Language of document : ECLI:EU:C:2015:320

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 13 de maio de 2015 (1)

Processo C‑44/14

Reino de Espanha

contra

Parlamento Europeu

e

Conselho da União Europeia

«Regulamento (UE) n.° 1052/2013 — Criação do Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (Eurosur) — Protocolo (n.° 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia — Desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen — Cooperação com a Irlanda e com o Reino Unido»





1.        Pode uma medida que constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen, em que alguns Estados‑Membros não participam, criar uma forma de cooperação com esses Estados‑Membros e, em caso afirmativo, em que condições?

2.        Esta é, em substância, a questão fundamental suscitada no presente processo, em que o Reino de Espanha pede ao Tribunal de Justiça a anulação do artigo 19.° do Regulamento (UE) n.° 1052/2013 do Parlamento e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, que cria o Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (Eurosur) (2).

I –    Quadro jurídico

A –    Protocolo de Schengen

3.        Nos termos do artigo 4.° do Protocolo de Schengen (3):

«A Irlanda e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte podem, a todo o tempo, requerer a possibilidade de aplicar, no todo ou em parte, as disposições do acervo de Schengen.

O Conselho deliberará sobre esse pedido por unanimidade dos membros a que se refere o artigo 1.° e do representante do Governo do Estado interessado.»

4.        O artigo 5.° do Protocolo de Schengen, na sua parte aplicável, dispõe:

«1.      As propostas e iniciativas baseadas no acervo de Schengen regem‑se pelas disposições pertinentes dos Tratados.

Neste contexto, caso a Irlanda ou o Reino Unido não tenham, num prazo razoável, notificado por escrito o Conselho do seu desejo de participação, considerar‑se‑á que a autorização prevista no artigo 329.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia foi concedida aos Estados‑Membros a que se refere o artigo 1.° e à Irlanda ou ao Reino Unido, se um destes Estados desejar tomar parte nas áreas de cooperação em causa.

2.      Caso se considere ao abrigo de uma decisão tomada nos termos do artigo 4.° que a Irlanda ou o Reino Unido procederam a uma notificação, podem ainda assim notificar por escrito o Conselho, no prazo de três meses, de que não desejam tomar parte na proposta ou iniciativa em causa. Nesse caso, a Irlanda ou o Reino Unido não participam na sua adoção. […]

[…].»

B –    Regulamento n.° 1052/2013

5.        Nos termos do primeiro considerando do Regulamento n.° 1052/2013, a criação do Sistema Europeu de Vigilância de Fronteiras («[Eurosur]») é «necessária para reforçar o intercâmbio de informações e a cooperação operacional entre as autoridades nacionais dos Estados‑Membros, e também com a Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados‑Membros da União Europeia […] («Agência»). O [Eurosur] dotará essas autoridades e a Agência das infraestruturas e dos instrumentos necessários para melhorar o seu conhecimento da situação e a sua capacidade de reação nas fronteiras externas dos Estados‑Membros da União […] a fim de detetar, prevenir e combater a imigração ilegal e a criminalidade transfronteiriça e de contribuir para garantir a proteção e a salvaguarda da vida dos migrantes».

6.        O considerando 15 explica que o regulamento «inclui disposições sobre a cooperação com os países terceiros vizinhos, porquanto um intercâmbio de informações e uma cooperação bem estruturados e permanentes com esses países, em particular na região do Mediterrâneo, são fatores determinantes para o cumprimento dos objetivos do [Eurosur]».

7.        Por sua vez, o considerando 16 explica que o regulamento «inclui disposições sobre a possibilidade de uma estreita cooperação com a Irlanda e o Reino Unido, que poderão contribuir para melhor alcançar os objetivos do [Eurosur]».

8.        Os considerandos 20 e 21 indicam que o regulamento constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen em que o Reino Unido e a Irlanda não participam, nos termos, respetivamente, da Decisão 2000/365/CE do Conselho (4) e da Decisão 2002/192/CE do Conselho (5). Logo, o Reino Unido e a Irlanda não participam na adoção do regulamento e não ficam a ele vinculados nem sujeitos à sua aplicação.

