Language of document : ECLI:EU:C:2020:79

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 6 de fevereiro de 2020(1)

Processo C833/18

SI,

Brompton Bicycle Ltd.

contra

Chedech/Get2Get

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal de l’entreprise de Liège (Tribunal das Empresas de Liège, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual e industrial — Direito das patentes — Desenhos ou modelos — Regulamento (CE) n.o 6/2002 — Harmonização de determinados aspetos do direito de autor e direitos conexos — Diretiva 2001/29/CE — Âmbito de aplicação — Cumulação de direitos — Objeto utilitário e funcional — Conceito de “obra” — Aparência imposta pela função técnica do objeto — Critérios de apreciação do juiz nacional — Ponderação de interesses — Proporcionalidade — Bicicleta dobrável»






1.        O litígio submetido ao tribunal de reenvio opõe o criador de um sistema de dobragem de bicicletas (e a empresa que as fabrica) e uma empresa coreana que produz bicicletas similares, que aquele acusa de violar os seus direitos de autor.

2.        O órgão jurisdicional a quo deve determinar se uma bicicleta cujo sistema de dobragem esteve protegido por uma patente, já caducada, pode ser considerada uma obra suscetível de ser protegida pelo direito de autor. Em concreto, pretende saber se essa proteção fica excluída quando a forma do objeto «for necessária para obter um resultado técnico» e que critérios devem ser utilizados nessa apreciação.

3.        O reenvio prejudicial, ainda que focado nas normas da União Europeia relativas aos direitos de autor, incide numa questão (a compatibilidade entre a proteção característica do direito de autor e a que deriva da propriedade industrial) sobre a qual o Tribunal de Justiça se pronunciou recentemente (2).

I.      Quadro jurídico

A.      Direito internacional

1.      Convenção de Berna (3)

4.        Segundo o artigo 2.o, pontos 1 e 7:

«1)      Os termos “obras literárias e artísticas” compreendem todas as produções do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu modo ou forma de expressão, tais como […] as obras de artes aplicadas […]

[…]

7)      Fica reservada às legislações dos países da União a regulamentação do campo de aplicação das leis relativas às obras de arte aplicadas e aos desenhos e modelos industriais, assim como as condições de proteção dessas obras, desenhos e modelos, tendo em conta as disposições do artigo 7.4), da presente Convenção. Para as obras protegidas unicamente como desenhos e modelos no país de origem, só pode ser reclamada num outro país da União a proteção especial concedida nesse país aos desenhos e modelos; todavia, se uma proteção especial não for concedida nesse país, essas obras serão protegidas como obras artísticas.»

2.      Acordo relativo aos ADPIC

5.        Segundo o artigo 7.o:

«A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem‑estar social e económico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.»

6.        Nos termos do artigo 26.o:

«1.      O titular de um desenho ou modelo industrial protegido terá o direito de impedir terceiros, sem a sua autorização, de fazer, vender ou importar artigos que ostentem ou incorporem um desenho que constitua uma cópia, ou seja substancialmente uma cópia, do desenho protegido, quando esses atos sejam realizados com fins comerciais.

[…]»

7.        O artigo 27.o estipula:

«1.      […] as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto ao seu setor tecnológico e quanto ao facto de os bens serem importados ou produzidos localmente. […]

[…]»

8.        O artigo 29.o dispõe:

«1.      Os Membros exigirão que um requerente de uma patente divulgue a invenção de modo suficientemente claro e completo para permitir que um técnico habilitado possa realizá‑la e podem exigir que o requerente indique o melhor método de realizar a invenção que seja do seu conhecimento no dia do pedido ou, quando for requerida prioridade, na data prioritária do pedido […]

[…]»

B.      Direito da União

1.      Diretiva 2001/29/CE (4)

9.        O considerando sessenta salienta:

«A proteção prevista na presente diretiva não prejudica as disposições legais nacionais ou comunitárias em outras áreas, tais como a propriedade industrial, a proteção dos dados, o acesso condicionado, o acesso aos documentos públicos e a regra da cronologia da exploração dos meios de comunicação social, que pode afetar a proteção dos direitos de autor ou direitos conexos.»

10.      Os artigos 2.o a 4.o obrigam, nomeadamente, os Estados‑Membros a garantir aos autores os direitos exclusivos de autorização ou proibição de reproduções das suas obras [artigo 2.o, alínea a)], de autorizar ou proibir a sua comunicação ao público (artigo 3.o, n.o 1) e de autorizar ou proibir a sua distribuição (artigo 4.o, n.o 1).

11.      O artigo 9.o («Continuação da aplicação de outras disposições legais») prevê:

«O disposto na presente diretiva não prejudica as disposições relativas nomeadamente às patentes, marcas registadas, modelos de utilidade […]»

2.      Regulamento (CE) n.o 6/2002 (5)

12.      O considerando dez tem o seguinte teor:

«A inovação tecnológica não pode ser entravada pela concessão de proteção de desenhos ou modelos, com características ditadas unicamente por uma função técnica […].»

13.      O considerando trinta e dois enuncia:

«Na falta de uma harmonização total da legislação em matéria de direitos de autor, é importante consagrar o princípio da cumulação da proteção específica dos desenhos ou modelos comunitários e da proteção pelo direito de autor, deixando simultaneamente aos Estados‑Membros toda a liberdade para determinar o alcance da proteção pelo direito de autor e as condições em que essa proteção é conferida.»

14.      O artigo 3.o, alínea a), define o conceito de «desenho ou modelo» como:

«A aparência da totalidade ou de uma parte de um produto resultante das suas características, nomeadamente, das linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação.»

15.      O artigo 8.o dispõe:

«1.      As características da aparência de um produto determinadas exclusivamente pela sua função técnica não são suscetíveis de proteção como desenhos ou modelos comunitários.

[…]»

16.      O artigo 96.o («Relação com outras formas de proteção ao abrigo do direito nacional») precisa, no seu n.o 2:

«Qualquer desenho ou modelo protegido como desenho ou modelo comunitário beneficia igualmente da proteção conferida pela legislação dos Estados‑Membros em matéria de direitos de autor, a partir da data em que esse desenho ou modelo tenha sido criado ou definido sob qualquer forma. Cada Estado‑Membro determinará o âmbito dessa proteção e as condições em que é conferida, incluindo o grau de originalidade exigido.»

