Language of document : ECLI:EU:C:2018:945

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

EVGENI TANCHEV

apresentadas em 22 de novembro de 2018(1)

Processo C501/17

Germanwings GmbH

contra

Wolfgang Pauels

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Köln (Tribunal Regional, Colónia, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Indemnização de passageiros em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos — Direito a indemnização — Exoneração — Conceito de “circunstâncias extraordinárias” — Danos causados por objetos estranhos — Dano causado a um pneu de uma aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem»






1.        No presente pedido de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça terá literalmente de «desmontar» o conceito de «circunstâncias extraordinárias» no contexto da indemnização de passageiros em caso de recusa de embarque, cancelamento ou atraso considerável de voos. Isto porque, neste caso, o dano num pneu de uma aeronave foi causado por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem do voo em questão (a seguir «ocorrência em causa»).

2.        O reenvio visa obter a interpretação do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 (2), e foi apresentado pelo Landgericht Köln (Tribunal Regional, Colónia, Alemanha) no âmbito de um litígio entre Wolfgang Pauels e a Germanwings GmbH, uma transportadora aérea, relativo à recusa desta última de indemnizar este passageiro, cujo voo sofreu um atraso considerável.

3.        Os desafios económicos subjacentes são consideráveis. Segundo as estatísticas que a Autoridade para a Aviação Civil do Reino Unido forneceu à Comissão Europeia, a alegação de circunstâncias extraordinárias verifica‑se em «cerca de 30% de todas as queixas» e consome «mais de 70% dos recursos das autoridades nacionais» (3). Nunca será demais, por conseguinte, insistir na importância do conceito de «circunstâncias extraordinárias» (4).

I.      Quadro jurídico

4.        Os considerandos 1, 4, 14 e 15 do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos têm a seguinte redação:

«(1)      A ação da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de proteção dos consumidores em geral.

[…]

(4)      Por conseguinte, a Comunidade deverá elevar os níveis de proteção estabelecidos naquele regulamento, quer para reforçar os direitos dos passageiros, quer para garantir que as transportadoras aéreas operem em condições harmonizadas num mercado liberalizado.

[…]

(14)      Tal como ao abrigo da Convenção de Montreal, as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)      Considerar‑se‑á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

5.        Sob a epígrafe «Cancelamento», o artigo 5.o, n.os 1 e 3, deste regulamento dispõe o seguinte:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

[…]

(c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.o, salvo se:

(i)      tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou

ii)      tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou

iii)      tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.

[…]

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.»

6.        Sob a epígrafe «Direito a indemnização», o artigo 7.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos dispõe:

«1.      Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)      250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;

[…]»

7.        O artigo 13.o deste regulamento, sob a epígrafe «Direito de recurso» tem a seguinte redação:

«Se a transportadora aérea operadora tiver pago uma indemnização ou tiver cumprido outras obrigações que por força do presente regulamento lhe incumbam, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o seu direito de exigir indemnização, incluindo a terceiros, nos termos do direito aplicável. Em especial, o presente regulamento em nada limita o direito de uma transportadora aérea operante de pedir o seu ressarcimento a um operador turístico, ou qualquer outra pessoa, com quem tenha contrato. Do mesmo modo, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o direito de um operador turístico ou de um terceiro, que não seja um passageiro, com quem uma transportadora aérea operadora tenha um contrato, de pedir o seu ressarcimento ou uma indemnização à transportadora aérea operadora nos termos do direito relevante aplicável.»

II.    Factos na origem do litígio no processo principal e questão prejudicial

8.        W. Pauels reservou um voo com a Germanwings para 28 de agosto de 2015, de Dublim para Düsseldorf. O voo estava previsto chegar a Düsseldorf às 14 h 30 m, hora local.

9.        Na realidade, o voo chegou a Düsseldorf às 17 h 48 m, hora local, ou seja, com mais de três horas de atraso.

10.      A Germanwings contesta o pedido de indemnização de W. Pauels alegando que, durante os preparativos para a descolagem do voo em questão, foi detetado um parafuso num pneu da aeronave utilizada para o voo. O parafuso tinha penetrado no pneu na pista de descolagem em Düsseldorf, ou na pista de aterragem utilizada no voo anterior para Dublim. Por esse motivo, foi necessário substituir o pneu, o que conduziu ao atraso.

11.      A Germanwings considera que o facto danoso constitui uma circunstância extraordinária na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos, o que a exonera de qualquer responsabilidade. Por conseguinte, não é obrigada a pagar uma indemnização.

12.      O Amtsgericht Köln (Tribunal de Primeira Instância, Colónia, Alemanha) condenou a Germanwings, em conformidade com o pedido, a pagar a W. Pauels 250 euros, acrescidos de juros sobre esse montante desde 16 de setembro de 2015 e até ao pagamento, à taxa de base acrescida de cinco pontos percentuais.

13.      Este tribunal aceitou a alegação da Germanwings, contestada por W. Pauels, relativamente à causa do atraso considerável à chegada a Düsseldorf, e, a esse respeito, declarou, em substância, que a Germanwings não ficava exonerada, por esse motivo, da sua obrigação de pagar uma indemnização, dado que o dano numa aeronave causado por um parafuso que se encontre na pista de descolagem ou de aterragem é uma circunstância que pode ocorrer durante operações aéreas normais e pode ser controlado. Esta posição corresponde igualmente à perspetiva do legislador alemão, como é demonstrado pela regulamentação sobre a inspeção das pistas. A gestão das operações de transporte aéreo abrange não só as operações de voo da empresa em questão, em sentido estrito, como a descolagem, o voo e a aterragem, como também todos os serviços aeroportuários prestados por terceiros e utilizados pela companhia aérea, sem os quais não seria possível a realização normal dos voos. Segundo o Amtsgericht Köln (Tribunal de Primeira Instância, Colónia, Alemanha), o Tribunal de Justiça esclareceu este aspeto no seu Despacho de 14 de novembro de 2014, Siewert (C‑394/14, EU:C:2014:2377).

