Language of document : ECLI:EU:C:2012:700

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 8 de novembro de 2012 (1)

Processo C‑415/11

Mohamed Aziz

contra

Caixa d’Estalvis de Catalunya, Tarragona i Manresa (Catalunyacaixa)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n° 3 de Barcelona (Espanha)]

«Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Empréstimo hipotecário — Modalidades de proteção jurídica no âmbito de um processo executivo — Desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato — Juros de mora — Vencimento antecipado do empréstimo»





I —    Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (2).

2.        Mohamed Aziz, demandante no processo principal, celebrou um contrato de empréstimo com o banco demandado para financiar a aquisição de uma habitação própria e constituiu uma hipoteca para garantir este empréstimo. Devido a dificuldades de pagamento por parte de M. Aziz, a demandada executou o imóvel no âmbito de uma ação de execução hipotecária simplificada prevista no direito espanhol.

3.        Nos termos da ação de execução, M. Aziz invocou num processo autónomo o caráter abusivo de uma cláusula do contrato de empréstimo. O órgão jurisdicional de reenvio indicou que o caráter abusivo de cláusulas do contrato de empréstimo não pode ser invocado no âmbito do processo de execução hipotecária, pois esse fundamento só pode ser invocado pelo consumidor numa ação declarativa diferente. Contudo, com esta ação, o consumidor não consegue influenciar a execução. Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se as disposições processuais nacionais que impedem que o caráter abusivo de cláusulas seja invocado são compatíveis com a Diretiva 93/13. O órgão jurisdicional de reenvio questiona ainda a legalidade de determinadas cláusulas do contrato de empréstimo.

4.        O presente processo oferece ao Tribunal de Justiça a oportunidade de desenvolver a sua jurisprudência relativa à garantia efetiva da tutela do consumidor através do direito processual nacional. Além disso, está em causa a análise das circunstâncias que devem ser tidas em conta na determinação do caráter abusivo de uma cláusula contratual.

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

5.        Nos termos do artigo 3.° da Diretiva 93/13:

«1. Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

[...]

3. O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»

6.        O artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 prevê:

«Sem prejuízo do artigo 7.°, o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.»

7.        O artigo 7.°, n.° 1, desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

8.        O anexo da Diretiva 93/13, sob a epígrafe «Cláusulas previstas no n.° 3 do artigo 3.°», refere:

«1.      Cláusulas que têm como objetivo ou como efeito:

[…]

e)      Impor ao consumidor que não cumpra as suas obrigações uma indemnização de montante desproporcionalmente elevado; [...]

[...]

q)      Suprimir ou entravar a possibilidade de intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor, nomeadamente obrigando‑o a submeter‑se exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não abrangida por disposições legais, limitando indevidamente os meios de prova à sua disposição ou impondo‑lhe um ónus da prova que, nos termos do direito aplicável, caberia normalmente a outra parte contratante.

[…]»

B —    Direito nacional

9.        O processo judicial de execução hipotecária encontra‑se regulado nos artigos 693.° e 695.° a 698.° do Código de Processo Civil espanhol (3).

10.      O artigo 695.° da LEC prevê:

«1.      Nos processos a que se refere este capítulo só será admitida a oposição do executado quando baseada nos seguintes fundamentos:

1)      Extinção da garantia ou da obrigação garantida, sempre que resulte de certidão do registo que certifique o cancelamento da hipoteca ou, se for caso disso, do penhor sem entrega do bem empenhado ou de escritura pública que certifique o pagamento da dívida ou o cancelamento da garantia.

2)       Erro na determinação do valor exigível nos casos em que a dívida garantida corresponda ao saldo de encerramento de uma conta entre exequente e executado. O executado deverá juntar o seu exemplar do extrato de conta e apenas se admitirá a oposição nos casos em que o saldo do referido extrato divirja do apresentado pelo exequente.

[...]

2.      Se for formulada a oposição nos termos do n.° 1, o secretário suspenderá a execução e convocará as partes para comparecerem perante o órgão jurisdicional que ordenou a execução, devendo entre a citação e a data da audiência mediar pelo menos quatro dias; nesta audiência, o tribunal ouvirá as partes, admitirá os documentos apresentados e proferirá a decisão que considere adequada, mediante despacho, no prazo de dois dias.

[...]»

11.      O artigo 698.° da LEC determina o seguinte:

«1. Qualquer reclamação que o devedor, o terceiro executado e qualquer interessado formulem e que não esteja abrangida pelos artigos anteriores, incluindo as que digam respeito à nulidade do título ou ao vencimento, à certeza, à extinção ou ao valor da dívida, será resolvida no processo pertinente, sem nunca produzir efeito suspensivo nem interromper o processo previsto no presente capítulo.

[...]

2. Ao formular a reclamação a que se refere o número anterior ou no decurso do processo a que esta der lugar poderá requerer‑se que a eficácia da sentença que venha a ser proferida no mesmo seja garantida mediante a retenção da totalidade ou de uma parte do valor que deva ser restituído ao credor no âmbito do processo regulado no presente capítulo.

O tribunal, mediante despacho, decretará esta retenção tendo em conta os documentos apresentados, caso entenda que os motivos alegados são suficientes. Se o requerente não for manifesta e suficientemente solvente, o tribunal deverá exigir‑lhe uma garantia prévia e bastante para juros de mora e para o ressarcimento de quaisquer outros danos e prejuízos que o credor possa vir a sofrer.

3. Se o credor prestar garantia adequada do valor cuja retenção tenha sido ordenada no processo referido no n.° 1, a retenção será levantada.»

III — Matéria de facto e pedido de decisão prejudicial

12.      Em julho de 2007, M. Aziz celebrou um contrato de empréstimo com garantia hipotecária com a Caixa d’Estalvis de Catalunya, Tarragona i Manresa (Catalunyacaixa) (4) por escritura pública outorgada perante notário. A finalidade principal deste contrato de empréstimo de um capital de 138 000 euros era o pagamento da dívida remanescente para com outra instituição de crédito, para aquisição de uma casa de morada de família no valor de 115 821 euros. O bem hipotecado continuou a ser a casa de morada de família, avaliada no contrato de empréstimo celebrado perante notário em 194 000 euros. Nessa altura, os rendimentos mensais fixos de M. Aziz ascendiam a 1 341 euros.