9.        O artigo 19.° («Cooperação com a Irlanda e com o Reino Unido») prevê:

«1.      Para efeitos do presente regulamento, o intercâmbio de informações e a cooperação com a Irlanda e o Reino Unido podem realizar‑se com base em acordos bilaterais ou multilaterais entre a Irlanda ou o Reino Unido, respetivamente, e um ou vários Estados‑Membros vizinhos, ou através de redes regionais baseadas nesses acordos. Os centros nacionais de coordenação dos Estados‑Membros servem de pontos de contato para trocar informações com as autoridades correspondentes da Irlanda e do Reino Unido no âmbito do [Eurosur]. Uma vez celebrados, tais acordos são notificados à Comissão.

2.      Os acordos a que se refere o n.° 1 devem limitar‑se ao intercâmbio das seguintes informações entre o centro nacional de coordenação de um Estado‑Membro e a autoridade correspondente da Irlanda ou do Reino Unido:

a)      Informações contidas nos quadros de situação nacionais dos Estados‑Membros transmitidas à Agência para efeitos do quadro de situação europeu e do quadro comum de informações além‑fronteiras;

b)      Informações recolhidas pela Irlanda e pelo Reino Unido que sejam relevantes para efeitos do quadro de situação europeu e do quadro comum de informações além‑fronteiras;

c)      Informações a que se refere o artigo 9.°, n.° 9.

3.      Se a Agência ou um Estado‑Membro que não seja parte num dos acordos a que se refere o n.° 1 tiverem prestado informações no contexto do [Eurosur], essas informações só podem ser partilhadas com a Irlanda ou o Reino Unido mediante autorização prévia da Agência ou do Estado‑Membro em causa. Os Estados‑Membros e a Agência devem respeitar qualquer recusa de partilha dessas informações com a Irlanda ou o Reino Unido.

4.      É proibida a posterior transmissão ou comunicação, seja por que meio for, das informações trocadas nos termos do presente artigo a países terceiros ou partes terceiras.

5.      Os acordos a que se refere o n.° 1 devem incluir disposições sobre os encargos financeiros decorrentes da participação da Irlanda e do Reino Unido na sua aplicação.»

II – Tramitação processual e pedidos das partes

10.      No seu recurso, o Reino de Espanha pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        anular o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013;

–        condenar o Parlamento Europeu e o Conselho nas despesas.

11.      O Parlamento Europeu e o Conselho concluem pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar o Reino de Espanha nas despesas.

12.      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2014, foi admitida a intervenção da Irlanda, do Reino Unido e da Comissão em apoio do Parlamento Europeu e do Conselho.

III – Análise

A –    Principais argumentos apresentados pelas partes

13.      Antes de mais, pode ser útil salientar que o Regulamento n.° 1052/2013 foi adotado com base no artigo 77.°, n.° 2, alínea d), TFUE (medidas necessárias à introdução gradual de um sistema integrado de gestão das fronteiras externas). Nenhuma das partes no processo contesta a validade do recurso a esta base jurídica. É igualmente pacífico entre as partes que a vigilância das fronteiras é um elemento do acervo de Schengen em que a Irlanda e o Reino Unido não participam. Por conseguinte, a Irlanda e o Reino Unido não participaram na adoção do Regulamento n.° 1052/2013.

14.      No presente processo, o Reino de Espanha invoca um único fundamento com vista à anulação do artigo 19.° desse regulamento. Em substância, o Reino de Espanha alega que esta disposição viola os artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen. São vários os argumentos apresentados em apoio desta alegação. Resumiremos e analisaremos os argumentos na ordem que nos parece mais lógica.

15.      Primeiro, de acordo com o Governo espanhol, o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 viola o artigo 5.°, n.° 1, do Protocolo de Schengen, uma vez que permite à Irlanda e ao Reino Unido participar no desenvolvimento de uma área do acervo de Schengen que não aceitaram. O Tribunal de Justiça deixou, na verdade, claro que o artigo 5.°, n.° 1, do Protocolo de Schengen apenas é aplicável a propostas e a iniciativas baseadas numa área do acervo de Schengen em que foi admitida a participação de um Estado‑Membro, nos termos do artigo 4.° desse protocolo (6).

16.      Segundo, o Governo espanhol observa que o artigo 4.° do Protocolo de Schengen estabelece um procedimento específico para a participação da Irlanda e do Reino Unido nas disposições do acervo de Schengen, que é um pré‑requisito para a sua participação no desenvolvimento desse acervo. Na sua opinião, todavia, o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 priva esta disposição do seu efeito útil, na medida em que cria um procedimento de participação ad hoc da Irlanda e do Reino Unido no desenvolvimento de um acervo de Schengen em que não participam. O procedimento do artigo 4.° seria, por outras palavras, contornado.

