Language of document : ECLI:EU:C:2012:407

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

3 de julho de 2012 (*)

«Proteção jurídica dos programas de computador — Comercialização de licenças de programas de computador em segunda mão descarregados a partir da Internet — Diretiva 2009/24/CE — Artigos 4.°, n.° 2, e 5.°, n.° 1 — Esgotamento do direito de distribuição — Conceito de ‘adquirente legítimo’»

No processo C‑128/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), por decisão de 3 de fevereiro de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 14 de março de 2011, no processo

UsedSoft GmbH

contra

Oracle International Corp.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts (relator), J.‑C. Bonichot e A. Prechal, presidentes de secção, K. Schiemann, E. Juhász, A. Borg Barthet, D. Šváby e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 6 de março de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da UsedSoft GmbH, por B. Ackermann e A. Meisterernst, Rechtsanwälte,

¾        em representação da Oracle International Corp., por T. Heydn e U. Hornung, Rechtsanwälte,

¾        em representação da Irlanda, por D. O ’Hagan, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo espanhol, por N. Díaz Abad, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo francês, por J. Gstalter, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Fiorentino, avvocato dello Stato,

¾        em representação da Comissão Europeia, por J. Samnadda e F. W. Bulst, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 24 de abril de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 4.°, n.° 2, e 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO L 111, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a UsedSoft GmbH (a seguir «UsedSoft») à Oracle International Corporation (a seguir «Oracle») a propósito da comercialização pela UsedSoft de licenças de programas de computador em segunda mão da Oracle.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) adotou em Genebra, em 20 de dezembro de 1996, o Tratado da OMPI sobre o direito de autor (a seguir «tratado sobre o direito de autor»). Este tratado foi aprovado, em nome da Comunidade Europeia, através da Decisão 2000/278/CE do Conselho, de 16 de março de 2000 (JO L 89, p. 6)

4        O artigo 4.° do tratado sobre o direito de autor, intitulado «Programas de computador», tem a seguinte redação:

«Os programas de computador são protegidos como obras literárias na aceção do artigo 2.° da Convenção de Berna. Essa proteção aplica‑se aos programas de computador, independentemente do seu modo ou forma de expressão.»

5        O artigo 6.° do tratado sobre o direito de autor, intitulado «Direito de distribuição», prevê:

«1.      Os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar a colocação à disposição do público do original e de cópias das suas obras, por meio da venda ou por outra forma de transferência de propriedade.

2.      Nenhuma das disposições do presente tratado afeta a liberdade das partes contratantes para determinar as eventuais condições em que o direito previsto no n.° 1 se esgota após a primeira venda do original ou de uma cópia da obra, ou outra forma de transferência de propriedade, realizada com o consentimento do autor.»

6        O artigo 8.° do tratado sobre o direito de autor dispõe:

«[…] os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar qualquer comunicação ao público das suas obras, por fios ou sem fios, incluindo a colocação das suas obras à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a membros do público a partir do local e no momento por eles escolhido individualmente.»

7        Nas declarações acordadas relativas aos artigos 6.° e 7.° do tratado sobre o direito de autor, enuncia‑se:

«As expressões ‘cópias’ e ‘original e cópias’, utilizadas nestes artigos para designar o objeto do direito de distribuição e do direito de aluguer neles previstos referem‑se exclusivamente a cópias fixadas que possam ser postas em circulação enquanto objetos materiais.»

 Direito da União

 Diretiva 2001/29

8        Os considerandos 28 e 29 da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO L 167, p. 10), dispõem:

«(28) A proteção do direito de autor nos termos da presente diretiva inclui o direito exclusivo de controlar a distribuição de uma obra incorporada num produto tangível. A primeira venda na Comunidade do original de uma obra ou das suas cópias pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, esgota o direito de controlar a revenda de tal objeto na Comunidade. Tal direito não se esgota em relação ao original ou cópias vendidas pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, fora da Comunidade. A Diretiva 92/100/CEE estabelece os direitos de aluguer e comodato dos autores. O direito de distribuição previsto na presente diretiva não prejudica as disposições relativas aos direitos de aluguer e comodato previstos no capítulo I dessa diretiva.

(29)      A questão do esgotamento não é pertinente no caso dos serviços, em especial dos serviços em linha. Tal vale igualmente para as cópias físicas de uma obra ou de outro material efetuadas por um utilizador de tal serviço com o consentimento do titular do direito. Por conseguinte, o mesmo vale para o aluguer e o comodato do original e cópias de obras ou outros materiais, que, pela sua natureza, são serviços. Ao contrário do que acontece com os CD‑ROM ou os CDI, em que a propriedade intelectual está incorporada num suporte material, isto é, uma mercadoria, cada serviço em linha constitui de facto um ato que deverá ser sujeito a autorização quando tal estiver previsto pelo direito de autor ou direitos conexos.»

9        Em conformidade com o disposto no artigo 1.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2001/29, esta «não afeta de modo algum as disposições comunitárias existentes em matéria de […] [p]roteção jurídica dos programas de computador».

10      O artigo 3.° da Diretiva 2001/29 dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

[…]

3.      Os direitos referidos nos n.os 1e 2 não se esgotam por qualquer ato de comunicação ao público ou de colocação à disposição do público, contemplado no presente artigo.»

11      O artigo 4.° da referida diretiva, intitulado «Direito de distribuição», enuncia:

«1.      Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores, em relação ao original das suas obras ou respetivas cópias, o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público através de venda ou de qualquer outro meio.

2.      O direito de distribuição não se esgota, na Comunidade, relativamente ao original ou às cópias de uma obra, exceto quando a primeira venda ou qualquer outra forma de primeira transferência da propriedade desse objeto, na Comunidade, seja realizada pelo titular do direito ou com o seu consentimento.»