13.      O pedido de decisão prejudicial apresentou o seguinte resumo das cláusulas principais do contrato: o prazo previsto para a amortização do empréstimo era de 33 anuidades, a pagar em 396 prestações mensais a partir de 1 de agosto de 2007 até 31 de julho de 2040. O montante de cada prestação mensal era de 701,04 euros, enquanto não se alterasse a taxa de juros inicial. Os juros compensatórios foram fixados do seguinte modo: até 30 de janeiro de 2008 aplicavam‑se juros fixos a uma taxa nominal anual de 4,87%. A partir do dia seguinte e até à total amortização do empréstimo, a taxa de juro nominal passava a ser variável (Euribor acrescida de 1,10%).

14.      A sexta cláusula do contrato previa que o mutuário incorria em mora sem necessidade de qualquer interpelação ou reclamação se não pagasse as quantias devidas a título de capital ou juros na data do vencimento — incluindo do vencimento antecipado. Os juros de mora são liquidados dia a dia à taxa de 18,75%.

15.      Era ainda determinado que a Caixa podia recorrer ao vencimento antecipado da totalidade do empréstimo, designadamente, quando se vencesse uma das prestações acordadas e o devedor incorresse em incumprimento da obrigação de pagamento do capital ou dos juros do empréstimo. As partes acordaram em inscrever esta causa de vencimento no registo predial para que, sendo caso disso, a totalidade da dívida pudesse ser exigida judicialmente (capital acrescido de juros) nos termos do disposto no artigo 693.° da LEC.

16.      A décima primeira cláusula dizia respeito à constituição da hipoteca. A hipoteca garantia o capital mutuado de 138 000 euros, os juros acordados correspondentes a uma anuidade e os juros de mora até um montante máximo de 51 750 euros e ainda 13 800 euros a título de provisão para encargos e despesas. A referida hipoteca não afastava a responsabilidade pessoal do mutuário.

17.      A décima quinta cláusula tinha por objeto a execução judicial da hipoteca: estabelecia a avaliação do imóvel constante do contrato de empréstimo celebrado perante o notário (194 000 euros). Ficou acordado que a dívida podia ser exigida em ação declarativa ou em ação executiva ordinária ou hipotecária. Era expressamente concedido à Caixa o direito de determinar unilateralmente, para efeitos da execução, o montante da dívida exigível desde que, com a escritura de constituição da hipoteca, juntasse a liquidação dos montantes em dívida pela forma acordada na escritura pública e a respetiva certidão.

18.      A partir de outubro de 2007, M. Aziz não pagou várias prestações (outubro de 2007, dezembro de 2007, janeiro de 2008, fevereiro de 2008, março de 2008, abril de 2008 e maio de 2008). Devido ao atraso nos pagamentos, a Caixa cobrou os juros de mora acordados. No período entre 31 de julho de 2007 — data de vencimento da primeira prestação do empréstimo — e 31 de maio de 2008, M. Aziz pagou 1 325,98 euros de capital e 6 656,44 euros de juros compensatórios e moratórios.

19.      No final de maio de 2008, M. Aziz deixou de pagar com certa regularidade as prestações mensais do seu crédito. A Caixa exerceu o seu direito ao vencimento antecipado do crédito. Como consequência do vencimento antecipado, a Caixa exigiu o pagamento total do crédito (capital e juros).

20.      Em outubro de 2008, um representante da Caixa dirigiu‑se ao notário com o objetivo de obter certidão relativa à liquidação do montante em dívida por M. Aziz. Na certidão notarial, a dívida — liquidada segundo critérios matemático‑financeiros geralmente admitidos — foi quantificada de acordo com as condições acordadas pelas partes e nos termos dos certificados emitidos pela instituição financeira em 139 764,76 euros. Este montante decompõe‑se nos seguintes montantes parciais: 136 674,02 euros de capital, 3 017,97 euros de juros compensatórios e 72,77 euros de juros de mora.

21.      Em janeiro de 2009, a Caixa enviou um telegrama a M. Aziz no qual lhe comunicava a propositura de uma ação judicial para exigir o montante em dívida até 16 de outubro de 2008, acrescido dos juros contratuais a partir dessa data até ao pagamento integral e das despesas correspondentes. O telegrama no qual era exigido o pagamento da dívida foi entregue ao domicílio, em 2 de fevereiro de 2009, a um familiar de M. Aziz.

22.      Em março de 2009, a Caixa intentou uma ação de execução hipotecária com título extrajudicial nos termos do código de processo civil espanhol, na qual exigia a M. Aziz 136 674,02 euros a título de capital, 90,74 euros a título de juros vencidos e 41 902,21 euros a título de juros e custas. À data da interposição da ação de execução hipotecária, as prestações vencidas e não pagas ascendiam a 3 153,46 euros. A ação hipotecária tinha por objeto o imóvel hipotecado, ou seja, a casa de morada de M. Aziz e da sua família.

23.      O processo judicial de execução hipotecária foi atribuído ao Juzgado de Primera Instancia n.° 5 de Martorell. Esse órgão jurisdicional exigiu a M. Aziz, sem sucesso, o pagamento da dívida.

24.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, nos termos do processo civil espanhol, os fundamentos de oposição no âmbito do processo judicial de execução hipotecária são limitados. É apenas possível invocar a extinção da garantia ou da obrigação garantida, um erro de cálculo do montante devido (quando a dívida corresponda ao saldo de encerramento de uma conta entre exequente e executado) e a existência de outra hipoteca — não cancelada — anteriormente registada. Nenhum destes fundamentos é aplicável no presente processo.

25.      Segundo o artigo 698.°, n.° 1, da LEC, qualquer oposição que o devedor pretenda deduzir com base noutros fundamentos (como a validade das cláusulas do empréstimo que originou a dívida) deverá ser julgada numa ação declarativa diferente, sem efeitos suspensivos do processo de execução judicial. Nos termos do artigo 698.°, n.° 2, da LEC, o órgão jurisdicional competente neste processo de declaração só pode garantir a execução da sentença nele proferida retendo a totalidade ou parte do preço da venda judicial que deva ser entregue ao credor.