3.      Diretiva 2006/116/CE (6)

17.      O artigo 1.o, n.o 1 («Duração do direito de autor»), dispõe:

«O prazo de proteção do direito de autor sobre obras literárias e artísticas, na aceção do artigo 2.o da Convenção de Berna, decorre durante a vida do autor e setenta anos após a sua morte, independentemente do momento em que a obra tenha sido licitamente tornada acessível ao público.»

II.    Factos do litígio e questões prejudiciais

18.      Em 1975, SI criou um modelo de bicicleta dobrável, a que chamou Brompton.

19.      No ano seguinte, constituiu a sociedade Brompton Ltd com o objetivo de comercializar a sua bicicleta dobrável em colaboração com outra empresa de maior dimensão que garantisse o seu fabrico e distribuição. Não tendo encontrado nenhuma empresa interessada, continuou a trabalhar sozinho.

20.      Em 1981, recebeu uma primeira encomenda de 30 bicicletas Brompton, que fabricou com uma aparência ligeiramente diferente da do modelo original.

21.      A partir de então, desenvolveu a atividade da sua sociedade para dar a conhecer a sua bicicleta dobrável que, desde 1987, comercializou com esta forma:

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22.      A Brompton Lda. foi titular de uma patente sobre o mecanismo de dobragem da bicicleta (caracterizado por adotar três posições: desdobrada, «stand by» e dobrada), patente que, mais tarde, caiu no domínio público (7).

23.      SI afirma que ainda é titular dos direitos patrimoniais provenientes do direito de autor sobre a aparência da bicicleta Brompton.

24.      A sociedade coreana GET2GET, especializada na produção de equipamentos desportivos, produz e comercializa uma bicicleta dobrável (Chedech) que também tem três posições, de aparência similar à bicicleta Brompton:

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25.      A Brompton Lda. e SI, tendo considerado que a GET2GET tinha violado o seu direito de autor sobre a bicicleta Brompton, propuseram uma ação no órgão jurisdicional de reenvio, pedindo, em síntese: a) que declare que as bicicletas Chedech, independentemente dos sinais distintivos que nelas figurem, violam o direito de autor da Brompton Lda. e os direitos não patrimoniais de SI sobre a bicicleta Brompton, e b) que ordene a cessação das atividades de violação dos seus direitos e retire o produto do mercado (8).

26.      A GET2GET alegou que a aparência da sua bicicleta foi determinada pela solução técnica pretendida e que adotou voluntariamente a técnica de dobragem (anteriormente protegida pela patente da Brompton Lda. que, entretanto, caducou), por ser o método mais funcional. Sustenta que é esta restrição técnica que determina a aparência da bicicleta Chedech.

27.      A Brompton Lda. e SI replicaram que existem no mercado outras bicicletas dobráveis em três posições com uma aparência diferente da sua, pelo que dispõem do direito de autor sobre esta última. A aparência da sua bicicleta demonstra a existência de opções criativas e, portanto, de originalidade.

28.      Neste contexto, o tribunal de reenvio submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o direito da União, em especial a Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, que estabelece, nomeadamente, os diferentes direitos exclusivos reconhecidos aos titulares do direito de autor nos seus artigos 2.o a 5.o, ser interpretado no sentido de que exclui da proteção do direito de autor as obras cuja forma é necessária para obter um resultado técnico?

2)      A fim de apreciar o caráter necessário de uma forma para obter um resultado técnico, há que atender aos critérios seguintes:

–        A existência de outras formas possíveis que permitam obter o mesmo resultado técnico,

–        A eficácia da forma para obter o referido resultado,

–        A vontade do alegado contrafator de obter esse resultado,

–        A existência de uma patente anterior, entretanto caducada, respeitante ao processo que permite obter o resultado técnico pretendido?»

III. Processo no Tribunal de Justiça

29.      O despacho de reenvio prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de junho de 2018.

30.      Apresentaram observações escritas SI e a Brompton Lda., a GET2GET, os Governos da Bélgica e da Polónia, bem como a Comissão. Esta última e as partes no processo principal compareceram na audiência de julgamento realizada em 14 de novembro de 2019.

IV.    Apreciação

A.      Observações preliminares

31.      O tribunal a quo formula as suas questões relativamente à proteção do direito de autor a respeito de uma obra «cuja forma é necessária para obter um resultado técnico». Releva, apenas, a interpretação do Tribunal de Justiça sobre a Diretiva 2001/29.

32.      A «obra» sobre que versa o litígio é, como já se explicou, uma bicicleta cujo mecanismo de dobragem esteve, em tempos, protegido por um direito de patente.

33.      Da leitura das observações de SI e da Brompton Lda. (9) depreende‑se que a aparência original dessa bicicleta e a da que agora aspira à proteção a título de direito de autor, diferem, ainda que ambas utilizem o sistema de dobragem (10).

34.      No despacho de reenvio não consta nenhuma indicação de que a bicicleta Brompton tivesse estado protegida como modelo, para aplicação industrial. O órgão jurisdicional de reenvio também não alude às normas, nacionais ou da União, que regulam os desenhos e os modelos (nacionais ou comunitários).

35.      Ainda que em 1987 apenas pudesse aspirar a uma proteção como modelo nacional, nada impedia que a bicicleta Brompton tivesse usufruído posteriormente do regime jurídico próprio dos modelos (11), fosse em virtude da Diretiva 98/71/CE (12), fosse do Regulamento n.o 6/2002. Este último contempla, inclusivamente, «uma proteção a curto prazo do desenho ou modelo [comunitário] não registado» (13).

36.      A resposta ao reenvio prejudicial não pode omitir os problemas ligados à cumulação de proteções (a título de propriedade intelectual, por um lado, e de propriedade industrial, por outro), aos quais farei referência de seguida. Julgo, por isso, preferível, abordá‑los tanto para a hipótese em que o sistema de dobragem apenas tivesse estado protegido por uma patente, como para a de que a aparência da bicicleta tivesse correspondido a um modelo industrial.

37.      Não obstante terem objetos diferentes (14), ambas as figuras (patentes e modelos) têm características comuns que convém reter:

–      Ambas prosseguem uma aplicação prática: a proteção do modelo industrial está associada à realização de atos com fins comerciais, enquanto a da atividade inventiva inerente à patente está ligada à aptidão para a sua aplicação industrial.

