Language of document : ECLI:EU:C:2009:316

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

19 de Maio de 2009 (*)

«Liberdade de estabelecimento – Artigo 43.° CE – Saúde pública – Farmácias – Disposições que reservam exclusivamente aos farmacêuticos o direito de explorar uma farmácia – Justificação – Fornecimento seguro e de qualidade de medicamentos à população – Independência profissional dos farmacêuticos»

Nos processos apensos C‑171/07 e C‑172/07,

que têm por objecto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentados pelo Verwaltungsgericht des Saarlandes (Alemanha), por decisões, respectivamente, de 20 de Março e 21 de Março de 2007, entrados no Tribunal de Justiça em 30 de Março de 2007, nos processos

Apothekerkammer des Saarlandes,

Marion Schneider,

Michael Holzapfel,

Fritz Trennheuser,

Deutscher Apothekerverband eV (C‑171/07),

Helga Neumann‑Seiwert (C‑172/07)

contra

Saarland,

Ministerium für Justiz, Gesundheit und Soziales,

sendo interveniente:

DocMorris NV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot e T. von Danwitz, presidentes de secção, J. Makarczyk, P. Kūris, E. Juhász, G. Arestis, J. Malenovský (relator), L. Bay Larsen e P. Lindh, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 3 de Setembro de 2008,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Apothekerkammer des Saarlandes, de M. Schneider, M. Holzapfel, F. Trennheuser e da Deutscher Apothekerverband eV, por J. Schwarze, professor, assistido por C. Dechamps, Rechtsanwalt,

–        em representação de H. Neumann‑Seiwert, por H.‑U. Dettling, Rechtsanwalt,

–        em representação do Saarland e do Ministerium für Justiz, Gesundheit und Soziales, por W. Schild, na qualidade de agente, assistido por H. Kröninger, Rechtsanwalt,

–        em representação da DocMorris NV, por C. König, professor, assistido por F. Diekmann, Rechtsanwältin,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e C. Schulze‑Bar, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo helénico, por E. Skandalou, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e B. Messmer, na qualidade de agentes,

–        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por A. Collins, SC, e N. Travers, BL,

–        em representação do Governo italiano, por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por G. Fiengo, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo neerlandês, por Y. de Vries, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer e T. Kröll, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por E. Ośniecka‑Tamecka e M. Kapko, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo finlandês, por J. Himmanen e A. Guimaraes‑Purokoski, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. Traversa e H. Krämer, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de Dezembro de 2008,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação dos artigos 43.° CE, 48.° CE e de princípios de direito comunitário.

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem, por um lado, a Apothekerkammer des Saarlandes, M. Schneider, M. Holzapfel, F. Trennheuser e a Deutscher Apothekerverband eV (C‑171/07) e, por outro, H. Neumann‑Seiwert (C‑172/07) ao Saarland (Land do Sarre) e ao Ministerium für Justiz, Gesundheit und Soziales (Ministério da Justiça, da Saúde e dos Assuntos Sociais, a seguir «Ministerium»), a respeito da legislação nacional que reserva a propriedade e a exploração das farmácias exclusivamente aos farmacêuticos.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3        O vigésimo sexto considerando da Directiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro de 2005, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO L 255, p. 22), enuncia:

«A presente directiva não assegura a coordenação de todas as condições de acesso às actividades do domínio farmacêutico e do seu exercício. Nomeadamente, a repartição geográfica das farmácias e o monopólio de distribuição de medicamentos devem continuar a ser matéria da competência dos Estados‑Membros. A presente directiva em nada altera as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros que proíbem às sociedades o exercício de determinadas actividades de farmácia ou o sujeitam a determinadas condições.»

