Language of document : ECLI:EU:T:2012:173

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

29 de março de 2012 (*)

«Concorrência ― Abuso de posição dominante ― Mercados espanhóis de acesso à Internet de banda larga ― Decisão que declara uma infração ao artigo 82.° CE ― Fixação dos preços ― Compressão tarifária das margens ― Cooperação leal ― Aplicação ultra vires do artigo 82.° CE ― Segurança jurídica ― Proteção da confiança legítima»

No processo T‑398/07,

Reino de Espanha, representado por N. Díaz Abad, abogado del Estado,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por F. Castillo de la Torre, E. Gippini Fournier e K. Mojzesowicz, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objeto um pedido de anulação da decisão C (2007) 3196 final da Comissão, de 4 de julho de 2007, relativa a um processo nos termos do artigo 82.° [CE] (processo COMP/38.784 – Wanadoo España contra Telefónica),

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção),

composto por: L. Truchot, presidente, M. E. Martins Ribeiro (relatora) e H. Kanninen, juízes,

secretário: J. Palacio González, administrador principal,

vistos os autos e após a audiência de 8 de junho de 2011,

profere o presente

Acórdão

 Factos na origem do litígio

1        A Telefónica SA é a sociedade‑mãe do grupo Telefónica, antigo monopólio de Estado no setor das telecomunicações em Espanha. Durante o período abrangido pela decisão C (2007) 3196 final da Comissão, de 4 de julho de 2007, relativa a um processo nos termos do artigo 82.° [CE] (processo COMP/38.784 – Wanadoo España contra Telefónica) (a seguir «decisão impugnada»), isto é, de setembro de 2001 a dezembro de 2006, a Telefónica prestou serviços de alta velocidade através da sua filial Telefónica de España SAU (a seguir «TESAU»), bem como de outras duas filiais, a Telefónica Data de España SAU e a Terra Networks España SA, que se fundiram com a TESAU, respetivamente, em 30 de junho e 7 de julho de 2006 (considerandos 11, 13 e 19 a 21 da decisão impugnada). A Telefónica e as suas filiais (a seguir denominadas conjuntamente «Telefónica») foram uma só e mesma entidade económica durante todo o período abrangido pela investigação (considerando 12 da decisão impugnada).

2        Antes da liberalização total dos mercados das telecomunicações em 1998, a Telefónica era detida pelo Estado espanhol e beneficiava de um monopólio legal do fornecimento a retalho de serviços de telecomunicações por linha fixa. Atualmente, explora a única rede telefónica fixa de dimensão nacional (considerando 13 da decisão impugnada).

3        Em 11 de julho de 2003, a Wanadoo España SL (atual France Telecom España SA) apresentou uma denúncia à Comissão das Comunidades Europeias, alegando que a margem entre os preços grossistas que as filiais da Telefónica aplicavam aos seus concorrentes para o fornecimento grossista de acesso à banda larga em Espanha e os preços de retalho que cobravam aos utilizadores finais não era suficiente para os concorrentes da Telefónica poderem fazer‑lhe concorrência (considerando 26 da decisão impugnada).

4        Em 18 de novembro de 2004, a Comissão enviou um pedido de informações à Comisión del Mercado de las Telecomunicaciones (CMT, Comissão do mercado das telecomunicações espanhola).

5        Em 17 de dezembro de 2004, a Comissão enviou um correio eletrónico à CMT para obter informações complementares às pedidas em 18 de novembro de 2004. Enviou‑lhe igualmente um pedido de informações suplementares em 17 de janeiro de 2005.

6        Em 20 de dezembro de 2004, 26 de janeiro e 2 de fevereiro de 2005, a CMT respondeu aos pedidos de informação da Comissão de 18 de novembro, 17 de dezembro de 2004 e 17 de janeiro de 2005.

7        Em 20 de fevereiro de 2006, a Comissão enviou uma comunicação de acusações à Telefónica, que respondeu em 19 de maio de 2006 (considerando 27 da decisão impugnada).

8        Em 15 de maio de 2006, a Comissão informou a CMT de que, caso pretendesse participar na audição, devia fazer o respetivo pedido ao consultor‑auditor. Em 24 de maio de 2006, a Comissão enviou à CMT uma versão não confidencial da comunicação de acusações e convidou‑a a apresentar observações por escrito.