–      A publicidade é inerente quer às patentes, que devem ser registadas, quer aos desenhos e modelos. No entanto, estes últimos apenas gozam de proteção se forem novos, o que deve ser feito através do seu registo formal ou, se não tiverem sido registados, quando tenham sido divulgados ao público pela primeira vez (artigo 5.o do Regulamento n.o 6/2002).

–      O objetivo de promover a inovação tecnológica é comum a ambas as figuras (15), como destacam o Regulamento n.o 6/2002 (16), quanto aos modelos, e o Regulamento (UE) n.o 1257/2012 (17), quanto às patentes.

38.      A resposta às questões do juiz de reenvio deve situar‑se num contexto mais geral, que contemple os diversos objetos e as finalidades prosseguidas, respetivamente, pela proteção da propriedade industrial e do direito de autor, bem como pelos interesses subjacentes a cada uma delas.

39.      Entre os elementos de interesse geral encontra‑se o incentivo à promoção tecnológica e o fomento da concorrência. A vigência do princípio da cumulação não se deve traduzir numa proteção desmesurada do direito de autor, que funcionaria em detrimento dos interesses públicos ao atuar como travão do sistema de defesa dos direitos de propriedade industrial.

40.      A outorga de um direito de exploração exclusiva ao titular de um direito de patente, ou ao autor de um desenho ou modelo, tem como objetivo, precisamente, fixar um equilíbrio de interesses entre o público e o privado:

–      O inventor ou o desenhador são recompensados com o facto de apenas eles poderem obter proveito económico das suas invenções ou dos seus desenhos, durante um tempo determinado, o que constitui um estímulo para a concorrência no campo tecnológico (18).

–      A contrapartida para o interesse público é que essa criação passará a ser do conhecimento geral, de modo que os restantes investigadores podem desenvolver novas invenções durante o prazo de proteção ou, decorrido este, aplicá‑la aos seus produtos.

41.      Esse equilíbrio cuidadoso — cuja tradução mais imediata é o menor tempo de proteção concedido ao inventor ou ao desenhador — ficaria prejudicado se o prazo estabelecido se alargasse, sem mais, até alcançar os generosos termos do direito de autor. Os desenhadores perderiam os estímulos para se submeter ao sistema de propriedade industrial se, com menos gastos e menos requisitos formais (ausência de registo, entre outros), tivessem assegurada a proteção das suas criações a título do direito de autor, e por um prazo muito mais prolongado (19).

42.      Também não é de menosprezar a questão da segurança jurídica: a publicidade oficial que se exige ao desenho industrial permite que os concorrentes saibam com certeza onde se encontram os limites das suas próprias criações industriais e até quando estão protegidas.

43.      Deixando à margem o modelo não registado (20), parece legítimo que os concorrentes de quem obteve formalmente um direito de propriedade industrial confiem na publicidade do registo para aproveitar a inovação técnica inscrita, depois de expirados os direitos do titular do registo. O considerando vinte e um do Regulamento n.o 6/2002 reconhece que «a natureza exclusiva do direito conferido pelo desenho ou modelo comunitário registado corresponde à vontade de lhe conferir uma maior segurança jurídica» (21). Pelo contrário, sem qualquer publicidade registral, como sucede com os direitos de autor, os operadores económicos ficam na incerteza sobre o conteúdo das criações intelectuais com finalidade industrial.

44.      Estes argumentos não passam, na verdade, de variantes sobre o tema já abordado pelo advogado‑geral M. Szpunar nas suas conclusões no processo Cofemel, para as quais remeto (22).

45.      Em suma, o confronto dos objetivos e dos valores prosseguidos por uns regimes jurídicos (os de propriedade industrial) e por outros (os direitos de autor) deve ser feito de maneira proporcionada para evitar que uma salvaguarda desmesurada destes últimos deixe sem conteúdo os primeiros.

B.      A cumulação de proteções e os seus limites

46.      O direito da União admite que a proteção jurídica própria de um desenho ou de um modelo se junte à que deriva de um direito de autor. Assim determinou, em tempos, a Diretiva 98/71, cujo artigo 17.o reconhecia que os desenhos e modelos (registados em cada Estado‑Membro) podiam beneficiar da proteção conferida pelas normas sobre direitos de autor. Todavia, aquele preceito acrescentava «cada Estado‑Membro determinará o âmbito dessa proteção as condições em que é conferida, incluindo o grau de originalidade exigido» (23).

47.      O princípio da «cumulação» foi acolhido pelo artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002, que deve ser lido à luz do seu considerando trinta e dois, no que concerne aos desenhos e modelos comunitários protegidos à escala da União.

48.      Do ponto de vista da defesa específica do direito de autor, a Diretiva 2001/29 declara no seu considerando sessenta que «[a] proteção prevista na presente diretiva não prejudica as disposições legais nacionais ou comunitárias em outras áreas».

49.      Assim, «[…] a Diretiva 2001/29 mantém na sua formulação atual a existência e alcance das disposições vigentes em matéria de desenhos e modelos, incluindo o princípio da “cumulação”» (24).

50.      Subsistiam, contudo, algumas dúvidas sobre a complementaridade dessas duas proteções. Em concreto, discutia‑se se os Estados‑Membros podiam exigir que os modelos industriais incorporassem requisitos de originalidade mais rigorosos para beneficiarem da proteção característica dos direitos de autor.

51.      O Acórdão Cofemel confirmou, como regra geral, que «a proteção dos desenhos e modelos e a proteção associada ao direito de autor podem ser concedidos cumulativamente a um mesmo objeto».

52.      A esta declaração, porém, seguiram‑se certas precisões que atenuam, por assim dizer, ou relativizam a força do princípio da cumulação.

53.      Em primeiro lugar, «embora a proteção dos desenhos e modelos e a proteção associada ao direito de autor possam, por força do direito da União, ser concedidas cumulativamente a um mesmo objeto, esta cumulação só pode ser admitida nalgumas situações» (25).

54.      Em segundo lugar, o sentido da proteção concedida é distinto num e noutro caso. Enquanto com os desenhos e modelos se pretende evitar a imitação a cargo dos concorrentes, o direito de autor tem outra função, jurídica e económica (26).

55.      Em terceiro lugar, a obtenção do direito de autor sobre um objeto que já goza da proteção própria dos desenhos e modelos tem certos riscos que não se devem desconsiderar (27). Em especial, «a concessão de proteção pelo direito de autor a um objeto protegido como desenho ou modelo não pode pôr em causa as finalidades e a efetividade respetivas destas duas proteções» (28).