4        Este considerando retoma, no essencial, o segundo considerando da Directiva 85/432/CEE do Conselho, de 16 de Setembro de 1985, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a certas actividades do sector farmacêutico (JO L 253, p. 34; EE 06 F3 p. 28), e o décimo considerando da Directiva 85/433/CEE do Conselho, de 16 de Setembro de 1985, relativa ao reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos em farmácia, incluindo medidas destinadas a facilitar o exercício efectivo do direito de estabelecimento para certas actividades do sector farmacêutico (JO L 253, p. 37; EE 06 F3 p. 25), tendo estas directivas sido revogadas com efeitos a partir de 20 de Outubro de 2007 e substituídas pela Directiva 2005/36.

 Legislação nacional

5        Nos termos do § 1 da Lei sobre as farmácias (Gezetz über das Apothekenwesen), na versão publicada no BGBl. 1980 I, p. 1993, conforme alterada pelo Regulamento de 31 de Outubro de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 2407, a seguir «ApoG»):

«(1)      Compete às farmácias assegurar, no interesse público, a distribuição de medicamentos ao público, nos termos da lei.

(2)      Quem pretenda explorar uma farmácia, e até três sucursais, deve obter o respectivo alvará das autoridades competentes.

(3)      O alvará é pessoal e é concedido apenas para os locais nele designado.»

6        O § 2 da ApoG dispõe:

«(1)      O alvará é concedido, mediante requerimento, desde que o requerente:

1.      seja alemão, na acepção do artigo 116.° da Lei Fundamental [Grundgesetz], ou nacional de um dos outros Estados‑Membros da União Europeia, ou de um dos Estados signatários do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu […];

2.      tenha plena capacidade jurídica;

3.      esteja habilitado, na acepção da legislação alemã, a exercer a profissão de farmacêutico;

4.      possua a idoneidade necessária para a exploração de uma farmácia;

[...]

7.      não seja inapto, em termos de saúde, para dirigir uma farmácia;

[...]

(4)      Mediante requerimento, o alvará para a exploração de diversos estabelecimentos é concedido se

1.      O requerente preencher as condições enumeradas nos n.os 1 a 3 no que respeita a cada um dos estabelecimentos;

2.      A farmácia e as sucursais previstas se situarem dentro da mesma circunscrição administrativa [«Kreis»], da mesma cidade, ou em circunscrições administrativas e cidades vizinhas.

(5)      As disposições da presente lei aplicam‑se mutatis mutandis à exploração de diversos estabelecimentos, sendo que

1.      quem explora está obrigado a dirigir pessoalmente a farmácia;

2.      relativamente a cada sucursal, a pessoa que explora está obrigada a designar por escrito um farmacêutico responsável, que deve garantir o respeito das obrigações impostas pela presente lei e pelo regulamento relativo aos farmacêuticos gerentes no que respeita à gestão da farmácia.

[…]»

7        O § 7 da ApoG enuncia:

«O alvará obriga o farmacêutico a dirigir a farmácia sob sua responsabilidade pessoal. […]»

8        O § 8 da ApoG tem a seguinte redacção:

«Uma farmácia só pode ser explorada por várias pessoas em conjunto, sob a forma de sociedade civil ou de sociedade em nome colectivo; neste caso, todos os sócios deverão ter alvará. […]»

9        O § 13, n.° 1, da ApoG dispõe:

«Em caso de falecimento do titular do alvará, os respectivos herdeiros podem confiar a um farmacêutico a gerência da farmácia durante doze meses no máximo.»

10      Nos termos do § 14 da ApoG, os hospitais podem optar por confiar o seu aprovisionamento em medicamentos a uma farmácia interna, isto é, uma farmácia explorada nas instalações do hospital em causa, à farmácia de outro hospital ou ainda a uma farmácia situada fora de um estabelecimento hospitalar. O alvará para explorar uma farmácia interna é concedido desde que o estabelecimento hospitalar prove, nomeadamente, que recrutou um farmacêutico que satisfaz as condições fixadas no § 2, n.° 1, pontos 1 a 4, 7 e 8, da mesma lei.