 Diretiva 2009/24

12      Nos termos do considerando 1 da Diretiva 2009/24, esta procede à codificação da Diretiva 91/250/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO L 122, p. 42).

13      Resulta do considerando 7 da Diretiva 2009/24 que, «[p]ara efeitos [desta] diretiva, a expressão ‘programa de computador’ inclui qualquer tipo de programa, mesmo os que estão incorporados no equipamento».

14      De acordo com o considerando 13 da referida diretiva, «as ações de carregamento e funcionamento necessárias à utilização de uma cópia de um programa legalmente adquirido, incluindo a ação de correção dos respetivos erros, não poderão ser proibidas por contrato».

15      O artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24 enuncia que «os Estados‑Membros estabelecem uma proteção jurídica dos programas de computador, mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras literárias, na aceção da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas».

16      Nos termos do artigo 1.°, n.° 2, desta diretiva «[p]ara efeitos da presente diretiva, a proteção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador».

17      O artigo 4.° da referida diretiva, intitulado «Atos sujeitos a autorização», dispõe:

«1.      Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.° e 6.°, os direitos exclusivos do titular, na aceção do artigo 2.°, devem incluir o direito de efetuar ou autorizar:

a)      A reprodução permanente ou transitória de um programa de computador, seja por que meio for, e independentemente da forma de que se revestir, no todo ou em parte. Se operações como o carregamento, visualização, execução, transmissão ou armazenamento de um programa de computador carecerem dessa reprodução, essas operações devem ser submetidas a autorização do titular do direito;

b)      A tradução, adaptação, ajustamentos ou outras modificações do programa e a reprodução dos respetivos resultados, sem prejuízo dos direitos de autor da pessoa que altere o programa;

c)      Qualquer forma de distribuição ao público, incluindo a locação, do original ou de cópias de um programa de computador.

2.      A primeira comercialização na Comunidade de uma cópia de um programa efetuada pelo titular dos direitos ou realizada com o seu consentimento extinguirá o direito de distribuição na Comunidade dessa mesma cópia, com exceção do direito de controlar a locação ulterior do programa ou de uma sua cópia.»

18      O artigo 5.° da Diretiva 2009/24, intitulado «Exceções aos atos sujeitos a autorização», dispõe, no seu n.° 1:

«Salvo cláusula contratual específica em contrário, os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 4.° não se encontram sujeitos à autorização do titular sempre que sejam necessários para a utilização do programa de computador pelo seu legítimo adquirente de acordo com o fim a que esse programa se destina, bem como para a correção de erros.»

 Direito alemão

19      Os §§ 69c e 69d da Lei do direito de autor e direitos conexos [Gesetz über Urheberrecht und verwandte Schutzrechte (Urheberrechtsgesetz)], de 9 de setembro de 1965, conforme alterada (a seguir «UrhG»), transpuseram para o direito interno, respetivamente, os artigos 4.° e 5.° da Diretiva 2009/24.

 Factos na origem do litígio no processo principal e questões prejudiciais

20      A Oracle desenvolve e distribui programas de computador. É titular dos direitos de utilização exclusivos desses programas ao abrigo do direito de autor. É também titular das marcas nominativas alemãs e comunitárias Oracle, que estão registadas, entre outros, para programas de computador.

21      A Oracle distribui os programas de computador em causa no processo principal, a saber, software de bases de dados, em 85% dos casos, através de descarregamentos a partir da Internet. O cliente descarrega diretamente uma cópia do programa para o seu computador a partir do sítio Internet da Oracle. Trata‑se de programas de computador que funcionam segundo o modo «cliente/servidor». O direito de utilização desse programa, atribuído por um contrato de licença, inclui o direito de armazenar de modo permanente a cópia desse programa num servidor e de permitir que um determinado número de utilizadores lhe aceda descarregando‑o para a memória central das suas estações de trabalho. No âmbito de um contrato de manutenção, as versões atualizadas do programa de computador em causa («updates») e dos programas que permitem corrigir erros («patches») podem ser descarregadas a partir do sítio Internet da Oracle. A pedido do cliente, os programas de computador em causa podem igualmente ser entregues em CD‑ROM ou DVD.

22      A Oracle propõe, para os programas de computador em causa no processo principal, licenças em pacotes destinadas a, pelo menos, 25 utilizadores cada uma. Uma empresa que precise de adquirir uma licença para 27 utilizadores deverá, assim, adquirir duas licenças.

23      Os contratos de licença da Oracle relativos aos programas de computador em causa no processo principal contêm, sob o título «Concessão de direito», a seguinte cláusula:

«O pagamento dos serviços concede‑lhe um direito de utilização, que se destina apenas ao seu próprio uso profissional, de duração indeterminada, não exclusivo, intransmissível e gratuito, para todos os produtos e serviços que a Oracle desenvolve e põe à sua disposição com base no presente contrato.»

24      A UsedSoft comercializa licenças em segunda mão de programas de computador, nomeadamente licenças de utilização relativas aos programas de computador da Oracle em causa no processo principal. Para este efeito, a UsedSoft adquire, junto dos clientes da Oracle, essas licenças de utilização, inclusivamente parte destas quando as licenças inicialmente adquiridas se destinam a um número de utilizadores que excede as necessidades do primeiro adquirente.

25      Em outubro de 2005, a UsedSoft efetuou uma campanha de «promoções especiais Oracle», no âmbito da qual comercializava licenças «já utilizadas» para os programas de computador da Oracle em causa no processo principal. Nesse contexto, indicava que todas as licenças estavam «atualizadas», no sentido de que o contrato de manutenção subscrito pelo adquirente inicial junto da Oracle ainda estava em vigor e de que a legalidade da comercialização inicial estava confirmada por declaração notarial.