56.      Em quarto lugar, a concretização de quando se está perante uma das «determinadas situações» que permitem a cumulação de proteções deve ser feita pelo juiz nacional. Deve definir‑se, caso a caso, o equilíbrio entre a defesa dos direitos do autor e o interesse geral.

C.      Primeira questão prejudicial: conceito de «obra», exigência de originalidade e exclusão da proteção a título de direito de autor quando a forma de uma obra obedeça a exigências técnicas

57.      Como ponto de partida, remeto novamente para as Conclusões do advogado‑geral M. Spuznar no processo Cofemel, nas quais aborda a análise tanto da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o conceito de obra, como da aplicação dessa jurisprudência aos desenhos e modelos (29).

58.      Creio que essa análise é suficientemente completa não requerendo, por isso, explicações adicionais da minha parte. Além disso, o Acórdão Cofemel integrou‑a na sua fundamentação, precisando os perfis da noção de «obra» enquanto conceito autónomo do direito da União (30).

59.      Dessa jurisprudência interessa‑me destacar agora o elemento da originalidade (31), que o Tribunal de Justiça já tinha indicado nos acórdãos precedentes (32), declarando que deve refletir a personalidade do criador da obra (33).

60.      Uma das contribuições relevantes do Acórdão Cofemel é que não permite associar a originalidade da suposta «obra» (naquele caso, peças de vestuário) aos seus componentes estéticos. O apelo ao estético, como critério para proteger um modelo a título de direito de autor, foi excluída pelo Tribunal de Justiça ao salientar que «o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29 […] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma norma nacional confira proteção nos termos do direito de autor a modelos […] tendo em conta que, para além da sua finalidade prática, geram um efeito visual próprio e considerável do ponto de vista estético» (34).

61.      Excluídos os efeitos estéticos, a dúvida centra‑se em saber se, ao ponderar a originalidade como premissa para que haja uma criação intelectual própria do seu autor (35), podem entrar em jogo os imperativos provenientes da exigência de alcançar um resultado técnico ou funcional, como motivo de recusa da proteção de uma obra a título de direito de autor. O tribunal de reenvio reporta‑se, especificamente, a este problema.

62.      O Tribunal de Justiça já abordou esta questão relativamente à proteção do direito de autor sobre os programas de computador (36).

63.      Declarou, em concreto, que, quando a expressão dos componentes de um objeto «resulta da sua função técnica, o critério da originalidade não se encontra preenchido, porque as diferentes formas de executar uma ideia são tão limitadas que a ideia e a expressão se confundem» (37). Essa situação não permite «ao autor exprimir o seu espírito criador de modo original e chegar a um resultado que constitua uma criação intelectual desse autor» (38).

64.      Nessa mesma linha, afirmou que a criação intelectual original própria é suscetível de proteção através do direito de autor, mas que já assim não será quando obedeça a «considerações técnicas, regras ou limitações que não deixam margem a uma liberdade criativa» (39).

65.      Dessas decisões podemos concluir que, como critério geral, não será possível proteger com direitos de autor as obras (objetos) de artes aplicadas cuja forma esteja condicionada pela sua função. Se a aparência de uma dessas obras for ditada exclusivamente pela sua função técnica, enquanto fator determinante, não poderá gozar da proteção a título de direito de autor (40).

66.      A aplicação deste critério aos direitos de autor segue a mesma linha orientadora dos desenhos e modelos e das marcas:

–      No que respeita aos desenhos e modelos (regulados tanto pela Diretiva 98/71, como pelo Regulamento n.o 6/2002) (41), quer o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, quer o artigo 7.o da Diretiva 98/71, não atribuem direitos sobre «as características da aparência de um produto que sejam determinadas exclusivamente pela sua função técnica» (42).

–      Quanto às marcas da União, o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 40/94 (43) estabelece a proibição de registar como marca qualquer sinal constituído pela forma do produto necessária para obter um resultado técnico.

67.      Em suma, os desenhos cuja configuração é determinada por razões técnicas que não deixem espaço para o exercício da liberdade criativa não podem beneficiar da proteção do direito de autor. Pelo contrário, o mero facto de um desenho mostrar alguns elementos funcionais não o priva da referida proteção a título de direito de autor.

68.      Esta regra não apresenta problemas de maior quando as referidas razões técnicas anulam, praticamente, a margem de criatividade. As dificuldades surgem, porém, quando os desenhos conjugam características funcionais e artísticas. A priori, estes desenhos mistos não deveriam ficar excluídos da proteção do direito de autor, o que acabará por acontecer quando os elementos funcionais primem sobre os artísticos, ao ponto de estes últimos se tornarem irrelevantes (44).

69.      A análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre as formas associadas aos elementos funcionais nos âmbitos da propriedade industrial e do direito de marca pode facultar algumas vias de interpretação válidas, por analogia, para os direitos de autor.

70.      Na verdade, cada um desses três âmbitos (desenhos e modelos, direito de marcas e direito de autor) tem as suas próprias características, que impedem de tratar os seus regimes jurídicos da mesma forma. Mas creio não haver inconveniente em que, com certa prudência, as reflexões feitas pelo Tribunal de Justiça para uns extrapolem para os outros, quando se trata de interpretar um critério aplicável, ainda que com matizes, a todos eles (45).

71.      Dessa jurisprudência destaca‑se, no meu entender, o Acórdão de 14 de setembro de 2010, Lego Iuris/IHMI (46), proferido pela Grande Secção, que interpretou a proibição de registar como marca um sinal constituído pela forma do produto necessária para obter um resultado técnico (47).

72.      Essa proibição, declarou o Tribunal de Justiça, «garante que as empresas não possam utilizar o direito das marcas para perpetuar, indefinidamente, direitos exclusivos sobre soluções técnicas» (48).

73.      Sustentou também que «ao limitar [o motivo de recusa estabelecido no artigo 7.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 40/94] aos sinais compostos “exclusivamente” pela forma do produto “necessária” para obter um resultado técnico, o legislador considerou devidamente que toda a forma de produto é, em certa medida, funcional e que, por conseguinte, seria inadequado recusar o registo de uma forma de produto como marca, pela simples razão de apresentar características utilitárias. Com os termos “exclusivamente” e “necessária”, a referida disposição garante que só é recusado o registo das formas de produto que se limitam a incorporar uma solução técnica e cujo registo como marca impediria, portanto, realmente, a utilização dessa solução técnica por outras empresas» (49).