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

11      A DocMorris NV (a seguir «DocMorris») é uma sociedade anónima estabelecida nos Países Baixos que exerce, nomeadamente, a actividade de venda de medicamentos por correspondência. Por decisão de 29 de Junho de 2006, o Ministerium concedeu‑lhe, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2006, o alvará para explorar, como sucursal, uma farmácia em Saarbrücken (Alemanha), sob reserva da contratação por essa sociedade de um farmacêutico encarregado de dirigir pessoalmente e sob sua responsabilidade a farmácia em causa (a seguir «decisão de 29 de Junho de 2006»).

12      Em 2 e 18 de Agosto de 2006, os recorrentes nos processos principais interpuseram recursos para o Verwaltungsgericht des Saarlandes (Tribunal Administrativo do Land do Sarre) tendo por objecto a anulação da decisão de 29 de Junho de 2006.

13      Nesses recursos, sustentaram que a referida decisão é contrária à ApoG, porquanto viola o chamado princípio da «Fremdbesitzverbot», isto é, o princípio que reserva exclusivamente aos farmacêuticos o direito de ser proprietários de uma farmácia e explorá‑la, tal como resulta das disposições conjugadas do § 2, n.° 1, ponto 3, e dos §§ 7 e 8 da ApoG (a seguir «regra de exclusão dos não farmacêuticos»).

14      O Ministerium, apoiado pela DocMorris, alegou que a decisão de 29 de Junho de 2006 é válida uma vez que era obrigado a não aplicar as referidas disposições da ApoG por estas violarem o artigo 43.° CE, que garante a liberdade de estabelecimento. Com efeito, uma sociedade de capitais que explore legalmente uma farmácia num Estado‑Membro não tem acesso ao mercado alemão das farmácias. Ora, uma restrição desta natureza não é necessária à realização do objectivo legítimo de protecção da saúde pública.

15      Nestas condições, o Verwaltungsgericht des Saarlandes decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, as quais estão redigidas em termos idênticos nos dois processos C‑171/07 e C‑172/07:

«1)      Devem as disposições relativas à liberdade de estabelecimento das sociedades de capitais (artigos 43.° CE e 48.° CE) ser interpretadas no sentido de que se opõem à [regra de exclusão dos não farmacêuticos], prevista [nas disposições conjugadas do] § 2, n.° 1, pontos 1 a 4 e 7, [e dos §§] 7, primeiro período, e […] 8, primeiro período, da [ApoG]?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Tem uma autoridade nacional o direito e o dever, com base no direito comunitário e tendo especialmente em consideração o artigo 10.° CE e o princípio do efeito útil [do direito comunitário], de não aplicar as disposições de direito nacional por si consideradas contrárias ao direito comunitário, mesmo que não esteja em causa uma violação evidente do direito comunitário e que a incompatibilidade de tais disposições com o direito comunitário não tenha sido declarada pelo Tribunal de Justiça?»

16      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 1 de Junho de 2007, os processos C‑171/07 e C‑172/07 foram apensos para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

17      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se os artigos 43.° CE e 48.° CE se opõem a uma legislação nacional como a que está em causa nos processos principais, que impede os não farmacêuticos de serem proprietários e de exercerem a actividade de exploração de farmácias.

 Observações preliminares

18      Em primeiro lugar, resulta tanto da jurisprudência do Tribunal de Justiça como do artigo 152.°, n.° 5, CE e do vigésimo sexto considerando da Directiva 2005/36 que o direito comunitário não viola a competência dos Estados‑Membros para regularem os seus sistemas de segurança social e para adoptarem, em particular, disposições destinadas a organizar serviços de saúde como os estabelecimentos farmacêuticos. Contudo, no exercício desta competência, os Estados‑Membros devem respeitar o direito comunitário, designadamente as disposições do Tratado relativas às liberdades de circulação, incluindo a liberdade de estabelecimento. As referidas disposições comportam a proibição de os Estados‑Membros introduzirem ou manterem restrições injustificadas ao exercício dessas liberdades no domínio dos cuidados da saúde (v., neste sentido, acórdãos de 16 de Maio de 2006, Watts, C‑372/04, Colect., p. I‑4325, n.os 92 e 146, e de 10 de Março de 2009, Hartlauer, C‑169/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 29).

