Language of document : ECLI:EU:C:2013:82

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 19 de fevereiro de 2013 (1)

Processo C‑426/11

Mark Alemo‑Herron

Sandra Tipping

Christopher Anderson

Stacey Aris

Audrey Beckford

Lee Bennett

Delroy Carby

Vishnu Chetty

Deborah Cimitan

Victoria Clifton

Claudette Cummings

David Curtis

Stephen Flin

Patience Ijelekhai

Rosemarie Lee

Roxanne Lee

Vivian Ling

Michelle Nicholas

Lansdail Nugent

Anne O’Connor

Shirley Page

Alan Peel

Mathew Pennington

Laura Steward

contra

Parkwood Leisure Ldt

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Supreme Court (Reino Unido)]

«Transferência de empresas — Manutenção dos direitos dos trabalhadores — Diretiva 2001/23 — Artigo 3.°, n.° 3 — Convenção coletiva aplicável ao cedente e ao trabalhador no momento da transferência — Cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas presentes e futuras — Âmbito do acórdão do Tribunal de Justiça, Werhof — Liberdade de empresa — Direito fundamental de associação, na sua dimensão negativa — Liberdade de empresa — Artigos 12.° e 16.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»





1.        Com o presente pedido prejudicial, a Supreme Court do Reino Unido formula três questões que têm por objeto a interpretação do artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos (2). O órgão de reenvio pergunta se a Diretiva 2001/23 proíbe, permite ou impõe que os Estados‑Membros aceitem a transferência das chamadas «cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas». Estas cláusulas, acordadas entre os trabalhadores e a entidade patronal cedente antes da transferência de uma empresa, têm como efeito obrigar o empresário cessionário a sujeitar‑se às condições acordadas em convenções coletivas futuras, inclusivamente quando o referido empresário não pode participar na negociação da referida convenção.

2.        O direito do Reino Unido concede, tradicionalmente, uma ampla margem de manobra aos parceiros sociais, permitindo que, no decurso de uma transferência de empresa sejam igualmente transferidas as cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas. Deste modo, o empresário cessionário fica sujeito, aparentemente sem qualquer limite de tempo, não só a convenções em cuja negociação não participou, mas também àquelas em cuja negociação não pode participar. No acórdão proferido no processo Werhof (3), proferido no contexto específico do direito do trabalho alemão, o Tribunal de Justiça negou que a Diretiva 2001/23 impusesse aos Estados‑Membros, no caso de uma transferência de empresa, a obrigação de garantir a transferência de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas. Esta decisão deu origem a decisões contraditórias nos tribunais do Reino Unido, dado que uns consideram que o acórdão do Tribunal de Justiça impede a transferência de qualquer cláusula de remissão dinâmica, ao passo que outros entendem que o referido acórdão diz respeito a um caso muito especial, o do ordenamento alemão, que limitava o âmbito destas cláusulas. A Supreme Court do Reino Unido apresentou o presente pedido prejudicial com o objetivo de que o Tribunal de Justiça delimite o âmbito do referido artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23, tendo em conta a interpretação que lhe foi dada no processo Werhof.

I —    Quadro jurídico

A —    Quadro jurídico da União

3.        A Diretiva 2001/23, instrumento que substituiu a Diretiva 77/187/CEE (4), estabelece o seguinte no seu artigo 3.°, constante do Capítulo II, relativo à manutenção dos direitos dos trabalhadores:

«Artigo 3.°

1.       Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.

      Os Estados‑Membros podem prever que, após a data da transferência, o cedente e o cessionário sejam solidariamente responsáveis pelas obrigações resultantes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes antes da data da transferência.

2.       Os Estados‑Membros podem adotar as medidas adequadas para assegurar que o cedente notifique o cessionário de todos os direitos e obrigações transferidos para este último nos termos do presente artigo, na medida em que esses direitos e obrigações sejam, ou devessem ser, do conhecimento do cedente no momento da transferência. A não notificação pelo cedente ao cessionário de qualquer desses direitos ou obrigações não afetará a transferência desses mesmos direitos ou obrigações nem os direitos de quaisquer trabalhadores contra o cessionário e/ou cedente relativamente a esses direitos ou obrigações.

3.       Após a transferência, o cessionário manterá as condições de trabalho acordadas por uma convenção coletiva, nos mesmos termos em que esta as previa para o cedente, até à data da rescisão ou do termo da convenção coletiva ou até à data de entrada em vigor ou de aplicação de outra convenção coletiva.

      Os Estados‑Membros podem limitar o período de manutenção das condições de trabalho desde que este não seja inferior a um ano.

4.       a) Salvo determinação em contrário dos Estados‑Membros, os n.os 1 e 3 não são aplicáveis aos direitos dos trabalhadores a prestações de velhice, invalidez ou sobrevivência concedidas por regimes complementares de previdência, profissionais ou interprofissionais, não compreendidos nos regimes legais de segurança social dos Estados‑Membros.

      b) Mesmo quando não prevejam, nos termos da alínea a), que o n.os 1 e 3 se aplicam aos direitos nela mencionados, os Estados‑Membros adotarão as medidas necessárias para proteger os interesses dos trabalhadores, bem como das pessoas que no momento da transferência já tenham deixado o estabelecimento do cedente, no que respeita aos direitos adquiridos ou em vias de aquisição a prestações de velhice, incluindo as prestações de sobrevivência, concedidos pelos regimes complementares referidos na alínea a) do presente número».

4.        No seu artigo 8.°, a Diretiva 2001/23 prevê uma cláusula de harmonização mínima com o seguinte teor:

«A presente diretiva não afeta a faculdade de os Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem disposições legislativas, regulamentares ou administrativas mais favoráveis aos trabalhadores ou de favorecerem ou permitirem a celebração de convenções coletivas ou acordos entre parceiros sociais que sejam mais favoráveis aos trabalhadores».

B —    Quadro jurídico nacional

5.        A Diretiva 77/187/CEE, antecessora da Diretiva 2001/23, foi transposta para o direito do Reino Unido através das Transfer of Undertakings (Protection of Employment) Regulations 1981 (a seguir «TUPE»). A Regulation 5 das TUPE transpõe o conteúdo do artigo 3.° da Diretiva 2001/23 e, em especial, a Regulation 5(2)(a) estabelece o seguinte:

«Todos os direitos, poderes e obrigações do cedente, resultantes ou em conexão com o contrato, serão transferidos para o cessionário em virtude das presentes Regulations».