14.      A Germanwings interpôs recurso da decisão do Amtsgericht. Alega que o tribunal inferior sobrevalorizou o âmbito do controlo da Germanwings e não tomou em consideração o facto de o Tribunal de Justiça não ter declarado que todos os serviços prestados por terceiros e utilizados pela transportadora aérea integram as suas operações de voo.

15.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o processo Siewert suprarreferido respeitava a danos causados a uma aeronave por escadas móveis de embarque que são colocadas junto da aeronave para permitir que os passageiros embarquem, ou seja, ao recurso a um prestador de serviços relativamente a um determinado voo realizado pela transportadora aérea. Permitir o embarque dos passageiros a bordo do voo que reservaram é uma das tarefas que incumbe à transportadora. Nesta medida, os factos do caso em apreço, pela sua própria natureza, não são comparáveis. No caso em apreço, a aeronave foi danificada acidentalmente devido à utilização da pista de descolagem e de aterragem, que é utilizada da mesma forma por todas as transportadoras aéreas. Por conseguinte, esta utilização é imputável ao tráfego aéreo geral e não pode ser considerada uma das tarefas específicas da transportadora aérea. Sustenta igualmente que a limpeza das pistas de descolagem e de aterragem também não faz parte das tarefas da transportadora aérea, pelo que não é uma questão passível de controlo por parte da Germanwings. A limpeza das pistas não respeita especificamente a um determinado voo operado por uma transportadora aérea nem ao embarque ou desembarque em segurança dos passageiros de um voo que tenham reservado, respeitando antes à segurança dos aeroportos e, portanto, à segurança do tráfego aéreo em geral.

16.      A Germanwings alega, além disso, que não partilha da posição do tribunal de primeira instância porque, segundo essa posição, seria impossível que uma circunstância impeditiva da realização de um voo programado constituísse uma circunstância «não inerente ao exercício normal da atividade de uma transportadora aérea». Por conseguinte, o requisito fundamental para reconhecer a existência de uma circunstância extraordinária em caso de avaria técnica, ou seja, que se trata de uma ocorrência «não inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa», tornar‑se‑ia supérfluo.

17.      Nestas circunstâncias, o Landgericht Köln (Tribunal Regional, Colónia) considera que a decisão do recurso depende da questão de saber se o dano causado ao pneu de uma aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de aterragem ou de descolagem constitui uma circunstância extraordinária na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos. Consequentemente, decidiu submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O dano causado ao pneu de um avião por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem (corpo estranho/«foreign object damage») constitui uma circunstância extraordinária na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento [dos Direitos dos Passageiros Aéreos]?»

III. Tramitação processual no Tribunal de Justiça

18.      Foram apresentadas observações escritas por W. Pauels, pelos Governos alemão e polaco, bem como pela Comissão. A Germanwings e todas as partes acima referidas (com exceção do Governo polaco) apresentaram alegações orais na audiência realizada em 17 de setembro de 2018.

IV.    Análise

A.      Síntese das observações das partes

19.      Em primeiro lugar, quanto à admissibilidade, a Comissão alega que o presente pedido de decisão prejudicial suscita potencialmente dúvidas a este respeito. No que toca ao conteúdo do pedido de decisão prejudicial, a Comissão sustenta que o pedido se refere a alegações das partes que o órgão jurisdicional de reenvio presumiu serem corretas, e não a factos provados. A Comissão considera que, no caso de medidas de instrução subsequentes virem a colocar em questão os factos que o órgão jurisdicional de reenvio presumiu serem corretos, o pedido de decisão prejudicial pode deixar de ser pertinente. Em qualquer caso, a Comissão conclui que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

20.      Quanto ao mérito, W. Pauels alega que o dano causado ao pneu da aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem não constitui uma circunstância extraordinária. Alega que uma ocorrência como esta é inerente à atividade de uma transportadora aérea. A presença de objetos estranhos na pista é uma situação que pode surgir diariamente, as transportadoras aéreas estão bem cientes deste problema e a limpeza da pista é uma das tarefas habituais dos operadores aeroportuários. Acrescenta que os pneus das aeronaves, que estão sujeitos a uma pressão extrema, são regularmente inspecionados no contexto das inspeções pré‑voo e precisam de ser substituídos regularmente. Assim, uma ocorrência como a que está ora em questão não pode ser considerada não inerente à atividade da transportadora aérea, sobretudo porque o conceito de «circunstâncias extraordinárias» deve ser interpretado estritamente.

21.      Caso se considere que tal ocorrência não é, contudo, inerente à atividade da transportadora aérea, deve ser considerada efetivamente controlável, em razão da sua natureza ou origem, dado que as pistas são submetidas a inspeções regulares por parte dos operadores aeroportuários.

22.      Os Governos alemão e polaco, bem como a Comissão, sustentam que o dano causado ao pneu da aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem constitui uma «circunstância extraordinária».