9        Realizou‑se uma audição em 12 e 13 de junho de 2006 na sequência do pedido da Telefónica. Esta última, a denunciante e os terceiros interessados tiverem a oportunidade de ser ouvidos e fazer comentários sobre os problemas suscitados pela Comissão na comunicação de acusações (considerando 30 da decisão impugnada). A CMT formulou observações orais. Em 26 de junho de 2006, respondeu a várias questões colocadas pela denunciante na audição.

10      Em 11 de janeiro de 2007, a Comissão enviou à Telefónica uma carta convidando‑a a comunicar‑lhe as suas observações sobre as conclusões que a Comissão tencionava extrair com base em novos factos não mencionados na comunicação de acusações. A Telefónica respondeu a esse pedido em 12 de fevereiro de 2007 (considerando 31 da decisão impugnada).

11      Em 12 de junho de 2007, o presidente da CMT enviou uma carta à Comissão, informando‑a das consequências da decisão impugnada do ponto de vista regulamentar e lamentando a falta de cooperação efetiva entre a Comissão e a CMT no processo. A Comissão respondeu por ofício de 21 de agosto de 2007.

12      Em 14 de junho de 2007, realizou‑se uma reunião entre a Comissão e a CMT.

13      Em 15 de junho de 2007, a CMT assistiu, na qualidade de perito, a uma reunião do Comité consultivo em matéria de acordos, decisões e práticas concertadas e abusos de posição dominante, previsto no artigo 14.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] (JO 2003, L 1, p. 1).

 Decisão impugnada

14      Em 4 de julho de 2007, a Comissão adotou a decisão impugnada, que é o objeto do presente recurso.

15      Em primeiro lugar, na decisão impugnada, a Comissão identificou três mercados de produtos em causa, ou seja, um mercado retalhista de alta velocidade e dois mercados grossistas de alta velocidade (considerandos 145 a 208 da decisão impugnada).

16      O mercado retalhista em causa abrange, segundo a decisão impugnada, todos os produtos de alta velocidade não diferenciados, sejam eles fornecidos por ADSL («Asymetric Digital Subscriber Line», linha de assinante digital assimétrica) ou por qualquer outra tecnologia, comercializados no «mercado grande público» para utilizadores particulares e não particulares. Em contrapartida, não abrange os serviços de acesso à Internet de alta velocidade por medida dirigida principalmente às «grandes contas» (considerando 153 da decisão impugnada).

17      Quanto aos mercados grossistas, a Comissão indicou que estavam disponíveis três principais ofertas grossistas, a saber, uma oferta de referência para a desagregação do lacete local, comercializada unicamente pela Telefónica, uma oferta grossista regional (GigADSL, a seguir «produto grossista regional»), também comercializada unicamente pela Telefónica, e várias ofertas grossistas nacionais comercializadas tanto pela Telefónica (ADSL‑IP e ADSL‑IP Total, a seguir «produto grossista nacional») como por outros operadores com base na desagregação do lacete local e/ou no produto grossista regional (considerando 75 da decisão impugnada).

18      Para definir os mercados grossistas em causa no caso em apreço, a Comissão analisou se os produtos de acesso grossista descritos no número anterior pertenciam ao mesmo mercado de produtos ou a mercados de produtos distintos (considerando 162 da decisão impugnada). A este respeito, a Comissão considerou que o produto grossista regional e a desagregação do lacete local não eram substituíveis (considerandos 163 a 182 da decisão impugnada). A Comissão também considerou que não havia substituibilidade suficiente entre os produtos grossistas regional e nacional (considerandos 183 a 195 da decisão impugnada), não deixando de precisar que os limites exatos entre os mercados grossistas regional e nacional não eram determinantes, tendo em conta a posição dominante da Telefónica em cada um desses mercados (considerando 195 da decisão impugnada). Por último, a Comissão considerou que as tecnologias de acesso à alta velocidade, para além da ADSL, em particular o cabo, não podiam ser consideradas substituíveis às ofertas ADSL (considerandos 196 a 207 da decisão impugnada). A Comissão concluiu que, para efeitos da decisão impugnada, os mercados grossistas em causa incluíam o produto grossista regional e o produto grossista nacional, com exclusão dos serviços grossista por cabo e das tecnologias diferentes da ADSL (considerandos 6 e 208 da decisão impugnada).