19      Na apreciação do respeito desta obrigação, importa ter em conta que a saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado e que cabe aos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a protecção da saúde pública e o modo como esse nível deve ser alcançado. Dado que este nível pode variar de um Estado‑Membro para outro, há que reconhecer aos Estados‑Membros uma margem de apreciação (v., neste sentido, acórdãos de 11 de Dezembro de 2003, Deutscher Apothekerverband, C‑322/01, Colect., p. I‑14887, n.° 103; de 11 de Setembro de 2008, Comissão/Alemanha, C‑141/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 51; e Hartlauer, já referido, n.° 30).

20      Em segundo lugar, cumpre referir que nem a Directiva 2005/36 nem nenhuma outra medida de aplicação das liberdades de circulação garantidas pelo Tratado prevêem condições de acesso às actividades do sector farmacêutico que precisem o círculo de pessoas que têm o direito de explorar uma farmácia. Consequentemente, a legislação nacional deve ser examinada apenas à luz das disposições do Tratado.

21      Em terceiro lugar, há que salientar que o regime aplicável às pessoas encarregadas do fornecimento a retalho de medicamentos varia de um Estado‑Membro para outro. Enquanto, em certos Estados‑Membros, apenas os farmacêuticos independentes podem ser titulares de farmácias e explorá‑las, outros Estados‑Membros admitem que pessoas sem a qualidade de farmacêutico independente sejam proprietários de uma farmácia e confiem a sua gerência a farmacêuticos assalariados.

 Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

22      Segundo jurisprudência assente, o artigo 43.° CE opõe‑se a qualquer medida nacional que, embora aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade, seja susceptível de afectar ou de tornar menos atractivo o exercício, pelos nacionais comunitários, da liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado (v., designadamente, acórdãos de 31 de Março de 1993, Kraus, C‑19/92, Colect., p. I‑1663, n.° 32, e de 14 de Outubro de 2004, Comissão/Países Baixos, C‑299/02, Colect., p. I‑ 9761, n.° 15).

23      Constitui, nomeadamente, uma restrição na acepção do artigo 43.° CE uma legislação que faça depender o estabelecimento, no Estado‑Membro de acolhimento, de um operador económico de outro Estado‑Membro da emissão de uma autorização prévia e que reserve o exercício de uma actividade não assalariada a determinados operadores económicos que obedeçam a exigências predeterminadas cujo respeito condiciona a emissão dessa autorização. Uma legislação desta natureza desencoraja, e até impede, operadores económicos de outros Estados‑Membros de exercerem, no Estado‑Membro de acolhimento, as suas actividades por intermédio de um estabelecimento estável (v., neste sentido, acórdão Hartlauer, já referido, n.os 34, 35 e 38).

24      A regra de exclusão dos não farmacêuticos constitui uma restrição dessa natureza porquanto reserva a exploração de farmácias exclusivamente aos farmacêuticos, privando os outros operadores económicos do acesso a esta actividade não assalariada no Estado‑Membro em causa.

 Quanto à justificação da restrição da liberdade de estabelecimento

25      As restrições à liberdade de estabelecimento, aplicáveis sem discriminação em razão da nacionalidade, podem ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral, desde que sejam adequadas para garantir a realização do objectivo por elas prosseguido e não ultrapassem o necessário para alcançar esse objectivo (v. acórdão Hartlauer, já referido, n.° 44).

26      Nos processos principais, importa referir, em primeiro lugar, que a legislação em causa é aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade.

27      Em segundo lugar, a protecção da saúde pública figura entre as razões imperiosas de interesse geral que podem justificar restrições à liberdade de estabelecimento (v., designadamente, acórdão Hartlauer, já referido, n.° 46).