74.      Fixada essa premissa, o Tribunal de Justiça prestou alguns esclarecimentos relevantes sobre «a presença de um ou de alguns elementos arbitrários menores num sinal tridimensional cujos elementos essenciais são ditados, na sua totalidade, pela solução técnica à qual esse sinal dá expressão»:

–      Por um lado, esse fator «não tem incidência na conclusão de que o referido sinal é composto exclusivamente pela forma do produto necessária para obter um resultado técnico» (50).

–      Por outro lado, «[…] não pode ser recusado o registo de tal sinal como marca, se a forma do produto em causa incorporar um elemento não funcional principal, como um elemento ornamental ou de fantasia que desempenha um papel importante nessa forma» (51).

75.      Quanto ao conceito de forma necessária para obter o resultado técnico previsto, o Tribunal de Justiça confirmou a tese do Tribunal Geral, a saber, «que esse requisito não significa que a forma em causa seja a única que permite obter esse resultado». (52) Acrescentou que «a existência de outras formas que permitam obter o mesmo resultado técnico não constitui, para a aplicação do artigo 7.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 40/94, uma circunstância que possa excluir o motivo de recusa do registo» (53).

76.      À luz destes argumentos, que julgo aplicáveis a este litígio, por analogia, pode responder‑se ao tribunal de reenvio. Este parece afirmar que a aparência da bicicleta controvertida era necessária para obter o resultado técnico (54), o que constitui uma análise de facto que compete unicamente ao tribunal de reenvio. Se com esta análise pretende afirmar a existência da relação de exclusividade entre a aparência e a funcionalidade, à qual me referi antes, a resposta à sua primeira questão deveria ser que não se pode conceder a proteção a título de direito de autor.

D.      Quanto à segunda questão prejudicial

77.      O tribunal de reenvio quer saber, em particular, a incidência que poderão ter quatro fatores específicos, que o próprio enumera, na apreciação da relação entre a conceção da forma do objeto e o alcance do resultado técnico pretendido.

1.      Existência de uma patente anterior

78.      Invertendo a ordem desses fatores, tal como vêm plasmados no despacho de reenvio, começarei por analisar de que forma pode influenciar a existência de uma patente anterior, posteriormente caducada.

79.      Dada a vigência do princípio da cumulação, esta circunstância, por si só, não deveria implicar a prevalência do direito de propriedade industrial (maxime se a sua eficácia já se extinguiu), ao ponto de impedir a proteção a título de direito de autor. As reflexões expostas sobre a proximidade entre as patentes e os modelos industriais, no que respeita a esta questão (55), advogam pela extensão daquele princípio também aos objetos protegidos por uma patente.

80.      Todavia, da perspetiva dos elementos valorativos, creio que assiste razão ao tribunal de reenvio ao salientar esta circunstância, que pode ter uma dupla incidência:

–      Por um lado, uma patente registada pode servir para esclarecer se havia condicionantes técnicas que impusessem a forma do produto. O natural será que a descrição do desenho e a sua funcionalidade na documentação de inscrição da patente (que, por definição, se destina a uma aplicação industrial) se efetue da forma mais exaustiva possível, porque disso depende o alcance da proteção.

–      Por outro lado, a escolha da patente, como instrumento para proteger a atividade de quem a regista, permite presumir que existe uma relação estreita entre a forma patenteada e o resultado proposto: a primeira é, precisamente, a que o inventor julgou eficaz para conseguir a funcionalidade prosseguida.

2.      Existência de outras formas possíveis que permitam alcançar o mesmo resultado técnico

81.      O tribunal de reenvio pergunta que incidência poderia ter a existência de outras formas que permitam alcançar o mesmo resultado técnico. Alude, em concreto, a duas perspetivas opostas, baseadas nos denominados «critério da multiplicidade de formas» e «critério da causalidade».

82.      O advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe levou a cabo, recentemente, uma análise completa destes critérios, aplicados aos desenhos e modelos, nas suas conclusões do processo DOCERAM (56). Como partilho das suas reflexões, remeto para as mesmas.

83.      O Acórdão DOCERAM que acolheu, no essencial, a opinião do advogado‑geral (o tribunal de reenvio cita tanto esse Acórdão como as conclusões do advogado‑geral) (57), pronunciou‑se a esse respeito nos seguintes termos:

–      «Para apreciar se as características da aparência de um produto são determinadas exclusivamente pela sua função técnica, há que demonstrar que esta função é o único fator que determinou essas características, não sendo a este respeito determinante a existência de desenhos ou modelos alternativos.» (58)

–      Todavia, nada impede o juiz de ter em conta a possível «existência de desenhos ou modelos alternativos que permitam realizar a mesma função técnica» (59). Este último não é, pois, um fator concludente, mas apenas um simples elemento adicional de julgamento.

84.      A leitura desse Acórdão sublinha a irrelevância das soluções alternativas para esclarecer a relação de exclusividade entre as características da aparência e a função técnica do produto. Não autoriza, porém, a excluir totalmente a incidência dessas soluções alternativas, como elemento apto para reconhecer uma margem à criação intelectual que conduza ao mesmo resultado técnico.

85.      Nos modelos em que a intersecção da arte com o desenho esteja especialmente destacada, haverá maiores possibilidades de liberdade criativa (60) para configurar a aparência do produto. Tal como a Comissão propôs no julgamento, a integração dos aspetos formais com os funcionais nas obras de artes aplicadas, deverá ser analisada com detalhe para avaliar se a aparência dessas obras não foi totalmente determinada pelas exigências técnicas. Será possível, em certos casos, separar, pelo menos idealmente, os elementos que obedecem a considerações funcionais dos que obedecem tão só a escolhas livres (originais) do seu criador, que poderiam ser protegidas a título de direito de autor (61).

86.      Compreendo que estas reflexões são bastante teóricas e talvez não ajudem demasiado o tribunal de reenvio, confrontado com a difícil tarefa de avaliar que elementos criativos poderiam ser protegidos numa bicicleta cuja funcionalidade exige a presença de rodas, corrente, quadro e guiador, seja qual for a sua forma (62).

87.      De qualquer modo, de uma perspetiva ligada à interpretação da regra, mais do que à sua aplicação a um caso concreto, o que importa é recordar que, para o Tribunal de Justiça, a resposta a esta parte da segunda questão prejudicial deduz‑se do Acórdão DOCERAM.