19      Os mercados geográficos relevantes grossistas e retalhistas são, segundo a decisão impugnada, de dimensão nacional (território espanhol) (considerando 209 da decisão impugnada).

20      Em segundo lugar, a Comissão concluiu que a Telefónica ocupava uma posição dominante nos dois mercados grossistas em causa (considerandos 223 a 242 da decisão impugnada). Assim, durante o período de referência, a Telefónica detinha o monopólio do fornecimento do produto grossista regional e mais de 84% do produto grossista nacional (considerandos 223 e 235 da decisão impugnada). Segundo a decisão impugnada (considerandos 243 a 277), a Telefónica está igualmente em posição dominante no mercado retalhista.

21      Em terceiro lugar, a Comissão examinou se a Telefónica tinha abusado da sua posição dominante nos mercados em causa (considerandos 278 a 694 da decisão impugnada). A este respeito, a Comissão considerou que a Telefónica tinha violado o artigo 82.° CE ao impor aos seus concorrentes preços não equitativos sob a forma de uma compressão tarifária das margens entre os preços do acesso à alta velocidade a retalho no mercado «grande público» espanhol e os preços de acesso à alta velocidade por grosso a nível regional e nacional, durante o período compreendido entre setembro de 2001 e dezembro de 2006 (considerando 694 da decisão impugnada).

22      Para determinar a existência de uma compressão tarifária das margens no caso em apreço, a Comissão, em primeiro lugar, recordou o contexto regulamentar no qual a Telefónica tinha fornecido os produtos grossistas regional e nacional, designadamente, a obrigação imposta à Telefónica pelo direito espanhol de prestar em condições equitativas um acesso grossista ao nível regional e nacional. A Comissão recordou igualmente a obrigação imposta pela CMT à Telefónica desde março de 1999 de fornecer o produto do mercado grossista regional e indicou que a Telefónica havia começado a oferecer o seu produto ADSL‑IP Total por sua própria iniciativa em setembro de 1999, enquanto a CMT tinha imposto que a Telefónica facultasse o acesso à ADSL‑IP a partir de abril de 2002 (considerandos 288 e 289 da decisão impugnada).

23      Em segundo lugar, quanto ao método de cálculo da compressão tarifária das margens, a Comissão considerou, primeiro, que o nível de eficácia dos concorrentes da Telefónica devia ser avaliado em função dos seus custos a jusante (método do «concorrente igualmente eficaz») (considerandos 311 a 315 da decisão impugnada); segundo, que o método pertinente de valorização dos custos, no caso em apreço, era o dos custos incrementais médios a longo prazo (a seguir «CMILT») (considerandos 316 a 324 da decisão impugnada); terceiro, que a avaliação da rentabilidade ao longo do tempo podia ser feita segundo dois métodos, a saber, o método denominado «período a período» e o método dos fluxos de tesouraria atualizados (considerandos 325 a 385 da decisão impugnada); quarto, que o cálculo da compressão tarifária das margens devia ser efetuado com base na carteira de serviços comercializados pela Telefónica no mercado relevante (considerandos 386 a 388 da decisão impugnada); e, quinto, quanto à escolha dos «inputs» a montante para o cálculo da reprodutibilidade dos preços a jusante, que as tarifas da Telefónica deviam ser reprodutíveis por um concorrente igualmente eficaz utilizando, pelo menos, um produto do mercado grossista da Telefónica em cada um dos mercados grossistas relevantes (considerandos 389 a 396 da decisão impugnada).

24      Em terceiro lugar, a Comissão calculou se a diferença entre os preços a jusante e a montante da Telefónica abrangia pelo menos os cmilt a jusante da Telefónica (considerandos 397 a 511 da decisão impugnada). Aplicando a metodologia descrita no número anterior, a Comissão calculou que os preços retalhistas da Telefónica não tinham sido reprodutíveis com base nos seus produtos grossistas nacional ou regional, de setembro de 2001 a dezembro de 2006 (considerandos 512 a 542 da decisão impugnada).