26      Os clientes da UsedSoft, que ainda não possuam o programa de computador da Oracle em causa, descarregam, depois de terem adquirido essa licença em segunda mão, uma cópia do programa diretamente a partir do sítio Internet da Oracle. Relativamente aos clientes que já disponham desse programa de computador e que comprem em complemento licenças para utilizadores adicionais, a UsedSoft indica que devem copiar o programa de computador para as estações de trabalho dos referidos utilizadores.

27      A Oracle intentou uma ação no Landgericht München I em que pediu que fosse ordenado à UsedSoft que cessasse as práticas mencionadas nos n.os 24 a 26 do presente acórdão. Esse órgão jurisdicional julgou procedentes os pedidos da Oracle. Foi negado provimento ao recurso que a UsedSoft interpôs desta decisão. Esta última interpôs em seguida recurso de «Revision» no Bundesgerichtshof.

28      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o comportamento da UsedSoft assim como o dos seus clientes violam o direito exclusivo da Oracle de reprodução permanente ou transitória dos programas de computador, na aceção do artigo 4.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2009/24. Os clientes da UsedSoft não podem, segundo esse órgão jurisdicional, basear‑se no direito que lhes foi validamente transmitido pela Oracle para efeitos da reprodução dos programas de computador. Com efeito, resulta dos contratos de licença da Oracle que o direito de utilização dos programas é «intransmissível». Por conseguinte, os clientes da Oracle não estão autorizados a transmitir a terceiros o direito de reproduzir esses programas.

29      A resolução do litígio no processo principal depende, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, da questão de saber se os clientes da UsedSoft podem validamente invocar o § 69d, n.° 1, da UrhG, que transpõe para o direito alemão o artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24.

30      A este respeito, coloca‑se desde logo a questão de saber se uma pessoa que, à semelhança dos clientes da UsedSoft, não dispõe de um direito de utilização do programa de computador atribuído pelo titular do direito de autor, mas pretende invocar o esgotamento do direito de distribuição de uma cópia do programa de computador, é um «adquirente legítimo» dessa cópia, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24. O órgão jurisdicional de reenvio considera que sim. Explica que a aptidão de uma cópia de um programa de computador para circular no mercado, que resulta do esgotamento dos direitos de distribuição, ficaria em larga medida desprovida de interesse se o adquirente dessa cópia não tivesse o direito de reproduzir o programa de computador. Com efeito, em regra, a utilização de um programa de computador exige a sua reprodução – ao contrário do que sucede com a utilização de outras obras protegidas por um direito de autor. O artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24 destina‑se assim a garantir o esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24.

31      Em seguida, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se, num caso como o do processo principal, o direito de distribuição da cópia de um programa de computador se esgotou, na aceção do § 69c, ponto 3, segundo período, da UrhG, que transpõe o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24.

32      Admitem‑se várias interpretações. Primeiro, o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 pode ser aplicável quando o titular do direito de autor autoriza um cliente – após ter celebrado um contrato de licença – a realizar uma cópia do programa de computador através de um descarregamento desse programa a partir da Internet e do respetivo armazenamento no computador. A disposição em causa associa a consequência jurídica do esgotamento do direito de distribuição quando da primeira comercialização de uma cópia do programa e não pressupõe necessariamente a distribuição ao público de uma cópia física do programa de computador. Segundo, o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 pode ser aplicado por analogia no caso da comercialização que tem por objeto um programa de computador através da transmissão em linha. Os defensores desta tese consideram que existe acerca desta questão uma lacuna normativa não intencional («planwidrige Regelungslücke»), que resulta do facto de os autores desta diretiva não terem previsto nem regulado a transmissão em linha de programas de computador. Terceiro, o artigo 4.°, n.° 2, da referida diretiva não é aplicável na medida em que o esgotamento do direito de distribuição ao abrigo desta disposição pressupõe sempre que tenha sido posta em circulação uma cópia física do programa de computador pelo titular do direito ou com o seu consentimento. Os autores da Diretiva 2009/24 teriam, assim, renunciado conscientemente a submeter a transmissão em linha de programas de computador à regra do esgotamento.

33      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a questão de saber se a pessoa que adquiriu uma licença em segunda mão pode invocar, para efetuar uma cópia do programa – como fazem, no processo principal, os clientes da UsedSoft através do descarregamento num computador de uma cópia do programa da Oracle a partir do sítio Internet desta sociedade ou do seu descarregamento na memória central de outras estações de trabalho – o esgotamento do direito de distribuição da cópia do programa de computador que o primeiro adquirente efetuou, com autorização do titular do direito, descarregando‑a através da Internet, quando este primeiro adquirente tenha apagado a sua cópia ou já não a utilize. O órgão jurisdicional de reenvio considera que não é possível aplicar por analogia o artigo 5.°, n.° 1, e o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24. O esgotamento do direito de distribuição destina‑se apenas a garantir a aptidão para circular no mercado de uma cópia de um programa materializada num determinado suporte de dados e vendida pelo titular do direito ou com o seu consentimento. Por conseguinte, o efeito do esgotamento não deve ser alargado ao conjunto imaterial de dados transmitidos em linha.

34      Nestas condições, o Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A pessoa que pode invocar o esgotamento do direito de distribuição da cópia de um programa de computador é [um] ‘adquirente legítimo’ na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24[…]?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o direito de distribuição da cópia de um programa de computador fica esgotado, na aceção [do primeiro membro de frase] do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24[…], quando o adquirente tenha feito a cópia com o consentimento do titular do direito, através [do descarregamento] do programa a partir da Internet para um suporte de dados?