88.      A solução exposta a respeito dos desenhos e dos modelos pode ser extrapolada, mutatis mutandis, para avaliar o grau de originalidade das «obras» com aplicação industrial cujos criadores pretendem protegê‑las a título de direito de autor.

3.      Vontade do presumível infrator de conseguir o mesmo resultado técnico

89.      Para que o juiz verifique se há uma infração, do ponto de vista objetivo, não é, em princípio, relevante, a vontade de quem comercializa, sem estar autorizado, um objeto protegido por um direito de autor.

90.      Diferente é que a vontade de conseguir um resultado técnico possa ser aferida ao avaliar a relação entre a forma e a funcionalidade. O lógico é que quem produz um objeto a coberto de uma patente que passou para o domínio público não tenha outra finalidade a não ser a obtenção da consequência técnica esperada (63).

91.      Não obstante, face à afirmação de que a forma do modelo obedece a uma decisão puramente estética, e não funcional, nada impede que quem defenda o contrário (isto é, que usou essa forma por imposição estritamente técnica ou funcional) o demonstre (64).

92.      Ao indagar sobre a existência ou não de um direito à proteção do objeto como obra, o juiz poderá explorar a vontade originária do inventor ou do desenhador, em vez da da pessoa que reproduz o seu invento ou modelo.

93.      Para esse efeito deverá atender‑se ao momento da sua conceção inicial (65) para avaliar se o seu autor aspirava realmente a realizar uma criação intelectual própria ou se procurava antes de, maneira exclusiva, defender uma ideia aplicável à elaboração de um produto industrial original, para o seu fabrico e venda massiva no mercado. O facto de se ter feito uma aplicação industrial ou obtido um proveito comercial da invenção ou do modelo pode dar indícios dignos de atenção.

94.      Que o reconhecimento posterior do desenho seja merecedor, inclusive, da sua exposição em museus não me parece relevante desta perspetiva. Esse fator ou outros análogos, como a obtenção de prémios no contexto do desenho industrial, confirma, antes, que a sua natureza é a de um objeto industrial merecedor de elogio, ou inclusive de admiração, no seu âmbito, ou que tem uns componentes estéticos relevantes.

4.      Eficácia da forma para obter um resultado técnico

95.      O tribunal de reenvio não oferece elementos suficientes para compreender qual é o sentido exato desta parte da segunda questão prejudicial, sobre a qual não proporciona nenhuma explicação.

96.      Por isso, e porque entendo que a argumentação que antecede é suficiente para descrever a relação entre a forma do produto e a sua função ou resultado técnico, pouco mais tenho a acrescentar.

97.      Logicamente, se a forma que o desenhador do produto (neste caso, uma bicicleta) projetou não fosse idónea para alcançar a funcionalidade prosseguida, o que faltaria era o próprio pressuposto da futura aplicação industrial. Deve presumir‑se, pois, que a forma proposta é eficaz para esse fim (neste processo, para fabricar uma bicicleta que possa tanto circular como dobrar‑se).

98.      De qualquer forma, compete ao tribunal de reenvio apreciar este fator à luz das provas (em especial, das perícias) que tenham sido juntas ao processo.

E.      Consideração final

99.      Os critérios para avaliar a relação de exclusividade entre a aparência do produto e o seu resultado técnico não se esgotam, provavelmente, nos quatro até agora analisados. Mas, como defendia o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe nas suas conclusões do processo DOCERAM (66), não seria adequado fazer uma enumeração, exaustiva ou não, desses critérios em abstrato quando, na realidade, aquela avaliação (de natureza fáctica) está ligada a um conjunto de circunstâncias dificilmente reconhecíveis a priori.

100. Por último, acrescentarei que a eventual recusa da proteção a título de direitos de autor não impediria o recurso a outras normas previstas de luta contra as imitações servis ou parasitárias. Como assinalou a Comissão no julgamento, a legislação sobre concorrência desleal, embora não estando harmonizada plenamente à escala da União, (67) pode oferecer soluções para esse fenómeno indesejável (68).

101. Com esta última reflexão, como indiquei noutra altura, «não pretendo imiscuir‑me nas possibilidades que, dentro do seu direito nacional, o tribunal de reenvio possa encontrar para qualificar o comportamento objeto do litígio. Limito‑me a abrir a perspetiva a partir da qual se podem vislumbrar reações processuais face a um comportamento eventualmente ilícito, para além do âmbito próprio do direito marcário» (69).

V.      Conclusão

102. Em face do exposto, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda ao Tribunal de l’entreprise de Liège (Tribunal das Empresas de Liége, Bélgica) nos seguintes termos:

«1)      Os artigos 2.o a 5.o da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de determinados aspetos dos direitos de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, não protegem com direitos de autor as criações de produtos com aplicação industrial cuja forma esteja determinada exclusivamente pela sua função técnica.

2)      Para esclarecer se as características concretas da forma de um produto estão determinadas exclusivamente pela sua função técnica, o juiz competente deverá ter em conta todas as circunstâncias objetivas pertinentes de cada processo, incluindo a existência de uma patente ou um modelo anteriores sobre esse mesmo produto, a eficácia da forma para obter o resultado técnico e a vontade de consegui‑lo.

3)      Quando a função técnica seja o único fator determinante da aparência do produto, é irrelevante que existam formas alternativas. Pelo contrário, pode ser relevante que a forma escolhida incorpore elementos não funcionais importantes que obedeçam a uma escolha livre do seu autor.»


1      Língua original: espanhol.


2      Acórdão de 12 de setembro de 2019, Cofemel‑Sociedade de Vestuário, S.A (C‑683/17, EU:C:2019:721; a seguir, «Acórdão Cofemel»).


3      Convenção para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, assinada em Berna em 9 de setembro de 1886 (Ato de Paris de 24 de julho de 1971), emendada em 28 de setembro de 1979. A União Europeia não faz parte dessa Convenção, mas sim do Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio que constitui o anexo 1C do Acordo de Marraquexe, através do qual foi criada a Organização Mundial do Comércio, assinado em Marraquexe em 15 de abril de 1994 (a seguir, «Acordo relativo aos ADPIC»), aprovado em nome da União Europeia pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986‑1994) (JO 1994, L 336, p. 1), cujo artigo 9.o, n.o 1, obriga as partes contratantes a observar os artigos 1.o a 21.o da Convenção de Berna.


4      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).