25      Em quarto lugar, quanto aos efeitos do abuso, a Comissão considerou que o comportamento da Telefónica tinha provavelmente limitado a capacidade de os operadores ADSL crescerem duradouramente no mercado retalhista e tinha provavelmente prejudicado os utilizadores finais. Considerou igualmente que o comportamento da Telefónica tinha produzido efeitos concretos de exclusão e tinha causado um prejuízo aos consumidores (considerandos 544 a 618 da decisão impugnada).

26      Em quinto lugar, a Comissão observou que o comportamento da Telefónica não era objetivamente justificado nem tinha apresentado ganhos de eficácia (considerandos 619 a 664 da decisão impugnada).

27      Por último, em sexto lugar, a Comissão indicou que a Telefónica dispunha de margem para evitar a compressão tarifária das margens. Assim, a Telefónica poderia ter aumentado os seus preços de retalho ou diminuído as tarifas por grosso. A Comissão acrescentou que as decisões da CMT relativas à compressão dos preços dirigidas à Telefónica não eram suscetíveis de afastar a sua responsabilidade (considerandos 665 a 694 da decisão impugnada).

28      Em quarto lugar, a Comissão afirmou que, no caso, as trocas comerciais entre Estados‑Membros eram afetadas, uma vez que a política tarifária da Telefónica respeitava aos serviços de acesso de um operador em posição dominante que abrangiam todo o território espanhol, que constitui uma parte substancial do mercado interno (considerandos 695 a 697 da decisão impugnada).

29      Para efeitos do cálculo do montante da coima, a Comissão aplicou, na decisão impugnada, a metodologia exposta nas Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.°, do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° [CA] (JO 1998, C 9, p. 3). A Comissão, tendo em conta a natureza e o impacto do comportamento abusivo e a dimensão do mercado geográfico em causa, considerou que a infração devia ser considerada «muito grave», mesmo que o respetivo grau de gravidade não tivesse sido necessariamente uniforme durante todo o período em causa. Segundo a decisão impugnada, o montante de partida da coima, de 90 000 000 euros, tem em conta o facto de a gravidade da prática abusiva ter sido precisada ao longo do período em causa e, mais especificamente, depois da Decisão 2003/707/CE da Comissão, de 21 de maio de 2003, relativa a um processo de aplicação do artigo 82.° [CE] (Processo COMP/C‑1/37.451, 37.578, 37.579 – Deutsche Telekom AG) (JO L 263, p. 9) (considerandos 738 a 757 da decisão impugnada).

30      Foi aplicado ao montante de partida da coima um fator multiplicador de 1,25 para ter em conta a capacidade económica significativa da Telefónica e para assegurar à coima um caráter suficientemente dissuasor, de modo que o montante de partida da coima foi fixado em 112 500 000 euros (considerando 758 da decisão impugnada).

31      Tendo a infração durado de setembro de 2001 a dezembro de 2006, ou seja, cinco anos e quatro meses, a Comissão aumentou o montante de partida da coima em 50%. O montante de base da coima foi assim fixado em 168 750 000 euros (considerandos 759 a 761 da decisão impugnada).

32      Em face dos elementos de prova disponíveis, a Comissão considerou que a existência de determinadas circunstâncias atenuantes podia ser tida em conta no caso vertente, pois, durante uma parte do período em causa, certos preços praticados pela Telefónica estavam sujeitos a uma regulamentação setorial. Assim, foi concedida à Telefónica uma redução do montante da coima de 10%, mesmo apesar de esta gozar, segundo a Comissão, de uma margem de manobra claramente mais ampla para fixar os preços, o que fixou o montante da coima em 151 875 000 euros (considerandos 765 e 766 da decisão impugnada).

33      O dispositivo da decisão impugnada tem a seguinte redação:

«Artigo 1.°

A [Telefónica] e a [TESAU] cometeram uma infração ao artigo 82.° CE, ao aplicarem preços não equitativos sob a forma de uma desproporção entre os preços do mercado grossista e os preços cobrados aos utilizadores finais para o acesso à banda larga entre setembro de 2001 e dezembro de 2006.