23.      Na opinião do Governo alemão, o risco associado à presença de objetos estranhos nas pistas é inevitável para uma transportadora aérea e não é por ela controlável. A presença de objetos estranhos tem uma causa que é alheia à transportadora aérea, sem qualquer relação com a realização do voo em causa — ao contrário dos defeitos prematuros de algumas peças de uma aeronave que surgem apesar da manutenção regular, que estavam em causa nos processos Wallentin‑Hermann (5) e van der Lans (6). O facto de as transportadoras aéreas poderem estar expostas mais regularmente a uma situação em que um pneu é danificado por um objeto estranho na pista não exclui a sua qualificação como circunstância extraordinária, dado que a frequência das ocorrências não foi tomada em conta como critério de distinção (7). O Governo alemão insiste, além disso, na inexistência de um comportamento faltoso por parte do operador aeroportuário que possa ser imputado à transportadora aérea em questão. Neste caso, o operador não deixou de cumprir as suas obrigações de manutenção e de operação. A imposição de controlos mais rigorosos do que os que já são aplicáveis teria um efeito adverso no tráfego aéreo.

24.      O Governo polaco sustenta que danos como os que ora estão em questão, causados por um terceiro que não tenha cumprido as suas obrigações, não se inserem nas atividades normais de uma transportadora aérea. Uma vez que não pode prever que o operador aeroportuário não cumprirá as suas obrigações, a transportadora aérea não é obrigada a tomar em conta o risco de a sua aeronave poder ser danificada por esse facto. Neste contexto, a transportadora aérea pode apenas ser responsabilizada pela rápida reparação da aeronave danificada.

25.      Segundo a Comissão, a ocorrência em causa não é inerente ao exercício normal da atividade de uma transportadora aérea e não é por ela controlável. A este respeito, não está intrinsecamente relacionada com o funcionamento do sistema de uma aeronave — ao contrário, designadamente, das escadas móveis de embarque. Neste sentido, é comparável a uma colisão com aves, que também não é controlável pela transportadora aérea. Esta inexistência de controlo por parte da transportadora aérea é confirmada pelo facto de a segurança e a inspeção das pistas ser da responsabilidade dos operadores aeroportuários. Por fim, o facto de o incidente ter ocorrido durante a aterragem ou descolagem do voo anterior não impede a sua qualificação como «circunstância extraordinária» (8).

B.      Apreciação

1.      Observações preliminares

26.      Na minha opinião, a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial não é uma questão em aberto neste processo, na medida em que só foi suscitada pela Comissão (9) — a título de observações meramente teóricas — e a própria Comissão conclui que o reenvio não é, em qualquer caso, inadmissível. Em primeiro lugar, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, as questões relativas à interpretação do direito da União gozam de uma presunção de pertinência (10). Em segundo lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o direito da União não proíbe o órgão jurisdicional de reenvio de, após a prolação do acórdão proferido a título prejudicial, ouvir novamente as partes e/ou tomar novas medidas de instrução que o podem levar a alterar as constatações factuais e jurídicas que fez no quadro do pedido de decisão prejudicial, desde que o órgão jurisdicional de reenvio dê um efeito pleno à interpretação do direito da União dada pelo Tribunal de Justiça (11).

27.      Quanto ao mérito, o órgão jurisdicional de reenvio considera, no seu despacho, que, no caso em apreço, se verifica uma circunstância extraordinária. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio já declarou, em vários processos anteriores ao presente litígio, que os danos num pneu ou outras avarias técnicas de uma aeronave causados por pequenos objetos que se encontrem na pista, como pregos ou objetos semelhantes, constituem circunstâncias extraordinárias que exoneram a companhia aérea da obrigação de indemnizar os seus passageiros.

28.      Cheguei à conclusão de que esta abordagem é correta (12). Na análise que se segue, abordarei, em particular, a jurisprudência do Tribunal de Justiça e o conceito de circunstâncias extraordinárias no contexto de problemas técnicos. Seguidamente, aplicarei o duplo critério do Tribunal de Justiça: i) o problema deve ser imputável a uma ocorrência que não seja inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa; e ii), devido à sua natureza ou à sua origem, escapa ao controlo da transportadora aérea. Por último, abordarei o requisito adicional das medidas razoáveis para evitar/prevenir a(s) circunstância(s) extraordinária(s). Concluirei que o dano causado a um pneu de uma aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem se subsome ao conceito de «circunstâncias extraordinárias» na aceção daquela disposição.

29.      Acrescento que é particularmente necessário que o Tribunal de Justiça esclareça esta questão, na medida em que na Alemanha (bem como noutros Estados‑Membros (13)) a jurisprudência nacional não trata de modo uniforme a questão de saber se uma ocorrência como a que ora está em causa deve ou não constituir uma «circunstância extraordinária» na aceção daquela disposição.

30.      Na Alemanha, por exemplo, vários tribunais de primeira instância e até uma decisão de outra secção do órgão jurisdicional de reenvio (14) (na sequência da decisão do Tribunal de Justiça sobre as escadas móveis no processo Siewert (15)) seguiram a posição oposta e declararam que, num caso como o ora em apreço, não se verifica uma «circunstância extraordinária».

31.      Consequentemente, o esclarecimento desta questão tem manifesta importância prática e contribuirá também para a melhoria da segurança jurídica tanto dos passageiros como das transportadoras aéreas.

32.      O Tribunal de Justiça teve já várias oportunidades de interpretar o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos. Passo a expor, resumidamente, esses processos.

33.      No Acórdão Pešková e Peška (16), que é particularmente relevante para o caso em apreço, o Tribunal de Justiça declarou que uma colisão entre uma aeronave e uma ave, bem como os danos dela resultantes, não estão intrinsecamente associados ao sistema de funcionamento da aeronave e não são, pela sua natureza ou origem, inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea, escapando ao seu controlo efetivo, pelo que tal colisão constitui uma circunstância extraordinária.

34.      No Acórdão McDonagh (17), o Tribunal de Justiça incluiu igualmente nesse conceito o encerramento do espaço aéreo devido à erupção do vulcão Eyjafjallajökull na Islândia.