17.      Terceiro, o Governo espanhol alega que uma interpretação diferente dos artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen poria em causa a coerência do sistema instituído pelo Regulamento n.° 1052/2013. Defende que a conclusão potencial de vários acordos nos termos do artigo 19.° desse regulamento aumenta a fragmentação do sistema Eurosur e, assim sendo, deviam ser definidas medidas especiais de adaptação para garantir a sua coerência. Contudo, o Tribunal de Justiça considerou que «a coerência do acervo de Schengen e dos seus futuros desenvolvimentos implica que os Estados que participam neste acervo não estejam obrigados, quando o fazem evoluir [...] a prever medidas especiais de adaptação para os outros Estados‑Membros que não participaram na adoção das medidas relativas às fases anteriores desta evolução» (7).

18.      O Parlamento Europeu e o Conselho — apoiados pela Irlanda, pelo Reino Unido e pela Comissão — contestam estes argumentos. Estas partes salientam que o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 introduz a possibilidade de instituir uma forma limitada de cooperação entre, por um lado, um ou mais Estados‑Membros que participam na criação do Eurosur e, por outro, a Irlanda e o Reino Unido. Esta cooperação não pode ser equiparada, na sua opinião, a uma participação de pleno direito no sistema Eurosur. Também observam que o Regulamento n.° 1052/2013 prevê a possibilidade de criar novas formas de cooperação com países terceiros vizinhos (8). Acrescentam que seria estranho que a Irlanda e o Reino Unido estivessem numa posição que é pior do que a posição de países terceiros vizinhos. Mais importante ainda, a exclusão de qualquer forma de cooperação com a Irlanda e com o Reino Unido seria, na opinião destas partes, contra os interesses dos Estados‑Membros que criaram o sistema Eurosur, dado que as trocas de informação autorizadas nos termos do artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 podem, em última instância, beneficiar o sistema como um todo.

 B —       Apreciação dos argumentos

19.      Em substância, a questão principal suscitada no presente processo é a de saber se uma medida que constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen (a seguir «medida de desenvolvimento de Schengen») em que alguns Estados‑Membros não participam pode validamente criar uma forma de cooperação com esses Estados‑Membros e, em caso afirmativo, em que condições.

20.      Analisaremos esta questão enquanto explicamos as razões pelas quais os vários argumentos apresentados pelo Governo espanhol em apoio do seu fundamento devem ser, na nossa opinião, julgados improcedentes.

1.      O artigo 19.° prevê uma «participação» da Irlanda e do Reino Unido no sistema Eurosur?

21.      O primeiro argumento invocado pelo Governo espanhol é, em substância, o de que o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 prevê uma «participação» da Irlanda e do Reino Unido no sistema Eurosur, em violação do artigo 5.°, n.° 1, do Protocolo de Schengen.

22.      Antes de mais, deve ser recordado que o Protocolo de Schengen — e em especial os seus artigos 3.°, 4.° e 5.° — utiliza o conceito de «participação» com um duplo sentido: enquanto participação nos aspetos procedimentais de uma medida de desenvolvimento de Schengen (a adoção da medida) e enquanto participação nos aspetos substantivos de uma medida de desenvolvimento de Schengen (a aplicação da medida).

23.      No processo Reino Unido/Conselho, o Tribunal já considerou que um Estado‑Membro só pode participar na adoção de uma medida de desenvolvimento de Schengen se tiver previamente aceitado a área do acervo de Schengen em que se insere a medida a adotar ou de que constitui um desenvolvimento (9). Neste acórdão, o Tribunal referiu‑se especificamente à adoção da medida, visto que o recorrente tinha alegado que, ao excluí‑lo do procedimento de adoção do Regulamento n.° 2007/2004, o Conselho tinha violado o artigo 5.° do Protocolo de Schengen (10).

24.      Contudo, parece‑nos evidente que as conclusões do Tribunal são também aplicáveis no caso da participação de um Estado‑Membro nos aspetos substantivos de uma medida de desenvolvimento de Schengen. Por outras palavras, um Estado‑Membro que não aceitou parte do acervo de Schengen não pode participar, juntamente e a par com os outros Estados‑Membros, na aplicação de uma medida de desenvolvimento de Schengen. Essa interpretação do Protocolo de Schengen está também refletida nos considerandos do Regulamento n.° 1052/2013: os considerandos 20 e 21 referem que a Irlanda e o Reino Unido «não participa[m] na sua adoção» e que «não fica[m] a ele vinculado[s] nem sujeito[s] à sua aplicação». Nenhuma das partes no presente processo parece contestar esta leitura do Protocolo de Schengen.

