou às suas autoridades centrais a transmissão e a receção administrativas dos mandados de detenção europeus bem como de qualquer outra correspondência oficial que lhes diga respeito.

O Estado‑Membro que pretender utilizar as possibilidades estabelecidas no presente artigo deve comunicar ao Secretariado‑Geral do Conselho as informações relativas à autoridade central ou às autoridades centrais designadas. Essas indicações vinculam todas as autoridades do Estado‑Membro de emissão.»

 Direito neerlandês

8        A Overleveringswet (Lei relativa à entrega) transpõe a decisão‑quadro para o direito neerlandês. O artigo 1.° desta lei tem a seguinte redação:

«Para efeitos da presente lei, entende‑se por:

[…]

b.      mandado de detenção europeu: a decisão escrita de uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro da União Europeia com vista à detenção e entrega de uma pessoa pela autoridade judiciária de outro Estado‑Membro;

[…]

i)      autoridade judiciária de emissão: a autoridade judiciária de um Estado‑Membro da União Europeia, competente nos termos do direito interno para emitir um mandado de detenção europeu;

[…]»

9        O artigo 5.° da Lei relativa à entrega dispõe:

«A entrega é feita exclusivamente às autoridades judiciárias de emissão de outros Estados‑Membros da União Europeia respeitando as disposições da presente lei ou adotadas a título desta.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10      Em 21 de dezembro de 2012, o Göteborgs tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância de Gotemburgo, Suécia) proferiu contra K. M. Poltorak, de nacionalidade polaca, uma pena privativa de liberdade de um ano e três meses, por factos qualificados de ofensas qualificadas à integridade física. Em 30 de junho de 2014, a direção‑geral da polícia sueca emitiu um mandado de detenção europeu contra K. M. Poltorak, para efeitos da execução, na Suécia, dessa pena.

11      Foi submetido ao rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), enquanto autoridade judiciária de execução do referido mandado de detenção europeu, com vista à detenção e entrega de K. M. Poltorak às autoridades suecas.

12      Na sequência de um pedido de informações enviado às autoridades suecas a respeito da autoridade de emissão do mandado de detenção europeu, o referido órgão jurisdicional obteve informações relativas, designadamente, à estrutura, à independência, ao funcionamento e às competências dessa autoridade, bem como ao procedimento e aos critérios com base nos quais a referida autoridade decide emitir os mandados de detenção europeus para execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade.

13      Atendendo a essas informações, bem como a elementos que figuram no Relatório de avaliação do Conselho, de 21 de outubro de 2008, relativo às práticas nacionais referentes ao mandado de detenção europeu [Relatório de avaliação sobre a quarta série de avaliações mútuas – «aplicação prática do mandado de detenção europeu e dos correspondentes procedimentos de entrega entre os Estados‑Membros»: relatório sobre a Suécia (9927/1/08 REV 2)], o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se se deve considerar que o mandado de detenção europeu emitido por um serviço de polícia, como a direção‑geral da polícia sueca, foi emitido por uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro, e se, por conseguinte, esse mandado de detenção europeu constitui uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

14      A este respeito, o referido órgão jurisdicional pergunta se os conceitos de «decisão judiciária» e de «autoridade judiciária», na aceção da decisão‑quadro, devem ser interpretados como conceitos autónomos do direito da União ou se os Estados‑Membros são livres para definir o seu sentido e o seu alcance.

15      Na hipótese de os referidos conceitos serem considerados conceitos autónomos do direito da União, o órgão jurisdicional de reenvio entende que estes implicam que o mandado de detenção europeu seja emitido por uma autoridade cujo estatuto e competências lhe permitam oferecer uma proteção judiciária suficiente na fase da emissão do mandado de detenção europeu. Atendendo ao princípio do reconhecimento mútuo no qual se baseia a decisão‑quadro, considera que essa autoridade deve ser um juiz ou um procurador, excluindo assim que o mandado de detenção europeu possa ser emitido por um serviço de polícia.