3)      Caso seja dada à segunda questão igualmente resposta afirmativa, a pessoa que adquiriu uma licença de software ‘em segunda mão’ pode também ela invocar, para fazer uma cópia do programa como ‘adquirente legítimo’, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, e [do primeiro membro de frase] do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24[…], o esgotamento do direito de distribuição da cópia […] do programa de computador que o primeiro adquirente fez, com o consentimento do titular do direito, através [do descarregamento] do programa a partir da Internet para um suporte [informático], quando esse primeiro adquirente tiver apagado a sua cópia do programa ou já não a utilizar?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à segunda questão

35      Através da segunda questão, que importa abordar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se, e em que condições, o descarregamento efetuado através da Internet de uma cópia de um programa de computador, com o consentimento do titular do direito de autor, pode dar lugar a um esgotamento do direito de distribuição dessa cópia na União Europeia, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24.

36      Há que recordar que, nos termos do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, a primeira comercialização de uma cópia de um programa de computador na União, pelo titular do direito de autor ou com o seu consentimento, extingue o direito de distribuição dessa cópia na União.

37      Resulta da decisão de reenvio que o próprio titular do direito de autor, no presente caso, a Oracle, disponibiliza aos seus clientes na União que pretendem utilizar o seu programa de computador uma cópia deste, que pode ser descarregada a partir do seu sítio Internet.

38      Para determinar se, numa situação como a que está em causa no processo principal, o direito de distribuição do titular do direito de autor se esgotou, importa verificar, em primeiro lugar, se a relação contratual entre esse titular e o seu cliente, no âmbito da qual teve lugar o descarregamento de uma cópia do programa de computador em causa, pode ser qualificada de «primeira comercialização […] de uma cópia de um programa de computador», na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24.

39      Segundo jurisprudência constante, decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ter, em toda a União, uma interpretação autónoma e uniforme (v., designadamente, acórdãos de 16 de julho de 2009, Infopaq International, C‑5/08, Colet., p. I‑6569, n.° 27; de 18 de outubro de 2011, Brüstle, C‑34/10, Colet., p. I‑9821, n.° 25; e de 26 de abril de 2012, DR e TV2 Danmark, C‑510/10, n.° 33).

40      Ora, o texto da Diretiva 2009/24 não faz nenhuma remissão para os direitos nacionais no que se refere ao significado a dar ao conceito de «comercialização», que figura no artigo 4.°, n.° 2, desta diretiva. Por conseguinte, daqui resulta que este conceito deve ser entendido, para efeitos de aplicação da referida diretiva, no sentido de que designa um conceito autónomo de direito da União, que deve ser interpretado de maneira uniforme em todo o seu território (v., neste sentido, acórdão DR e TV2 Danmark, já referido, n.° 34).

41      Esta conclusão é confortada pelo objeto e pelo objetivo da Diretiva 2009/24. Com efeito, resulta dos considerandos 4 e 5 desta diretiva, que tem por base o artigo 95.° CE, a que corresponde o artigo 114.° TFUE, que a mesma tem como objetivo suprimir as diferenças entre as legislações dos Estados‑Membros que prejudicam o funcionamento do mercado interno no que respeita aos programas de computador. Ora, impõe‑se uma interpretação uniforme deste conceito de «comercialização» para evitar que a proteção concedida pela referida diretiva aos titulares do direito de autor possa variar em função da lei nacional aplicável.

42      Segundo uma definição comummente aceite, a «comercialização» é uma convenção por meio da qual uma pessoa cede, através do pagamento de um preço, a outra pessoa os seus direitos de propriedade sobre um bem corpóreo ou incorpóreo que lhe pertence. Daqui resulta que, em conformidade com o disposto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, a operação comercial que dá origem ao esgotamento do direito de distribuição relativo a uma cópia de um programa de computador implica que o direito de propriedade sobre essa cópia foi transferido.

43      A Oracle considera que não comercializa cópias dos seus programas de computador em causa no processo principal. A este respeito, explica que coloca gratuitamente à disposição dos seus clientes, no seu sítio Internet, uma cópia do programa em causa e que estes clientes podem descarregar essa cópia. No entanto, a cópia assim descarregada só pode ser utilizada por esses clientes se tiverem previamente celebrado um contrato de licença de utilização com a Oracle. Essa licença dá aos clientes da Oracle um direito de utilização de duração indeterminada, não exclusivo e intransmissível, do programa de computador em causa. Ora, segundo a Oracle, nem a disponibilização gratuita da cópia nem a celebração do contrato de licença de utilização implicam uma transferência do direito de propriedade dessa cópia.

44      A este respeito, há que referir que o descarregamento de uma cópia de um programa de computador e a celebração de um contrato de licença de utilização respeitante a essa cópia formam um todo indivisível. Com efeito, descarregar uma cópia de um programa de computador não tem nenhuma utilidade se a referida cópia não puder ser utilizada pelo seu detentor. Estas duas operações devem assim ser examinadas no seu conjunto para efeitos da sua qualificação jurídica (v., por analogia, acórdão de 6 de maio de 2010, Club Hotel Loutraki e o., C‑145/08 e C‑149/08, Colet., p. I‑4165, n.os 48, 49 e jurisprudência referida).

45      No que respeita à questão de saber se, numa situação como a do processo principal, as operações comerciais em causa implicam a transferência do direito de propriedade da cópia do programa de computador, cumpre constatar que resulta da decisão de reenvio que o cliente da Oracle, que descarrega a cópia do programa de computador em causa e que celebra com esta sociedade um contrato de licença de utilização respeitante à referida cópia, recebe, através do pagamento de um preço, um direito de utilização dessa cópia de duração ilimitada. A disponibilização pela Oracle de uma cópia do seu programa de computador e a celebração de um contrato de licença de utilização respeitante a esse programa destinam‑se, assim, a que a referida cópia seja utilizável pelos seus clientes, de forma permanente, através do pagamento de um preço destinado a permitir que o titular do direito de autor obtenha uma remuneração que corresponde ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário.

