Language of document : ECLI:EU:C:2017:212

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 15 de março de 2017(1)

Processo C206/16

Marco Tronchetti Provera SpA e o.

contra

Commissione Nazionale per le Società e la Borsa (Consob)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, Itália)]

«Direito das sociedades — Diretiva 2004/25/CE — Proteção dos interesses dos acionistas minoritários nos casos de ofertas públicas de aquisição — Artigo 5.o, n.o 4 — Conceito de ‘claramente determinados’ — Regras nacionais que autorizam a autoridade de supervisão a retificar o preço da oferta pública de aquisição — Colusão entre o oferente ou as pessoas que atuam em concertação com ele e um ou mais vendedores»






1.        O presente pedido de decisão prejudicial prende‑se com a interpretação correta do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25/CE (2). Essa disposição permite que os Estados‑Membros autorizem a autoridade de supervisão nacional no domínio dos valores mobiliários (a seguir «ASN») a alterar o preço de uma oferta pública de aquisição (a seguir «OPA») obrigatória, nos termos dessa diretiva. Todavia, a diretiva exige que tais medidas sejam tomadas em circunstâncias e de acordo com critérios «claramente determinados».

2.        No processo principal, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, Itália) pergunta se é possível considerar que a aplicação a esse processo da legislação italiana de transposição daquela diretiva, que autoriza a Commissione Nazionale per le Società e la Borsa [Comissão Nacional para as Sociedades e a Bolsa (Consob)], a ASN italiana, a aumentar o preço de uma oferta de aquisição pública obrigatória no caso de colusão, assenta em circunstâncias e em critérios «claramente determinados», na aceção do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25.

3.        A especificidade do processo principal reside no facto de a retificação do preço oferecido resultar de uma operação diferente daquela que desencadeou a OPA obrigatória. Além disso, não está demonstrado que todos os participantes na outra operação tivessem planeado a colusão ou tivessem conhecimento do risco de colusão. Portanto, este processo permitirá ao Tribunal de Justiça clarificar os limites do poder dos Estados‑Membros de autorizarem a sua ASN a derrogar a regra do preço mais elevado (a seguir «RPME»), estabelecida no artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25.

4.        Conforme explicarei adiante, o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 permite, em princípio, que os Estados‑Membros autorizem a sua ASN a alterar o preço de uma OPA obrigatória no caso de existência de colusão nos termos descritos no número anterior. Porém, essa disposição obsta à aplicação de tal regra a um conjunto de circunstâncias que, não fora a aplicação daquela diretiva, não teriam sido classificadas pela legislação nacional como um caso de colusão.

I.      Quadro jurídico

A.      Diretiva 2004/25

5.        O processo de OPA estabelecido pela Diretiva 2004/25 aplica‑se, nos termos do seu artigo 1.o (intitulado «Âmbito de aplicação»), às «ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários de sociedades sujeitas à legislação dos Estados‑Membros, quando esses valores mobiliários são, no todo ou em parte, admitidos à negociação num mercado regulamentado». O artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da diretiva (intitulado «Definições») define uma «oferta pública de aquisição» (ou «oferta») como «uma oferta pública (que não pela sociedade visada) feita aos titulares de valores mobiliários de uma sociedade para adquirir a totalidade ou uma parte desses valores mobiliários, independentemente de essa oferta ser obrigatória ou voluntária, na condição de ser subsequente à aquisição do controlo da sociedade visada ou ter como objetivo essa aquisição do controlo nos termos do direito nacional».

6.        O artigo 3.o da Diretiva 2004/25 (intitulado «Princípios gerais») estabelece o seguinte:

«1.      Para efeitos de aplicação da presente diretiva, os Estados‑Membros asseguram que sejam respeitados os seguintes princípios:

a)      Todos os titulares de valores mobiliários de uma sociedade visada de uma mesma categoria devem beneficiar de um tratamento equivalente; além disso, nos casos em que uma pessoa adquira o controlo de uma sociedade, os restantes titulares de valores mobiliários terão de ser protegidos;

b)      Os titulares de valores mobiliários da sociedade visada devem dispor de tempo e informações suficientes para poderem tomar uma decisão sobre a oferta com pleno conhecimento de causa; […]

[…]

d)      Não devem ser criados mercados artificiais para os valores mobiliários da sociedade visada, da sociedade oferente ou de qualquer outra sociedade interessada na oferta de que resulte uma subida ou descida artificial dos preços dos valores mobiliários e que falseiem o funcionamento normal dos mercados;

[…]

2.      Para efeitos da observância dos princípios previstos no n.o 1, os Estados‑Membros:

a)      Asseguram que sejam satisfeitos os requisitos mínimos previstos na presente diretiva;

b)      Podem estabelecer condições adicionais e disposições mais restritivas do que as exigidas pela presente diretiva para regulamentar as ofertas.»

7.        O artigo 4.o (intitulado «Autoridade de supervisão e direito aplicável»), n.o 2, da Diretiva 2004/25 designa a ASN competente relativamente a uma OPA. Em especial, a alínea a) estabelece que «[a] autoridade competente para a supervisão da oferta é a do Estado‑Membro em que se situa a sede social da sociedade visada se os valores mobiliários dessa sociedade estiverem admitidos à negociação num mercado regulamentado desse Estado‑Membro».

8.        O artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2004/25 dispõe:

«As autoridades de supervisão devem dispor de todos os poderes necessários para o exercício das suas funções, entre as quais se inclui o dever de assegurar que as partes na oferta respeitem as regras aprovadas ou introduzidas em aplicação da presente diretiva.