26.      Mohamed Aziz não compareceu no processo de execução nem invocou qualquer fundamento de oposição à execução. Também não exerceu a faculdade de «liberar o bem» e evitar a venda judicial, em conformidade com o artigo 693.°, n.° 3, da LEC, mediante pagamento das prestações em dívida no momento da execução, acrescidas dos juros, custas e despesas.

27.      Por conseguinte, em 15 de dezembro de 2009, foi proferido despacho de execução do imóvel hipotecado.

28.      A venda judicial do bem hipotecado teve lugar em 20 de julho de 2010, à qual não compareceram quaisquer proponentes. Por consequência, a Caixa solicitou a adjudicação do imóvel por 50% do valor da avaliação (97 200,00 euros), o que pode ser feito nos termos do direito espanhol e o que veio então a suceder. Assim, M. Aziz perdeu a propriedade da sua casa e, além disso, continua a dever à Caixa mais de 40 000 euros de capital a que acrescem os juros e custas em aberto. Em 20 de janeiro de 2011, a comissão judicial nomeada pelo Juzgado de Primera Instancia n.° 5 de Martorell deslocou‑se ao imóvel objeto de venda judicial para investir a Caixa na posse do imóvel. M. Aziz foi despejado do imóvel.

29.      No processo principal que corre termos no órgão jurisdicional de reenvio, o Juzgado Mercantil n.° 3 de Barcelona, M. Aziz, na qualidade de demandante, requer que seja declarado o caráter abusivo e, por conseguinte, conforme o órgão jurisdicional de reenvio esclarece, por consequência, a nulidade do processo de execução. O órgão jurisdicional de reenvio suspendeu o seu processo até resposta às questões prejudiciais.

30.      O Juzgado de lo Mercantil n° 3 de Barcelona submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um sistema de execução de decisões judiciais sobre bens hipotecados ou penhorados, como o previsto [nos artigos] 695.° e seguintes da LEC, que impõe limites aos fundamentos de oposição no direito processual espanhol, o que implica, formal e materialmente, um claro obstáculo ao exercício do direito, por parte do consumidor, de intentar ações judiciais ou de seguir outras vias de recurso que garantem a tutela efetiva dos seus direitos, pode ser considerado como uma clara limitação à tutela do consumidor?

2)      Pede‑se ao Tribunal de Justiça […] que esclareça o conceito de caráter desproporcionado no que respeita:

a)      à possibilidade de vencimento antecipado em contratos que vigoram durante um longo lapso de tempo — no caso em apreço, 33 anos — por incumprimento durante um período muito limitado e concreto;

b)      à fixação de juros de mora — no caso em apreço, superiores a 18% — que não coincidem com os critérios de determinação dos juros de mora noutros contratos com consumidores (crédito ao consumo), que noutros domínios da contratação com consumidores poderiam ser entendidos como abusivos e que, não obstante, em sede de contratação imobiliária, não têm um limite legal claro não apenas nos casos em que se aplicam a prestações vencidas mas também quando aplicados à totalidade das prestações em dívida por vencimento antecipado;

c)      à previsão de mecanismos de cálculo e de fixação dos juros variáveis — compensatórios e moratórios — determinados unilateralmente pelo mutuante, associados à possibilidade de execução hipotecária, e que não permitem que o devedor executado deduza oposição à liquidação da dívida na própria ação executiva, remetendo‑o para uma ação declarativa na qual apenas obterá uma decisão definitiva quando a execução já estiver concluída, ou, pelo menos, quando já tiver perdido o bem hipotecado ou dado em garantia, questão que assume especial relevância quando o empréstimo foi pedido para aquisição de uma casa e a execução implica o despejo do imóvel.»

31.      No processo no Tribunal de Justiça apresentaram alegações escritas e orais M. Aziz, a Caixa, o Governo espanhol e a Comissão Europeia.

IV — Apreciação jurídica

A —    Quanto à primeira questão prejudicial

1.      Admissibilidade

32.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se um sistema de execução hipotecas regulado no direito processual nacional que não preveja a faculdade de deduzir oposição à execução invocando o caráter abusivo de cláusulas do contrato de empréstimo que deu origem à hipoteca constitui uma limitação à tutela do consumidor e, por conseguinte, viola a Diretiva 93/13.

33.      A Caixa, demandada no processo principal, tem dúvidas quanto à admissibilidade desta questão, dado que a mesma é meramente hipotética e não tem nenhuma relação com o processo principal que corre termos perante o órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, o objeto do litígio neste processo é apenas a questão de saber se a décima quinta cláusula é eficaz. O Governo espanhol também contesta a admissibilidade. Em todo o caso, a questão da limitação dos fundamentos de oposição no âmbito do processo de execução pode ser relevante para o juiz do processo de execução. Porém, no presente caso, o processo de execução já foi concluído. Consequentemente, a primeira questão prejudicial é irrelevante para o processo no órgão jurisdicional de reenvio que tem de apreciar a eficácia de uma cláusula contratual em termos abstratos e independentes do processo de execução já concluído.

34.      Também a Comissão considera que a questão relativa critérios de análise do juiz do processo de execução é hipotética e, consequentemente, inadmissível, propondo a reformulação da questão prejudicial. Deve analisar‑se a questão de saber quais as competências que devem ser atribuídas ao juiz do processo de declaração tendo em conta a limitação dos fundamentos de oposição no processo de execução.

35.      Os intervenientes no processo têm razão em que a questão formulada em concreto é hipotética na medida em que efetivamente não é o juiz do processo de execução que a submete. No entanto, é apenas ao juiz do processo de execução que se coloca diretamente a questão relativa às modalidades de oposição no seu processo e à influência da Diretiva 93/13 sobre as possibilidades de tutela jurídica no âmbito do processo de execução.

36.      Por conseguinte, a questão do órgão jurisdicional de reenvio, como a Comissão sugere, acertadamente, deve ser entendida num sentido mais amplo de saber que possibilidades o consumidor deve ter, pelo menos, no âmbito do processo de declaração perante o órgão jurisdicional de reenvio, de obter proteção jurídica contra a execução. À primeira vista, esta questão também pode ser hipotética, uma vez que a execução já está concluída. Contudo, é pertinente para a decisão.