25.      Por conseguinte, concordamos, em princípio, com o Governo espanhol quando afirma que o legislador da UE não pode adotar uma medida de desenvolvimento de Schengen que atribui a Estados‑Membros que não participam no acervo de Schengen que lhe está subjacente uma posição essencial ou amplamente semelhante à posição dos Estados‑Membros que participam nesse acervo. Por outras palavras, uma medida de desenvolvimento de Schengen não pode permitir o que é, em substância, uma participação dissimulada dos Estados‑Membros que não aceitaram o acervo correspondente. Tal medida, na nossa opinião, violaria ambos os artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen, na medida em que os procedimentos e as condições de participação aí previstos seriam, basicamente, contornados (11).

26.      Feita esta precisão, há que salientar que não cremos que o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 confira à Irlanda e ao Reino Unido uma posição essencial ou amplamente semelhante à posição dos Estados‑Membros que adotaram esse regulamento. Por conseguinte, não estamos persuadidos de que esta disposição introduza uma forma de participação da Irlanda e do Reino Unido na aplicação do Eurosur. Uma série de elementos contradizem uma tal conclusão.

27.      Primeiro, como o Governo irlandês e o Governo do Reino Unido salientaram, a Irlanda e o Reino Unido não participam no objetivo central do Regulamento n.° 1052/2013 que é o de criar um «quadro comum» para o intercâmbio de informações e a cooperação entre os Estados‑Membros e a Agência destinado a melhorar o conhecimento da situação nas fronteiras externas dos Estados‑Membros da União (12). Os Estados‑Membros que participam no Eurosur têm, para esse fim, acesso a toda a informação contida na «rede de comunicações» (13) e, nomeadamente, ao «quadro de situação europeu» ou ao «quadro comum de informações além‑fronteiras» (14).

28.      Esta situação contrasta fortemente com a situação da Irlanda e do Reino Unido ao abrigo do Regulamento n.° 1052/2013. Com efeito, a disposição controvertida apenas prevê, sob certas condições, uma troca limitada de informações entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e a Irlanda e o Reino Unido, por outro.

29.      A informação que os Estados‑Membros que participam nos acordos bilaterais ou multilaterais com a Irlanda e o Reino Unido estão autorizados a trocar é apenas a informação prevista no artigo 19.°, n.° 2, alíneas a) e c), do Regulamento n.° 1052/2013. Esta informação diz fundamentalmente respeito a dados pertinentes para avaliar a situação nas fronteiras desses dois Estados‑Membros ou dos seus Estados vizinhos (15). Os Estados‑Membros que participam no Eurosur estão, além disso, apenas autorizados a permitir o acesso às suas próprias informações. Em contrapartida, se outro Estado‑Membro ou a Agência tiverem prestado informações no contexto do Eurosur, essas informações só podem ser partilhadas com a Irlanda ou o Reino Unido mediante autorização prévia do Estado‑Membro em causa ou da Agência (16).

30.      Segundo, como o Conselho e o Parlamento Europeu salientaram, as outras principais componentes do sistema Eurosur, previstas nos artigos 4.° a 7.° do Regulamento n.° 1052/2013, também não se aplicam à Irlanda e ao Reino Unido. Por exemplo, estes Estados‑Membros não estão obrigados a criar centros nacionais de coordenação que cumpram o disposto no artigo 5.° desse regulamento. A Irlanda e o Reino Unido também não têm de adotar as medidas previstas nos artigos 14.° a 16.° desse regulamento com vista a reforçar a sua capacidade de reação.

31.      Terceiro, a disposição controvertida apenas permite formas de cooperação entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e a Irlanda ou o Reino Unido, por outro. Não está prevista nenhuma cooperação ou outras formas de colaboração entre estes últimos e a Agência no âmbito do sistema Eurosur (17). Tal não é um mero detalhe, uma vez que o trabalho da Agência é crucial para a gestão e o funcionamento diários do sistema Eurosur (18).

32.      À luz do que precede, não cremos que se possa considerar que a disposição em causa crie uma nova forma de participação da Irlanda e do Reino Unido na aplicação do Eurosur. Por conseguinte, entendemos que o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 não viola o artigo 5.°, n.° 1, do Protocolo de Schengen.