Sem prejuízo dos princípios gerais enunciados no n.o 1 do artigo 3.o, os Estados‑Membros podem estabelecer, nas regras por eles aprovadas ou introduzidas em aplicação da presente diretiva, derrogações a estas regras:

i)      incluindo essas derrogações nas suas regras nacionais, a fim de ter em conta circunstâncias determinadas a nível nacional

e/ou

ii)      conferindo às suas autoridades de supervisão, caso estas sejam competentes na matéria, o poder de não aplicar as regras nacionais, por forma a ter em conta as circunstâncias mencionadas na alínea i) ou outras circunstâncias específicas, exigindo‑se, neste último caso, uma decisão fundamentada.»

9.        O artigo 5.o da Diretiva 2004/25 (intitulado «Proteção dos acionistas minoritários; oferta obrigatória; preço equitativo») prevê o seguinte:

«1.      Sempre que uma pessoa singular ou coletiva, na sequência de uma aquisição efetuada por si ou por pessoas que com ela atuam em concertação, venha a deter valores mobiliários de uma sociedade […] que, adicionados a uma eventual participação que já detenha e à participação detida pelas pessoas que com ela atuam em concertação, lhe confiram direta ou indiretamente uma determinada percentagem dos direitos de voto nessa sociedade, permitindo‑lhe dispor do controlo da mesma, os Estados‑Membros asseguram que essa pessoa deva lançar uma oferta a fim de proteger os acionistas minoritários dessa sociedade. Esta oferta deve ser dirigida o mais rapidamente possível a todos os titulares de valores mobiliários, para a totalidade das suas participações, a um preço equitativo definido no n.o 4.

[…]

4.      Por preço equitativo entende‑se o preço mais elevado pago pelos mesmos valores mobiliários pelo oferente, ou pelas pessoas que com ele atuam em concertação, ao longo de um período a determinar pelos Estados‑Membros, não inferior a seis e não superior a 12 meses, que preceda a oferta prevista no n.o 1. Se, depois de a oferta ser tornada pública mas antes do termo do prazo de aceitação da mesma, o oferente ou qualquer pessoa que com ele atue em concertação adquirir valores mobiliários acima do preço da oferta, o oferente deve aumentar o valor da sua oferta até um preço não inferior ao preço mais alto pago pelos valores mobiliários assim adquiridos.

Sem prejuízo dos princípios gerais enunciados no n.o 1 do artigo 3.o, os Estados‑Membros podem autorizar as autoridades de supervisão a alterar o preço referido no primeiro parágrafo em circunstâncias e de acordo com critérios claramente determinados. Para o efeito, podem estabelecer uma lista de circunstâncias em que o preço mais elevado pode ser alterado, tanto no sentido da sua subida como descida, por exemplo, se o preço mais elevado tiver sido fixado mediante acordo entre o adquirente e o alienante, se os preços de mercado dos valores mobiliários em causa tiverem sido manipulados, se os preços do mercado em geral ou em especial tiverem sido afetados por acontecimentos excecionais, ou a fim de permitir a recuperação de uma empresa em situação difícil. Podem igualmente definir os critérios a utilizar em tais casos como, por exemplo, o valor médio de mercado ao longo de um determinado período, o valor de liquidação da sociedade ou outros critérios objetivos de avaliação geralmente utilizados na análise financeira.

Qualquer decisão das autoridades de supervisão no sentido de alterar o preço equitativo deve ser sempre fundamentada e tornada pública.

[…]»

B.      Direito italiano

10.      O decreto legislativo 24 febbraio 1998, n.o 58, Testo unico delle disposizioni in materia di intermediazione finanziaria, ai sensi degli articoli 8 e 21 della legge 6 febbraio 1996, n.o 52 (Decreto Legislativo n.o 58, de 24 de fevereiro de 1998, que consolida as disposições em matéria de intermediação financeira, na aceção dos artigos 8.o e 21.o da Lei n.o 52, de 6 de fevereiro de 1996) (3), conforme alterado (a seguir «Decreto Legislativo n.o 58/1998»), contém disposições que transpõem a Diretiva 2004/25. O seu artigo 106.o (intitulado «Oferta pública de aquisição totalitária») estabelece o seguinte:

«3.      A Consob disciplina mediante regulamento os casos em que:

[…]

d)      a oferta, na sequência de decisão fundamentada da Consob, seja lançada por um preço superior ao preço mais elevado pago, desde que tal seja necessário para a proteção dos investidores e ocorra pelo menos uma das seguintes circunstâncias:

[…]

2)      tenha havido colusão entre o oferente ou as pessoas que atuam em concertação com ele e um ou mais vendedores.»

11.      Por deliberação de 14 de maio de 1999, a Consob adotou o Regolamento di attuazione del decreto legislativo 24 febbraio 1998, n.o 58, concernente la disciplina degli emittenti (Regulamento de execução do Decreto Legislativo n.o 58, de 24 de fevereiro de 1998, relativo à disciplina dos emitentes) (4), conforme alterado (a seguir «regulamento de execução»). O seu artigo 47.oocties (intitulado «Aumento do preço em caso de colusão») dispõe:

«1.      O preço da oferta é retificado em alta pela Consob, nos termos do artigo 106.o, n.o 3, alínea d), ponto 2, do [Decreto Legislativo n.o 58/1998], sempre que da colusão entre o oferente ou as pessoas que atuam em concertação com este e um ou mais vendedores seja apurada a existência de uma contrapartida mais elevada do que a declarada pelo oferente. Nesse caso, o preço da oferta corresponde ao apurado.»

II.    Matéria de facto, tramitação processual e questão prejudicial

12.      Em 17 de maio de 2013, a Marco Tronchetti Provera SpA (a seguir «MTP»), uma sociedade cujo acionista principal é Marco Tronchetti Provera, constituiu, através das sociedades por si controladas e juntamente com terceiros, uma sociedade denominada Lauro Sessantuno SpA (a seguir «Lauro 61»).

13.      Em 5 de junho de 2013, a Lauro 61 comunicou ao mercado uma OPA da totalidade das ações da Camfin SpA, ao preço unitário de 0,80 euros por ação, fixado com base nos preços de mercado da mesma ação nos doze meses anteriores.