6.        Até ao acórdão do Tribunal de Justiça no processo Werhof, os tribunais de trabalho do Reino Unido faziam uma interpretação dinâmica da Diretiva 2001/23 e da Regulation 5(2)(a) das TUPE. Por conseguinte, as cláusulas contratuais que previssem uma remissão expressa para futuras convenções coletivas celebradas no âmbito de um determinado organismo de negociação laboral, eram, nos termos da diretiva e da respetiva legislação de transposição, vinculativas para o empregador cessionário depois da transferência da empresa (5). Questionados, na audiência, sobre este aspeto, tanto o representante da Parkwood como o dos trabalhadores confirmaram este facto, tendo reconhecido que se tratava de uma prática contratual generalizada, principalmente no setor público.

II — Matéria de facto e tramitação processual nos tribunais do Reino Unido

7.        No ano de 2002, a empresa municipal de atividades recreativas do London Borough de Lewisham cedeu o negócio à CCL Limited, uma empresa do setor privado, tendo passado os trabalhadores da primeira a fazer parte do quadro desta última. Em maio de 2004, a CCL Limited cedeu o negócio à Parkwood Leisure Limited (a seguir «Parkwood»), uma empresa também pertencente ao setor privado.

8.        Enquanto a empresa fez parte do Borough, os contratos de trabalho celebrados pelos trabalhadores com aquela previam que estes tinham direito a beneficiar dos termos e condições de trabalho negociados no âmbito do National Joint Council for Local Government Services (a seguir «NJC»), o organismo de negociação coletiva no setor público local. A sujeição aos acordos negociados no âmbito do NJC não decorria da lei, mas sim de uma cláusula contratual prevista no respetivo contrato de trabalho que estabelecia o seguinte:

«Durante o seu período de emprego no município, as condições e termos deste emprego serão regulados de acordo com o disposto nas convenções coletivas periodicamente negociadas pelo NJC [...], complementadas pelos acordos celebrados localmente pelos comités de negociação do município».

9.        À data da cessão à CCL, estava em vigor a convenção celebrada pelo NJC para o período de 1 de abril de 2002 a 31 de março de 2004. Em maio de 2004, ocorreu a transferência da empresa para a Parkwood.

10.      Em junho de 2004, foi alcançado um novo acordo no NJC, cuja entrada em vigor retroagiu a 1 de abril de 2004, com efeitos até 31 de março de 2007. Portanto, o acordo ocorreu depois da transferência da empresa para a Parkwood. Por esta razão, a Parkwood concluiu que o novo acordo não a vinculava e notificou este facto aos trabalhadores, aos quais recusou o aumento salarial acordado no âmbito do NJC para o período compreendido entre abril de 2004 e abril de 2007.

11.      A Parkwood não participa no NJC, nem, em qualquer caso, poderia fazê‑lo, dado ser uma empresa privada e não fazer parte da administração pública.

12.      A recusa da Parkwood em se submeter aos termos acordados no âmbito do NJC deu origem a uma ação intentada pelos trabalhadores no Employment Tribunal, que foi julgada improcedente em 2008. No entender desse órgão jurisdicional, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Werhof negou, no quadro de uma transferência de empresa, a possibilidade de transferência de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas. Esta decisão de primeira instância foi objeto de recurso e posteriormente revogada em 2009, pelo Employment Appeals Tribunal, que considerou que a doutrina Werhof não se aplicava a circunstâncias como as previstas no ordenamento do Reino Unido.

13.      A Parkwood recorreu com sucesso da decisão do Employment Appeals Tribunal para a Court of Appeal, que, no seu acórdão de 2010, aderiu à interpretação da diretiva e do âmbito do acórdão Werhof feita pelo Employment Tribunal.

14.      Finalmente, os trabalhadores recorreram para a Supreme Court, órgão jurisdicional que suspendeu a instância para submeter o presente pedido prejudicial.

III — Tramitação processual no Tribunal de Justiça e questões prejudiciais

15.      Em 12 de agosto de 2011, deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça o pedido de decisão prejudicial, nos termos do artigo 267.°, n.° 3, TFUE, no âmbito do qual foram submetidas as seguintes questões:

«1)      Quando, como no presente caso, um trabalhador goze do direito contratual oponível ao cedente de beneficiar dos termos e condições negociadas e acordadas para cada período de tempo por um terceiro que é um organismo de contratação coletiva e tal direito seja reconhecido nos termos da legislação nacional como assumindo um caráter dinâmico e não estático nas relações entre o trabalhador e a entidade patronal cedente, o artigo 3.° da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001 (JO L 82, p. 16), conjugado com o acórdão de 9 de março de 2006, Werhof (C‑499/04, Colet., p. I‑2397):

a)      Impõe que tal direito seja protegido e oponível ao cessionário no caso de uma transferência à qual a diretiva se aplique, ou

b)      Permite que os tribunais nacionais julguem que tal direito é protegido e oponível ao cessionário no caso de uma transferência à qual a diretiva se aplique, ou

c)      Proíbe que os tribunais nacionais julguem que tal direito é protegido e oponível ao cessionário no caso de uma transferência à qual a diretiva se aplique?

2)      Quando um Estado‑Membro tenha cumprido a obrigação que lhe incumbia de transpor os requisitos mínimos impostos pelo artigo 3.° da Diretiva 2001/23, mas se levante a questão de saber se as medidas de transposição devem ser interpretadas como excedendo esses requisitos de um modo favorável para os trabalhadores, conferindo‑lhes direitos contratuais dinâmicos oponíveis ao cessionário, cabe concluir que os tribunais deste Estado‑Membro são livres de aplicar as regras nacionais para a interpretação da legislação de transposição, sempre na condição de tal interpretação não ser contrária ao direito comunitário, ou devem estes adotar uma abordagem diversa para tal interpretação e, na afirmativa, qual?