46      Nestas condições, as operações referidas no n.° 44 do presente acórdão, examinadas no seu conjunto, implicam a transferência do direito de propriedade da cópia do programa de computador em causa.

47      A este respeito, é indiferente, numa situação como a que está em causa no processo principal, que a cópia do programa de computador tenha sido disponibilizada ao cliente pelo titular do direito em causa através de um descarregamento a partir do seu sítio Internet ou através de um suporte material como um CD‑ROM ou um DVD. Com efeito, embora também neste último caso o titular do direito em causa distinga formalmente o direito do cliente de utilizar a cópia do programa de computador fornecida da operação que consiste em transferir a cópia desse programa num suporte material para o cliente, a operação que consiste em descarregar, a partir deste suporte, uma cópia do programa de computador e a que consiste em celebrar um contrato de licença continuam a ser indissociáveis para o adquirente, pelos motivos expostos no n.° 44 do presente acórdão. Uma vez que o adquirente, que descarrega uma cópia do programa de computador em causa através de um suporte material como um CD‑ROM ou um DVD e que celebra o respetivo contrato de licença de utilização, adquire o direito de utilizar a referida cópia por uma duração ilimitada através do pagamento de um preço, há que considerar que essas duas operações implicam também, no caso da disponibilização de uma cópia do programa de computador em causa através de um suporte material como um CD‑ROM ou um DVD, a transferência do direito de propriedade da referida cópia.

48      Por conseguinte, há que considerar que, numa situação como a que está em causa no processo principal, a transferência pelo titular do direito de autor de uma cópia de um programa de computador para um cliente, acompanhada da celebração, entre estas mesmas partes, de um contrato de licença de utilização, constitui uma «primeira comercialização […] de uma cópia de um programa», na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24.

49      Como sublinha o advogado‑geral no n.° 59 das suas conclusões, se não se fizer uma interpretação lata da expressão «comercialização», na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, que englobe todas as formas de comercialização de um produto que se caracterizam pela atribuição de um direito de utilização de uma cópia do programa de computador, por uma duração ilimitada, mediante o pagamento de um preço destinado a permitir que o titular do direito de autor obtenha uma remuneração que corresponde ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário, o efeito útil desta disposição fica comprometido, pois bastaria que os fornecedores qualificassem o contrato de «licença» e não de «comercialização» para contornar a regra do esgotamento, privando‑a assim de qualquer alcance.

50      Em segundo lugar, não procede o argumento da Oracle e da Comissão Europeia segundo o qual a disponibilização de uma cópia de um programa de computador no sítio Internet do titular do direito de autor constitui uma «colocação à disposição do público», na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, que, em conformidade com o disposto no artigo 3.°, n.° 3, desta diretiva, não dá origem ao esgotamento do direito de distribuição dessa cópia.

51      Com efeito, resulta do artigo 1.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2001/29 que esta «não afeta de modo algum as disposições [do direito da União] existentes em matéria de […] [p]roteção jurídica dos programas de computador» conferida pela Diretiva 91/250, que foi posteriormente codificada pela Diretiva 2009/24. Assim, as disposições da Diretiva 2009/24, nomeadamente o seu artigo 4.°, n.° 2, constituem uma lex specialis relativamente às disposições da Diretiva 2001/29, pelo que, mesmo que se admitisse que a relação contratual do processo principal ou um aspeto dela também podia ser abrangida pelo conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.°, n.° 1, desta última diretiva, a «primeira comercialização […] de uma cópia de um programa», na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, daria lugar ao esgotamento do direito de distribuição dessa cópia, em conformidade com o disposto nesta mesma disposição.

52      Por outro lado, resulta do n.° 46 do presente acórdão que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o titular do direito de autor transfere o direito de propriedade da cópia do programa de computador para o seu cliente. Ora, como referido pelo advogado‑geral no n.° 73 das suas conclusões, resulta do artigo 6.°, n.° 1, do tratado sobre o direito de autor, à luz do qual os artigos 3.° e 4.° da Diretiva 2001/29 devem, na medida do possível, ser interpretados (v., neste sentido, acórdão de 17 de abril de 2008, Peek & Cloppenburg, C‑456/06, Colet., p. I‑2731, n.° 30), que a existência de uma transferência do direito de propriedade transforma o «ato de comunicação ao público», previsto no artigo 3.° desta diretiva, num ato de distribuição referido no artigo 4.° da mesma diretiva, que pode dar origem, caso os requisitos previstos no n.° 2 deste último artigo estejam reunidos, ao esgotamento do direito de distribuição, à semelhança de uma «primeira comercialização […] de uma cópia de um programa» referida no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24.

53      Em terceiro lugar, há ainda que examinar se, como sustentam a Oracle, os governos que apresentaram observações no Tribunal e a Comissão, o esgotamento do direito de distribuição referido no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 se refere apenas a bens tangíveis e não a cópias imateriais de programas de computador descarregadas através da Internet. Referem‑se, a este propósito, à letra do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, aos considerandos 28 e 29 da Diretiva 2001/29, ao artigo 4.° desta última diretiva, lido em conjugação com o artigo 8.° do tratado sobre o direito de autor, e às declarações acordadas relativas aos artigos 6.° e 7.° do referido tratado, cuja transposição é um dos objetivos da Diretiva 2001/29.

54      Por outro lado, segundo a Comissão, o considerando 29 da Diretiva 2001/29 confirma que «[a] questão do esgotamento [do direito] não é pertinente no caso dos serviços, em especial dos serviços em linha».