28      Mais precisamente, restrições às referidas liberdades de circulação podem ser justificadas pelo objectivo de assegurar um fornecimento seguro e de qualidade de medicamentos à população (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Deutscher Apothekerverband, n.° 106, e Comissão/Alemanha, n.° 47).

29      Em terceiro lugar, cumpre examinar se a regra de exclusão dos não farmacêuticos é adequada para garantir esse objectivo.

30      A este respeito, importa que, quando subsistam incertezas quanto à existência ou à importância de riscos para a saúde das pessoas, o Estado‑Membro possa tomar medidas de protecção sem ter de aguardar que a realidade desses riscos seja plenamente demonstrada. Além disso, o Estado‑Membro pode tomar as medidas que reduzam, tanto quanto possível, um risco para a saúde pública (v., neste sentido, acórdão de 5 de Junho de 2007, Rosengren e o., C‑170/04, Colect., p. I‑4071, n.° 49), incluindo, mais precisamente, um risco para o fornecimento seguro e de qualidade de medicamentos à população.

31      Neste contexto, deve sublinhar‑se o carácter muito especial dos medicamentos, uma vez que os respectivos efeitos terapêuticos os distinguem substancialmente das outras mercadorias (v., neste sentido, acórdão de 21 de Março de 1991, Delattre, C‑369/88, Colect., p. I‑1487, n.° 54).

32      Esses efeitos terapêuticos têm a consequência de os medicamentos, se forem consumidos sem necessidade ou de modo incorrecto, poderem prejudicar gravemente a saúde, sem que o paciente disso possa ter consciência no momento da sua administração.

33      Um consumo excessivo ou uma utilização incorrecta de medicamentos origina, além disso, um desperdício de recursos financeiros que é tanto mais prejudicial quanto é certo que o sector farmacêutico gera custos consideráveis e deve responder a necessidades crescentes, e que os recursos financeiros que podem ser consagrados aos cuidados de saúde não são, independentemente do modo de financiamento utilizado, ilimitados (v., por analogia, no que respeita aos cuidados hospitalares, acórdãos de 13 de Maio de 2003, Müller‑Fauré e van Riet, C‑385/99, Colect., p. I‑4509, n.° 80, e Watts, já referido, n.° 109). A este respeito, importa sublinhar que existe um nexo directo entre estes recursos financeiros e os lucros dos operadores económicos activos no sector farmacêutico, porquanto os encargos com a prescrição de medicamentos são assumidos, na maioria dos Estados‑Membros, pelos organismos de seguro de doença em causa.

34      Vistos os riscos para a saúde pública e para o equilíbrio financeiro dos sistemas de segurança social, os Estados‑Membros podem sujeitar as pessoas encarregadas do fornecimento a retalho dos medicamentos a exigências estritas, designadamente no tocante às suas modalidades de comercialização e à angariação de lucros. Em particular, podem, em princípio, reservar a venda a retalho dos medicamentos exclusivamente aos farmacêuticos, em razão das garantias que estes últimos devem prestar e das informações que devem estar em condições de poder dar ao consumidor (v., neste sentido, acórdão Delattre, já referido, n.° 56).

35      A este respeito, tendo em conta a faculdade reconhecida aos Estados‑Membros de decidir do nível de protecção da saúde pública, há que admitir que estes podem exigir que os medicamentos sejam distribuídos por farmacêuticos que gozem de uma verdadeira independência profissional. Podem também tomar medidas capazes de eliminar ou reduzir o risco de essa independência ser prejudicada, pois tal prejuízo seria de natureza a afectar o nível de fornecimento seguro e de qualidade da distribuição de medicamentos à população.

36      Neste contexto, impõe‑se distinguir três categorias de potenciais exploradores de farmácias, a saber, a das pessoas singulares que têm a qualidade de farmacêutico, a das pessoas que operam no sector dos produtos farmacêuticos como fabricantes ou grossistas e a das pessoas que não têm a qualidade de farmacêutico nem operam no referido sector.