14.      À data da OPA obrigatória, a Camfin detinha, direta e indiretamente, 26,19% das ações da Pirelli & C. SpA (a seguir «Pirelli»). Determinados acionistas da Pirelli, designadamente a Malacalza Investimenti Srl (a seguir «MCI»), a MTP, a Camfin, a Allianz SpA e a Fondiaria SAI SpA (a seguir «FonSai»), tinham previamente celebrado um acordo dito de bloqueio (lockup) (a seguir «acordo da Pirelli»).

15.      A MCI, também acionista da Camfin, aderiu à OPA da Lauro 61, transferindo para esta ações equivalentes a 12,37% do capital social da Camfin, ao preço acima indicado.

16.      No mesmo dia 5 de junho de 2013, foi comunicado ao mercado que: i) a Lauro 61 tinha dissolvido os acordos em vigor entre a MTP e a MCI a respeito da Camfin; ii) a MCI tinha vendido as suas ações na Camfin; iii) a MCI tinha adquirido uma participação equivalente a 6,98% do capital social da Pirelli à Allianz e à FonSai, ao preço de 7,80 euros por ação; e iv) as partes outorgantes do acordo da Pirelli, presididas por Tronchetti Provera, tinham autorizado a Allianz e a FonSai a excluírem do acordo a totalidade ou parte das ações que detinham e que fossem objeto do acordo (a seguir «ações da Pirelli»).

17.      A OPA foi concluída em 11 de outubro de 2013, tendo a Lauro 61 começado por comprar 95,95% do capital social da Camfin e em seguida exercido o direito de compra das ações remanescentes, passando, assim, a ser titular da totalidade do capital da Camfin, cujas ações foram, consequentemente, retiradas da bolsa («delisting»).

18.      A pedido de alguns sócios minoritários da Camfin, em 12 de setembro de 2013, a Consob deu início a um processo para o aumento do preço da OPA em causa.

19.      Após ter chegado à conclusão de que essas transações tinham permitido à MCI receber uma contrapartida global pela venda das ações da Camfin superior a 0,80 euros por ação, a Consob considerou que existia colusão e, pela deliberação n.o 18662, de 25 de setembro de 2013 (a seguir «deliberação controvertida»), aumentou o preço unitário por ação em 0,03 euros, fixando‑o em 0,83 euros por ação (5). A legalidade da referida deliberação foi subsequentemente confirmada por quatro decisões proferidas pelo Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália).

20.      As referidas quatro decisões constituem o objeto dos recursos pendentes no órgão jurisdicional de reenvio. A esse respeito, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que o conceito de «colusão» é utilizado em diversas partes da legislação italiana. Ainda que não se trate de um conceito estático com um significado preciso, é sempre necessária a existência de um acordo clandestino e fraudulento, que é prejudicial a terceiros ou que viola disposições imperativas da lei, e que pressupõe a presença de um elemento volitivo e intencional por parte de todos os participantes no acordo. A esse propósito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a Allianz e a FonSai não estavam ao corrente de tal acordo. Consequentemente, caso seja essa a interpretação a dar ao conceito de «colusão», os recursos interpostos, entre outros, pela MTP e pela Lauro 61 devem ser julgados procedentes.

21.      Porém, o órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que pode impor‑se outra interpretação do conceito de «colusão», devido, designadamente, à natureza específica da área do direito em causa e à natureza dos poderes regulatórios atribuídos à Consob. No entanto, tal interpretação pode suscitar alguns problemas no tocante à segurança jurídica, por ser suscetível de impedir os operadores económicos de preverem como devem atuar antes do lançamento de uma OPA. Assim, por ter dúvidas quanto à correta interpretação dos artigos 3.o, n.o 1, e 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial:

«Uma disposição nacional como o artigo 106.o, [n.o 3], alínea d), [ponto 2], do [Decreto Legislativo n.o 58/1998], e posteriores alterações, e o artigo 47.oocties do [regulamento de execução], e posteriores alterações, obsta à aplicação correta do artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da [Diretiva 2004/25], à luz dos princípios gerais estabelecidos pelo artigo 3.o, n.o 1, da mesma diretiva, bem como à correta aplicação dos princípios gerais do direito da União da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima, da proporcionalidade, da razoabilidade, da transparência e da não discriminação, na parte em que as referidas disposições autorizam a Consob a aumentar a [OPA] a que se refere o artigo 106.o[,] quando se verifique ‘ter havido colusão entre o oferente ou as pessoas que atuam em concertação com ele e um ou mais vendedores’, sem individualizar as condutas específicas que se subsumem nessa previsão e, portanto, sem determinar claramente as circunstâncias e os critérios segundo os quais a Consob está autorizada a retificar em alta o preço da [OPA]?»

III. Análise

A.      Observações introdutórias

22.      Esta é a primeira vez que o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25. Na verdade, é apenas a segunda vez que o Tribunal de Justiça fornecerá orientações sobre as regras compreendidas nesse diploma legal (6). Além disso, na sequência da decisão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado) de remeter o presente processo ao Tribunal de Justiça, o Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio) também decidiu submeter ao Tribunal de Justiça cinco questões relativas à interpretação do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, para efeitos de decisão prejudicial (7).

23.      Essencialmente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a defesa de uma interpretação do conceito de «colusão», na aceção do artigo 106.o, n.o 3, alínea d), ponto 2, do Decreto Legislativo n.o 58/1998, e do artigo 47.oocties do regulamento de execução (a seguir, conjuntamente, «regras italianas em causa»), como não exigindo a identificação das condutas específicas que se subsumem nessa previsão, pode ser admitida nos termos do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, lido à luz do artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva, e de certos princípios gerais, mormente o princípio da segurança jurídica.