16      Na hipótese de esses conceitos serem do âmbito do direito nacional dos Estados‑Membros, o órgão jurisdicional de reenvio considera que estes continuam, todavia, a ser obrigados a respeitar o direito da União no exercício da sua margem de apreciação. Refere‑se assim aos princípios desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça, no que respeita ao direito a um recurso efetivo no âmbito do processo de entrega, nos n.os 46 e 47 do acórdão de 30 de maio de 2013, F. (C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358), e, no que respeita à proteção judiciária que deve ser garantida na fase da emissão do mandado de detenção europeu, ao n.° 56 do acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:C:2016:385).

17      Nestas circunstâncias, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      As expressões ‘autoridade judiciária’, na aceção do artigo 6.°, n.° [1], da decisão‑quadro […], e ‘decisão judiciária’, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro […], constituem conceitos autónomos do direito da União?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: com base em que critérios se pode determinar se uma autoridade do Estado‑Membro de emissão é uma ‘autoridade judiciária’ e se o [mandado de detenção europeu] que a mesma emitiu constitui, consequentemente, uma ‘decisão judiciária’?

3)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: a Direção‑Geral da Polícia Nacional da Suécia é abrangida pelo conceito de ‘autoridade judiciária’, na aceção do artigo 6.°, n.° [1], da decisão‑quadro […], e o [mandado de detenção europeu] que esta autoridade emitiu constitui, consequentemente, uma ‘decisão judiciária’, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro […]?

4)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: a designação como autoridade judiciária emissora de uma autoridade policial nacional, tal como a Direção‑Geral da Polícia Nacional da Suécia, é conforme com o direito da União?»

 Quanto à tramitação urgente

18      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

19      Fundamentou o seu pedido, designadamente, no facto de K. M. Poltorak se encontrar privado de liberdade, aguardando a sua entrega efetiva às autoridades suecas.

20      Há que salientar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação da decisão‑quadro, que faz parte do domínio abrangido pelo título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. É, portanto, suscetível de ser sujeito a tramitação prejudicial urgente.

21      Em segundo lugar, há que tomar em consideração, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a circunstância de que a pessoa em causa no processo principal se encontra atualmente privada de liberdade e que a sua manutenção em detenção depende da solução do litígio no processo principal (acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 24). Com efeito, a medida de detenção de que K. M. Poltorak é objeto foi ordenada, segundo as explicações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, no âmbito da execução do mandado de detenção europeu emitido contra o interessado.

22      Nestas condições, a Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 31 de agosto de 2016, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação prejudicial urgente.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto às três primeiras questões

23      Com as suas três primeiras questões, que devem ser apreciadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1 da decisão‑quadro, é um conceito autónomo do direito da União e se este artigo 6.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que um serviço de polícia, como o que está em causa no processo principal, se enquadra no conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção dessa disposição, pelo que o mandado de detenção europeu emitido por este com vista à execução de uma sentença que decreta uma pena privativa de liberdade pode ser considerado uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

24      A título preliminar, importa recordar que a decisão‑quadro, como resulta, em especial, do seu artigo 1.°, n.os 1 e 2, e dos seus considerandos 5 e 7, tem por objeto substituir o sistema de extradição multilateral baseado na Convenção europeia de extradição, de 13 de dezembro de 1957, por um sistema de entrega, entre as autoridades judiciárias, das pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos da execução de sentenças ou de procedimentos penais, baseando‑se este último sistema no princípio do reconhecimento mútuo (acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.° 75 e jurisprudência referida).

25      A decisão‑quadro tem assim como finalidade, através da criação de um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de ter infringido a lei penal, facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo atribuído à União de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros (acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.° 76 e jurisprudência referida).

26      Tanto o princípio da confiança mútua entre os Estados‑Membros como o princípio do reconhecimento mútuo têm, no direito da União, uma importância fundamental, dado que permitem a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais concretamente, o princípio da confiança mútua impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que cada um dos Estados‑Membros considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, muito em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito (acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.° 78 e jurisprudência referida).