35.      Pelo contrário, no Acórdão van der Lans (18), o Tribunal de Justiça declarou que um problema técnico que ocorreu inesperadamente, que não é imputável a uma manutenção defeituosa e que também não foi detetado durante controlos regulares, não é abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3.

36.      Nos Acórdãos Wallentin‑Hermann (19) e Sturgeon e o. (20), o Tribunal de Justiça declarou que um problema técnico que afete uma aeronave não é abrangido por esse conceito, salvo no caso de se dever a ocorrências que, pela sua natureza ou origem, não sejam inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea e que escapem ao seu controlo efetivo.

37.      No Despacho Siewert (21), o Tribunal de Justiça declarou que a situação em que uma escada móvel de embarque de um aeroporto colide com uma aeronave não deve ser qualificada como «circunstância extraordinária». Voltarei adiante a este processo.

2.      Conceito de circunstâncias extraordinárias no contexto de problemas técnicos

38.      Em primeiro lugar, importa observar que este conceito não é definido nem claramente estabelecido no Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos.

39.      Consequentemente, o Tribunal de Justiça estabeleceu um princípio de regra e exceção: por regra, as avarias técnicas são abrangidas pelo risco operacional da transportadora aérea, dado que fazem parte do exercício normal da sua atividade, e só excecionalmente podem constituir uma circunstância extraordinária (em princípio, quando não sejam inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea e escapem ao seu controlo).

40.      O Tribunal de Justiça recordou recentemente no Acórdão Pešková e Peška (22) que o legislador da União estabeleceu as obrigações das transportadoras aéreas de indemnização dos passageiros em caso de cancelamento ou de atraso considerável de voos — ou seja, um atraso igual ou superior a três horas — no artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos. Em derrogação do artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, os considerandos 14 e 15 e o artigo 5.o, n.o 3, dispõem que a transportadora aérea deve ser exonerada da sua obrigação de pagamento de indemnizações aos passageiros nos termos do artigo 7.o do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos se puder provar que o cancelamento ou o atraso foi causado por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. O artigo 5.o, n.o 3, deve, portanto, ser objeto de interpretação estrita (23).

41.      O Tribunal de Justiça declarou que «não se pode excluir que problemas técnicos constituam essas circunstâncias extraordinárias, desde que decorram de eventos não inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e que escapem ao controlo efetivo desta última. É o que sucede, por exemplo, na situação em que o construtor dos aparelhos da frota da transportadora aérea em causa ou uma autoridade competente revela, quando esses aparelhos já estão ao serviço, que os mesmos têm um defeito de fabrico oculto que afeta a segurança dos voos. O mesmo vale para os danos causados às aeronaves por atos de sabotagem ou de terrorismo» (24).

42.      A ocorrência (e o dano) ora em questão insere‑se na categoria dos problemas técnicos e, consequentemente, das «falhas inesperadas para a segurança» referidas no considerando 14 do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos.

43.      Por conseguinte, não se trata aqui manifestamente de um defeito de fabrico oculto que afete a segurança do voo, que é um dos exemplos de um problema técnico que o Tribunal de Justiça considerou poder constituir uma «circunstância extraordinária» (Acórdãos Wallentin‑Hermann e van der Lans (25)).

44.      Contudo, partilho da posição da Comissão segundo a qual a jurisprudência acima referida deve ser interpretada no sentido de que o Tribunal de Justiça, ao dar o exemplo de um defeito de fabrico oculto, pretendia simplesmente esclarecer que os defeitos técnicos resultantes de ocorrências que escapem ao controlo da transportadora aérea em causa devem ser considerados circunstâncias extraordinárias.

45.      Com efeito, como o Governo alemão salientou, o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão McDonagh (26) que, «[s]egundo a linguagem corrente, os termos “circunstâncias extraordinárias” visam literalmente circunstâncias “fora do ordinário”. No contexto do transporte aéreo, designam um evento que não seja inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e que, devido à sua natureza ou à sua origem, escape ao controlo efetivo desta última […]. Por outras palavras, […] estão em causa todas as circunstâncias que escapam ao controlo da transportadora aérea, quaisquer que sejam a natureza e a gravidade dessas circunstâncias».

46.      Além disso, esta posição é também corroborada pelos trabalhos preparatórios do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos. No decurso desses trabalhos, a expressão «força maior» foi substituída por «circunstâncias extraordinárias». Segundo a declaração do Conselho na Posição Comum, esta alteração foi feita no interesse da clareza jurídica (27).

47.      Resulta do exposto que o Tribunal de Justiça não pretendia restringir a expressão «circunstâncias extraordinárias» de modo a só incluir os defeitos técnicos quando a sua origem fosse semelhante a um defeito de fabrico oculto.

48.      A jurisprudência do Tribunal de Justiça até à data sobre problemas técnicos como circunstâncias extraordinárias para efeitos do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos estabeleceu um duplo critério: i) o problema deve ser imputável a uma ocorrência — como as indicadas no considerando 14 deste regulamento — que não seja inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa (primeira vertente); e ii), devido à sua natureza ou à sua origem, escapa ao controlo da transportadora aérea (segunda vertente). Importa salientar que estas duas vertentes (requisitos) devem ser apreciadas caso a caso e são cumulativas (28). Passo a examiná‑las sucessivamente.

a)      Inerência

49.      Em relação à primeira vertente referida no número anterior (inerência), importa ter em conta que o Tribunal de Justiça adotou uma abordagem restritiva quanto à possibilidade de defesa em caso de problemas técnicos na sua linha de jurisprudência decorrente do Acórdão Wallentin‑Hermann (29).

50.      Todas as partes (com exceção de W. Pauels) sustentam que a ocorrência em causa (ou seja, o dano causado ao pneu da aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou aterragem) não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa.