37.      Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio reconhece, no seu pedido de decisão prejudicial, que no processo principal também estão em causa eventuais prestações compensatórias já depois de a execução hipotecária estar integralmente concluída. Por conseguinte, a questão da tutela jurídica contra a execução é importante para a decisão do órgão jurisdicional de reenvio, o qual, por força do princípio da efetividade, pode estar obrigado a compensar a posteriori, através da sua decisão, eventuais erros do desenho processual projetado.

38.      Importa, em seguida, analisar os requisitos que a Diretiva 93/13 estabelece em relação a uma execução para as possibilidades do consumidor de invocar o caráter abusivo de cláusulas.

2.      Apreciação

39.      Para responder à primeira questão prejudicial, importa sublinhar em primeiro lugar que o sistema de proteção implementado pela diretiva assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação, situação esta que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissional, sem poder influenciar o conteúdo destas (5).

40.      Tendo em conta esta posição de inferioridade, o artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 prevê que as cláusulas abusivas não vinculam o consumidor. Conforme resulta da jurisprudência, trata‑se de uma disposição imperativa que pretende substituir o equilíbrio formal entre os direitos e obrigações das partes por um equilíbrio real suscetível de restabelecer a igualdade das partes (6).

41.      A fim de assegurar a proteção pretendida pela Diretiva 93/13, o Tribunal de Justiça já sublinhou em várias ocasiões que a situação de desequilíbrio entre o consumidor e o profissional só pode ser compensada por uma intervenção positiva, exterior às partes no contrato (7).

42.      Foi à luz destes princípios que o Tribunal de Justiça julgou que o juiz nacional deve apreciar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contratual abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/13 e, deste modo, atenuar o desequilíbrio que existe entre o consumidor e o profissional (8).

43.      O presente processo diz respeito à questão de saber quais as possibilidades que o consumidor deve ter de invocar o caráter abusivo de uma cláusula de um contrato de empréstimo contra a execução de uma hipoteca constituída para garantia do mesmo.

44.      Na falta de harmonização pelo direito da União das disposições nacionais relativas à execução, as modalidades processuais são definidas pela ordem jurídica interna dos Estados‑Membros, em conformidade como princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros. Contudo, a liberdade de regulação dos Estados‑Membros é limitada pelos princípios da equivalência e da efetividade (9). O regime em causa não pode ser mais desfavorável do que o aplicável a situações análogas de natureza interna e não pode tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil, o exercício dos direitos conferidos aos consumidores pelo direito da União (10).

45.      O princípio da equivalência implica que as modalidades processuais das ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos cidadãos pelo direito da União não devem ser menos favoráveis do que as que respeitam a ações similares de direito interno (11). Este aspeto não se coloca nenhum problema no caso vertente. Com efeito, o artigo 698.° da LEC não exclui apenas a invocação do caráter abusivo de cláusulas no âmbito do processo de execução mas, em termos gerais, todos os fundamentos de oposição que possam dizer respeito à nulidade do título.

46.      Importa proceder, em seguida, a uma análise mais aprofundada da obediência ao princípio da efetividade do qual resulta que a configuração do direito processual nacional não pode conduzir a que sejam criados entraves à aplicação dos direitos conferidos ao consumidor pela Diretiva 93/13. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na sua tramitação e nas suas particularidades perante as várias instâncias nacionais (12).

47.      Segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, o processo espanhol simplificado de execução de hipotecas está concebido de maneira a que só situações muito limitadas de proteção dos consumidores sejam aceites na execução rápida e efetiva de uma hipoteca. Por conseguinte, salvo raras excepções, que, no entender do órgão jurisdicional de reenvio, não são aplicáveis ao presente caso, o devedor tem de aceitar a execução da hipoteca independentemente de eventuais cláusulas abusivas. Só num processo de declaração independente cujo objeto seja a validade do título é que poderá deduzir oposição ao crédito que a execução tem por base e assim invocar a natureza abusiva das cláusulas aplicadas.

48.      Aliás, deste modo, o devedor só tem a possibilidade de influenciar a distribuição do produto da execução ou de requerer uma indemnização pela execução. Neste processo de declaração autónomo, o órgão jurisdicional também tem a possibilidade de ordenar a retenção do produto da execução e de garantir desse modo que também poderá ser realizado um direito de pagamento do devedor contra o exequente.

49.      Contudo, segundo o que é referido no pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional competente não pode, nem no âmbito do próprio processo simplificado de execução nem no do processo de declaração autónomo, ordenar a suspensão da execução, ou seja, da venda judicial do imóvel.

50.      Por conseguinte, mesmo nos casos em que o caráter abusivo de uma cláusula do contrato de empréstimo que está na origem da hipoteca se oponha à execução do imóvel, o consumidor não terá, segundo o direito espanhol, a possibilidade de impedir a venda judicial e a consequente perda da propriedade. O consumidor está limitado à proteção jurídica a posteriori, sob a forma de indemnização e — tal como no caso em apreço — tem de sujeitar‑se a perder a sua casa.

51.      Esta configuração do processo prejudica a efetividade da proteção pretendida com a Diretiva 93/13.

52.      Com efeito, sobretudo nos casos em que o imóvel hipotecado é a casa de habitação do devedor, o mero direito de indemnização dificilmente é adequado à garantia efetiva dos direitos concedidos ao consumidor pela Diretiva 93/13. Não existe protecção efetiva contra tais cláusulas se o consumidor tiver de aceitar, sem possibilidade de defesa, a execução de uma hipoteca e, por conseguinte, a venda judicial da sua casa, resultantes de tais cláusulas contratuais abusivas, e só puder obter protecção jurídica a posteriori, através de um pedido de indemnização.

53.      A Diretiva 93/13 exige, pelo contrário, que o consumidor tenha a possibilidade efetiva de intentar ações judiciais para apreciar o caráter abusivo das cláusulas do seu contrato de empréstimo e que possam eventualmente evitar a execução.