3)      No presente caso, não tendo a entidade patronal alegado que o direito dinâmico de os trabalhadores beneficiarem, ao abrigo do direito interno, dos termos e condições acordados em contratos coletivos viola os direitos que são conferidos à entidade patronal pelo artigo 11.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o tribunal nacional é livre de aplicar a interpretação das [Tranfer of Undertakings (Protection of Employment) Regulations 1981 (Regulamento de 1981 sobre a proteção dos empregos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas)] defendida pelos trabalhadores?»

16.      Apresentaram observações escritas Alemo‑Herron e o., a Parkwood e a Comissão.

17.      No decurso da audiência, que teve lugar em 20 de setembro de 2012, apresentaram alegações os representantes de Alemo‑Herron e o. e da Parkwood, bem como o agente da Comissão.

IV — Primeira e segunda questões prejudiciais

18.      Com as suas duas primeiras questões, a que deve ser dada resposta conjunta, a Supreme Court do Reino Unido pergunta se o artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23, no contexto de uma transferência de empresa, impõe, permite ou proíbe a um Estado‑Membro a transferência de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras. A Supreme Court tem dúvidas sobre o âmbito do acórdão Werhof, proferido em 2006, no qual o Tribunal de Justiça rejeitou uma interpretação dinâmica do referido artigo 3.°, n.° 3, no caso de um trabalhador alemão, sujeito a uma cláusula estática de remissão para uma convenção coletiva concreta.

19.      Existem razões suficientes que justificam as dúvidas do órgão de reenvio. É certo que o acórdão Werhof afastou com veemência a possibilidade de a Diretiva 2001/23 impor aos Estados‑Membros a transferência de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras. Contudo, a fundamentação do Tribunal de Justiça estava muito condicionada pelas circunstâncias específicas daquele caso, circunstâncias significativamente diferentes das que são apresentadas no processo ora pendente na Supreme Court. De igual modo, as dificuldades que a remissão dinâmica para convenções coletivas futuras suscita não se colocam, no presente processo, nos mesmos termos que no processo Werhof, pois, ao contrário do empregador cessionário de H. Werhof, a Parkwood é uma empresa privada que adquiriu uma empresa originariamente pública. Portanto, em caso algum a Parkwood pode participar ou influir indiretamente no processo de negociação coletiva levada a cabo no âmbito do NJC, organismo reservado unicamente à negociação coletiva do setor público municipal.

20.      Tendo em conta estas diferenças analisarei, em primeiro lugar, de forma pormenorizada, a redação da Diretiva 2001/23 e do acórdão Werhof. Em seguida, deter‑me‑ei nas diferenças de facto e de direito que existem entre o presente processo e o processo Werhof, e avanço, desde já, a minha inclinação a favor da segunda interpretação da diretiva proposta pela Supreme Court, ou seja, aquela segundo a qual os Estados‑Membros não são impedidos de autorizar, com base na Diretiva 2001/23 e no contexto de uma transferência de empresa, a transferência de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras. No entanto, e em conformidade com o disposto no acórdão Werhof, a ação dos Estados não pode violar os direitos fundamentais protegidos pela União, aspeto sobre o qual me deterei ao responder à terceira questão prejudicial.

A —    Diretiva 2001/23, a aplicação de convenções coletivas no quadro de uma transferência de empresa e margem de manobra dos Estados‑Membros

21.      A Diretiva 2001/23, que substituiu a Diretiva 77/187, tem por objeto a proteção dos trabalhadores em caso de mudança de empresário especialmente para assegurar a manutenção dos seus direitos (6). Entre outras medidas, a Diretiva assegura, nos termos do seu artigo 3.°, a manutenção dos direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência, depois da transferência da empresa. Como o Tribunal de Justiça teve oportunidade de salientar, o objetivo desta disposição é assegurar a manutenção de todas as condições de trabalho, incluindo as acordadas numa convenção coletiva, de acordo com a vontade das partes contratantes na convenção coletiva, não obstante a transferência da empresa (7).

22.      Como a Comissão corretamente sublinhou, o artigo 3.° da Diretiva 2001/23 não é uma disposição taxativa, mas sim uma disposição que reflete um equilíbrio entre a proteção do trabalhador e os interesses do empregador cessionário. Assim, o seu n.° 1, segundo parágrafo, permite que os Estados‑Membros prevejam que o cedente e o cessionário sejam solidariamente responsáveis pelas obrigações resultantes de um contrato de trabalho. De igual modo, o n.° 3, segundo parágrafo, no que diz respeito aos efeitos das convenções coletivas, autoriza os Estados‑Membros a limitar o período de manutenção das condições de trabalho, desde que não seja por um período inferior a um ano.

23.      Como ficou evidente, a manutenção dos direitos e obrigações emergentes do contrato de trabalho em vigor à data da transferência, incluindo os decorrentes da convenção coletiva aplicável à relação de trabalho, é uma manutenção condicionada. Do mesmo modo, os Estados‑Membros conservam amplos poderes de ação para darem cumprimento e aplicarem a Diretiva 2001/23. Isto devido ao facto de que, como o Tribunal de Justiça salientou, a Diretiva apenas visa «harmonizar parcialmente a matéria em causa» (8). A diretiva «não pretende instaurar um nível de proteção uniforme para toda a [União] em função de critérios comuns», mas sim garantir que o trabalhador interessado está «protegido nas suas relações com o cessionário da mesma forma que o estava nas suas relações com o cedente, nos termos das normas jurídicas do Estado‑Membro em causa» (9).

24.      Este poder de ação dos Estados‑Membros aparece ainda mais reforçado no artigo 8.° da Diretiva 2001/23, que afirma que a diretiva «não afeta a faculdade de os Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem disposições legislativas, regulamentares ou administrativas mais favoráveis aos trabalhadores» (10). Além disso, o referido artigo 8.° acrescenta, a seguir, de forma especialmente relevante para o presente processo, que a diretiva também não afeta a faculdade de os Estados‑Membros «favorecerem ou permitirem a celebração de convenções coletivas ou acordos entre parceiros sociais que sejam mais favoráveis aos trabalhadores» (11).