24.      Resulta da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional de reenvio contempla duas possíveis interpretações do conceito de «colusão»: por um lado, uma leitura estrita, que exige a existência de um acordo clandestino e fraudulento, que prejudica terceiros ou que viola disposições imperativas da lei, e que pressupõe a presença de um elemento volitivo e intencional por parte de todos os participantes no acordo (a seguir «leitura estrita» ou «sentido estrito»); e, por outro lado, uma leitura ampla do conceito de «colusão», segundo a qual o acordo pode ser constituído por elementos alheios à operação que efetivamente desencadeou a OPA obrigatória, e que não exige necessariamente a existência de um elemento volitivo e intencional por parte de todos os participantes no acordo (a seguir «leitura ampla» ou «sentido amplo»).

25.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que, uma vez que a Allianz e a FonSai não tiveram intenção de participar em qualquer acordo fraudulento e clandestino, a leitura estrita do conceito de «colusão» não admitiria uma retificação do preço como a que a Consob efetuou. No entender do órgão jurisdicional de reenvio, a resposta à questão prejudicial será, por conseguinte, decisiva para determinar o preço que a Lauro 61 estava obrigada a oferecer, nos termos do artigo 5.o da Diretiva 2004/25, pelas ações da Camfin aquando da aquisição desta sociedade.

26.      Nesta fase preliminar, gostaria de esclarecer categoricamente um aspeto de fundamental importância para o caso presente.

27.      Resumidamente: não cabe ao Tribunal de Justiça explicar de que modo o conceito de «colusão» utilizado nas regras italianas em causa deve ser interpretado. Em especial, não cabe ao Tribunal de Justiça selecionar, de entre as duas interpretações, aquela que prefere. É ao órgão jurisdicional de reenvio que compete fazê‑lo (8). É ao órgão jurisdicional de reenvio que compete decidir qual das duas interpretações daquele conceito (a leitura estrita ou a leitura ampla) é válida.

28.      Feitas estas considerações, aquilo que o Tribunal de Justiça, por seu turno, pode e deve fazer para auxiliar o órgão jurisdicional de reenvio a dirimir o litígio de que é chamado a conhecer é interpretar o direito da União, o que, no caso presente, consiste essencialmente na interpretação do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 e, especialmente, na clarificação do correto significado da expressão «claramente determinados». Ainda que este termo seja utilizado a respeito de medidas adotadas pelos Estados‑Membros, o artigo 5.o, n.o 4, da referida diretiva não deixa ao direito nacional a tarefa de definir esse conceito. Portanto, trata‑se de um conceito autónomo do direito da União, que deve ser objeto de uma interpretação uniforme.

29.      Contudo, para prosseguir a tarefa de interpretar o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 de forma útil para o órgão jurisdicional de reenvio, cumpre recordar que esse órgão jurisdicional já excluiu a hipótese de a leitura estrita do conceito de «colusão» poder justificar a confirmação dos acórdãos recorridos e, consequentemente, da deliberação controvertida. Assim, resta ao Tribunal de Justiça determinar se a leitura ampla do conceito de «colusão» pode ser considerada «claramente determinada», na aceção do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, e se, por conseguinte, é nessa interpretação que a sua resposta deve assentar.

B.      Apreciação da questão prejudicial

1.      Artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25: observações preliminares

30.      Enquanto o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/25 estabelece as condições que desencadeiam a obrigação de uma pessoa singular ou coletiva, uma vez atingido o limiar previsto no direito nacional, de lançar uma oferta obrigatória respeitante aos valores mobiliários remanescentes na sociedade‑alvo, o artigo 5.o, n.o 4, regula o preço que pode ser oferecido no contexto de tal oferta.

31.      O primeiro parágrafo do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 identifica esse preço, como regra geral, de forma inequívoca. Consiste muito simplesmente no preço mais elevado pago pelo oferente (ou pelas pessoas que com ele atuam em concertação) ao longo de determinado período, não inferior a seis meses e não superior a um ano, conforme fixado pelos Estados‑Membros. Além disso, esse preço é, segundo a diretiva, o preço equitativo. A razão subjacente afigura‑se óbvia, uma vez que a RPME fixa o preço que deve ser oferecido em termos simples e de forma transparente e previsível.

32.      Todavia, nos termos do artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25, os Estados‑Membros podem autorizar a sua ASN a alterar o preço, em determinadas condições. Os termos dessa disposição referem: i) as circunstâncias inerentes à OPA; e ii) os critérios a utilizar na alteração do preço. Acresce que, para esse efeito, os Estados‑Membros devem respeitar os princípios gerais enunciados no artigo 3.o, n.o 1, e as circunstâncias e critérios referidos devem ser «claramente determinados».

33.      No meu entender, daí parece decorrer com bastante clareza que o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 determina quando, como e por que motivo um Estado‑Membro pode autorizar as suas autoridades a intervirem numa OPA nos casos em que a RPME não reflete verdadeiramente o preço equitativo (9). Conforme adiante explicarei, só as circunstâncias que apresentam uma ligação clara e direta com a operação que desencadeia a OPA obrigatória podem ser tidas em consideração nesses casos.

34.      Analisarei agora em maior detalhe o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25, em causa no processo principal. O que impõe essa disposição e qual o verdadeiro significado da expressão «claramente determinados»?

2.      Paradigma: poder discricionário dos EstadosMembros

35.      Resulta imediatamente do artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 que essa disposição contém o que suponho ser uma lista não exaustiva de exemplos em que os Estados‑Membros se podem inspirar, caso desejem autorizar a sua ANS a alterar o preço.

36.      Outro aspeto que se afigura evidente é o de as «circunstâncias», referidas no artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, que podem desencadear uma alteração do preço se situarem, em termos analíticos, a montante dos «critérios» a aplicar à alteração.

37.      À parte disso, o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25, em si mesmo, não diz muito mais.