51.      O Tribunal de Justiça declarou no Acórdão Pešková e Peška (30) que «uma avaria provocada pela falha prematura de algumas peças de uma aeronave não constitui uma circunstância extraordinária, visto que essa avaria permanece intrinsecamente associada ao sistema de funcionamento do aparelho. Este evento imprevisível não escapa, com efeito, ao controlo efetivo da transportadora aérea, uma vez que incumbe a esta última assegurar a manutenção e o bom funcionamento das aeronaves que explora para as suas atividades económicas».

52.      Contudo, declarou no número seguinte (24) desse acórdão que «uma colisão entre uma aeronave e uma ave, bem como o eventual dano provocado por essa colisão, uma vez que não estão intrinsecamente ligados ao sistema de funcionamento do aparelho, não são, pela sua natureza ou pela sua origem, inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e escapam ao seu controlo efetivo. Portanto, a referida colisão deve ser qualificada de “circunstância extraordinária” na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento [dos Direitos dos Passageiros Aéreos]».

53.      Na minha opinião, os factos na origem desse acórdão e os do processo em apreço são comparáveis. Com efeito, embora a ocorrência em causa seja comparável a uma colisão com aves (Pešková e Peška (31)), insisto que não é comparável às escadas móveis de embarque que colidem com uma aeronave (Siewert (32)).

54.      O que era determinante para o Tribunal de Justiça no processo Siewert era o facto de as escadas serem indispensáveis para o transporte aéreo de passageiros, aí residindo a diferença decisiva entre esse processo e o dano causado num pneu por um objeto estranho que se encontrava na pista, ora em causa.

55.      Ao contrário das escadas móveis de embarque, que são deliberadamente utilizadas pelas transportadoras aéreas para embarcar e desembarcar passageiros, um parafuso encontrava‑se na pista sem que a transportadora aérea disse tivesse conhecimento e independentemente da sua vontade ou contra a sua vontade.

56.      Como a Comissão salientou, tais objetos podem causar danos, mas não se inserem no âmbito do exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa.

57.      É certo que a utilização de uma pista faz incontestavelmente parte do exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa, como W. Pauels reiterou em várias ocasiões. Contudo, tal não é, por si só, determinante. Com efeito, a utilização do espaço aéreo também faz incontestavelmente parte do exercício normal da atividade de uma transportadora e, todavia, o Tribunal de Justiça declarou que uma colisão com uma ave constituía uma circunstância extraordinária: não está intrinsecamente associada ao sistema de funcionamento da aeronave.

58.      Daqui resulta que os parafusos que se encontrem nas pistas também não estão intrinsecamente associados ao sistema de funcionamento da aeronave. Pelo contrário, deve ser evitada, na medida do possível, a presença de parafusos e de outros objetos estranhos na pista, dado que representam um risco de segurança considerável e as aeronaves não devem entrar em contacto com tais objetos.

59.      Seguidamente, W. Pauels alegou, em substância, que a ocorrência em causa é um problema frequente e comum e que, por conseguinte, não podia constituir uma circunstância extraordinária.

60.      Decorre do despacho de reenvio que uma situação em que um pneu de uma aeronave é danificado durante a descolagem ou a aterragem por um parafuso ou um objeto estranho semelhante que tenha caído na pista não é, ao que parece, uma ocorrência extremamente rara. Tal não significa, na minha opinião, que a frequência da ocorrência deva constituir um critério limitativo ou distintivo.

61.      O advogado‑geral Y. Bot defendeu um argumento semelhante no processo Pešková e Peška (33). Sustentou que tais ocorrências (colisões com aves) não podiam constituir circunstâncias extraordinárias, dado que a colisão de aeronaves com aves era uma ocorrência frequente e um fenómeno conhecido dos diferentes agentes económicos que operam nos transportes aéreos. Contudo, o Tribunal de Justiça não seguiu este raciocínio e concluiu que, apesar desses argumentos, uma colisão com uma ave constituía uma circunstância extraordinária.

62.      Resulta do que precede que a ocorrência em causa não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em questão.

b)      Controlo

63.      Seguidamente, no que respeita à segunda vertente do critério (controlo), considero que, no caso em apreço, a transportadora aérea cuja aeronave sofra danos num dos pneus causados por um objeto estranho numa pista se encontra perante uma ocorrência que escapa ao seu controlo efetivo.

64.      Tal deve‑se ao facto de a manutenção e a limpeza das pistas não ser da responsabilidade da transportadora aérea, mas do operador aeroportuário.

65.      Como o órgão jurisdicional de reenvio já declarou, com razão, na sua decisão de 19 de janeiro de 2016 (34), no considerando 14, que se refere ao artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos, o legislador da União limitou‑se a dar exemplos de circunstâncias extraordinárias, mas os exemplos enumerados demonstram que se trata de fatores alheios à responsabilidade organizacional e técnica da transportadora, sobre os quais esta não pode influir e que, consequentemente, não podem ser evitados. Tais fatores são igualmente alheios ao chamado risco operacional a que a aeronave está exposta. Uma vez que a segurança e o controlo são obrigações que incumbem ao respetivo operador aeroportuário, e que as pistas são por ele regularmente inspecionadas para detetar a presença de objetos estranhos, as próprias transportadoras aéreas não têm influência sobre a realização e o número dos controlos, nem lhes é permitido que procedam elas próprias aos mesmos (nem têm, de resto, meios para o fazer).

66.      Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a presença de objetos estranhos nas pistas constitui um risco não controlável por parte das transportadoras aéreas e, ao contrário da avaria prematura de determinadas peças de uma aeronave apesar de uma manutenção regular, constitui uma ocorrência superveniente externa (35).