25.      Chegados a este ponto, cabe analisar o conteúdo do artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23, objeto das questões submetidas pela Supreme Court. A disposição prevê que o cessionário manterá as condições de trabalho acordadas por uma convenção coletiva, nos mesmos termos em que esta as previa para o cedente, «até à data da rescisão ou do termo da convenção coletiva ou até à data de entrada em vigor ou de aplicação de outra convenção coletiva». A linguagem imperativa da disposição poderia justificar as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio, que o leva a daí deduzir uma proibição de qualquer proteção dinâmica, em virtude da qual a convenção em vigor à data da transferência, ou as convenções posteriores, regulem a relação de trabalho entre o trabalhador e o cessionário. No entanto, este entendimento da disposição também não pode deixar de ter em consideração o disposto no artigo 8.° da diretiva, que autoriza expressamente os Estados‑Membros não só a introduzirem medidas mais favoráveis aos trabalhadores, como também a permitirem a «celebração» de convenções coletivas que sejam mais favoráveis aos trabalhadores.

26.      É neste momento que devemos concentrar‑nos no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Werhof, já referido, cujo conteúdo parece militar contra qualquer transferência de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras. No entanto, como a seguir mostrarei, esta interpretação do acórdão não tem em conta nem as circunstâncias de facto do processo em que aquele foi proferido, nem os objetivos últimos da Diretiva 2001/23.

B —    Acórdão Werhof

27.      A razão pela qual é atribuída ao acórdão Werhof uma rejeição categórica da proteção dinâmica das condições de trabalho acordadas em convenções futuras, é devida às peculiares circunstâncias de facto e de direito do processo. H. Werhof era um trabalhador alemão da indústria metalúrgica cujo contrato de trabalho em vigor à data da transferência continha uma cláusula estática de remissão para uma convenção coletiva. Ou seja, o contrato de trabalho de H. Werhof tinha por referência as condições salariais acordadas numa convenção coletiva específica e em vigor à data da transferência (12). Por outro lado, a República Federal da Alemanha tinha utilizado a faculdade conferida aos Estados‑Membros pela Diretiva 2001/23, no seu artigo 3.°, n.° 3, segundo parágrafo, tendo, assim, limitado a vigência das convenções aplicáveis à data da transferência a um período máximo de um ano (13).

28.      Por conseguinte, o processo Werhof está condicionado por duas circunstâncias de especial relevância, que explicam a fundamentação desenvolvida pelo Tribunal de Justiça: uma cláusula estática de remissão para uma convenção coletiva concreta e uma limitação ex lege da duração dos efeitos das convenções depois da transferência. Nessas circunstâncias, H. Werhof reivindicava, com fundamento no artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23, uma proteção dinâmica que lhe permitisse beneficiar da convenção coletiva posterior à convenção em vigor à data da transferência, apesar de o seu contrato não conter qualquer cláusula dinâmica. Não é surpreendente, portanto, que o Tribunal de Justiça tenha dado uma resposta negativa às pretensões de H. Werhof.

29.      Com efeito, o Tribunal de Justiça iniciou a sua argumentação sublinhando o facto de a cláusula de remissão para a convenção coletiva constante do contrato de trabalho de H. Werhof ser estática. Portanto, «uma cláusula de remissão para uma convenção coletiva não pode ter um âmbito mais lato que a convenção para a qual remete» (14). A mesma ideia aparece refletiva quando o Tribunal de Justiça menciona o artigo 3.°, n.° 2, da diretiva, que introduz limitações ao princípio da aplicabilidade «da convenção coletiva a que se refere o contrato de trabalho» (15). Por outras palavras, o Tribunal de Justiça nega que a diretiva imponha uma proteção dinâmica quando o contrato de trabalho em vigor à data da transferência contiver cláusulas de remissão para uma convenção coletiva específica. Em suma, e como é evidente, a Diretiva 2001/23 não transforma em dinâmicas as cláusulas estáticas em vigor à data da transferência.

30.      Em seguida, o Tribunal de Justiça salientou o facto de a República Federal da Alemanha ter limitado o período de manutenção das condições de trabalho resultantes da convenção coletiva, como a Diretiva 2001/23, no seu artigo 3.°, n.° 3, segundo parágrafo, lhe permitia (16). O facto de o Estado‑Membro ter feito uso desta prerrogativa é importante, pois, como o Tribunal de Justiça salienta, trata‑se de uma limitação «subsidiária», em caso de não se verificar, dentro do prazo mínimo de um ano, nenhuma das situações referidas no n.° 3 (a rescisão ou o termo da convenção coletiva existente, a entrada em vigor ou ainda a aplicação de uma nova convenção coletiva) (17). Portanto, mesmo no caso de os contratos conterem remissões dinâmicas para as convenções coletivas em vigor e futuras, os Estados‑Membros conservariam sempre a faculdade de limitar estes efeitos, assegurando a sua vigência mínima durante o período de um ano. Era este, precisamente, o caso do ordenamento alemão, no processo Werhof.

31.      De tudo o que precede, resulta que o acórdão Werhof não declarou, de forma geral, a incompatibilidade com a diretiva da manutenção dos efeitos das cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras. O que o acórdão Werhof rejeita é simplesmente um entendimento segundo o qual a diretiva imporia aos Estados‑Membros uma proteção dinâmica, mesmo quando o contrato contém uma cláusula de remissão estática, e ainda mais quando o Estado‑Membro em causa limita os efeitos das convenções em vigor à data da transferência ao período de um ano. A pretensão de H. Werhof excedia os objetivos definidos pela Diretiva 2001/23, e, precisamente por esse motivo, o Tribunal de Justiça acrescentou, num tom especialmente severo, que a diretiva «não protege simples expectativas e, portanto, os hipotéticos benefícios decorrentes das evoluções futuras das convenções coletivas» (18).

32.      Questão diferente se coloca quando o benefício, ou seja, a previsão de aceitação expressa das condições que forem acordadas no âmbito do NJC, não é meramente hipotético, mas foi expressamente acordado no contrato de trabalho e o ordenamento nacional o permite. Este seria o caso do presente processo, cujas características devem ser atentamente consideradas.

C —    O presente processo, à luz da Diretiva 2001/23 e do acórdão Werhof

33.      Tendo em conta o disposto na Diretiva 2001/23, e atendendo ao âmbito preciso do acórdão proferido no processo Werhof, importa agora analisar os factos e o quadro normativo nacional do processo que é objeto do reenvio da Supreme Court.