55      A este respeito, há que constatar antes de mais que não resulta do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 que o esgotamento do direito de distribuição das cópias de programas de computadores, visado nesta disposição, esteja limitado às cópias de programas de computadores que se encontram num suporte material, como um CD‑ROM ou um DVD. Pelo contrário, há que considerar que esta disposição, referindo‑se sem mais precisões à «comercialização […] de uma cópia de um programa», não faz nenhuma distinção em função da forma material ou imaterial da cópia em causa.

56      Em seguida, há que recordar que a Diretiva 2009/24, que diz especificamente respeito à proteção jurídica de programas de computador, constitui uma lex specialis relativamente à Diretiva 2001/29.

57      Ora, resulta do artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 que ««[p]ara efeitos da presente diretiva, a proteção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador». A este respeito, o considerando 7 da referida diretiva precisa que a expressão «programas de computador» cuja proteção pretende assegurar «inclui qualquer tipo de programa, mesmo os que estão incorporados no equipamento».

58      Das disposições acima mencionadas resulta claramente a vontade do legislador da União em equiparar, para efeitos da proteção prevista na Diretiva 2009/24, as cópias materiais e imateriais de um programa de computador.

59      Nestas condições, há que considerar que o esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 visa simultaneamente as cópias materiais e imateriais de um programa de computador e também, por conseguinte, as cópias de programas de computador que, quando da sua primeira comercialização, tenham sido descarregadas através da Internet, no computador do primeiro adquirente.

60      Na verdade, os conceitos utilizados nas Diretivas 2001/29 e 2009/24 devem, em princípio, ter o mesmo significado (v. acórdão de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o., C‑403/08 e C‑429/08, Colet., p. I‑9083, n.os 187 e 188). No entanto, ainda que se admita que o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29, interpretado à luz dos considerandos 28 e 29 desta e à luz do tratado sobre o direito de autor, que a Diretiva 2001/29 visa implementar (acórdão de 9 de fevereiro de 2012, Luksan, C‑277/10, n.° 59), indica, para as obras abrangidas por esta diretiva, que o esgotamento do direito de distribuição se refere apenas a objetos tangíveis, essa circunstância não é suscetível de afetar a interpretação do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, atendendo à vontade diferente expressa pelo legislador da União no contexto preciso desta diretiva.

61      Há ainda que acrescentar que, de um ponto de vista económico, a comercialização de um programa de computador em CD‑ROM ou em DVD e a comercialização de um programa de computador através do seu descarregamento a partir da Internet são semelhantes. Com efeito, o meio de transmissão em linha constitui o equivalente funcional da entrega de um suporte material. A interpretação do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 à luz do princípio da igualdade de tratamento confirma que o esgotamento do direito de distribuição previsto na referida disposição produz efeitos depois da primeira comercialização de uma cópia de um programa de computador na União pelo titular do direito de autor ou com o seu consentimento, independentemente da questão de saber se se trata da comercialização de uma cópia material ou imaterial do referido programa.

62      No que respeita ao argumento da Comissão segundo o qual o direito da União não prevê o esgotamento do direito de distribuição para os serviços, há que recordar que o princípio do esgotamento do direito de distribuição das obras protegidas pelo direito de autor tem por objetivo limitar, para evitar a compartimentação dos mercados, as restrições à distribuição das referidas obras àquilo que é necessário para preservar o objeto específico da propriedade intelectual em causa (v., neste sentido, acórdãos de 28 de abril de 1998, Metronome Musik, C‑200/96, Colet., p. I‑1953, n.° 14; de 22 de setembro de 1998, FDV, C‑61/97, Colet., p. I‑5171, n.° 13; e acórdão Football Association Premier League e o., já referido, n.° 106).

63      Limitar, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, a aplicação do princípio do esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 apenas às cópias de programas de computador vendidas num suporte material permitiria que o titular do direito de autor controlasse a revenda das cópias que foram descarregadas através da Internet e exigisse, por ocasião de cada revenda, uma nova remuneração embora a primeira comercialização da cópia em causa já tivesse permitido ao titular obter uma remuneração adequada. Semelhante restrição à revenda de cópias de programas de computador descarregadas através da Internet excederia o que é necessário para preservar o objeto específico da propriedade intelectual em causa (v., neste sentido, acórdão Football Association Premier League e o., já referido, n.os 105 e 106).

64      Em quarto lugar, há ainda que examinar se, como alega a Oracle, o contrato de manutenção celebrado pelo primeiro adquirente impede, em todo o caso, o esgotamento do direito previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, uma vez que a cópia do programa de computador que aquele pode ceder a um segundo adquirente também já não corresponde à cópia que descarregou, mas a uma nova cópia do referido programa.

65      A este respeito, resulta da decisão de reenvio que as licenças em segunda mão propostas pela UsedSoft estão «atualizadas» uma vez que a venda da cópia do programa de computador pela Oracle ao seu cliente foi acompanhada da celebração de um contrato de manutenção relativo a essa cópia.

66      Há que referir que o esgotamento do direito de distribuição da cópia de um programa de computador ao abrigo do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 só abrange as cópias que foram objeto de uma primeira comercialização na União pelo titular do direito de autor ou com o seu consentimento. Esse esgotamento não diz respeito a contratos de serviços, como os contratos de manutenção, que são dissociáveis dessa comercialização e que foram celebrados, eventualmente por uma duração determinada, quando da referida comercialização.

67      Contudo, a celebração de um contrato de manutenção, como os que estão em causa no processo principal, quando da comercialização de uma cópia imaterial de um programa de computador, tem como efeito que a cópia inicialmente comprada seja reparada e atualizada. Mesmo na hipótese em que o contrato de manutenção tem uma duração determinada, há que constatar que as funcionalidades corrigidas, alteradas ou acrescentadas nos termos desse contrato fazem parte integrante da cópia inicialmente descarregada e podem ser utilizadas pelo seu adquirente sem limite de duração, sendo este entendimento igualmente válido no caso em que esse adquirente decide posteriormente não renovar o seu contrato de manutenção.