54.      Neste sentido insere‑se também o acórdão recentemente proferido no processo Banco Español de Crédito. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, a respeito de um processo judicial de injunção, que, para garantir o princípio da efetividade no contexto da Diretiva 93/13, um órgão jurisdicional nacional é inclusivamente obrigado a apreciar oficiosamente o caráter abusivo de cláusulas contratuais, mesmo antes da emissão da injunção contra a qual o consumidor poderia deduzir oposição, desde que o órgão jurisdicional disponha de todos os elementos de direito e de facto necessários para esse efeito (13). Com efeito, existe um risco não negligenciável de que os consumidores em causa não deduzam a oposição exigida (14).

55.      Do exposto também resulta que o consumidor deve poder invocar diretamente o caráter abusivo de cláusulas no âmbito do processo executivo e não apenas num processo autónomo? Pode haver dúvidas sobre a transponibilidade da jurisprudência Banco Español de Crédito pelo facto de, contrariamente ao processo de injunção, numa situação como a presente, já existir um título executivo representado pela escritura notarial e dever ser reconhecido o interesse do credor na celeridade da execução. O legislador persegue aqui o objetivo de executar créditos titulados com celeridade através de uma configuração formal do processo de execução propriamente dito e de uma ampla exclusão de fundamentos de oposição. Neste contexto, não nos parece que se deva obrigatoriamente considerar desde logo que se está a tornar a proteção jurídica do consumidor excessivamente difícil pelo facto de este, através da interposição de uma ação, ter de começar por criar as condições para que o órgão jurisdicional a que recorre aprecie as cláusulas contratuais.

56.      Porém, esta questão não pode ser apurada de forma definitiva no presente processo. Conforme já foi acima exposto no âmbito da apreciação da admissibilidade, não cabe aqui responder à questão de saber se o consumidor deve explicitamente ter a possibilidade de, logo, no âmbito do processo de execução, invocar o caráter abusivo de uma cláusula do contrato de empréstimo. Por conseguinte, muito menos se pode apurar se resulta do acórdão Banco Español de Crédito que o juiz do processo de execução também deve apreciar oficiosamente a eficácia de determinadas cláusulas contratuais suscetíveis de produzir efeitos sobre o processo de execução (15). Por último, na primeira questão prejudicial estão expressamente em causa apenas as possibilidades de oposição do consumidor, pois o órgão jurisdicional de reenvio não colocou a questão da possibilidade de apreciação oficiosa.

57.      Por consequência, o que é decisivo no âmbito do presente processo é saber se o princípio da efetividade exige que o juiz do processo de declaração deve dispor da possibilidade de suspender (provisoriamente) o processo de execução até que o caráter abusivo de uma cláusula contratual seja apreciado para assim impedir que sejam criados factos lesivos do consumidor que só dificilmente sejam reparáveis ou sejam mesmo irreparáveis.

3.      Conclusão intercalar

58.      Por conseguinte, deve responder‑se à primeira questão prejudicial que um sistema de execução de decisões judiciais sobre bens hipotecados ou penhorados no qual as possibilidades de oposição à execução são limitadas é incompatível com a Diretiva 93/13 nos casos em que o consumidor não possa, no próprio processo de execução ou num processo judicial autónomo, obter uma proteção jurídica efetiva que vise defender os direitos conferidos pela Diretiva 93/13, designadamente, pela possibilidade dada ao órgão jurisdicional de suspender provisoriamente o processo de execução.

B —    Quanto à segunda questão prejudicial

59.      Na redação da segunda questão prejudicial é utilizado o conceito de «carácter desproporcionado», que está em conexão com a terminologia do n.° 1, alínea e), do anexo da Diretiva 93/13. O reenvio prejudicial deve, no entanto, ser entendido no sentido de pretender, com a segunda questão, a interpretação do conceito mais geral de «desequilíbrio significativo» dos direitos e obrigações das partes, que apenas no caso especial da indemnização prevista no n.° 1, alínea e), é substituído pelo conceito de «desproporcionalidade».

60.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, um esclarecimento mais aprofundado do conceito de desequilíbrio significativo, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, segundo o qual uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

61.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio refere três cláusulas concretas que fazem parte integrante do contrato controvertido no processo principal. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, estas cláusulas foram unilateralmente impostas ao consumidor e, por conseguinte, estão incluídas no âmbito de aplicação da Diretiva 93/13.

1.      Admissibilidade

62.      Segundo informações prestadas pela Caixa e pelo Governo espanhol, o objeto do processo principal é, até à data, apenas uma das cláusulas referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Não obstante, a consideração das outras cláusulas não é irrelevante para a decisão do processo principal. Com efeito, não está excluído que a apreciação conjunta de todas as condições contratuais e dos seus efeitos jurídicos não possa também ser relevante para a interpretação da cláusula controvertida no processo principal.

63.      Além disso, já foi referido, a propósito da apreciação da admissibilidade da primeira questão prejudicial, que o objeto do litígio no processo principal, de acordo com as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, diz respeito a uma eventual ineficácia do processo de execução. Deve ter‑se em conta que a apreciação jurídica das cláusulas referidas na segunda questão prejudicial também pode ter consequências para a eficácia do processo de execução. Por conseguinte, a segunda questão prejudicial é admissível na sua totalidade.

2.      Apreciação

a)      Considerações gerais

64.      O Tribunal de Justiça já referiu reiteradamente que o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, referindo‑se aos conceitos de boa‑fé e de desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes, enuncia de forma meramente abstrata os elementos que conferem um caráter abusivo a uma cláusula contratual (16).

65.      É necessária uma apreciação concreta, independente e detalhada, do eventual caráter abusivo de cada cláusula contratual (17). Esta apreciação é realizada nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, tendo em conta a espécie de bens ou serviços objeto do contrato, todas as circunstâncias que, no momento em que foi celebrado, rodearam a sua celebração e todas as restantes cláusulas do mesmo ou de outro contrato das quais a cláusula dependa.

66.      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, compete ao órgão jurisdicional nacional declarar se uma cláusula contratual preenche os requisitos para ser qualificada de abusiva nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13. Só o juiz nacional pode apreciar plenamente as consequências que determinada cláusula pode ter no âmbito do direito aplicável ao contrato, o que implica uma apreciação do regime jurídico nacional (18).