Artigo 2.°

Pela infração declarada no artigo 1.°, é aplicada solidariamente uma coima de 151 875 000 euros à [Telefónica] e à [TESAU].»

 Tramitação do processo e pedidos das partes

34      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 31 de outubro de 2007, o Reino de Espanha interpôs o presente recurso.

35      O Reino de Espanha conclui pedindo que o Tribunal se digne:

¾        anular a decisão impugnada;

¾        condenar a Comissão nas despesas.

36      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

¾        negar provimento ao recurso;

¾        condenar o Reino de Espanha nas despesas.

37      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Oitava Secção) decidiu dar início à fase oral. Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões do Tribunal na audiência de 8 de junho de 2011.

 Questão de direito

38      O Reino de Espanha invoca cinco fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo à violação do dever de cooperação leal previsto no artigo 10.° CE e no artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva‑quadro) (JO L 108, p. 33). O segundo fundamento é relativo à violação do artigo 82.° CE devido a erros manifestos de apreciação da Comissão. O terceiro fundamento é relativo à aplicação ultra vires do artigo 82.° CE. O quarto fundamento é relativo à violação do princípio da segurança jurídica. Por último, o quinto fundamento é relativo à violação do princípio da proteção da confiança legítima.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo à violação do dever de cooperação leal previsto no artigo 10.° CE e no artigo 7.°, n.° 2, da diretiva‑quadro

39      Com o seu primeiro fundamento, o Reino de Espanha sustenta que a Comissão violou o seu dever de cooperação leal com a CMT, previsto no artigo 10.° CE e no artigo 7.°, n.° 2, da diretiva‑quadro, no decurso do procedimento administrativo em causa.

40      Há que recordar que o dever de cooperação leal, consagrado no artigo 10.° CE, se impõe a todas as autoridades dos Estados‑Membros que atuem no âmbito das suas competências e às instituições da União, que estão sujeitas a deveres recíprocos de cooperação leal com os Estados‑Membros (despacho do Tribunal de Justiça de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88 IMM, Colet., p. I‑3365, n.° 17; v. acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de outubro de 2002, Roquette Frères, C‑94/00, Colet., p. I‑9011, n.° 31 e jurisprudência aí referida). Quando, como no caso em apreço, as autoridades da União e as autoridades nacionais são chamadas a contribuir para a realização dos objetivos do Tratado, através de um exercício coordenado das respetivas competências, essa cooperação reveste um caráter particularmente essencial (acórdão Roquette Frères, já referido, n.° 32).

41      No tocante à admissibilidade da parte do presente fundamento relativa à violação do artigo 7.°, n.° 2, da diretiva‑quadro, contestada pela Comissão, refira‑se, à semelhança da Comissão, que o Reino de Espanha, no âmbito do presente fundamento, unicamente afirma que o alcance do dever de cooperação não se pode limitar a um mecanismo de notificação dos projetos de medidas por parte das autoridades reguladoras nacionais (a seguir «ARN») e de observações subsequentes por parte da Comissão nem formula argumentos destinados a demonstrar que essa disposição foi violada.

42      Interrogado na audiência sobre a relevância, no caso vertente, dessa disposição, o Reino de Espanha declarou que esta era uma aplicação, no quadro regulamentar das comunicações eletrónicas, do dever de cooperação leal previsto no artigo 10.° CE.

43      Resulta do artigo 21.° do Estatuto do Tribunal de Justiça e do artigo 44.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal Geral que a petição deve indicar o objeto do litígio e conter uma exposição sumária dos fundamentos invocados. Esta indicação deve ser suficientemente clara e precisa para permitir ao demandado preparar a sua defesa e ao Tribunal decidir a causa, eventualmente sem mais informações. A segurança jurídica e uma boa administração da justiça exigem, para que um recurso seja admissível, que os elementos essenciais de facto e de direito em que assenta resultem, pelo menos em termos sumários, mas de forma coerente e compreensível, do próprio texto da petição (v. acórdão do Tribunal Geral de 17 de setembro de 2007, Microsoft/Comissão, T‑201/04, Colet., p. II‑3601, n.° 94 e jurisprudência aí referida).