38.      E, no entanto, parece não haver dúvidas de que o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 confere aos Estados‑Membros o poder discricionário de autorizarem as suas ASN a alterarem o preço (10). Tanto os trabalhos preparatórios dessa disposição como o seu contexto corroboram esse entendimento (11). Conforme dispõe o seu artigo 3.o, n.o 2, a dita diretiva apenas estabelece requisitos mínimos (12), o que significa que os Estados‑Membros podem estabelecer disposições e condições adicionais, mais restritivas, para regulamentar as ofertas. Do mesmo modo, o artigo 4.o, n.o 5, da mesma diretiva parece conceder aos Estados‑Membros amplos poderes gerais de derrogação à referida diretiva.

39.      Com efeito, cumpre recordar que a Diretiva 2004/25 resultou, em larga medida, de um compromisso entre o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia (13). Uma vez obtido esse compromisso, a Comissão, que já em 1985 tinha aludido à ideia de normas processuais comuns aplicáveis às alterações do tecido acionista (14) e que, para esse efeito, tinha — sem sucesso — apresentado várias propostas legislativas ao legislador da União nesse domínio (15), emitiu uma declaração para juntar à ata do Conselho na qual lamentava que o texto final adotado não fosse, na sua perspetiva, suficientemente ambicioso e que alguns elementos essenciais tivessem passado a ser facultativos (16). É evidente que esses trabalhos preparatórios influenciam a interpretação da Diretiva 2004/25.

40.      Ainda assim, o poder discricionário conferido em conformidade com o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 aos Estados‑Membros não é ilimitado (17).

3.      Limites ao poder discricionário dos EstadosMembros

a)      Princípios básicos

41.      Em primeiro lugar, a RPME continua a ser a regra de base. E trata‑se de uma regra lógica: o funcionamento eficiente dos mercados de capitais na União exige um nível suficiente de previsibilidade no que respeita à contrapartida a propor numa oferta obrigatória. Para esse efeito, a RPME oferece o duplo benefício de permitir aos acionistas minoritários a participação plena no prémio pago pelo adquirente a todo o tempo durante o período em causa e, ao mesmo tempo, de garantir ao oferente que, na oferta obrigatória, não terá de pagar mais do que estava disposto a pagar no período anterior, permitindo‑lhe assim determinar o preço máximo a que está disposto a adquirir a totalidade dos valores mobiliários da sociedade (18). Consequentemente, de um ponto de vista estrutural, essa regra deve ser interpretada amplamente. Pelo contrário, a possibilidade de os Estados‑Membros derrogarem essa regra deve ser limitada aos casos em que tal for indispensável (19). Além disso, qualquer tentativa de derrogação da RPME e da dupla garantia que oferece deve assentar em argumentos sólidos e ser fundamentada, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25.

42.      Em segundo lugar, ao exercerem o seu poder discricionário, os Estados‑Membros têm de respeitar os princípios estabelecidos no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2004/25. Esses princípios constituem orientações para a aplicação da referida diretiva pelos Estados‑Membros (20).

43.      Porém, tanto quanto seja pertinente para o processo principal, não se verifica qualquer ameaça a esses princípios. Em especial, não deteto qualquer violação dos direitos processuais ou da igualdade de tratamento dos acionistas da Camfin: na verdade, em caso de colusão, as regras italianas em causa só permitem a retificação em alta (21).

44.      Acresce que nenhum desses princípios gerais refere expressamente o objetivo de garantia da previsibilidade ao oferente ou ao público em geral (todavia, isso resulta dos considerandos da Diretiva 2004/25, aos quais regressarei adiante, no n.o 59 das presentes conclusões).

45.      Na verdade, o artigo 3.o, n.o 1, alínea d), da Diretiva 2004/25 refere que não devem ser criados mercados artificiais para os valores mobiliários da sociedade visada, da sociedade oferente ou de qualquer outra sociedade interessada na oferta de que resulte uma subida ou descida artificial dos preços dos valores mobiliários e que falseiem o funcionamento normal dos mercados. Por conseguinte, o princípio geral corrobora manifestamente o entendimento de que um Estado‑Membro pode autorizar uma ASN a alterar o preço oferecido numa OPA em caso de colusão em sentido estrito. Assim o confirma a redação do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, que prevê especificamente as circunstâncias em que «o preço mais elevado tiver sido fixado mediante acordo entre o adquirente e o alienante» ou em que «os preços de mercado dos valores mobiliários em causa tiverem sido manipulados».

46.      No que respeita à leitura ampla do conceito de «colusão» referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, os princípios gerais não são tão conclusivos. No meu entender, porém, não proíbem essa leitura.

47.      Pelo contrário, as recomendações do Grupo de alto nível de peritos no domínio do direito das sociedades sobre os problemas relacionados com as ofertas públicas de aquisição, que fazem parte dos trabalhos preparatórios do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, empregam o conceito de «colusão» como «um acordo com o vendedor, com vista a evitar a aplicação da regra do preço mais elevado» (22). Essa definição, que incide unilateralmente no vendedor, parece ser suficientemente ampla para abranger tanto a «colusão» em sentido estrito como em sentido amplo. Além do mais, a redação do artigo 5.o, n.o 4, da diretiva não faz referência, expressa ou tácita, a qualquer requisito de conhecimento ou de intenção.

48.      Em terceiro lugar, o poder discricionário dos Estados‑Membros de autorizarem as suas ASN a alterar o preço de uma OPA é limitado por razões mais gerais: além de as ASN estarem obrigadas a atuar dentro dos limites da sua competência, conforme definida no artigo 4.o da Diretiva 2004/25, aquando da alteração do preço de uma OPA, a jurisprudência demonstra que a diretiva não rege as situações que não estão abrangidas pelo seu âmbito de aplicação (23). Por outras palavras, a diretiva aplica‑se, ratione materiae, às ofertas públicas de aquisição, ou seja, à relação entre o oferente e os titulares de valores mobiliários da sociedade visada. Portanto, não se pode presumir a sua aplicação às operações que nada têm a ver com o desencadear de uma OPA obrigatória — o oposto seria totalmente ilógico.