68      Nestas condições, há que considerar que o esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 se estende à cópia do programa de computador comercializada tal como tiver sido corrigida e atualizada pelo titular do direito de autor.

69      No entanto, há que sublinhar que, se a licença adquirida pelo primeiro adquirente se destinar a um número de utilizadores que exceda as suas necessidades, como foi exposto nos n.os 22 e 24 do presente acórdão, esse adquirente não está autorizado, em razão do esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, a fragmentar essa licença e a revender apenas o direito de utilização do programa de computador em causa correspondente a um número de utilizadores por si determinado.

70      Com efeito, o adquirente inicial que procede à revenda de uma cópia material ou imaterial de um programa de computador em relação à qual o direito de distribuição que pertence ao titular do direito de autor está esgotado, em conformidade com o disposto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, deve inutilizar a sua própria cópia no momento da respetiva revenda, para evitar que seja violado o direito exclusivo à reprodução de um programa de computador pertencente ao autor desse programa, previsto no artigo 4.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2009/24. Ora, numa situação como a que foi evocada no número anterior, o cliente do titular do direito de autor continuará a utilizar a cópia do programa de computador instalada no seu servidor e, por conseguinte, não a inutilizará.

71      Além disso, mesmo que o adquirente de direitos de utilização adicionais do programa de computador em causa não proceda a uma nova instalação – nem, por conseguinte, a uma nova reprodução – do referido programa num servidor que lhe pertença, há que constatar que o efeito do esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 não se estende, seja como for, a esses direitos de utilização. Com efeito, nessa hipótese, a aquisição de direitos de utilização adicionais não diz respeito à cópia relativamente à qual o direito de distribuição se esgotou ao abrigo da referida disposição. Pelo contrário, destina‑se apenas a permitir uma extensão do número de utilizadores da cópia que o próprio adquirente de direitos adicionais já tinha instalado no seu servidor.

72      Com base nas considerações precedentes, há que responder à segunda questão submetida que o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 deve ser interpretado no sentido de que o direito de distribuição da cópia de um programa de computador se esgota se o titular do direito de autor, que autorizou, ainda que a título gratuito, o descarregamento dessa cópia num suporte informático através da Internet, também atribuiu, através do pagamento de um preço que se destina a permitir‑lhe obter uma remuneração correspondente ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário, um direito de utilização da referida cópia, sem limite de duração.

 Quanto à primeira e terceira questões

73      Com a primeira e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se, e em que condições, o adquirente de licenças em segunda mão relativas a programas de computador, como as que são comercializadas pela UsedSoft, pode, devido ao esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, ser considerando um «adquirente legítimo», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24, que, em conformidade com o disposto nesta última disposição, beneficia do direito de reproduzir o programa de computador em causa de forma a poder utilizar o referido programa de acordo com o fim a que esse programa se destina.

74      Resulta do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24 que, salvo cláusula contratual específica em contrário, a reprodução de um programa de computador não se encontra sujeita à autorização do autor do programa quando essa reprodução seja necessária para permitir ao adquirente legítimo utilizar o programa de computador de acordo com o fim a que esse programa se destina, incluindo para corrigir erros.

75      Quando o cliente do titular do direito de autor compra uma cópia de um programa de computador que se encontra no sítio Internet do referido titular do direito, efetua, ao descarregar a dita cópia no seu computador, uma reprodução da mesma que está autorizada nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24. Trata‑se, com efeito, de uma reprodução necessária para permitir ao adquirente legítimo utilizar o programa de computador de acordo com o fim a que esse programa se destina.

76      Além disso, o considerando 13 da Diretiva 2009/24 indica que «as ações de carregamento e funcionamento necessárias à utilização de uma cópia de um programa legalmente adquirido […] não poderão ser proibidas por contrato».

77      Em seguida, há que recordar que o direito de distribuição do titular do direito de autor se esgotou, em conformidade com o disposto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, quando da primeira comercialização na União, por esse titular ou com o seu consentimento, de qualquer cópia, material ou imaterial, do seu programa de computador. Daqui resulta que, nos termos desta disposição e não obstante a existência de disposições contratuais que proíbam uma cessão posterior, o titular do direito em causa deixou de se poder opor à revenda dessa cópia.

78      Na verdade, como resulta do n.° 70 do presente acórdão, o adquirente inicial que procede à revenda de uma cópia material ou imaterial de um programa de computador relativamente à qual o direito de distribuição do titular do direito de autor está esgotado, em conformidade com o disposto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, deve inutilizar a cópia descarregada no seu computador no momento da respetiva revenda, para evitar que seja violado o direito exclusivo desse titular à reprodução do seu programa de computador, previsto no artigo 4.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2009/24.

79      Como refere com razão a Oracle, pode revelar‑se difícil verificar se uma cópia dessa natureza foi inutilizada. No entanto, o titular do direito de autor que distribui cópias de um programa de computador gravadas num suporte material como um CD‑ROM ou um DVD é confrontado com a mesma dificuldade, uma vez que só muito dificilmente pode verificar se o adquirente inicial não criou cópias do programa de computador que continua a utilizar depois de ter comercializado o seu suporte material. Para resolver esta dificuldade, o distribuidor – «clássico» ou «digital» – poderá utilizar medidas técnicas de proteção como, por exemplo, chaves de produto.

80      Na medida em que o titular do direito de autor não se pode opor à revenda de uma cópia de um programa de computador relativamente à qual o direito de distribuição do referido titular está esgotado nos termos do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, há que considerar que o segundo adquirente dessa cópia, bem como qualquer adquirente posterior, constitui um «adquirente legítimo» da mesma, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24.