67.      A apreciação definitiva do caráter abusivo das cláusulas controvertidas compete ao juiz nacional e não ao Tribunal de Justiça (19). Ao Tribunal de Justiça compete apenas interpretar os critérios gerais com base nos quais pode ser apreciado o caráter abusivo das cláusulas contratuais abrangidas pelas disposições da diretiva (20).

b)      Cláusula relativa ao vencimento antecipado

68.      A primeira cláusula a que se refere a segunda questão prejudicial diz respeito à possibilidade de vencimento antecipado de contratos que se destinam a vigorar por um prazo muito longo em consequência de um incumprimento localizado num período muito limitado.

69.      No caso concreto, a sexta cláusula do contrato de empréstimo dispõe que a mutuante (a Caixa) pode rescindir imediatamente o contrato se o mutuário incumprir apenas uma de um total de 396 prestações mensais que devem ser realizadas ao longo dos 33 anos de vigência do mesmo.

70.      A Comissão considera que esta cláusula contratual é manifestamente válida, uma vez que o não pagamento, ainda que de apenas uma prestação, constitui o incumprimento da obrigação principal do mutuário, não sendo exigível ao credor que se mantenha vinculado ao contrato.

71.      A questão de saber se uma cláusula dá origem a um desequilíbrio significativo, em detrimento do consumidor, dos direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato não pode ser apreciada sem uma comparação com a legislação nacional aplicável, se as próprias partes não tiverem acordado um regime contratual. Só nos casos em que a cláusula contratual coloque o consumidor numa situação mais desfavorável do que as disposições legais é que a cláusula dá origem a uma alteração possivelmente abusiva dos direitos e obrigações contratuais das partes em detrimento do consumidor.

72.      Mesmo nos casos em que uma cláusula contratual dê origem a uma situação mais desfavorável para o consumidor relativamente à legislação, tal não tem necessariamente de deslocar o equilíbrio contratual de uma forma que deva ser qualificada de abusiva na aceção do artigo 3.° da Diretiva 93/13.

73.      Pelo contrário, o artigo 3.°, da Diretiva 93/13 determina expressamente que uma cláusula contratual só deve ser considerada abusiva quando, contra a exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato. Assim, garante‑se o princípio da liberdade contratual e reconhece‑se que as partes possuem frequentemente um interesse legítimo numa configuração das suas relações contratuais diferente da lei.

74.      A questão de saber se a modificação dos direitos e obrigações contratuais em detrimento do consumidor dá origem a um desequilíbrio significativo só pode ser respondida mediante uma apreciação global de todas as circunstâncias concretas do contrato, como indicado no artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 93/13. Um desequilíbrio significativo é considerado não justificado em particular quando os direitos e obrigações do consumidor são limitados numa medida tal que a parte que impõe as condições contratuais não possa presumir, de boa‑fé, que o consumidor aceitou essas disposições no âmbito de uma negociação individual do contrato.

75.      Neste contexto, importa, antes de mais, saber se as cláusulas contratuais em questão são habituais, ou seja, se são utilizadas regularmente no tráfego jurídico em contratos semelhantes, ou se, pelo contrário, são ocasionais; se existe um motivo objetivo para essa cláusula contratual ou se o consumidor não fica totalmente desprotegido perante a alteração do equilíbrio contratual a favor do profissional que se prevalece da cláusula, tendo em conta o objetivo da mesma.

76.      Por conseguinte, no processo principal, são desde logo relevantes a configuração das disposições legais relativas à rescisão do empréstimo e, em particular, as condições em que o credor pode rescindir o contrato e provocar o vencimento antecipado da totalidade do empréstimo devido a mora do devedor relativamente a qualquer prestação individual. É à luz desse critério que a cláusula controvertida deverá ser analisada.

77.      Para esse efeito, deverá ter‑se em conta, por um lado, que a obrigação de pagamento das prestações é a obrigação principal do mutuário. Na resposta à questão sobre se, em princípio, após o incumprimento de uma só prestação, a Caixa mutuante deixa logo de considerar possível o cumprimento do contrato deve, por outro lado, ter‑se em consideração que, com a hipoteca, foi concedida uma garantia ao credor e que a simples mora no tocante a uma só prestação pode dever‑se a um simples descuido, não permitindo concluir, desde logo, pela existência de dificuldades de pagamento do devedor. Além disso, o montante do empréstimo concedido, a sua duração e a sua importância vital para o devedor do empréstimo devem ser contrabalanceados com o interesse do mutuário em desvincular‑se do empréstimo logo após o incumprimento de uma só prestação.

78.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio também deve ter em conta as possibilidades que o direito nacional, incluindo o direito processual nacional, concede ao consumidor para se opor aos efeitos de um vencimento total antecipado. Neste quadro, destaca‑se, em particular, a faculdade conferida ao mutuário pelo artigo 693.°, n.° 3, da LEC, que lhe permite, em última instância, impedir o efeito da rescisão e consequente vencimento antecipado mediante o pagamento das prestações vencidas. Tal faculdade deve ser tida em conta no âmbito da apreciação global necessária para averiguar se o consumidor é prejudicado de um modo desproporcional pela cláusula controvertida, em violação do princípio da boa‑fé.

79.      As considerações precedentes demonstram que, contrariamente à opinião da Comissão, que considera válida a cláusula controvertida objeto do presente litígio, abstractamente e independentemente dos sistemas jurídicos concretos e das circunstâncias do caso, só o juiz nacional é que pode apreciar a o caráter abusivo segundo o critério do artigo 3.° da Diretiva 93/13.

80.      Por conseguinte, a título de conclusão intercalar, importa referir que compete aos órgãos jurisdicionais nacionais apreciar o caráter abusivo de uma cláusula constante das cláusulas contratuais gerais de contratos celebrados com consumidores à luz do artigo 3.°, n.os 1 e 3, da Diretiva 93/13. Em relação a uma cláusula de vencimento antecipado de um empréstimo imobiliário por parte do credor, o órgão jurisdicional deve, em particular, analisar em que medida a cláusula diverge da disposição legal supletivamente aplicável, se existe um motivo objetivo para a estipulação contratual e se o consumidor, devido à alteração do equilíbrio contratual a favor do profissional que se prevalece da cláusula, não fica totalmente desprotegido, tendo em conta o objetivo da mesma.

c)      Cláusula sobre juros de mora

81.      O objeto da segunda questão prejudicial é também uma cláusula sobre juros de mora. No caso concreto, a sexta cláusula do contrato controvertido no processo principal estipula que, mesmo nos casos de constituição em mora sem interpelação prévia, o mutuante cobrará juros de mora sobre o capital vencido — ainda que antecipadamente — à taxa anual de 18,75%. Em contrapartida, a taxa nominal dos juros compensatórios do empréstimo foi fixada inicialmente em 4,87%.