34.      De acordo com o que foi exposto pelas partes, o ordenamento do Reino Unido transpôs a Diretiva 2001/23 através das TUPE Regulations, tendo incorporado o disposto no artigo 3.° da Diretiva em termos praticamente idênticos. A legislação do Reino Unido não desenvolveu com especial pormenor os termos em que são mantidos os direitos e obrigações do empresário e do trabalhador na sequência de uma transferência, responsabilidade que confiou aos tribunais de trabalho. Em consequência, e tal como consta dos autos, estes tribunais admitiram a possibilidade de a transferência incluir, igualmente, a transferência de uma cláusula de remissão dinâmica para convenções coletivas posteriores (19). Até à data em que foi proferido o acórdão Werhof, esta interpretação das TUPE Regulations era constante e pacífica. No decurso da audiência, quando questionadas sobre este ponto, ambas as partes no processo principal confirmaram a existência desta linha jurisprudencial. O representante dos trabalhadores acrescentou, igualmente, que a transferência deste tipo de cláusulas se estava especialmente generalizada nas transferências de empresas públicas.

35.      Do mesmo modo, o Reino Unido não fez uso da exceção prevista no artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva 2001/23, nos termos da qual, uma vez verificada a transferência, os Estados‑Membros podem limitar temporalmente os efeitos dos contratos anteriormente celebrados, embora com um limite temporal mínimo de um ano. Esta característica, juntamente com a jurisprudência dos tribunais de trabalho acima resumida, poderia confirmar a existência de uma perspetiva especialmente tendente para a transmissibilidade de cláusulas dinâmicas de remissão para convenções futuras.

36.      Tendo em conta o que foi exposto pelas partes, a razão de ser desta atitude pode residir no caráter flexível do sistema de negociação coletiva que existe no Reino Unido. Diferentemente do que ocorre noutros ordenamentos nacionais, o Reino Unido não reconhece ex lege os efeitos jurídicos das convenções coletivas, dado que são os contratos de trabalho, em consequência de uma remissão expressa ou tácita para a convenção, que atribuem efeitos àquelas (20). Portanto, e regra geral, os efeitos das convenções derivam exclusivamente do contrato e têm o âmbito que tiver sido previsto na cláusula de remissão. Este entendimento da convenção coletiva concederia às partes uma margem de manobra amplíssima, inclusivamente nos casos em que concordam em submeter‑se a convenções futuras, uma vez que, como salientaram as partes neste processo, nada as impede de renegociar a cláusula do contrato que prevê a remissão para a convenção.

37.      Por este motivo, e dado que uma cláusula de remissão dinâmica para uma convenção futura resulta de um acordo entre as partes suscetível de ser alterado em qualquer momento, os tribunais do Reino Unido não consideraram que este tipo de acordos pudessem lesar a liberdade de associação do empresário ou qualquer outra disposição do ordenamento do Reino Unido. Pelo contrário, o sistema flexível e «contratual» de relações laborais do Reino Unido contribuía para que este tipo de cláusulas pudessem ser transferidas no contexto de uma transferência de empresa.

38.      Se considerarmos agora o caso em apreço, verifica‑se que o contrato de trabalho em vigor à data da transferência continha uma cláusula de remissão dinâmica para as convenções celebradas no âmbito do NJC. À data da transferência, os trabalhadores da empresa dispunham pois de um compromisso expresso e preciso de sujeição às condições laborais decorrentes da negociação coletiva, presente e futura, efetuada no âmbito do referido organismo. Portanto, e ao contrário do ocorrido no processo Werhof, estamos perante um contrato de trabalho que contém uma cláusula dinâmica de assunção do que for acordado em convenções futuras. Empregando a expressão utilizada, nesse processo, pelo Tribunal de Justiça, as «expectativas» criadas por esta cláusula, a favor dos trabalhadores da empresa transferida, são consideravelmente diferentes das que são geradas por uma cláusula estática como a que existia no processo Werhof. Trata‑se antes de certezas, uma vez que as cláusulas foram livre e expressamente acordadas pelas partes, de acordo com o quadro legal em vigor, e dessa forma constam do contrato de trabalho.

39.      Tendo em conta tudo o que precede, entendo que a Diretiva 2001/23 não impede o Reino Unido de admitir a possibilidade de as partes introduzirem cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras, e que as mesmas sejam objeto de transferência na sequência da transferência de empresa. Como se viu, o acórdão Werhof confirmou que a referida diretiva não impõe aos Estados‑Membros uma conceção dinâmica das remissões para convenções. Isto é, pelo facto de um contrato conter uma remissão estática para uma convenção, essa remissão não se transforma numa remissão dinâmica por força da diretiva. Mas, a diretiva, em princípio, não impede os Estados‑Membros de admitirem a própria existência das cláusulas dinâmicas de remissão. Na redação da diretiva, nada o proíbe, e o seu artigo 8.°, ao declarar que os Estados‑Membros conservam a faculdade de «favorecerem ou permitirem a celebração de convenções coletivas [...] que sejam mais favoráveis aos trabalhadores», viria confirmá‑lo. Este parece ser o objetivo da jurisprudência do Reino Unido que apoiou as denominadas cláusulas dinâmicas de remissão: fomentar a manutenção de condições mais favoráveis aos trabalhadores por meio de uma aplicação por remissão para uma convenção coletiva.

40.      Além disso, o facto de a diretiva permitir que o Reino Unido conceda uma tal proteção, em nada se opõe a que o legislador do Reino Unido faça uso da faculdade que lhe confere o artigo 3.°, n.° 2, disposição que permite a limitação no tempo das condições acordadas à data da transferência, embora garantindo um período mínimo de um ano. Do mesmo modo, também nada impede que o legislador ou os tribunais do Reino Unido alterem o âmbito das TUPE com o objetivo de restringir ou proibir a transferência das cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas futuras. Em conclusão, trata‑se de uma decisão que está no âmbito de ação reservado do Estado‑Membro.

41.      Por conseguinte, à luz dos argumentos expostos, chego à conclusão de que o artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23 deve ser interpretado no sentido de que, em princípio, não se opõe a que os Estados‑Membros prevejam a possibilidade de as cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas, presentes e futuras, acordadas livremente pelas partes no contrato de trabalho, serem transferidas em consequência de uma transferência de empresas.