37      No que respeita ao explorador que tem a qualidade de farmacêutico, não se pode negar que, à semelhança de outras pessoas, prossegue o objectivo de obtenção de lucros. Todavia, como farmacêutico de profissão, está obrigado a explorar a farmácia não com um objectivo puramente económico mas também numa óptica profissional. O seu interesse privado na realização de lucros é dessa forma temperado pela sua formação, experiência profissional e responsabilidade que lhe incumbe, visto que uma eventual violação das normas legais ou deontológicas fragiliza não apenas o valor do seu investimento mas igualmente a sua própria existência profissional.

38      Ao contrário dos farmacêuticos, os não farmacêuticos não têm, por definição, uma formação, uma experiência e uma responsabilidade equivalentes à dos farmacêuticos. Nestas condições, há que concluir que não apresentam as mesmas garantias que as fornecidas pelos farmacêuticos.

39      Consequentemente, um Estado‑Membro, no âmbito da sua margem de apreciação evocada no n.° 19 do presente acórdão, pode entender que, diversamente de uma farmácia explorada por um farmacêutico, a exploração de uma farmácia por um não farmacêutico pode representar um risco para a saúde pública, em particular para a segurança e a qualidade do fornecimento a retalho dos medicamentos, pois a angariação de lucros no quadro de tal exploração não inclui elementos moderadores como os recordados no n.° 37 do presente acórdão, que caracterizam a actividade dos farmacêuticos (v., por analogia, no que respeita à prestação de serviços de assistência social, acórdão de 17 de Junho de 1997, Sodemare e o., C‑70/95, Colect., p. I‑3395, n.° 32).

40      Assim, no quadro da referida margem de apreciação, um Estado‑Membro tem, nomeadamente, legitimidade para avaliar se esse risco existe no que respeita a fabricantes e grossistas de produtos farmacêuticos, com o fundamento de que estes podem prejudicar a independência dos farmacêuticos assalariados, incentivando‑os a promover os medicamentos que eles próprios produzem ou comercializam. De igual modo, um Estado‑Membro pode apreciar se existe o risco de quem explora uma farmácia sem ter a qualidade de farmacêutico prejudicar a independência dos farmacêuticos assalariados, incentivando‑os a escoar medicamentos cujo armazenamento deixa de ser rentável, ou se existe o risco de essas mesmas pessoas procederem a reduções de despesas de funcionamento susceptíveis de afectar as modalidades em que os medicamentos são distribuídos a retalho.

41      Nas observações que apresentaram ao Tribunal de Justiça, a DocMorris e a Comissão das Comunidades Europeias alegaram igualmente que, nos processos principais, a regra de exclusão dos não farmacêuticos não pode ser justificada pelo interesse geral, porquanto a forma como esse objectivo é prosseguido é incoerente.

42      A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma legislação nacional só é apta a garantir a realização do objectivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática (v. acórdãos de 6 de Março de 2007, Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.os 53 e 58; de 17 de Julho de 2008, Corporación Dermoestética, C‑500/06, ainda não publicado na Colectânea, n.os 39 40; e Hartlauer, já referido, n.° 55).

43      Neste contexto, importa sublinhar que a legislação nacional não exclui de forma absoluta a exploração de farmácias por não farmacêuticos.

44      Antes de mais, o § 13, n.° 1, da ApoG prevê, a título excepcional, que os herdeiros de um farmacêutico que não sejam eles mesmos farmacêuticos podem explorar a farmácia que herdaram durante um período máximo de doze meses.