82.      No que diz respeito ao método de abordagem, em termos genéricos, da questão de saber se uma tal estipulação relativa a juros de mora constitui uma cláusula contratual inválida nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, pode, neste ponto, começar por se remeter para as considerações gerais acima expostas (21).

83.      O juiz nacional deve, em primeiro lugar, proceder a uma comparação com a taxa de juros legal para depois, numa segunda fase, tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto, analisar se um desvio em detrimento do consumidor leva, na perspetiva da boa‑fé, a um desequilíbrio significativo dos direitos de deveres contratuais das partes (22).

84.      No anexo da Diretiva 93/13 para o qual remete o artigo 3.°, n.° 3, são referidas expressamente na alínea e) do n.° 1, como exemplo de cláusulas abusivas, as cláusulas que têm como objeto ou como efeito impor ao consumidor que não cumpra as suas obrigações uma indemnização de montante desproporcionalmente elevado. Contudo, a enumeração constante do anexo da Diretiva 93/13 é meramente exemplificativa das cláusulas que podem ser declaradas abusivas e não é portanto taxativa. Por consequência, a referência do anexo em causa não é suscetível de determinar automaticamente e por si só o caráter abusivo de determinada cláusula. Constitui, no entanto, um elemento essencial com base no qual o órgão jurisdicional competente pode apreciar o caráter abusivo dessa cláusula (23).

85.      Numa análise mais concreta, pode ser importante saber quais os juros de mora que são normalmente acordados nos empréstimos hipotecários. Se o direito espanhol previr, nos outros empréstimos ao consumo, a limitação da taxa de juros de mora a 2,5 vezes os juros legais, como referido pela Comissão, esse facto pode também ser visto como indício de um eventual desequilíbrio, assim como o facto de os custos de refinanciamento dos bancos nos empréstimos hipotecários, regra geral, serem claramente inferiores aos dos restantes empréstimos ao consumo, em virtude da garantia prestada.

86.      Na ponderação a que se deverá proceder, deverão ainda ter‑se em conta os fins que os juros de mora podem prosseguir nos termos do direito nacional, ou seja, se podem constituir apenas uma indemnização fixa pela mora ou se também se devem destinar a vincular a parte ao cumprimento do contrato. Os fins que os juros de mora podem prosseguir podem variar consoante o Estado‑Membro. Por conseguinte, o sentido da Diretiva 93/13 não é nivelar as diferenças entre as culturas jurídicas nacionais.

87.      Se os juros de mora tiverem apenas por objetivo indemnizar o dano da mora, a taxa de juros de mora é, desde logo, consideravelmente exagerada se ultrapassar em muito o dano que se pode aceitar ter sido causado pela mora no caso concreto. É, no entanto, aceitável que uma taxa de juros elevada incentive o devedor a não entrar em mora ou a pôr fim a uma mora em que já tenha incorrido. Se os juros de mora, segundo o direito nacional, se destinarem a incentivar o cumprimento do contrato e, por conseguinte, a manter a atitude de pagamento das prestações, só deverão ser qualificados de abusivos se excederem significativamente o necessário para alcançar esse objetivo.

88.      A título de conclusão intercalar, importa, pois, declarar que, em relação a uma cláusula de juros de mora, o órgão jurisdicional deve, em particular, analisar em que medida a taxa de juros diverge da taxa legal aplicável e se os mesmos não são desproporcionados atendendo ao objetivo prosseguido pelos juros de mora.

d)      Cláusula que permite a determinação unilateral do valor em dívida

89.      Por último, a segunda questão prejudicial visa esclarecer o conceito de desproporcionalidade à luz da décima quinta cláusula do contrato controvertido no processo principal, que estipula que, no processo de execução, o credor pode liquidar unilateralmente o valor do empréstimo em dívida e, assim, criar unilateralmente uma condição essencial do processo simplificado de execução de hipoteca. Para esclarecer o quadro jurídico no âmbito do qual esta cláusula se torna relevante, o órgão jurisdicional de reenvio alega que o devedor não pode deduzir oposição a esta liquidação no âmbito do processo de execução, devendo, para esse efeito, mover uma ação declarativa. Porém, a ação declarativa não impede que os termos do processo de execução continuem a correr, razão pela qual o devedor já terá perdido o bem hipotecado quando a ação declarativa for julgada.

90.      Nesta medida, também compete ao juiz nacional ter em conta, para efeitos de decisão, todas as circunstâncias concretas do caso. Contudo, para esse efeito, aplicam‑se os seguintes critérios:

91.      O ponto de partida deve ser a questão de saber como é que se apresentaria a situação jurídica — neste caso, o processo de execução — se o contrato não tivesse a cláusula controvertida.

92.      Neste ponto, entendemos as alegações do órgão jurisdicional de reenvio e dos intervenientes no sentido de que sem uma cláusula correspondente, o banco que financia o empréstimo teria de começar por intentar uma ação contra o devedor para liquidar o seu crédito vencido, para poder indicar o montante concreto a reclamar no processo de execução. A liquidação unilateral pelo credor torna desnecessário este processo declarativo prévio, o que tem como consequência que o devedor não pode impugnar na execução o montante da dívida exequenda. Evidentemente, o órgão jurisdicional de reenvio esclarece, em consonância com as posições dos intervenientes, que o valor unilateralmente liquidado não produz efeitos vinculativos entre as partes, podendo, portanto, ser contestado pelo devedor num processo de declaração posteriormente intentado, pelo que não acarreta quaisquer desvantagens para o devedor, mesmo no que diz respeito ao ónus da prova.

93.      A diminuição da proteção jurídica na execução, decorrente da cláusula, opera uma alteração dos direitos e obrigações decorrentes do contrato em detrimento do consumidor. Contudo, daqui também não resulta, sem mais, que isso dê origem a um desequilíbrio significativo, contrário à boa‑fé, em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato. Tal equilíbrio deverá ser definitivamente aferido através de uma ponderação global das vantagens e das desvantagens da cláusula para ambas as partes.