5      Regulamento do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 2002, L 3, p. 1).


6      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa ao prazo de proteção do direito de autor e de certos direitos conexos (JO 2006, L 372, p. 12).


7      O pedido de patente foi apresentado em 3 de outubro de 1979 e a sua concessão foi publicada em 15 de abril de 1981, com o número 00 26 800 (anexo 12 das observações de SI e da Brompton Lda.).


8      Em concreto, o seu pedido de cessação referia‑se não só às bicicletas Chedech aqui controvertidas como também a qualquer outra bicicleta dobrável que contenha as seguintes características originais da bicicleta Brompton:


«(i)      Em posição desdobrada:


–      a forma do quadro principal caracterizada por um tubo curvo principal e por uma secção triangular traseira; e/ou


–      a forma do quadro traseiro caracterizada por um triângulo retângulo e fino, curvado num canto inferior e com um elemento de suspensão no canto superior; e/ou


–      a aparência do mecanismo do esticador da corrente; e/ou


–      os cabos soltos;


(ii)      Em posição de “stand by”:


–      a posição do quadro traseiro triangular dobrado por baixo do quadro principal e da roda traseira que acompanha a curva do quadro principal; e/ou


–      a aparência do esticador da corrente dobrado que retoma a conexão na corrente.


(iii)      Em posição dobrada:


–      a aparência do quadro traseiro em que a roda traseira está fixada de modo a que esta roda toque na parte inferior do tubo curvado principal; e/ou


–      a aparência da roda dianteira paralela ao quadro principal e assente no chão; e/ou


–      o guiador dobrado para baixo, para o exterior da bicicleta.


[…]»


9      Números 148 e 153 e anexo 12 (documentação da patente EP 00 26 800).


10      No julgamento, estas partes confirmaram que não pretendem prolongar a proteção do mecanismo técnico de dobragem, protegida na altura pela patente.


11      No julgamento, os recorrentes reconheceram que não requereram a proteção da aparência da bicicleta a título de modelo.


12      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos (JO 1998, L 289, p. 28).


13      Considerando dezassete e artigo 11.o do Regulamento n.o 6/2002. Na Diretiva 98/71 a proteção dos modelos não registados não estava harmonizada, ainda que o seu artigo 16.o contivesse uma remissão para os direitos nacionais.


14      Enquanto o direito de patente se centra nas invenções de produtos ou de procedimentos, o direito sobre os modelos recai sobre «a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto resultante das suas características, nomeadamente, das linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação» [artigo 3.o, alínea a), do Regulamento n.o 6/2002].


15      O artigo 7.o do Acordo relativo aos ADPIC salienta que os direitos de propriedade intelectual devem contribuir «para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimentos tecnológicos e de uma forma conducente ao bem‑estar social e económico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações».


16      O seu considerando sete indica que «o reforço da proteção da estética industrial […] [terá como efeito] incentivar à inovação e ao desenvolvimento de novos produtos e ao investimento na sua produção».


17      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação da proteção unitária de patentes (JO 2012, L 361, p. 1). Segundo o seu considerando quatro, «a proteção unitária de patentes incentivará o progresso científico e tecnológico e o funcionamento do mercado interno […]».


18      Sem essa exclusividade, poderiam diminuir os incentivos económicos para investir em investigação aplicada.


19      No julgamento, a Comissão sustentou que uma proteção excessiva do direito de autor para obras industriais teria o efeito de «devorar» o regime jurídico dos desenhos e modelos que, na realidade, perderia o sentido.


20      Recordarei que, inclusivamente, no regime instituído pelo Regulamento n.o 6/2002, que abarca os desenhos ou modelos sem registo, a sua proteção exige publicidade.


21      O considerando quatro do Regulamento n.o 1257/2012 refere‑se expressamente a um acesso «juridicamente seguro ao sistema de patentes» como desígnio da proteção unitária através de patente. A Diretiva 2001/29 alude, igualmente, à segurança jurídica na sua exposição de motivos.


22      Processo C‑683/17, EU:C:2019:363.


23      No mesmo sentido, o considerando oito da Diretiva 98/71.


24      Acórdão Cofemel, n.o 47.


25      Acórdão Cofemel, n.o 52.


26      Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Cofemel (C‑683/17, EU:C:2019:363, n.o 55: «o direito de autor ignora esta proteção contra a concorrência. Bem pelo contrário, o diálogo, a inspiração e a reformulação são inerentes à criação intelectual, e o direito de autor não se destina a criar‑lhes obstáculos. O que o direito de autor protege, em todo o caso através dos direitos patrimoniais, é a possibilidade de exploração económica sem entraves da obra enquanto tal».


27      Ibidem, n.o 52. O advogado‑geral sublinha «existe o risco de o regime do direito de autor excluir o regime sui generis destinado aos desenhos e modelos». Acrescenta que «essa exclusão teria vários efeitos negativos: a desvalorização do direito de autor, solicitado para proteger criações, de facto, banais, o entrave à concorrência em virtude da duração excessiva da proteção ou ainda a insegurança jurídica, na medida em que os concorrentes não estão em condições de prever se um desenho ou modelo cuja proteção sui generis expirou não está igualmente protegido pelo direito de autor».


28      Acórdão Cofemel, n.o 51.


29      Processo C‑683/17, EU:C:2019:363, n.os 23 a 32.


30      Acórdão Cofemel, n.os 27 e 28.


31      Acórdão Cofemel, n.o 30. A originalidade é um dos dois elementos indispensáveis para qualificar uma criação como obra. O outro é que exista «um objeto identificável com suficiente precisão e objetividade» (n.o 32).


32      O Acórdão Cofemel cita, no seu n.o 29, os Acórdãos de 16 de julho de 2009, Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465, n.os 37 e 39); e de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo (C‑310/17, EU:C:2018:899, n.os 33 e 35 a 37).


33      Acórdão Cofemel, n.o 30: «para que um objeto possa ser considerado original, é simultaneamente necessário e suficiente que reflita a personalidade do seu autor, manifestando as escolhas livres e criativas deste último [v., neste sentido, os Acórdãos de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798, n.os 88, 89 e 94); e de 7 de agosto de 2018, Renckhoff (C‑161/17, EU:C:2018:634, n.o 14)]».