2.      O artigo 19.° priva o artigo 4.° do Protocolo de Schengen do seu efeito útil?

33.      O segundo argumento invocado pelo Governo espanhol impõe que se analise se o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 priva, em substância, o artigo 4.° do Protocolo de Schengen do seu efeito útil, na medida em que introduz um procedimento de participação ad hoc no desenvolvimento de um acervo de Schengen em que a Irlanda e o Reino Unido não participam. Assim sendo, o objetivo do artigo 4.° — maximizar a participação dos Estados‑Membros no acervo de Schengen — ficaria comprometido.

34.      Este argumento merece uma atenção particular.

35.      Estamos conscientes da necessidade de evitar que Estados‑Membros que não participam em algumas partes do acervo de Schengen escolham de forma seletiva as partes das correspondentes medidas de desenvolvimento de Schengen que considerarem convenientes, e desconsiderem outras. Uma abordagem à la carte — mesmo nesta área do direito da UE em que alguma diferenciação é permitida — não só é dificilmente compatível com os princípios de solidariedade entre os Estados‑Membros e de igualdade dos Estados‑Membros perante os Tratados, que estão no centro do projeto de integração europeia (19), como também seria incompatível com o objetivo do artigo 4.° do Protocolo de Schengen que é, como o Tribunal de Justiça referiu, o de garantir uma participação máxima de todos os Estados‑Membros no acervo de Schengen (20).

36.      Não obstante, no presente caso, não cremos que o legislador da UE tenha adotado uma abordagem à la carte no que respeita à cooperação com a Irlanda e o Reino Unido no âmbito do sistema Eurosur suscetível de pôr em causa o objetivo do artigo 4.° do Protocolo de Schengen.

37.      Em primeiro lugar, como acima explicado nos n.os 26 a 31, os aspetos‑chave do sistema Eurosur não se aplicam à Irlanda e ao Reino Unido. O artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 apenas autoriza a criação de formas limitadas de cooperação no âmbito de aplicação do Eurosur.

38.      Em segundo lugar, o risco de pôr em causa o objetivo do artigo 4.° do Protocolo de Schengen surgiria sobretudo, na nossa opinião, se uma medida de desenvolvimento de Schengen conferisse uma posição especial ou particular aos Estados‑Membros que não participam no acervo, o que não é principalmente do interesse dos Estados‑Membros que participam nessa medida. Na verdade, qualquer cooperação com os Estados‑Membros que não participam na medida de desenvolvimento de Schengen não deve ser determinada apenas por referência aos interesses nacionais desses Estados‑Membros. Se essa cooperação é adequada e, no caso afirmativo, sob que forma o é, constitui, na nossa opinião, sobretudo, uma questão política que cabe ao legislador da UE decidir e que é objeto de uma fiscalização jurisdicional limitada a um erro manifesto de apreciação (21).

39.      No que respeita ao Regulamento n.° 1052/2013, não temos qualquer dificuldade em concordar com as partes que alegam que é também do interesse dos Estados‑Membros que participam no sistema Eurosur (e, por extensão, do interesse da União no seu conjunto) que seja possível alguma forma de intercâmbio de informações com a Irlanda e com o Reino Unido relativamente à situação nas fronteiras. A cooperação com esses países resultaria, com efeito, num alargamento do âmbito geográfico do território sujeito a vigilância e num maior volume da informação trocada, especialmente porque ambas as fronteiras da Irlanda e do Reino Unido fazem parte das fronteiras da União.

40.      Além do mais, como o Governo do Reino Unido referiu na audiência, é possível que a informação recebida pelos Estados‑Membros que concluíram um acordo com a Irlanda ou com o Reino Unido da parte destes últimos possa, através dos seus quadros de situação nacionais estar, eventualmente, disponível para os outros participantes no Eurosur. Consequentemente, ainda que apenas parcial ou indiretamente, outros Estados‑Membros podem também beneficiar da conclusão de acordos nos termos do artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013.

41.      Em terceiro lugar, o argumento invocado pela Espanha, em substância, equivale a afirmar que os artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen excluem, no contexto da aplicação de uma medida de desenvolvimento de Schengen, qualquer tipo de cooperação com os Estados‑Membros que não participaram nessa medida.