94.      Para o banco que financia o empréstimo, a cláusula controvertida tem como consequência que a hipoteca concedida como garantia pode ser executada mais rapidamente e facilmente, o que aumenta — também no interesse económico do devedor — o valor da garantia por ele prestada. Vice‑versa, o devedor/consumidor vê‑se perante o risco de perder a garantia antes de definido o montante que o banco que financia o empréstimo pode cobrar através da garantia.

95.      O juiz nacional deve tomar a sua decisão mediante a ponderação global de todas as circunstâncias concretas do caso. Nestas engloba‑se a questão de saber se não é possível o devedor deduzir oposição logo no âmbito do processo de execução. A letra do artigo 695.°, n.° 1, da LEC aponta neste sentido. Também é necessário considerar a configuração do processo de liquidação unilateral da dívida e a fiscalização que o notário pode exercer e como deve ser avaliado o facto de, como afirmou o Governo espanhol, só os bancos e caixas de poupança sujeitos ao controlo do Estado poderem utilizar a cláusula controvertida.

96.      A título de conclusão intercalar, importa declarar que, em relação a uma cláusula respeitante à determinação unilateral do valor em dívida, devem ser tomados em consideração, em particular, os efeitos que essa cláusula produz no direito processual nacional.

V —    Conclusão

97.      Pelo exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que declare:

«1)      Um sistema de execução de decisões judiciais sobre bens hipotecados ou penhorados no qual as possibilidades de oposição à execução são limitadas é incompatível com a Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, nos casos em que o consumidor não possa, no próprio processo de execução ou num processo judicial autónomo, obter uma proteção jurídica efetiva que vise defender os direitos conferidos pela Diretiva 93/13, designadamente pela possibilidade dada ao órgão jurisdicional de suspender provisoriamente o processo de execução.

2)      Compete aos órgãos jurisdicionais nacionais apreciar o caráter abusivo de uma cláusula constante das cláusulas contratuais gerais de contratos celebrados com consumidores à luz do artigo 3.°, n.os 1 e 3, da Diretiva 93/13.

a)      Em relação a uma cláusula de vencimento antecipado de um empréstimo imobiliário por iniciativa do credor, o órgão jurisdicional deve, em particular, analisar em que medida a cláusula diverge da disposição legal supletivamente aplicável, se existe um motivo objetivo para a estipulação contratual e se o consumidor, devido à alteração do equilíbrio contratual a favor do profissional que se prevalece da cláusula, não fica totalmente desprotegido, tendo em conta o objetivo da mesma.

b)      Em relação a uma cláusula de juros de mora, o órgão jurisdicional deve, em particular, analisar em que medida a taxa de juros diverge da taxa legal aplicável e se os mesmos não são desproporcionados atendendo ao objetivo prosseguido pelos juros de mora.

c)      Em relação a uma cláusula respeitante à determinação unilateral do valor em dívida, devem ser tomados em consideração, em particular, os efeitos que essa cláusula produz no direito processual nacional.»


1 —      Língua original: alemão.


2 —      JO L 95, p. 29, entretanto alterada pela Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011 (JO L 304, p. 64), a qual, no entanto, não introduziu nenhuma alteração relevante para o presente caso.


3 —      Ley de enjuiciamiento civil, a seguir «LEC».


4 —      A seguir «Caixa».


5 —      Acórdãos de 27 de junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores (C‑240/98 a C‑244/98, Colet., p. I‑4941, n.° 25); de 26 de outubro de 2006, Mostaza Claro (C‑168/05, Colet., p. I‑10421, n.° 25); de 6 de outubro de 2009, Asturcom Telecomunicaciones (C‑40/08, Colet., p. I‑9579, n.° 29); e de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, n.° 39).


6 —      Acórdãos, já referidos, Mostaza Claro (n.° 36) e Asturcom Telecomunicaciones (n.° 30); de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing (C‑137/08, Colet., p. I‑10847, n.° 47), e de 15 de março de 2012, Pereničová e Perenič (C‑453/10, n.° 28).


7 —      Acórdão Banco Español de Crédito (já referido, n.° 41 e jurisprudência aí referida).


8 —      Ibidem, n.° 42.


9 —      Ibidem, n.° 46.


10 —      Ibidem, n.° 46 e jurisprudência aí referida.


11 —      Acórdão de 18 de março de 2010, Alassini e o. (C‑317/08 a C‑320/08, Colet., p. I‑2213, n.° 48).


12 —      Acórdãos, já referidos, Asturcom Telecomunicaciones (n.° 39) e Banco Español de Crédito (n.° 49).


13 —      Acórdão já referido, n.° 53.


14 —      Ibidem, n.os 54 e 55.


15 —      Pelo menos nos casos em que o órgão jurisdicional que aprecia a execução dispõe de todos os elementos de direito e de facto necessários, v. acórdão Banco Español de Crédito (já referido, n.° 53).


16 —      Acórdão de 4 de junho de 2009, Pannon GSM (C‑243/08, Colet., p. I‑4713, n.° 37).


17 —      Acórdãos VB Pénzügyi Lízing (já referido, n.° 44) e de 26 de abril de 2012, Invitel (C‑472/10, n.° 22).


18 —      Acórdão Invitel, já referido, n.° 30.


19 —      Acórdãos, já referidos, Pannon GSM (n.° 42); Mostaza Claro (n.° 40); e VB Pénzügyi Lízing (n.os 43 e 44).


20 —      Acórdãos de 3 de junho de 2010, Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid (C‑484/08, Colet., p. I‑4785, n.° 33), e VB Pénzügyi Lízing (já referido, n.° 40).


21 —      V. n.os 64 a 67 das presentes conclusões.


22 —      No processo Banco Español de Crédito, o juiz espanhol reduziu oficiosamente um juro contratualmente acordado à taxa de 29%, por ter tido em conta a taxa de juros legal e os juros de mora segundo as leis do orçamento de 1990‑2008, para 19%.


23 —      Acórdão Invitel (já referido, n.° 26).