67.      Em qualquer caso, concordo com o órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que os objetos estranhos que se encontrem nas pistas que podem causar danos às aeronaves devem ser qualificados como circunstâncias extraordinárias, na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos.

68.      Como o Governo polaco salientou, a inspeção do estado da pista é da responsabilidade do operador aeroportuário e não da transportadora aérea. Consequentemente, o dano causado a uma parte de uma aeronave por um objeto estranho pode, quando muito, resultar do incumprimento das obrigações do operador aeroportuário.

69.      Com efeito, esta responsabilidade do operador aeroportuário decorre, designadamente, do Regulamento (UE) n.o 139/2014 da Comissão (36) bem como da legislação nacional aplicável.

70.      O anexo IV deste regulamento, «Subparte C — Manutenção do aeródromo (ADR.OPS.C)», dispõe, sob a epígrafe «ADR.OPS.C.010 Pavimentos, outras superfícies do solo e drenagem» que «a) O operador do aeródromo deve inspecionar as superfícies de todas as áreas de movimento, incluindo os pavimentos (pistas, caminhos de circulação e placas de estacionamento), as áreas adjacentes e a drenagem, de forma a avaliar regularmente a sua condição como parte de um programa de manutenção preventiva e corretiva do aeródromo» e «b) O operador do aeródromo deve [designadamente]: 1) efetuar a manutenção das superfícies de todas as áreas de movimento com o objetivo de evitar e eliminar objetos soltos/detritos passíveis de danificar a aeronave ou afetar a operação dos seus sistemas; 2) efetuar a manutenção da superfície das pistas, caminhos de circulação e placas de estacionamento, a fim de impedir a formação de irregularidades perigosas».

71.      Considero, à semelhança do órgão jurisdicional de reenvio, que, uma vez que os parafusos, pregos ou outros objetos de pequenas dimensões, enquanto objetos estranhos que se encontrem na pista, não se destinam à realização de voos, constituem um risco para a segurança. O facto de caírem na pista é uma ocorrência que se verifica aleatoriamente e que a transportadora aérea não pode, simplesmente, prever e que escapa ao seu controlo no âmbito da esfera operacional da empresa. Tal como as medidas destinadas a afastar aves, que visam evitar as colisões com aves, as medidas destinadas a manter a pista livre de objetos estranhos não respeitam a um voo específico de uma transportadora aérea nem ao embarque ou desembarque em segurança dos passageiros do voo reservado, respeitando, pelo contrário, à segurança dos aeroportos e do tráfego aéreo em geral. Assim, não se inserem, em princípio, na esfera de responsabilidade de cada transportadora aérea, mas são, em casos específicos, responsabilidade do operador aeroportuário, o qual deve apreciar a adequação das medidas a tomar e deve escolher os meios adequados e eficazes para corrigir a situação (37).

72.      W. Pauels alega que os pneus das aeronaves estão sujeitos a um enorme stress na descolagem e na aterragem, são regularmente inspecionados no contexto das inspeções pré‑voo e precisam de ser substituídos regularmente pela transportadora aérea (38), pelo que tal deve impedir a classificação da ocorrência em causa como circunstância extraordinária.

73.      Contudo, na minha opinião, não resulta deste argumento que a ocorrência em causa deva ser considerada inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em questão e/ou seja por esta controlável.

74.      À semelhança do que o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão Pešková e Peška (39) relativamente a uma colisão com aves, a presença de um parafuso na pista que cause danos à aeronave é alheia à atividade da transportadora aérea, porque nada tem a ver com a pressão extrema e as exigências relacionadas com a descolagem e a aterragem das aeronaves. A ocorrência em causa não pode ser evitada através da substituição dos pneus quando estes atingem o limite do desgaste; com efeito, até um pneu novo pode ser danificado por um parafuso que se encontre na pista.

75.      Por conseguinte, contrariamente aos argumentos apresentados por W. Pauels nas suas observações escritas, o presente processo não pode ser comparado ao processo Siewert (40).

76.      Talvez seja útil assinalar a abordagem do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha) quanto ao que se insere no âmbito do exercício normal da atividade de uma transportadora aérea (num acórdão relativo a uma colisão com aves) (41). Segundo o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal), uma medida destinada a assegurar o funcionamento dos transportes aéreos em geral não se insere em tal âmbito. Trata‑se, portanto, de uma medida de segurança do tráfego aéreo e não de uma medida da transportadora aérea em causa. Assim, segundo o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal), as medidas que respeitam à manutenção ou à atividade de uma determinada aeronave inserem‑se no âmbito da atividade da transportadora aérea em causa (por exemplo, também o transporte de passageiros), mas as medidas que não respeitam à operação de uma aeronave específica são medidas suscetíveis de constituir uma circunstância extraordinária, porquanto não se inserem no âmbito da atividade da transportadora aérea em causa.

77.      Por conseguinte, no caso em apreço, as medidas que poderiam ter sido tomadas para evitar os danos causados no pneu, em litígio no processo principal, escapavam ao controlo da transportadora aérea. Além disso, as medidas que poderiam ter sido tomadas pelo operador aeroportuário não respeitam à realização de um voo específico, mas à garantia geral de assegurar o fluxo do tráfego aéreo no aeroporto em causa. As pistas não são mantidas para um voo específico. São mantidas para assegurar o bom funcionamento do tráfego aéreo em geral.

78.      Por fim, considero (tal como a Comissão) que a qualificação como «circunstância extraordinária» no processo em apreço se justifica igualmente pelo objetivo de assegurar um elevado nível de proteção dos passageiros aéreos prosseguido pelo Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos, pelo que as transportadoras aéreas não devem ser incitadas a não tomarem as medidas exigidas por danos causados por objetos estranhos, fazendo prevalecer a manutenção e a pontualidade dos seus voos sobre o objetivo da segurança (42).