27      O princípio do reconhecimento mútuo, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária, implica, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, da decisão‑quadro, que os Estados‑Membros estão, em princípio, obrigados a dar seguimento a um mandado de detenção europeu. Com efeito, a autoridade judiciária de execução apenas pode recusar dar execução a tal mandado nos casos, exaustivamente enumerados, de não execução obrigatória, previstos no artigo 3.° da decisão‑quadro, ou de não execução facultativa, previstos nos artigos 4.° e 4.°‑A da decisão‑quadro. Além disso, a execução do mandado de detenção europeu apenas pode estar subordinada a uma das condições limitativamente previstas no artigo 5.° da decisão‑quadro (acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 79 e 80 e jurisprudência referida).

28      Todavia, apenas os mandados de detenção europeus, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro, devem ser executados em conformidade com as disposições daquela. Decorre do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro que o mandado de detenção europeu constitui uma «decisão judiciária», o que exige que seja emitido por uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.° n.° 1, da mesma.

29      Nos termos desta última disposição, autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

30      Embora, em conformidade com o princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros, o artigo 6.°, n.° 1 da decisão‑quadro se refira ao direito destes últimos, há que observar que esta remissão se limita à designação da autoridade judiciária competente para emitir o mandado de detenção europeu. Portanto, a referida remissão não abrange a definição do próprio conceito de «autoridade judiciária».

31      Nestas condições, o sentido e o alcance do conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro não podem ser deixados à apreciação de cada Estado‑Membro (v., por analogia, acórdãos de 17 de julho de 2008, Kozłowski, C‑66/08, EU:C:2008:437, n.° 43, e de 16 de novembro de 2010, Mantello, C‑261/09, EU:C:2010:683, n.° 38).

32      Daqui resulta que o conceito de «autoridade judiciária», que figura no artigo 6.°, n.° 1 da decisão‑quadro, exige, em toda a União, uma interpretação autónoma e uniforme que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ser procurada tendo em conta simultaneamente os termos dessa disposição, o contexto em que se insere e o objetivo prosseguido pela decisão‑quadro (v., por analogia, acórdão de 28 de julho de 2016, JZ, C‑294/16 PPU, EU:C:2016:610, n.° 37 e jurisprudência referida).

33      Assim, quanto ao teor do artigo 6.°, n.° 1 da decisão‑quadro, há que salientar que os termos «autoridade judiciária», que figuram nesta disposição, não se limitam a designar apenas os juízes ou órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, mas permitem incluir, de forma mais abrangente, as autoridades chamadas a participar na administração da justiça na ordem jurídica em questão.

34      Não obstante, cabe observar que o conceito de «autoridade judiciária», em causa na referida disposição, não pode ser interpretado no sentido de que permite também incluir os serviços de polícia de um Estado‑Membro.

35      Em primeiro lugar, na sua aceção comum, o termo «judiciário» não abrange os serviços de polícia. Com efeito, este termo refere‑se ao poder judicial, que, como salientou o advogado‑geral no n.° 39 das suas conclusões, deve ser distinguido, em conformidade com o princípio da separação de poderes que caracteriza o funcionamento de um Estado de direito, do poder executivo. Assim, as autoridades judiciárias são tradicionalmente entendidas como as autoridades que participam na administração da justiça, por oposição, designadamente, às autoridades administrativas ou aos serviços de polícia, que fazem parte do poder executivo.

36      Em segundo lugar esta interpretação dos termos do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro é corroborada pelo contexto em que se insere esta disposição.

37      Por um lado, a cooperação judiciária em matéria penal, que estava prevista no artigo 31.° UE, deve ser distinguida da cooperação policial, prevista no artigo 30.° UE.