V —    Terceira questão prejudicial

42.      Com a sua terceira questão, a Supreme Court pergunta se a compatibilidade com a Diretiva 2001/23 das cláusulas dinâmicas de remissão poderia, de qualquer modo, violar o artigo 11.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem (a seguir «CEDH»). Dado que proponho que o Tribunal de Justiça reconheça a conformidade das referidas cláusulas com a Diretiva 2001/23, cabe responder à terceira questão, embora sujeitando‑a a uma certa reformulação da sua redação.

43.      A Supreme Court expõe as suas dúvidas quanto à relevância, no presente assunto, do referido artigo 11.° CEDH e, por extensão, do artigo 12.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A referida disposição, pela qual é consagrada a liberdade de associação, protege os indivíduos não só de possíveis proibições ou restrições à sua capacidade de participar ou constituir associações, mas também da obrigação, direta ou indireta, de participar nas mesmas (21). Portanto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a conformidade dos TUPE, tal como são atualmente interpretados pelos tribunais do Reino Unido, com a liberdade de associação do empresário, na sua vertente negativa.

44.      Embora uma situação como a da Parkwood pudesse estar abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 12.° da Carta, a verdade é que o presente processo tem uma característica especial que, em meu entender, o distancia da liberdade de associação na sua vertente negativa. Como foi salientado no n.° 8 destas conclusões, o organismo de negociação coletiva para o qual a cláusula contratual controvertida remete, o NJC, é um organismo de natureza pública, em cujo âmbito são negociadas as condições laborais do pessoal do setor público local. Dada a sua natureza pública e o seu restrito âmbito de ação, o NJC dificilmente poderia expressar ou dar voz aos interesses da Parkwood, apesar de se tratar de uma empresa transferida que, em dado momento, foi pública. Isto mesmo foi confirmado pelas partes, tanto nas suas observações escritas como nas orais, e foi também referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, no seu pedido prejudicial.

45.      Por conseguinte, o problema não reside no facto de a Parkwood ser obrigada a participar numa organização, caso desejasse influir nas condições laborais dos seus trabalhadores (situação que, de facto, geraria problemas de conformidade com o artigo 12.° da Carta). Pelo contrário, caberia observar que a Parkwood não dispõe de qualquer meio de representação junto do NJC. A restrição de direitos que é causada à Parkwood não é devida a uma obrigação de participação num organismo, mas sim ao facto de ter de assumir obrigações contraídas em acordos sobre os quais não tem qualquer capacidade de influência.

46.      Como, em seguida, explicarei, neste cenário, o direito fundamental que está em jogo não é a liberdade de associação negativa do empresário, mas o seu direito fundamental à liberdade de empresa, que o artigo 16.° da Carta reconhece «de acordo com o direito da União e as legislações e práticas nacionais».

47.      Como anteriormente afirmei, considero que a Diretiva 2004/23 não proíbe que os Estados‑Membros estabeleçam regimes de trabalho em que as cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas façam parte da cessão de direitos e obrigações produzida por uma transferência de empresa. Mas, como é bem sabido, os Estados‑Membros, inclusivamente quando dispõem de uma margem de manobra expressamente conferida pelo direito da União, devem exercê‑la em conformidade com este ordenamento (22). Esta vinculação inclui naturalmente, entre outros, os direitos fundamentais, conforme dispõe expressamente o artigo 51.° da Carta. Portanto, embora o Reino Unido possa autorizar os parceiros sociais a incluírem nos contratos de trabalho cláusulas dinâmicas de remissão para as convenções coletivas, esta faculdade não pode resultar em comportamentos contrários aos direitos fundamentais consagrados na Carta, incluindo a liberdade de empresa consagrada no artigo 16.°

48.      A liberdade de empresa tem um longo historial no direito da União (23). Inicialmente concebida como corolário do direito fundamental de propriedade (24), já nos anos oitenta começou a ganhar autonomia própria, até alcançar a categoria de princípio geral do direito da União (25). Atualmente, as anotações relativas à Carta salientam que este artigo se baseia na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que reconhece a liberdade de exercício de uma atividade económica ou comercial, mas também a liberdade contratual e o princípio da livre concorrência (26).

49.      Mas, apesar de a liberdade de empresa dispor destas três fontes, a verdade é que, até à data, a jurisprudência não forneceu uma definição completa e operativa da referida liberdade. Nas decisões em que teve oportunidade de se pronunciar a este respeito, o Tribunal de Justiça limitou‑se a remeter para o direito de propriedade ou a enunciar estritamente o disposto no artigo 16.° da Carta.

50.      Isto não impede que se tirem conclusões quanto ao conteúdo básico deste direito e, para tal objetivo, as fontes a que as anotações ao artigo 16.° da Carta fazem referência prestam uma ajuda importante. Com efeito, a liberdade de empresa, conforme aparece consagrada no referido artigo, atua como uma garantia da iniciativa e da atividade económica, obviamente sujeita a limitações, mas que assegura, em qualquer caso, a existência de condições mínimas de atuação económica no mercado interno. Assim, a liberdade de empresa intervém como limite à ação da União nas suas funções legislativa e executiva, bem como à dos Estados‑Membros, ao aplicarem o direito da União.

51.      Por outro lado, embora esteja estreitamente relacionada com o direito fundamental de propriedade, no direito da União e em vários ordenamentos dos Estados‑Membros (27), a liberdade de empresa protege situações jurídicas diferentes. Enquanto o direito de propriedade incide sobre o domínio dos bens materiais e imateriais, a liberdade de empresa protege a iniciativa económica e a capacidade de ação num mercado, mas não os lucros concretos, traduzidos num montante patrimonial, obtidos nesse mercado (28).

52.      Finalmente, importa referir que a liberdade de empresa é um direito fundamental com uma forte vocação de ponderação. A natureza não absoluta do direito contribui para que, muito frequentemente, a sua aplicação seja feita em contraposição a outros direitos fundamentais, como demonstra a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que, até à data, ponderou a liberdade de empresa com outros direitos fundamentais, como a proteção da vida privada (29), da saúde (30), ou da propriedade intelectual (31).