79.      Resulta do que precede que a ocorrência em causa satisfaz o critério do controlo e é uma ocorrência que escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea.

3.      Medidas razoáveis para evitar circunstâncias extraordinárias

80.      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (43), «dado que nem todas as circunstâncias extraordinárias [são] exoneratórias, incumbe a quem pretende invocá‑las provar, além disso, que, em todo o caso, não poderiam ter sido evitadas através de medidas adaptadas à situação, isto é, através de medidas que, no momento em que ocorreram essas circunstâncias extraordinárias, respondiam nomeadamente às condições técnica e economicamente suportáveis para a transportadora aérea em causa. Com efeito, […] esta deve provar que, mesmo que tivesse lançado mão de todos os recursos humanos, materiais e financeiros de que dispunha, não poderia, manifestamente, ter evitado que as circunstâncias extraordinárias com que se deparou levassem ao cancelamento do voo, a não ser à custa de sacrifícios insuportáveis face às capacidades da sua empresa no momento pertinente» (o sublinhado é meu).

81.      É certo que a questão prejudicial não se refere expressamente ao requisito adicional das medidas razoáveis para evitar/prevenir a(s) circunstância(s) extraordinária(s).

82.      Contudo, uma vez que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se, nas circunstâncias do caso em apreço, se pode considerar que a transportadora aérea tomou todas as medidas adequadas à situação, considero que, para fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta apropriada para efeitos da aplicação do direito da União ao litígio que lhe foi submetido, será útil abordar igualmente este requisito (44).

83.      Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que «[o] facto de um órgão jurisdicional nacional ter, num plano formal, formulado uma questão prejudicial referindo‑se a certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis à decisão do processo que lhe foi submetido, quer aquele tenha ou não feito referência a tais elementos no enunciado das suas questões. A este respeito, compete ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, e, nomeadamente, da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que necessitam de interpretação, tendo em conta o objeto do litígio» (45).

84.      Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, o conceito de medidas razoáveis é individualizado e flexível (46), e «só devem ser tidas em consideração as medidas que podem efetivamente incumbir [à transportadora aérea], excetuando as que são da competência de terceiros, como, designadamente, os gestores aeroportuários ou os controladores aéreos competentes» (47).

85.      O órgão jurisdicional nacional deve, portanto, «apreciar se, nos planos nomeadamente técnico e administrativo, a transportadora aérea em causa estava […] efetivamente em condições de adotar, direta ou indiretamente, medidas preventivas que permitissem reduzir ou mesmo prevenir os riscos de [danos em pneus causados por objetos estranhos que se encontravam na pista]» (48).

86.      Resulta de todas as considerações precedentes que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos deve ser interpretado no sentido de que o dano causado a um pneu de uma aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem se subsome ao conceito de «circunstâncias extraordinárias» na aceção desta disposição.

87.      Dito isto, gostaria de salientar que nem todas as substituições de um pneu de uma aeronave devem ser consideradas circunstâncias extraordinárias: é necessário distinguir o dano causado ao pneu no processo em apreço daquele que resulta do seu desgaste normal, não constituindo este último uma circunstância excecional.

V.      Conclusão

88.      Pelas razões expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Landgericht Köln (Tribunal Regional, Colónia, Alemanha) do seguinte modo:

O artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos, deve ser interpretado no sentido de que o dano causado a um pneu de uma aeronave por um parafuso que se encontrava na pista de descolagem ou de aterragem se subsome ao conceito de «circunstâncias extraordinárias» na aceção desta disposição.


1      Língua original: inglês.


2      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (a seguir «Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos»).


3      V. Prassl, J., Exceptionally Unexceptional: C257/14 Corina van der Lans v KLM and the end of Regulation 261/2004’s Exceptional Circumstances Defence, EuCML, 2016, p. 136. O autor refere igualmente a recusa excecionalmente obstinada das companhias aéreas «de cumprirem plenamente as suas obrigações, até serem arrastadas ao tribunal».


4      Malenovsky, J., Regulation 261: Three Major Issues in the Case Law of the Court of Justice of the EU, in Bobek, M. e Prassl, J. (eds), EU Law in the Member States: Air Passenger Rights, Ten Years On, Hart, 2016, pp. 25 e 30.


5      Acórdão de 22 de dezembro de 2008 (C‑549/07, EU:C:2008:771).


6      Acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618).


7      Acórdão de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2017:342).


8      É o que decorre do Acórdão de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2017:342).


9      Acresce que nenhuma das partes considerou necessário abordar esta questão na audiência no Tribunal de Justiça.


10      V., por exemplo, Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723, n.o 67).


11      Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov (C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 30 e ponto 2 da parte decisória).


12      Quanto ao conceito de circunstâncias extraordinárias, v. Milner, A., Regulation EC 261/2004 and ‘Extraordinary Circumstances’, Air & Space Law, 34, n.o 3 (2009), pp. 215‑220; van der Wijngaart, T., van der Lans v. KLM and ‘Extraordinary Circumstances’, Air & Space Law, 41, n.o 1 (2016), pp. 59‑62; Michel, V., Commentaires: Une grève sauvage ne constitue pas une circonstance extraordinaire exonérant le transporteur, Europe, n.o 6, junho de 2018, pp. 22‑23; Flöthmann, M., Verbraucherschutz: Ausgleichszahlungen nach Flugausfall trotz “wilden Streiks” des Flugpersonals (Anmerkung), EuZW, 2018, 457; Herrmann, C., Entschädigung der Fluggäste bei „wildem Streik“ — das TUIflyUrteil des EuGH, RRa, 3/2018, p. 102; Führich, E., Innenbetrieblicher “wilder Streik” als außergewöhnlicher Umstand der FluggastrechteVerordnung, Monatsschrift fúr Deutsches Recht, 13/2018;


13      É o que decorre, nomeadamente, de Pressl. J., «Tackling Diversity Through Uniformity», in Bobek, M., e Pressl, J., op. cit., p. 335; Wijngaart, T., op. cit., Führich, E., op. cit., e Politis, A., «Rechtsprechung: Anmerkung ‑ Pešková u. Peška», NJW, 37/2017, p. 2669.