42.      Tal argumento parece‑nos ser claramente incorreto. Como a Comissão afirmou com uma vívida metáfora, aceitar este argumento significaria que a Irlanda e o Reino Unido se tornam um tipo de «marginais» com os quais não se pode estabelecer qualquer relação em certas áreas. Tal consequência parece ser desproporcionada, na medida em que penaliza a Irlanda e o Reino Unido de uma forma que excede o que é necessário para os encorajar a participar no acervo de Schengen e nos seus desenvolvimentos. Na verdade, poderia suscitar problemas ao abrigo do artigo 4.°, n.° 3, TUE. Como a Comissão salientou na audiência, o princípio da cooperação leal aplica‑se mutuamente: os Estados‑Membros que não participam no acervo de Schengen devem abster‑se de qualquer medida que possa pôr em causa os desenvolvimentos desse acervo, mas os Estados‑Membros que participam nesse acervo devem respeitar e assistir os Estados‑Membros que decidiram permanecer de fora.

43.      Além disso, essa interpretação do Protocolo de Schengen também penalizaria os outros Estados‑Membros e a UE no seu conjunto, como acima referido nos n.os 39 e 40, uma vez que a cooperação com os Estados‑Membros que não participam em algum do acervo de Schengen pode muito bem ser útil e desejável para melhorar a eficácia das correspondentes medidas de Schengen. Por último, afigura‑se‑nos difícil de aceitar que uma medida de desenvolvimento de Schengen possa legitimamente originar uma cooperação com países terceiros vizinhos (22) mas não com os Estados‑Membros da UE que nela não participam. Concordamos com as partes que alegam que a posição desses Estados‑Membros não pode ser pior do que a posição de que gozam os não Estados‑Membros (23). É quase desnecessário salientar que — uma vez que os artigos 19.° e 20.° do Regulamento n.° 1052/2013 são amplamente semelhantes — o argumento invocado pela Espanha parece deixar subentender que esta última disposição introduziu um procedimento de participação ad hoc em benefício de países vizinhos terceiros. Esta seria, com efeito, uma estranha conclusão.

44.      Por estes motivos, o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 não priva, na nossa opinião, o artigo 4.° do Protocolo de Schengen do seu efeito útil.

3.      O artigo 19.° põe em causa a coerência do Sistema Eurosur?

45.      Por fim, resta examinar o último argumento invocado pelo Governo espanhol, relativo a um alegado enfraquecimento da coerência do sistema Eurosur. Alega que a coexistência de diferentes acordos com a Irlanda e com o Reino Unido poderia aumentar a fragmentação deste sistema e obrigar a União a adotar medidas especiais de adaptação de natureza financeira e administrativa.

46.      Há que dizer, antes de mais, que consideramos que este argumento não é totalmente claro. Entendemo‑lo como significando que, segundo o Governo espanhol, a celebração de diferentes acordos com a Irlanda e com o Reino Unido podia potencialmente prejudicar um funcionamento efetivo e harmonioso do sistema Eurosur.

47.      Neste contexto, não hesitamos em considerar incompatível com os artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen qualquer disposição de uma medida de desenvolvimento de Schengen que confere a um Estado‑Membro que nela não participa, através da sua conduta, a possibilidade de afetar a aplicação ou a execução dessa medida.

48.      Contudo, não vemos — nem o Governo espanhol explicou — por que é que assim sucedia no caso da Irlanda e do Reino Unido nos termos do Regulamento n.° 1052/2013. Não estamos convencidos de que a celebração de diferentes acordos, nos termos do artigo 19.° desse regulamento, possa pôr em causa o funcionamento correto e eficaz do sistema Eurosur.

49.      É verdade que os Estados‑Membros que celebraram acordos com a Irlanda e o Reino Unido podem não estar em condições de partilhar todas as informações obtidas com base nesses acordos através da rede de comunicações do Eurosur. Porém, embora possa ser mais ou menos útil para os Estados‑Membros que as recebem, estas informações complementares não parecem afetar a capacidade ou o incentivo dos Estados‑Membros para respeitar as suas obrigações no âmbito do sistema Eurosur. Consequentemente, a posição dos Estados‑Membros que participam no Eurosur e que não celebraram nenhum acordo com a Irlanda e o Reino Unido não seria, de modo algum, afetada negativamente. Quando muito, como já foi explicado, é provável que daí beneficiem (24).

50.      O próprio artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 contém, de resto, duas cláusulas de salvaguarda para esse fim. O seu n.° 1 especifica que qualquer acordo celebrado nos termos desta disposição tem de ser notificado à Comissão. Esta regra visa claramente evitar possíveis problemas resultantes da celebração de tais acordos. Caso algum destes acordos suscite questões de compatibilidade com o sistema criado pelo Regulamento n.° 1052/2013, a Comissão tem o direito de dar início a um processo por incumprimento contra o Estado‑Membro responsável.