34      SI e a Brompton Lda. sustentam nas suas observações que basta que a escolha da forma tenha sido determinada, pelo menos em certa medida, por um ou vários motivos diferentes dos puramente funcionais, como, por exemplo, os estéticos (n.o 67). Aludem à estética também nos n.os 3, 5, 69 e 155 dessas observações, para afirmar que foi este o seu desígnio, mais que os fundamentos técnicos. No seu entender, a forma da bicicleta Brompton não se impôs exclusivamente por razões técnicas ligadas à mecânica da dobragem, mas por razões puramente estéticas.


35      Acórdão de 16 de julho de 2009, Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465, n.o 37).


36      Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816).


37      Ibidem, n.o 49


38      Ibidem, n.o 50.


39      Acórdão de 1 de março de 2012, Football Dataco e outros (C‑604/10, EU:C:2012:115, n.o 39).


40      Os termos utilizados para descrever esta relação podem variar. As aparências ou formas «predeterminadas», «impostas», «determinadas exclusivamente» ou «condicionadas» pela sua função técnica, são aquelas em que a dita função técnica goza de uma preponderância absoluta.


41      É lógico que se aplique o mesmo critério a uns ou outros modelos, pois, segundo o considerando nove do Regulamento n.o 6/2002, «as disposições substantivas do presente regulamento sobre desenhos ou modelos deveriam ser alinhadas com as correspondentes disposições da Diretiva 98/71/CE».


42      No mesmo sentido, o considerando dez do Regulamento n.o 6/2002 enuncia que «A inovação tecnológica não pode ser entravada pela concessão da proteção de desenhos ou modelos, com características ditadas unicamente por uma função técnica».


43      Regulamento do Conselho, de 20 de dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1).


44      Acórdão de 8 de março de 2018, DOCERAM (C‑395/16,EU:C:2018:172).


45      Nas suas Conclusões do processo DOCERAM (C‑395/16, EU:C:2017:779), o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe preconizou este mesmo método no que respeita à regra aplicável aos desenhos e modelos e à proibição de registar como marcas os sinais constituídos pela forma do produto necessária para obter um resultado técnico.


46      Processo C‑48/09 P, EU:C:2010:516 (a seguir, «Acórdão Lego Iuris»).


47      Motivo de recusa do registo, estabelecido no artigo 7.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 40/94.


48      Acórdão Lego Iuris, n.o 45.


49      Ibidem, n.o 48.


50      Ibidem, n.o 52.


51      Ibidem, n.o 52.


52      Ibidem, n.o 53.


53      Ibidem, n.o 83


54      Na parte final do despacho de reenvio afirma‑se que «a solução do presente litígio depende de se determinar se fica excluída a existência de direitos de autor […] quando a aparência que se pretende proteger for necessária para alcançar um efeito técnico determinado».


55      N.o 37 dessas conclusões.


56      Conclusões de 19 de outubro de 2017, no processo C‑395/16, EU:C:2017:779.


57      Mesmo quando o Tribunal de Justiça não utilizou, por analogia, os critérios aplicáveis à proibição de registo das marcas e se limita à exegese do Regulamento n.o 6/2002, as suas considerações de fundo coincidem, na realidade, com as expostas no Acórdão Lego Iuris.


58      Acórdão DOCERAM, n.o 32 e parte dispositiva (o sublinhado é meu).


59      Ibidem, n.o 37.


60      O grau de liberdade criativa de que desfruta o autor não condiciona o alcance da proteção a título de direito de autor (n.o 35 do Acórdão Cofemel).


61      Em princípio, basta a originalidade da obra para que esta seja credora da proteção de direito de autor, sem necessidade de requisitos adicionais. A margem de apreciação dos Estados para determinar o «grau de originalidade exigido» (artigo 17.o da Diretiva 98/71) pode qualificar‑se de muito reduzido, senão inexistente, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça cujo último exemplo é o Acórdão Cofemel.


62      Os recorrentes nas suas observações escritas invocaram três Acórdãos de outros tantos tribunais (de Groningen, de 24 de maio de 2006; de Bruges, de 10 de junho de 2009; e de Madrid, de 10 de fevereiro de 2010) que reconheceram a proteção a título de direito de autor à bicicleta Brompton, rejeitando que a sua aparência estivesse exclusivamente determinada pela sua função técnica.


63      Os modelos não registados apresentam mais dificuldades, deste ponto de vista, pois não se tem em conta a descrição própria do pedido de registo


64      Neste processo, deveria provar‑se que a curvatura da barra do quadro da bicicleta permite que as rodas se dobrem de forma mais compacta, o que aumenta a resistência. Esta argumentação deduz‑se do número III, alínea A (3), parágrafo quarto, das observações da GET2GET.


65      Desta opinião são os demandantes no processo principal ao assinalar os anos 1975 e 1987 como momentos de referência (n.o 89 das suas observações). Esta opção é igualmente a do Acórdão DOCERAM, quando se refere «às circunstâncias objetivas que revelam as razões que orientaram a escolha das características da aparência do produto em causa» (n.o 37).


66      Conclusões de 19 de outubro de 2017, no processo C‑395/16, EU:C:2017:779, n.o 65: «não há que elaborar uma lista, ainda que não exaustiva, dos critérios relevantes a este respeito, dado que o legislador da União não previu o recurso a esse procedimento e porque me parece que Tribunal de Justiça não o considerou útil para efeitos da apreciação, também de ordem factual, à qual também importa proceder […]».


67      O direito da União harmonizou parcialmente o direito da concorrência desleal apenas no tocante às práticas comerciais das empresas face aos consumidores. Veja‑se a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno, que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho («Diretiva sobre as práticas comerciais desleais») (JO 2005, L 149, p. 22).


68      Abordei essa possibilidade nas conclusões do processo Mitsubishi Shoji Kaisha (C‑129/17, EU:C:2018:292), n.os 90 a 95. O Tribunal de Justiça referiu‑se também a ela, a modo de obiter dictum, no n.o 61 do Acórdão Lego Iuris: «a situação de uma empresa que desenvolveu uma solução técnica relativamente aos concorrentes que comercializam cópias servis da forma do produto, que incorpora exatamente a mesma solução, não pode ser protegida atribuindo um monopólio à referida empresa através do registo como marca do sinal tridimensional composto pela referida forma, mas pode, eventualmente, ser examinada à luz das regras em matéria de concorrência desleal. No entanto, esse exame, não é objeto do presente litígio».


69      Conclusões do processo Mitsubishi Shoji Kaisha (C‑129/17, EU:C:2018:292, n.o 95).