49.      Portanto, as «circunstâncias» referidas no artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 compreendem exclusivamente as circunstâncias de facto ou de direito que apresentam uma ligação clara e direta com determinada OPA obrigatória. Conforme também sugeriu o Governo italiano na audiência, uma operação distinta da que dá origem à OPA obrigatória deve, na verdade, ser indispensável para a operação de aquisição (uma condição sine qua non) para poder ser tida em consideração aquando da alteração do preço da oferta em causa.

50.      O facto de, nos termos do seu artigo 3.o, n.o 2, a Diretiva 2004/25 apenas harmonizar parcialmente as regras em matéria de ofertas públicas de aquisição não altera esta conclusão. Um Estado‑Membro não pode autorizar a sua ASN a derrogar o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 alterando o preço da OPA obrigatória de maneira que, não obstante reforçar a proteção dos acionistas minoritários, teria como consequência retirar efeito útil à RPME ao permitir que a ASN tivesse em consideração operações que escapam à sua competência e/ou ao âmbito de aplicação da diretiva (24).

b)      Significado e efeito da expressão «claramente determinados»

51.      No tocante ao significado específico da expressão «claramente determinados», ambas as partes no processo principal invocam o acórdão Periscopus (25) em apoio da sua tese. Nesse acórdão, o Tribunal da EFTA concluiu que é incompatível com o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 autorizar uma ASN a derrogar a RPME, nos casos em que é evidente que este preço não reflete o preço de mercado, sem maior clarificação do conceito de «preço de mercado». Porém, esse acórdão não decide a questão em apreço. Primeiro, porque o litígio no processo principal não tem por objeto o facto de o preço oferecido ser claramente inferior ao preço de mercado, mas o facto de resultar de colusão, o que constitui possivelmente uma circunstância diferente. Segundo, porque as regras italianas em causa no presente processo não são tão lacónicas como as regras norueguesas em causa naquele acórdão. E, terceiro, porque aquele acórdão não vincula o Tribunal de Justiça.

52.      No meu entender, a expressão «claramente determinados» exige que a autorização concedida às ASN para alteração do preço assuma a forma de regras escritas publicadas antecipadamente e facilmente acessíveis ao público em geral (a seguir «regras nacionais de correção»). A questão de saber se tais regras são adotadas por um ministério ou pela ASN não é relevante, assim como não é relevante que tais regras revistam a forma de direito primário ou derivado, desde que sejam vinculativas.

53.      No entanto, não se me afigura possível extrair da expressão «claramente determinados» um requisito de que as regras nacionais de correção tenham de descrever antecipadamente, de forma exaustiva e pormenorizada, cada situação concreta (26). Nesse aspeto, concordo com o Governo italiano quando refere que, ao invés de enumerar específica e exaustivamente os casos concretos em que uma ASN pode alterar o preço de uma OPA obrigatória, o legislador da União optou por empregar um termo mais genérico: «circunstâncias». Do mesmo modo, inclino‑me para perfilhar o entendimento da Comissão de que o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 não obsta a que os Estados‑Membros recorram a conceitos jurídicos abstratos.

54.      Com base nas considerações precedentes, não tenho dificuldades em aceitar que a expressão «claramente determinados» não obsta a que um Estado‑Membro adote regras nacionais de correção que autorizem a sua ASN a alterar o preço de uma OPA obrigatória em caso de colusão, tanto em sentido estrito como em sentido amplo.

55.      Assim, o órgão jurisdicional de reenvio — o órgão jurisdicional supremo de um Estado‑Membro — entende que, no direito italiano, é habitualmente adotada uma leitura estrita do conceito de «colusão». Conforme referido, não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre qual das duas interpretações das regras italianas em causa é a correta. A única questão a que o Tribunal de Justiça é chamado a responder é a que consiste em determinar se a expressão «claramente determinados», na aceção do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25, altera aquele entendimento (ou, para referir com maior veracidade aquilo que é pedido ao Tribunal de Justiça, se essa expressão impõe tal leitura ampla).

56.      Não creio que assim seja.

57.      Em primeiro lugar, esse entendimento equivaleria a interpretar o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 de forma ampla, contrariando a sua natureza de derrogação à RPME.

58.      Em segundo lugar, os Estados‑Membros podem optar por exercer ou não o poder discricionário que lhes é atribuído pelo artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 e, caso assim decidam, por estabelecer as correspondentes regras nacionais de correção, em conformidade com o princípio da autonomia processual. No processo principal, ao estabelecer as regras italianas em causa, o legislador optou por recorrer a um conceito que (parece‑me) não é novo no direito italiano — o conceito de «colusão». A esse respeito, adotar uma leitura ampla do conceito de «colusão» apenas em virtude da ligação à diretiva (quando assim não acontece nas matérias relacionadas exclusivamente com o direito nacional) afigura‑se uma posição algo forçada. O princípio da equivalência impõe apenas que as pretensões fundadas no direito da União não sejam objeto de um tratamento menos favorável do que as pretensões fundadas no direito nacional, não determina um tratamento preferencial.

59.      Em terceiro lugar, no que respeita especificamente ao princípio da segurança jurídica, a que o órgão jurisdicional de reenvio alude na formulação da questão prejudicial, um dos principais objetivos da Diretiva 2004/25 é o da criação de «um quadro que se paute pela clareza e transparência a nível [da União] para as questões jurídicas a resolver em caso de ofertas públicas de aquisição» (27). Além disso, tanto esse princípio como a necessidade, nos termos do artigo 288.o TFUE, de garantir a plena aplicação das diretivas, de direito e não apenas de facto, exigem que todos os Estados‑Membros retomem as normas da diretiva em causa num quadro legal claro, preciso e transparente que preveja disposições vinculativas no domínio em causa (28). Essa obrigação ainda mais se imporá no caso de regras nacionais de correção adotadas ou mantidas pelos Estados‑Membros em conformidade com o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25.