45      Todavia, esta excepção justifica‑se à luz da protecção dos direitos e interesses patrimoniais legítimos dos membros da família do farmacêutico falecido. A este respeito, deve referir‑se que os Estados‑Membros podem considerar que os interesses dos herdeiros de um farmacêutico não são susceptíveis de pôr em causa as exigências e garantias decorrentes das respectivas ordens jurídicas que devem ser satisfeitas por quem tem a qualidade de farmacêutico. Neste contexto, há que ter sobretudo em consideração a circunstância de que a farmácia objecto de herança deve ser explorada, durante todo o período transitório, sob a responsabilidade de um farmacêutico diplomado. Por conseguinte, os herdeiros não podem, neste contexto concreto, ser equiparados a quem explora uma farmácia sem ter a qualidade de farmacêutico.

46      Além disso, cumpre salientar que a referida excepção apenas tem efeitos temporários, porquanto os herdeiros devem efectuar a transferência dos direitos de exploração da farmácia para um farmacêutico no prazo de doze meses.

47      Deste modo, esta excepção destina‑se a permitir aos sucessores legais ceder a farmácia a um farmacêutico num prazo razoável, podendo, assim, considerar‑se que não apresenta um risco para a segurança e a qualidade do fornecimento de medicamentos à população.

48      Seguidamente, o mencionado risco também não é susceptível de resultar do facto de os hospitais poderem explorar farmácias internas. Com efeito, estas últimas não se destinam a assegurar o fornecimento de medicamentos a pessoas externas a esses hospitais, mas a fornecer medicamentos aos estabelecimentos onde estão implantadas. Assim, os hospitais que exploram as referidas farmácias não podem, em princípio, influir no nível geral de segurança e de qualidade do fornecimento de medicamentos à totalidade da população. Além disso, tendo em conta que esses estabelecimentos hospitalares são prestadores de cuidados médicos, nenhum elemento permite presumir que tivessem interesse em realizar lucros em detrimento dos doentes aos quais se destinam os medicamentos das farmácias neles implantadas.

49      Por último, embora a referida legislação permita que os farmacêuticos explorem até três sucursais de uma mesma farmácia, esta possibilidade está sujeita a diversas condições destinadas a salvaguardar os imperativos relativos à saúde pública. Desde logo, as sucursais são exploradas sob a própria responsabilidade do farmacêutico em causa, o qual determina, portanto, a respectiva política comercial geral. As referidas sucursais devem assim ser exploradas numa óptica profissional, sendo o interesse privado na realização de lucros temperado na mesma medida que no caso da exploração de farmácias sem o estatuto de sucursais. Seguidamente, essas sucursais devem estar situadas num determinado perímetro geográfico a fim de assegurar uma presença suficiente nas mesmas do farmacêutico que as explora e uma vigilância efectiva por parte do mesmo farmacêutico. Por último, o farmacêutico titular está obrigado a designar, para cada sucursal, um farmacêutico responsável que deve zelar pelo respeito das obrigações legais e pela conformidade da gestão da sucursal em causa com a política comercial geral determinada pelo farmacêutico que explora a farmácia.

50      Uma vez que a exploração das referidas sucursais está sujeita a estas condições, a legislação em causa nos processos principais não pode ser considerada incoerente.

51      Tendo em conta as considerações precedentes, deve concluir‑se que a legislação em causa nos processos principais é adequada para garantir a realização do objectivo de assegurar o fornecimento seguro e de qualidade de medicamentos à população e, portanto, a protecção da saúde pública.

52      Em quarto lugar, importa examinar se a restrição à liberdade de estabelecimento não vai além do que é necessário para alcançar o referido objectivo, isto é, se não existem medidas menos restritivas da liberdade garantida pelo artigo 43.° CE que permitissem alcançá‑lo de forma igualmente eficaz.

53      A este respeito, a DocMorris e a Comissão alegam no Tribunal de Justiça que o referido objectivo poderia ser alcançado por medidas menos restritivas, como a obrigação da presença de um farmacêutico no estabelecimento, a obrigação de subscrever um contrato de seguro ou um sistema de controlos adequados e de sanções eficazes.