51.      Outra cláusula de salvaguarda consta do n.° 4 do artigo 19.°, nos termos do qual «[é] proibida a posterior transmissão ou comunicação, seja por que meio for, das informações trocadas nos termos do [artigo 19.°] a países terceiros ou partes terceiras». Esta disposição parece adequada para garantir a confidencialidade da informação partilhada com a Irlanda e o Reino Unido.

52.      Por conseguinte, qualquer fragmentação do sistema Eurosur seria, na nossa opinião, não o resultado dos acordos celebrados nos termos do artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013, mas a consequência inevitável das disposições de direito primário da UE relativas a Schengen. Quando muito, o artigo 19.° pretende limitar e racionalizar essa fragmentação ao introduzir um número de condições para a celebração de acordos bilaterais e multilaterais que estão fora do âmbito do Eurosur. Na verdade, na ausência de uma disposição como o artigo 19.°, os Estados‑Membros teriam ainda mais margem para celebrar acordos internacionais sobre a partilha de informações relativas à vigilância das fronteiras.

53.      Feita esta precisão, salientamos que o Governo espanhol também não explicou que tipo de medidas especiais de adaptação a União Europeia teria de adotar para garantir a coerência do sistema Eurosur, caso os acordos previstos no artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 fossem celebrados.

54.      Evidentemente, nenhuma medida especial de adaptação teria de ser adotada pela União Europeia relativamente aos encargos resultantes dos acordos previstos no artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013. O n.° 5 desta disposição prevê, com efeito, que estes acordos «devem incluir disposições sobre os encargos financeiros decorrentes da participação da Irlanda e do Reino Unido na sua aplicação».

55.      De qualquer modo, consideramos que a referência feita pelo Governo espanhol à jurisprudência do Tribunal de Justiça assenta numa leitura errada da mesma. No processo Reino Unido/Conselho, o Tribunal declarou que os Estados‑Membros que adotam uma medida de desenvolvimento de Schengen não estão obrigados a estabelecer medidas especiais de adaptação para os outros Estados‑Membros que não participam nessa medida ou no correspondente acervo (25). Tal não significa, contudo, que estejam impedidos de o fazer quando a adoção de algumas medidas especiais de adaptação se revelem adequadas ou úteis para o desenvolvimento do acervo de Schengen.

56.      À luz do que precede, consideramos que o terceiro argumento apresentado pelo Reino de Espanha em apoio do seu recurso está votado ao insucesso.

 C —      Considerações finais

57.      A título de conclusão geral, gostaríamos de resumir as nossas conclusões.

58.      Não estamos convencidos de que uma medida de desenvolvimento de Schengen, em que alguns Estados‑Membros não participaram, não possa estabelecer uma forma de cooperação com esses Estados‑Membros. Pelo contrário, alguma cooperação com esses Estados‑Membros pode ser desejável se for suscetível de melhorar a eficácia do sistema estabelecido.

59.      Contudo, há algumas condições que têm de ser respeitadas para que essa cooperação seja compatível com as regras previstas no Protocolo de Schengen. Não pretendendo ser exaustivos, somos da opinião de que as seguintes condições são particularmente importantes.

60.      Primeiro, a cooperação criada não pode constituir uma participação dissimulada na aplicação da medida que contorne as condições e os procedimentos previstos nos artigos 4.° e 5.° do Protocolo de Schengen. Parece‑nos difícil identificar um critério claro que permita fazer uma distinção entre «participação» e «cooperação». Porém, a este respeito, parece ser particularmente pertinente a questão de saber se a posição dos Estados‑Membros que não participam na medida de desenvolvimento de Schengen é essencial ou amplamente semelhante à posição de que gozam os Estados‑Membros que participam nessa medida.

61.      Segundo, esta cooperação não deve ser o fruto de uma abordagem à la carte que contrarie a finalidade daquelas disposições: incentivar uma participação máxima de todos os Estados‑Membros no acervo de Schengen e nos seus desenvolvimentos. Qualquer cooperação com os Estados‑Membros que não participam na medida de desenvolvimento de Schengen deve ser determinada principalmente por referência aos interesses dos Estados‑Membros que participam nessa medida.