38      Por outro lado, há que entender o conceito de «autoridade judiciária», no contexto da decisão‑quadro, no sentido de que abrange as autoridades que participam na administração da justiça penal nos Estados‑Membros, com exclusão dos serviços de polícia.

39      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que todo o processo de entrega entre Estados‑Membros, previsto na decisão‑quadro, é, em conformidade com esta, levado a cabo sob fiscalização judicial, de modo a que as decisões relativas ao mandado de detenção europeu gozem de todas as garantias que são específicas a este tipo de decisões (v., neste sentido, acórdão de 30 de maio de 2013, F., C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.os 39 e 46).

40      Em especial, resulta do considerando 8 da decisão‑quadro que as decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deve ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega. Por outro lado, o artigo 6.° da decisão‑quadro prevê que compete a uma autoridade judiciária tomar não apenas esta decisão mas também a decisão relativa à emissão de tal mandado. A intervenção de uma autoridade judiciária é ainda exigida noutras fases do processo de entrega, como a audição da pessoa procurada, a decisão de manutenção da pessoa em detenção ou a transferência temporária desta (v., neste sentido, acórdão de 30 de maio de 2013, F., C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.° 45).

41      Neste contexto, o artigo 7.° da decisão‑quadro autoriza os Estados‑Membros, sob reserva das condições previstas nesta disposição e se tal for necessário em razão da organização do seu sistema judiciário, a recorrer a uma autoridade não judiciária, ou seja, a uma autoridade central, no que respeita à transmissão e à receção dos mandados de detenção europeus.

42      Ora, embora os serviços centrais de polícia de um Estado‑Membro possam ser abrangidos pelo conceito de «autoridade central», na aceção desse artigo, decorre contudo deste último, lido à luz do considerando 9 da decisão‑quadro, que a intervenção de tal autoridade central está limitada à assistência prática e administrativa das autoridades judiciárias competentes. Assim, a possibilidade oferecida pelo artigo 7.° da decisão‑quadro não pode ser ampliada ao ponto de permitir aos Estados‑Membros, no que se refere à decisão de emitir o mandado de detenção europeu, substituir as autoridades judiciárias competentes por essa autoridade central.

43      Em terceiro lugar, há que observar que uma interpretação do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro no sentido de que esta disposição também abrange os serviços de polícia iria contra os objetivos desta, recordados nos n.os 24 a 27 do presente acórdão.

44      Assim, o princípio do reconhecimento mútuo, consagrado no artigo 1.°, n.° 2, da decisão‑quadro, por força do qual a autoridade judiciária de execução é obrigada a executar o mandado de detenção emitido pela autoridade judiciária de emissão, baseia‑se na premissa segundo a qual uma autoridade judiciária interveio a montante da execução do mandado de detenção europeu, a fim de exercer uma fiscalização judicial.

45      Ora, a emissão de um mandado de detenção por uma autoridade não judiciária, como um serviço de polícia, não permite dar à autoridade judiciária de execução a garantia de que a emissão desse mandado de detenção europeu beneficiou dessa fiscalização judicial e, como tal, não é suficiente para justificar o elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros, mencionado no n.° 25 do presente acórdão, que constitui o próprio fundamento da decisão‑quadro. A este respeito, a organização específica dos serviços de polícia no contexto do poder executivo e o seu eventual grau de autonomia não são pertinentes.

46      Daqui resulta que o conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro, deve ser interpretado no sentido de que os serviços de polícia não se enquadram nesse conceito, pelo que o mandado de detenção europeu emitido por esses serviços não pode ser considerado uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

47      Esta interpretação não é posta em causa pelo facto de, como referiu o Governo sueco nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, o serviço de polícia em causa no processo principal apenas ser competente estritamente no âmbito da execução de uma sentença que adquiriu força de caso julgado, proferida por um tribunal no termo de um processo judicial.

48      Com efeito, resulta dos elementos apresentados ao Tribunal de Justiça pelo Governo sueco que a decisão relativa à emissão do mandado de detenção europeu cabe, em última instância, ao serviço de polícia em causa no processo principal e não a uma autoridade judiciária.