81      Por conseguinte, em caso de revenda da cópia do programa de computador pelo seu primeiro adquirente, o novo adquirente poderá proceder, em conformidade com o disposto no artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24, ao descarregamento da cópia que lhe terá sido vendida pelo primeiro adquirente no seu computador. Esse descarregamento deverá ser considerado uma reprodução necessária de um programa de computador que permitirá a esse novo adquirente utilizar esse programa de acordo com o fim a que se destina.

82      O argumento da Oracle, da Irlanda, e dos Governos francês e italiano segundo o qual o conceito de «adquirente legítimo», que figura no artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24, visa apenas o adquirente habilitado, ao abrigo de um contrato de licença celebrado diretamente com o titular do direito de autor, a utilizar o programa de computador não procede.

83      Com efeito, esse argumento permitiria que o titular do direito de autor impedisse a utilização efetiva de qualquer cópia em segunda mão em relação à qual o seu direito de distribuição estivesse esgotado, em conformidade com o disposto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, através da invocação do seu direito exclusivo de reprodução previsto no artigo 4.°, n.° 1, alínea a), desta diretiva e privaria assim de efeito útil o esgotamento do direito de distribuição previsto no referido artigo 4.°, n.° 2.

84      No que respeita a uma situação como a que está em causa no processo principal, há que recordar que se constatou, nos n.os 44 e 48 do presente acórdão, que o descarregamento, no servidor do cliente, da cópia do programa de computador que se encontra no sítio Internet do titular do direito e a celebração de um contrato de licença de utilização relativo a essa cópia formam um todo indivisível que deve ser qualificado, no seu conjunto, de comercialização. Ora, atendendo a esse vínculo indivisível entre, por um lado, a cópia que se encontra no sítio Internet do titular do direito de autor, conforme posteriormente corrigida e atualizada, e, por outro, a respetiva licença de utilização, a revenda da licença de utilização envolve a revenda «dessa mesma cópia» na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24 e beneficia assim do esgotamento do direito de distribuição previsto nesta última disposição, independentemente da cláusula constante do contrato de licença e reproduzida no n.° 23 do presente acórdão.

85      Como decorre do n.° 81 do presente acórdão, daqui resulta que o novo adquirente da licença de utilização, como o cliente da UsedSoft, poderá, como «adquirente legítimo», na aceção artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24, da cópia corrigida e atualizada do programa de computador em causa, proceder ao descarregamento dessa cópia a partir do sítio Internet do titular do direito de autor, uma vez que o referido descarregamento constitui a reprodução necessária de um programa de computador que permitirá ao novo adquirente utilizar esse programa de acordo com o fim a que se destina.

86      Contudo, importa recordar que, se a licença adquirida pelo primeiro adquirente se destinar a um número de utilizadores que exceda as suas necessidades, esse adquirente não está autorizado, em razão do esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24, a fragmentar essa licença e a revender apenas o direito de utilização do programa de computador em causa correspondente a um número de utilizadores por si determinado, como foi exposto nos n.os 69 a 71 do presente acórdão.

87      Por outro lado, deve sublinhar‑se que o titular do direito de autor, como a Oracle, pode, em caso de revenda de uma licença de utilização que envolva a revenda de uma cópia de um programa de computador descarregado a partir do seu sítio Internet, assegurar‑se, através de todos os meios técnicos que estejam à sua disposição, de que a cópia de que o vendedor ainda dispõe é inutilizada.

88      Resulta das considerações precedentes que há que responder à primeira e terceira questões submetidas que os artigos 4.°, n.° 2, e 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24 devem ser interpretados no sentido de que, em caso de revenda de uma licença de utilização que envolva a revenda de uma cópia de um programa de computador descarregado a partir do sítio Internet do titular do direito de autor, licença que tinha inicialmente sido concedida ao primeiro adquirente pelo referido titular do direito sem limite de duração e através do pagamento de um preço destinado a permitir a este último obter uma remuneração correspondente ao valor económico da referida cópia da sua obra, o segundo adquirente dessa licença, bem como qualquer adquirente posterior desta última, poderão invocar o esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, desta diretiva e, por conseguinte, poderão ser considerados adquirentes legítimos de uma cópia de um programa de computador, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da referida diretiva, e beneficiar do direito de reprodução previsto nesta última disposição.

 Quanto às despesas

89      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador, deve ser interpretado no sentido de que o direito de distribuição da cópia de um programa de computador se esgota se o titular do direito de autor, que autorizou, ainda que a título gratuito, o descarregamento dessa cópia num suporte informático através da Internet, também atribuiu, através do pagamento de um preço que se destina a permitir‑lhe obter uma remuneração correspondente ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário, um direito de utilização da referida cópia, sem limite de duração.

2)      Os artigos 4.°, n.° 2, e 5.°, n.° 1, da Diretiva 2009/24 devem ser interpretados no sentido de que, em caso de revenda de uma licença de utilização que envolva a revenda de uma cópia de um programa de computador descarregado a partir do sítio Internet do titular do direito de autor, licença que tinha inicialmente sido concedida ao primeiro adquirente pelo referido titular do direito sem limite de duração e através do pagamento de um preço destinado a permitir a este último obter uma remuneração correspondente ao valor económico da referida cópia da sua obra, o segundo adquirente dessa licença, bem como qualquer adquirente posterior desta última, poderão invocar o esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.°, n.° 2, desta diretiva e, por conseguinte, poderão ser considerados adquirentes legítimos de uma cópia de um programa de computador, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da referida diretiva, e beneficiar do direito de reprodução previsto nesta última disposição.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.