54      Todavia, atendendo à margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros, como foi recordada no n.° 19 do presente acórdão, um Estado‑Membro pode considerar que existe o risco de as normas legais destinadas a garantir a independência profissional das farmacêuticos não serem observadas na prática, uma vez que o interesse de um não farmacêutico na realização de lucros não seria moderado de uma maneira equivalente ao dos farmacêuticos independentes e a subordinação dos farmacêuticos, enquanto assalariados, a alguém que explora a farmácia poderia fazer com que lhes fosse mais difícil oporem‑se às instruções dadas por essa pessoa.

55      Ora, além de considerações de ordem geral, a Comissão não apresentou nenhum elemento capaz de demonstrar qual o sistema concreto susceptível de garantir – com a mesma eficácia que a regra de exclusão dos não farmacêuticos – que as referidas normas legais não são inobservadas na prática, apesar das considerações enunciadas no número anterior do presente acórdão.

56      Além disso, contrariamente ao que sustentam a DocMorris e a Comissão, os riscos para a independência da profissão de farmacêutico também não podem ser afastados, com a mesma eficácia, através da obrigação de subscrição de um seguro, como o contrato de seguro de responsabilidade civil por actos de terceiros. Com efeito, embora esta medida pudesse permitir ao paciente obter uma reparação financeira por danos eventualmente sofridos, tem lugar a posteriori e seria menos eficaz que a referida regra na medida em que não impediria de modo algum que o explorador em causa exerça influência sobre os farmacêuticos assalariados.

57      Nestas condições, não está demonstrado que uma medida menos restritiva da liberdade de estabelecimento garantida pelo artigo 43.° CE, diversa da norma de exclusão dos não farmacêuticos, permitiria assegurar, de forma igualmente eficaz, o nível de segurança e de qualidade do fornecimento de medicamentos à população que resulta da aplicação desta norma.

58      Consequentemente, a legislação nacional em causa nos processos principais mostra‑se apta a garantir a realização do objectivo por ela prosseguido e não excede o que é necessário para o atingir. Por conseguinte, cumpre reconhecer que as restrições decorrentes da referida legislação podem ser justificadas por esse objectivo.

59      Esta conclusão não é posta em causa pelo acórdão de 21 de Abril de 2005, Comissão/Grécia (C‑140/03, Colect., p. I‑3177), invocado pelo Saarland, pelo Ministerium, pela DocMorris e pela Comissão, no qual o Tribunal de Justiça declarou que a República Helénica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 48.° CE ao adoptar e manter em vigor disposições nacionais que fazem depender a possibilidade de uma pessoa colectiva abrir um estabelecimento de óptica, nomeadamente, da condição de que a autorização para criar e explorar esse estabelecimento seja emitida em nome de um técnico de óptica, pessoa singular autorizada, e de que o titular da autorização para explorar o estabelecimento participe em, pelo menos, 50% do capital social, bem como nos seus lucros e perdas.

60      Tendo em conta o carácter especial dos medicamentos, bem como do seu mercado, e no estado actual do direito comunitário, as conclusões do Tribunal de Justiça no acórdão Comissão/Grécia, já referido, não são transponíveis para o domínio do fornecimento a retalho de medicamentos. Com efeito, diversamente dos produtos de óptica, os medicamentos prescritos ou utilizados por razões terapêuticas podem, apesar de tudo, ser gravemente prejudiciais à saúde se forem consumidos sem necessidade ou de modo incorrecto, sem que o paciente disso possa ter consciência no momento da sua administração. Além disso, a venda de medicamentos sem justificação médica acarreta um desperdício de recursos financeiros públicos que não é comparável ao que resulta de vendas injustificadas de produtos de óptica.

61      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão que os artigos 43.° CE e 48.° CE não se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que impede as pessoas que não têm a qualidade de farmacêutico de serem proprietários de farmácias e explorá‑las.

 Quanto à segunda questão

62      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

63      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

Os artigos 43.° CE e 48.° CE não se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que impede as pessoas que não têm a qualidade de farmacêutico de serem proprietários de farmácias e explorá‑las.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.