53.      Neste contexto concreto, estamos perante uma legislação nacional nos termos da qual, numa transferência de empresa, as cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas são integralmente transferidas. A transferência da cláusula pressupõe que o cessionário, neste caso a empresa Parkwood, fica vinculado às condições de trabalho acordadas, no presente e no futuro, no âmbito do NJC. Portanto, e como resultado de uma cláusula contratual expressamente estipulada no contrato de trabalho, o ordenamento do Reino Unido permite que os trabalhadores das empresas públicas transferidas para empresas privadas mantenham as condições, presentes e futuras, acordadas no âmbito do NJC, organismo no qual a empresa cessionária não pode participar.

54.      Logicamente, a faculdade de adquirir uma determinada empresa não faz parte da liberdade reconhecida no artigo 16.° da Carta. Contudo, o estabelecimento de condições de aquisição tão rigorosas que levem, na prática, a desincentivar fortemente a aquisição de empresas, pode resultar numa violação do referido artigo. O facto de, no contexto de uma transferência de empresa, o empresário poder ficar indefinidamente sujeito a condições laborais que não acordou adquire os contornos de uma restrição à liberdade de contratação, um dos aspetos que integram a liberdade de empresa, como referem as anotações ao artigo 16.° da Carta.

55.      Mas, dito tudo isto, a simples sujeição às condições estabelecidas no âmbito do NJC não se traduz automaticamente numa violação da liberdade de empresa. Pelo contrário, é necessário tomar em consideração o circunstancialismo de direito e de facto do processo para esclarecer se o ordenamento do Reino Unido é incompatível com o disposto no artigo 16.° da Carta. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio assume uma função de especial importância, dado que se encontra em melhor posição para efetuar esta apreciação, na medida em esta é relativa ao direito do trabalho do Reino Unido. No quadro dessa análise, o órgão jurisdicional de reenvio deve apreciar, em especial, se a sujeição às condições acordadas no âmbito do NJC é incondicional e irreversível. É evidente que a afetação do direito fundamental variará em função do grau de vinculação aos termos e condições acordados no âmbito do referido organismo.

56.      Neste sentido, as partes no processo principal salientaram os aspetos básicos do sistema de negociação coletiva do Reino Unido, que se caracteriza pela sua flexibilidade. Como ficou demonstrado, as convenções coletivas do Reino Unido não têm a sua base jurídica na lei, mas sim em cada contrato de trabalho, expressão da autonomia da vontade e da liberdade contratual do trabalhador e da entidade patronal. Portanto, e sem prejuízo do facto de o órgão jurisdicional de reenvio proceder às apreciações pertinentes a fim de verificar este aspeto, tudo aponta para que as cláusulas dinâmicas de remissão, apesar de serem objeto da cessão, podem ser renegociadas e alteradas por ambas as partes, a qualquer momento, durante a vigência do contrato de trabalho. Noutras palavras, o direito do Reino Unido não parece opor‑se a que a Parkwood e os trabalhadores provenientes da empresa transferida negoceiem e acordem em anular, alterar ou manter a referida cláusula.

57.      Se assim for, as objeções que o ordenamento do Reino Unido suscita do ponto de vista do artigo 16.° da Carta seriam dissipadas. No entanto, esta é uma questão que requer uma análise do direito nacional que não compete ao Tribunal de Justiça, mas sim ao órgão jurisdicional de reenvio, realizar.

58.      Por conseguinte, à luz dos últimos argumentos expostos, proponho que o Tribunal de Justiça responda à terceira questão prejudicial no sentido de que o direito da União e, em especial, o artigo 16.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não se opõem a uma legislação nacional que obrigue o cessionário de uma empresa a aceitar os termos e condições, presentes e futuros, acordados no âmbito de um organismo de negociação coletiva, desde que a referida obrigação não seja de caráter incondicional e irreversível. Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se, nas circunstâncias específicas do presente caso e de acordo com o ordenamento nacional, essa obrigação é, efetivamente, de caráter incondicional e irreversível.

VI — Conclusão

59.      Em face do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pela Supreme Court do seguinte modo:

«1)      O artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos, deve ser interpretado no sentido de que, em princípio, não se opõe a que os Estados‑Membros prevejam a possibilidade de as cláusulas dinâmicas de remissão para convenções coletivas, presentes e futuras, acordadas livremente pelas partes no contrato de trabalho, serem transferidas em consequência de uma transferência de empresas.

2)      O direito da União e, em especial, o artigo 16.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não se opõem a uma legislação nacional que obrigue o cessionário de uma empresa a aceitar os termos e condições, presentes e futuros, acordados no âmbito de um organismo de negociação coletiva, desde que a referida obrigação não seja de caráter incondicional e irreversível. Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se, nas circunstâncias específicas do presente caso e de acordo com o ordenamento nacional, essa obrigação é, efetivamente, de caráter incondicional e irreversível.»


1 —      Língua original: espanhol.


2 —      Diretiva do Conselho, de 12 de março de 2001 (JO L 82, p. 16).


3 —      Acórdão de 9 de março de 2006 (C‑499/04, Colet., p. I‑2397).


4 —      Diretiva do Conselho, de 14 de fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122).


5 —      Esta foi a doutrina assente do Employment Appeal Tribunal, como aparece refletida nos acórdãos Whent v Cartledge [1997] IRLR 153 EAT; BET Catering Service Ltd v Ball & Others EAT 637/96, e Glendale Grounds Management v Bradley EAT/485/97, entre outros.


6 —      V., entre outros, acórdãos de 10 de fevereiro de 1988, Tellerup, dito «Daddy’s Dance Hall» (324/86, Colet., p. 739, n.° 9); de 25 de julho de 1991, D’Urso e o. (C‑362/89, Colet., p. 1‑4105, n.° 9), e de 12 de novembro de 1992, Watson Rask e Christensen (C‑209/91, Colet., p. I‑5755, n.° 26).


7 —      V., entre outros, acórdãos de D’Urso e o., já referido, n.° 9; de 27 de novembro de 2008, Juuri (C‑396/07, Colet., p. I‑8883, n.° 33), e de 12 de novembro de 1998, Europièces (C‑399/96, Colet., p. I‑6965, n.° 37).