14      Ou seja, a 24.a Secção Cível do Landgericht Köln (Tribunal Regional, Colónia).


15      Despacho de 14 de novembro de 2014, Siewert (C‑394/14, EU:C:2014:2377).


16      Acórdão de 4 de maio de 2017 (C‑315/15, EU:C:2017:342).


17      Acórdão de 31 de janeiro de 2013 (C‑12/11, EU:C:2013:43).


18      Acórdão de 17 de setembro de 2015 (C‑257/14, EU:C:2015:618).


19      Acórdão de 22 de dezembro de 2008 (C‑549/07, EU:C:2008:771).


20      Acórdão de 19 de novembro de 2009 (C‑402/07 e C‑432/07, EU:C:2009:716).


21      Despacho de 14 de novembro de 2014 (C‑394/14, EU:C:2014:2377).


22      Acórdão de 4 de maio de 2017 (C‑315/15, EU:C:2017:342, n.os 19 e segs.). V. igualmente Wienbracke, M., Verbraucherrecht: Ausgleichsleistungen bei Flugverspätung nach Kollision des Flugzeugs mit einem Vogel, EuZW, 2017, 571.


23      Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 20).


24      Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 26) (o sublinhado é meu).


25      Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 26) e de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618, n.os 38 e segs.). Relativamente a este último processo, v. decisão da Court of Appeal (England and Wales) no processo Huzar v. Jet2.com Limited [2014] EWCA, civ. 791 (relativo a um defeito de ligação no circuito da válvula de combustível). V. igualmente van der Wijngaart, T., op. cit.


26      Acórdão de 31 de janeiro de 2013 (C‑12/11, EU:C:2013:43, n.o 29).


27      V. as minhas Conclusões nos processos apensos Krüsemann e o. (C‑195/17, C‑197/17 a C‑203/17, C‑226/17, C‑228/17, C‑254/17, C‑274/17, C‑275/17, C‑278/17 a C‑286/17 e C‑290/17 a C‑292/17, EU:C:2018:243, n.o 57).


28      Acórdão de 17 de abril de 2018, Krüsemann e o. (C‑195/17, C‑197/17 a C‑203/17, C‑226/17, C‑228/17, C‑254/17, C‑274/17, C‑275/17, C‑278/17 a C‑286/17 e C‑290/17 a C‑292/17, EU:C:2018:258, n.o 34). O Tribunal de Justiça salienta igualmente nesta passagem que as circunstâncias visadas nesse considerando não são necessária e automaticamente causas de isenção da obrigação de indemnização prevista no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento dos Direitos dos Passageiros Aéreos.


29      Acórdão de 22 de dezembro de 2008 (C‑549/07, EU:C:2008:771).


30      Acórdão de 4 de maio de 2017 (C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 23 e jurisprudência referida).


31      Acórdão de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2017:342).


32      Despacho de 14 de novembro de 2014, Siewert (C‑394/14, EU:C:2014:2377).


33      Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2016:623).


34      Processo 11 S 389/14.


35      Sustenta que, uma vez que tais ocorrências não são inerentes à realização normal de um voo e escapam ao controlo da transportadora aérea, devem ser classificadas como ocorrências/circunstâncias supervenientes externas.


36      Regulamento de 12 de fevereiro de 2014, que estabelece requisitos e procedimentos administrativos relativos aos aeródromos em conformidade com o Regulamento (CE) n.o 216/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho (Texto relevante para efeitos do EEE, JO 2014, L 44, p. 1).


37      Cito aqui, em sentido semelhante, uma decisão do Landgericht (Tribunal Regional) de Darmstadt (Alemanha) relativa a danos causados por um parafuso aspirado por um motor (v. BeckRS 2014, 23957). Além disso, resulta do despacho de reenvio que os sistemas técnicos disponíveis para a vigilância das pistas e para a remoção de objetos estranhos nelas presentes não são (ainda) avançados e, por conseguinte, não permitem assegurar uma proteção eficaz. Tem vindo a ser desenvolvido desde há vários anos um sistema de segurança resistente às condições meteorológicas e que, no futuro, inspecionará continuamente as pistas de descolagem e aterragem para detetar a presença de objetos estranhos, acionando um sinal de alarme em caso de perigo.


38      V. n.o 20 das presentes conclusões.


39      Acórdão de 4 de maio de 2017 (C‑315/15, EU:C:2017:342).


40      Despacho de 14 de novembro de 2014 (C‑394/14, EU:C:2014:2377).


41      BGH, NJW 2014, 861; VRR 2014, 100; NJW‑RR 2015, 111.


42      V. Acórdão de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 25).


43      Acórdão de 12 de maio de 2011, Eglītis e Ratnieks (C‑294/10, EU:C:2011:303, n.o 25).


44      V. Acórdão de 28 de junho de 1978, Simmenthal (70/77, EU:C:1978:139, n.o 57).


45      Acórdão de 29 de setembro de 2016, Essent Belgium (C‑492/14, EU:C:2016:732, n.o 43).


46      Acórdão de 12 de maio de 2011, Eglītis e Ratnieks (C‑294/10, EU:C:2011:303, n.o 30).


47      Acórdão de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 43) (o sublinhado é meu).


48      Acórdão de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška (C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 44).