62.      Terceiro, essa cooperação não pode colocar os Estados‑Membros que não participam nessa medida numa posição em que poderiam, através da sua conduta, afetar o funcionamento correto e eficaz do sistema criado pela medida.

63.      No entanto, não nos parece que o artigo 19.° do Regulamento n.° 1052/2013 autorize uma cooperação com Estados‑Membros que não participam no sistema Eurosur que suscite alguma destas questões de compatibilidade com o Protocolo de Schengen.

IV – Despesas

64.      Nos termos do artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Parlamento Europeu e o Conselho pedido a condenação do Reino de Espanha e tendo este sido vencido, há que condená‑lo nas despesas.

65.      De acordo com o artigo 140.°, n.° 1, do Regulamento de Processo, os Estados‑Membros e as instituições que intervieram no processo suportarão as suas próprias despesas. Assim, a Irlanda, o Reino Unido e a Comissão devem suportar as suas próprias despesas.

V –    Conclusão

66.      Perante as considerações que precedem, propomos que o Tribunal de Justiça decida:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar o Reino de Espanha nas despesas; e

–        condenar a Irlanda, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e a Comissão a suportar as suas próprias despesas.


1 —      Língua original: inglês.


2 —      JO L 295, p. 11.


3 —      Protocolo (n.° 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (JO 2012, C 326, p. 290).


4 —      Decisão de 29 de maio de 2000, sobre o pedido do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 131, p. 43).


5 —      Decisão de 28 de fevereiro de 2002 sobre o pedido da Irlanda para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 64, p. 20).


6 —      Acórdãos Reino Unido/Conselho (C‑77/05, EU:C:2007:803, n.os 54 a 71), e Reino Unido/Conselho (C‑137/05, EU:C:2007:805, n.os 49 e 50).


7 —      Acórdão Reino Unido/Conselho (C‑482/08, EU:C:2010:631, n.° 49).


8 —      Artigo 20.° desse regulamento.


9 —      V., neste sentido, acórdão Reino Unido/Conselho (C‑77/05, EU:C:2007:803, n.° 62).


10 —      Ibidem, n.° 37.


11 —      Por exemplo, o artigo 4.° do Protocolo de Schengen dispõe que o Conselho delibera por unaninimidade dos membros a que se refere o artigo 1.° do mesmo protocolo e do representante do Estado interessado sobre qualquer pedido da Irlanda e do Reino Unido de aplicar, no todo ou em parte, as disposições do acervo de Schengen. Em contrapartida, as medidas de desenvolvimento de Schengen baseadas em várias disposições do TFUE [incluindo, por exemplo, o artigo 77.°, n.° 2, alínea d)], são adotadas através do processo legislativo ordinário.


12 —      V. considerando 1 e artigo 1.° do Regulamento n.° 1052/2013.


13 —      Instituída de acordo com o artigo 7.° do Regulamento n.° 1052/2013.


14 —      V., respetivamente, artigos 10.° e 11.° do Regulamento n.° 1052/2013. V. também artigo 4.°, n.° 3, desse regulamento.


15 —      V. artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1052/2013.


16 —      Artigo 19.°, n.° 3, do Regulamento n.° 1052/2013. V., entre outros, as informações fornecidas pela Agência nos termos do artigo 12.°, n.° 2, desse regulamento.


17 —      V., neste sentido, artigo 18.° do Regulamento n.° 1052/2013.


18 —      V., nomeadamente, considerandos 6, 8 e 9 do regulamento.


19 —      V., respetivamente, artigos 3.°, n.° 3, e 4.°, n.° 2, TUE.


20 —      Acórdão Reino Unido/Conselho (C‑77/05, EU:C:2007:803, n.os 66 e 67).


21 —      V., neste sentido, em termos gerais, conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs nos processos apensos SAM Schiffahrt e Stapf (C‑248/95 e C‑249/95, EU:C:1997:92, n.os 23 e 24); também referido nas conclusões do advogado‑geral Y. Bot nos processos apensos Espanha/Conselho (C‑274/11 e C‑295/11, EU:C:2012:782, n.° 27).


22 —      V. artigo 20.° do Regulamento n.° 1052/2013 e considerando 15 desse regulamento.


23 —      Com a exceção notável dos não Estados‑Membros que fazem parte do espaço Schengen: Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. V. considerandos 22 a 24 do Regulamento n.° 1052/2013.


24 —      N.° 40 das presentes conclusões.


25 —      C‑482/08, EU:C:2010:631.