8 —      V., entre outros, acórdãos Watson Rask e Christensen, já referido, n.° 27, e de 6 de novembro de 2003, Martin e o. (C‑4/01, Colet., p. I‑12859, n.° 41).


9 —      Ibidem.


10 —      Disposições mais favoráveis que, como o Tribunal de Justiça confirmou, incluem a sua respetiva interpretação pelos tribunais nacionais, como acontece no presente processo. A este respeito, v. acórdão de 16 de dezembro de 1992, Katsikas e o. (C‑132/91, C‑138/91 e C‑139/91, Colet., p. I‑6577, n.° 40).


11 —      Note‑se que este aditamento é uma das novidades introduzidas pela Diretiva 2001/23, relativamente à sua antecessora, a Diretiva 77/187/CEE, cujo artigo 7.° se limitava a declarar que «[a] presente diretiva não afeta a faculdade de os Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem disposições legislativas, regulamentares ou administrativas mais favoráveis aos trabalhadores».


12 —      Para uma descrição pormenorizada dos factos em causa no processo Werhof, v. conclusões apresentadas pelo advogado‑geral Ruiz‑Jarabo Colomer nesse processo, n.os 16 a 23.


13 —      V. conclusões referidas na nota anterior, n.os 14 e 15. Sobre o quadro jurídico alemão aplicável ao caso de H. Werhof, v. análise de Rémy, P., «Le renvoi à la convention colective dans le contrat de travail en droit allemand et la directive transfert», Droit Social, n.° 3, 2007, pp. 342 a 346.


14 —      Acórdão Werhof, já referido, n.° 28 (itálico acrescentado).


15 —      Ibidem (itálico acrescentado).


16 —      Acórdão Werhof, já referido, n.° 30.


17 —      Acórdão Werhof, já referido, n.° 30.


18 —      Acórdão Werhof, já referido, n.° 29.


19 —      V. jurisprudência do Employment Appeal Tribunal, já referida na nota 5 destas conclusões.


20 —      O facto de as convenções coletivas não serem vinculativas é um princípio bem estabelecido no direito do trabalho do Reino Unido, que tem as suas raízes no século XIX, na Section 4 da Trade Union Act de 1871. Do mesmo modo, só como consequência de uma remissão expressa numa cláusula do contrato de trabalho é que a common law reconheceu efeitos às convenções coletivas (veja‑se Ford Motor Co Ltd v AUEFW [1969] 2 QB 303). Esta é a tese ainda em vigor no ordenamento jurídico do Reino Unido, tal como é salientado em Deakin, S. e Morris, G., Labour Law, 5.ª ed., Ed. Hart, Portland — Oxford, 2009, pp. 237 e 238.


21 —      V., a este respeito, jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a dimensão negativa da liberdade de associação, em especial os acórdãos Sigurdur A. Sigurjónsson c. Islândia de 30 de junho de 1993, Gustafsson c. Suécia de 25 de abril de 1996, e Vördur Ólafsson c. Islândia de 27 de abril de 2010.


22 —      Acórdão Werhof, já referido, n.os 32 e seguintes.


23 —      A este respeito, v. Schwarze, J., «Der Grundrechtsschutz für Unternehmen in der Europäischen Grundrechtecharta», Europäische Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 2001.


24 —      V. acórdãos de 27 de setembro de 1979, Eridania (230/78, Recueil, p. 2749, n.os 20 e seguintes), e de 19 de setembro de 1985, Finsider/Comissão (63/84 e 147/84, Recueil, p. 2857, n.° 23).


25 —      Acórdão de 21 de fevereiro de 1991, Zuckerfabrik Süderdithmarschen e Zuckerfabrik Soest (C‑143/88 e C‑92/89, Colet., p. I‑415, n.° 73).


26 —      Neste ponto, as anotações remetem para os acórdãos de 14 de maio de 1974, Nold (4/73, Colet., p. 283); Eridiana, já referido; de 16 de janeiro de 1979, Sukkerfabriken Nykøbing (151/78, Colet., p. 1, n.° 19), e de 5 de outubro de 1999, Espanha/Comissão (C‑240/97, Colet., p. I‑6571, n.° 99).


27 —      Um amplo número de Estados‑Membros, tal como a Carta, reconhecem de forma autónoma o direito fundamental à liberdade de empresa. É este o caso de Espanha (artigo 38.° da Constituição Espanhola), de Portugal (artigo 61.°, n.° 1, da Constituição Portuguesa) ou de Itália (artigo 61.1 da Constituição Italiana). No entanto, em França, a liberdade de empresa deduz‑se da garantia constitucional da propriedade privada e do direito geral à liberdade, como é descrito em Devolvé, P., Droit public de l’économie, Ed. Dalloz, Paris, 1998, pp. 105 e segs. O ordenamento alemão segue uma conceção diferente, em que a livre iniciativa económica decorre do direito de propriedade privada, mas também do direito à liberdade de escolha de profissão. A este respeito, v. Tettinger, P.‑J., «Artikel 12», in Sachs, M. (ed.), Grundgesetz‑Komentar, Ed. C. H. Beck, Munich, 1996, pp. 428 e segs. Sobre este direito fundamental no direito comparado europeu, v. Arroyo Jiménez, L., Libre empresa y títulos habilitantes, Ed. CEPC, Madrid, 2004, pp. 75 a 79.


28 —      V. Blanke, H. J., «Artikel 16», in Tettinger, P. e Stern, K., Europäische Grundrechte‑Charta, Ed. C.H. Beck, 2006, pp. 428, 429 e 439 a 442, bem como Díez‑Picazo Giménez, L.M., Sistema de Derechos Fundamentales, 3.ª ed., Ed. Thomson‑Civitas, Madrid, 2008, pp. 537 e segs.


29 —      Acórdão de 29 de março de 2012, Interseroh Scrap and Metals Trading (C‑1/11, n.° 44); acórdão de 24 de novembro de 2011, Scarlet Extended (C‑70/10, Colet., p. I‑11959, n.° 50), e de 16 de fevereiro de 2012, SABAM (C‑360/10, n.° 48).


30 —      Acórdão de 6 de setembro de 2012, Deutsches Weintor (C‑544/10, n.° 55).


31 —      Acórdãos proferidos nos processos Scarlet, já referido, n.° 50, e SABAM, já referido, n.° 48.