60.      O princípio da segurança jurídica impõe, em especial, que se examine se o ato jurídico em causa sofre de uma ambiguidade tal que impeça as pessoas em causa de ultrapassarem, com um grau suficiente de certeza, eventuais dúvidas quanto ao seu âmbito ou sentido (29). Por outro lado, ainda que a Diretiva 2004/25 não seja seguramente, em si mesma, um instrumento de direito penal que imponha a aplicação de conceitos tradicionais de direito penal e de processo penal, o mero facto de um operador económico não poder prever antecipadamente o nível ou o tipo de sanções que podem ser aplicadas em cada caso concreto relativamente a determinado comportamento não consubstancia uma violação do princípio da legalidade das penas (30).

61.      No entanto, não obstante a corrente jurisprudencial referida no número anterior dizer geralmente respeito à alegação, por um particular, de que a lei não é suficientemente clara para as consequências jurídicas de determinado comportamento serem previsíveis — o que normalmente não serve de desculpa (ignorantia iuris non excusat) — essa jurisprudência não resolve a questão de modo satisfatório nos casos em que é um órgão jurisdicional nacional que tem dúvidas sobre a interpretação do direito nacional (iura non novit curia). Caso a leitura ampla do conceito de «colusão» prevalecesse habitualmente no direito italiano, as circunstâncias relativas à alteração do preço seriam «claramente determinadas». Todavia, a decisão de reenvio refere que não é esse o caso.

62.      É neste ponto que a expressão «claramente determinados», na aceção do artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 (que mais não é do que uma emanação do princípio da segurança jurídica), revela o seu verdadeiro significado. É indiscutível que as regras nacionais de correção podem recorrer a conceitos indeterminados, que podem evoluir gradualmente ao longo do tempo através da interpretação dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. Porém, o teor desses conceitos não pode ser alterado drasticamente por capricho, apenas porque uma ASN pretende aplicá‑los a um conjunto de circunstâncias novas, que não estão abrangidas pela anterior interpretação de tais conceitos, ao mesmo tempo que alega que essas circunstâncias são «claramente determinadas» (31). Permitir tal arbitrariedade comprometeria o objetivo da diretiva de assegurar a clareza e a transparência na União, sobretudo para os operadores económicos.

63.      A esse respeito, é elucidativo que o órgão jurisdicional de reenvio refira que teria julgado procedentes os recursos da MTP e da Lauro 61 se não fora a Diretiva 2004/25. Na verdade, as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio quanto à interpretação correta das próprias regras nacionais são suficientes para demonstrar que as regras italianas em causa não são «claramente determinadas», na aceção do artigo 5.o, n.o 4, da referida diretiva, de modo a permitir uma leitura ampla do conceito de «colusão» com vista à derrogação da RPME.

64.      À luz do exposto, considero que o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25 obsta à aplicação de uma regra do direito nacional que autoriza uma ASN a aumentar o preço de uma OPA em caso de colusão a um conjunto de circunstâncias que, não fora a aplicação daquela diretiva, não teriam sido classificadas pela legislação nacional como um caso de colusão.

65.      Consequentemente, entendo ser desnecessário tomar posição sobre a possibilidade de a venda das ações da Pirelli (e, em especial, o efeito do acordo de acionistas) apresentar uma ligação clara e direta com a operação que desencadeou a obrigação da Lauro 61 de lançamento de uma OPA. Em todo o caso, essa tarefa, que exige a recolha dos factos e das provas, compete, em última instância, ao órgão jurisdicional de reenvio.

IV.    Conclusão

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão submetida, a título prejudicial, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, Itália) que o artigo 5.o, n.o 4, da Diretiva 2004/25/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa às ofertas públicas de aquisição, conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 219/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2009, deve ser interpretado no sentido de que esta disposição obsta à aplicação de uma regra nacional que autoriza uma autoridade de supervisão nacional a retificar o preço de uma oferta pública de aquisição quando se verifiquem circunstâncias que, não fora a aplicação daquela diretiva, não teriam sido classificadas pelo direito nacional como um caso de colusão.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa às ofertas públicas de aquisição (JO 2004, L 142, p. 12), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 219/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2009 (JO 2009, L 87, p. 109) (a seguir «Diretiva 2004/25»).


3      GURI n.o 71, de 26 de março de 1998.


4      GURI n.o 123, de 28 de maio de 1999.


5      Esse preço superior foi obtido mediante um cálculo consistente na divisão do montante de 6,6 milhões de euros (que, segundo a Consob, constituiria a vantagem obtida pela MCI no que respeita ao preço inferior pago pelas ações da Pirelli) pelas ações da Camfin compradas pela Lauro 61. O novo preço, assim fixado, implicou para a Lauro 61 um custo adicional total de cerca de 8,5 milhões de euros.


6      V. acórdão de 15 de outubro de 2009, Audiolux e o. (C‑101/08, EU:C:2009:626, em especial n.os 47 a 51).


7      Processos Amber Capital Italia e Amber Capital Uk (C‑654/16); Hitachi Rail Italy Investments (C‑655/16); Finmeccanica (C‑656/16); Bluebell Partners (C‑657/16); e Elliot International e o. (C‑658/16), todos pendentes no Tribunal de Justiça.


8      Do mesmo modo, uma questão em que um órgão jurisdicional nacional pergunta ao Tribunal de Justiça se pode ou deve interpretar o direito nacional de uma forma que melhor respeita o direito da União não deixa de ser uma questão de interpretação do direito nacional e, por conseguinte, é inadmissível. V. acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2014:101, n.os 58 a 61).


9      Relatório do Grupo de alto nível de peritos no domínio do direito das sociedades, sobre os problemas relacionados com as ofertas públicas de aquisição, Bruxelas, 10 de janeiro de 2002, p. 50.