49      Por um lado, esse serviço de polícia emite o mandado de detenção europeu não a pedido do juiz que proferiu a sentença que aplica a pena privativa de liberdade mas a pedido dos serviços penitenciários.

50      Por outro lado, o serviço de polícia em causa no processo principal dispõe de uma margem de apreciação no que se refere à emissão do mandado de detenção europeu, dado que é o único serviço competente para verificar se os requisitos dessa emissão, conforme previstos pela decisão‑quadro, estão preenchidos, e para decidir, no termo de uma apreciação dos diferentes interesses em causa, entre os quais os da pessoa interessada, que a referida emissão é proporcionada.

51      Ora, atendendo às informações prestadas ao Tribunal de Justiça pelo Governo sueco, esta margem de apreciação não é oficiosamente objeto de fiscalização judicial.

52      Atendendo às considerações precedentes, há que responder às três primeiras questões que o conceito de «autoridade judiciária», na aceção artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro, é um conceito autónomo do direito da União e que este artigo 6.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que um serviço de polícia, como a direção‑geral da polícia sueca, não se enquadra no conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção dessa disposição, pelo que o mandado de detenção europeu emitido por este com vista à execução de uma sentença que decreta uma pena privativa de liberdade não pode ser considerado uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

 Quanto à quarta questão

53      Tendo em conta a resposta dada às três primeiras questões, não há que responder à quarta questão.

 Quanto à limitação dos efeitos do presente acórdão no tempo

54      Na audiência, o Governo neerlandês e a Comissão pediram ao Tribunal de Justiça que limitasse no tempo os efeitos do presente acórdão, caso este declarasse que um serviço de polícia, como a direção‑geral da polícia sueca, não se enquadra no conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro. Evocaram, em substância, eventuais consequências do presente acórdão sobre os processos em que um mandado de detenção europeu foi emitido por uma autoridade que não é uma «autoridade judiciária», na aceção desta disposição.

55      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma regra de direito da União, no exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 267.° TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa regra, tal como deve ser ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Daqui decorre que a regra assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz a relações jurídicas nascidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que se pronuncia sobre o pedido de interpretação, se, além disso, estiverem preenchidos os requisitos que permitem submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida regra (acórdão de 17 de setembro de 2014, Liivimaa Lihaveis, C‑562/12, EU:C:2014:2229, n.° 80 e jurisprudência referida).

56      Só a título excecional o Tribunal de Justiça pode, aplicando o princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa‑fé. Para que esta limitação possa ser decidida, é necessário que estejam preenchidos dois critérios essenciais, a saber, a boa‑fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (acórdãos de 27 de fevereiro de 2014, Transportes Jordi Besora, C‑82/12, EU:C:2014:108, n.° 41, e de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o., C‑110/15, EU:C:2016:717, n.° 60).

57      No caso vertente, decorre designadamente do Relatório de avaliação do Conselho de 21 de outubro de 2008, referido no n.° 13 do presente acórdão, que, no passado, o Conselho criticou a emissão de mandados de detenção europeus pelo serviço de polícia em causa, por ser incompatível com a exigência da designação de uma «autoridade judiciária». Nestas condições, não se pode considerar que o Reino da Suécia foi incitado a adotar um comportamento não conforme ao direito da União em virtude de uma incerteza objetiva e importante quanto ao alcance das disposições do direito da União.

58      Nestas condições, não há que limitar no tempo os efeitos do presente acórdão.

 Quanto às despesas

59      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O conceito de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, é um conceito autónomo do direito da União e este artigo 6.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que um serviço de polícia, como a Rikspolisstyrelsen (Direção‑Geral da Polícia Nacional, Suécia), não se enquadra no conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção dessa disposição, pelo que o mandado de detenção europeu emitido por este com vista à execução de uma sentença que decreta uma pena privativa de liberdade não pode ser considerado uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.