10      No mesmo sentido, v. Enriques, L., «The Mandatory Bid Rule in the Takeover Directive: Harmonization Without Foundation?», European Company and Financial Law Review, n.o 4, 2004, pp. 440 a 446, que afirma que, «no que respeita especificamente ao preço equitativo, os Estados‑Membros e as suas autoridades de supervisão gozam de uma ampla margem de apreciação para determinar as circunstâncias e os critérios que justificam um desconto».


11      Ao contrário da Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às ofertas públicas de aquisição [COM(2002) 534 final (JO 2003, C 45 E, p. 1)], o artigo 5.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/25 não dispõe que os Estados‑Membros «estabelecerão», mas sim que «podem estabelecer» uma lista de circunstâncias em que o preço mais elevado pode ser alterado.


12      Nos termos do seu considerando 25, a Diretiva 2004/25 visa «definir as orientações mínimas para a realização das ofertas públicas de aquisição e garantir um nível de proteção suficiente aos titulares de valores mobiliários em toda a [União]».


13      V., entre outros, p. 6 do Relatório de 8 de dezembro de 2003 sobre uma proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às ofertas públicas de aquisição, Comissão dos Assuntos Jurídicos e do Mercado Interno do Parlamento Europeu (A5‑0469/2003 final, p. 18) e Documento n.o 16116/03, de 16 de dezembro de 2003, relativo à proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às ofertas públicas de aquisição, ponto II [dossiê interinstitucional n.o 2002/0240 (COD)].


14      «Livro Branco» da Comissão ao Conselho Europeu: Conclusão do mercado interno, de 14 de junho de 1985 [COM(85) 310 final], n.os 139 e segs.


15      V. Proposta da Comissão de décima Terceira Diretiva do Conselho em matéria de direito das sociedades relativa às ofertas públicas de aquisição ou de troca, de 19 de janeiro de 1989 [COM(88) 823 final (JO 1989, C 64, p. 8)] e Proposta da Comissão de décima Terceira Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho em matéria de direito das sociedades relativa às ofertas públicas de aquisição, de 7 de fevereiro de 1996 [COM(95) 655 final (JO 1996, C 162, p. 5)].


16      V. Declaração da Comissão no Documento do Conselho n.o 7088/04, de 12 de março de 2004, relativo à adoção de uma diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às ofertas públicas de aquisição, ponto 2 [dossiê interinstitucional n.o 2002/0240 (COD)].


17      O considerando 6 da Diretiva 2004/25 dispõe que, «[p]ara ser eficaz, a regulamentação sobre ofertas públicas de aquisição deverá ser flexível e capaz de atender a novas circunstâncias à medida que estas surgirem, devendo por conseguinte prever a possibilidade de exceções e derrogações. Todavia, ao aplicarem regras ou exceções ou ao concederem derrogações, as [ASN] deverão respeitar certos princípios gerais.» (O sublinhado é meu.)


18      V. Relatório do Grupo de alto nível de peritos no domínio do direito das sociedades sobre os problemas relacionados com as ofertas públicas de aquisição, pp. 49 e 50.


19      Para uma perspetiva restritiva do poder das ASN de derrogarem a RPME, v. Papadopoulos, T., «The European Union Directive on Takeover Bids: Directive 2004/25/EC», International and Comparative Corporate Law Journal, volume 6, n.o 3, p. 13, que sustenta que um amplo poder discricionário de alteração do preço da OPA seria incompatível com o princípio geral enunciado no artigo 3.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/25 (uma alteração do preço no sentido da sua descida sem justificação adequada poderia violar o princípio da igualdade de tratamento dos acionistas), bem como com o artigo 49.o TFUE (uma alteração do preço no sentido da sua subida sem justificação adequada poderia desencorajar os proponentes).


20      V. acórdão de 15 de outubro de 2009, Audiolux e o. (C‑101/08, EU:C:2009:626, n.o 51).


21      Dito isto, o Tribunal de Justiça considerou que o princípio geral da igualdade de tratamento dos acionistas consagrado no artigo 3.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/25 não impõe uma interpretação das regras nacionais que seja sempre a mais favorável para os acionistas minoritários de uma sociedade: v., neste sentido, acórdão de 15 de outubro de 2009, Audiolux e o. (C‑101/08, EU:C:2009:626, n.os 47 a 52).


22      Relatório do Grupo de alto nível de peritos no domínio do direito das sociedades sobre os problemas relacionados com as ofertas públicas de aquisição, p. 50.


23      V., nesse sentido, acórdão de 15 de outubro de 2009, Audiolux e o. (C‑101/08, EU:C:2009:626, n.o 49).


24      V., por analogia, acórdão de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis (C‑201/15, EU:C:2016:972, n.os 36 e 37).


25      Acórdão do Tribunal da EFTA de 10 de dezembro de 2010, Periscopus/Oslo Børs e Erik Must (E‑1/10, EFTA Court Report 2010, p. 200).


26      V., neste sentido, acórdão do Tribunal da EFTA de 10 de dezembro de 2010, Periscopus/Oslo Børs e Erik Must (E‑1/10, EFTA Court Report 2010, p. 200, n.o 47).


27      Considerando 3 da Diretiva 2004/25.


28      V., a título de exemplo, acórdãos de 15 de março de 1990, Comissão/Países Baixos (C‑339/87, EU:C:1990:119, n.os 6, 22 e 25), e de 14 de janeiro de 2010, Comissão/República Checa (C‑343/08, EU:C:2010:14, n.o 40).


29      V., neste sentido, acórdão de 14 de abril de 2005, Bélgica/Comissão (C‑110/03, EU:C:2005:223, n.o 31).


30      V., neste sentido, acórdão de 18 de julho de 2013, Schindler Holding e o./Comissão (C‑501/11 P, EU:C:2013:522, n.o 58 e jurisprudência aí referida).


31      V., neste sentido, acórdão de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão (C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.os 217 e 218).