44      Por outro lado, a simples enunciação abstrata dos fundamentos na petição não cumpre as exigências do Regulamento de Processo, devendo a petição explicitar em que consistem os fundamentos que servem de base ao recurso (acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 1961, Fives Lille Cail e o./Alta Autoridade, 19/60, 21/60, 2/61 e 3/61, Recueil, pp. 561, 588, Colet. 1954‑1961, p. 637, e acórdão do Tribunal Geral de 18 de dezembro de 2008, Componenta/Comissão, T‑455/05, não publicado na Coletânea, n.° 45).

45      Não se pode deixar de referir que o Reino de Espanha não desenvolveu nenhuma argumentação suficientemente clara em apoio da parte do fundamento relativa à violação do artigo 7.°, n.° 2, da diretiva‑quadro no contexto do procedimento administrativo que conduziu à adoção da decisão impugnada. Por conseguinte, há que declará‑la inadmissível por não cumprir as exigências da jurisprudência acima recordada nos n.os 43 e 44.

46      Quanto ao mérito do presente fundamento, na medida em que é relativo à violação do artigo 10.° CE, há que rejeitar, em primeiro lugar, a afirmação do Reino de Espanha de que a Comissão violou o seu dever de cooperação leal ao não associar suficientemente a CMT ao processo administrativo.

47      Por um lado, importa sublinhar que, no que toca às relações que se estabelecem no âmbito dos processos conduzidos pela Comissão ao abrigo dos artigos 81.° CE e 82.° CE, as regras da execução do dever de cooperação leal que decorre do artigo 10.° CE e ao qual a Comissão está obrigada nas suas relações com os Estados‑Membros foram precisadas nomeadamente nos artigos 11.° a 16.° do Regulamento n.° 1/2003, no seu capítulo IV, intitulado «Cooperação». Ora, essas disposições não preveem a obrigação de a Comissão consultar as ARN nem a possibilidade, invocada pelo Reino de Espanha, de intentar uma «ação comum» com estas no âmbito dos procedimentos que desenvolve nos termos dos artigos 81.° CE e 82.° CE.

48      Por outro lado, há que observar que a CMT foi efetivamente associada ao procedimento administrativo no presente processo. Com efeito, primeiro, como acima resulta dos n.os 4 a 6, a Comissão enviou à CMT três pedidos de informações, aos quais esta respondeu. Segundo, a Comissão comunicou à CMT, em 24 de maio de 2006, uma versão não confidencial da comunicação de acusações. Informou‑a igualmente de que poderia eventualmente apresentar comentários escritos sobre a comunicação de acusações, ou ainda formular observações ou questões de forma oral na audição. Ora, a CMT não formulou nenhuma observação. Terceiro, o Reino de Espanha não contesta que vários representantes da CMT estavam presentes na audição de 12 e 13 de junho de 2006 e que a CMT também interveio oralmente nessa audição. Quarto, em 26 de junho de 2006, a CMT também respondeu por escrito a uma série de questões colocadas na audição pela autora da denúncia. Quinto, o Reino de Espanha não contesta a afirmação da Comissão de que os membros da equipa responsável pelo processo se reuniram com a CMT por várias vezes para discutir acerca do inquérito. Sexto, o Reino de Espanha não contesta as afirmações da Comissão de que, em 14 de junho de 2007, vários representantes da CMT se encontraram com ela e formularam observações quanto ao teor de alguns considerandos da decisão impugnada, que foram tidas em conta para a segunda reunião do comité consultivo referido no artigo 14.° do Regulamento n.° 1/2003. A CMT não apresentou comentários adicionais a este respeito. De resto, um perito da CMT participou numa reunião do referido comité consultivo, que decorreu em 15 de junho de 2007. Ora, não se pode deixar de observar que o Reino de Espanha não precisa, no seu recurso, por que razões a participação da CMT, conforme acima descrita, não foi suficiente no caso.

49      A este propósito, também não podem ser acolhidos os argumentos invocados pelo Reino de Espanha para demonstrar a importância do incumprimento da Comissão quanto ao seu dever de cooperação leal.

50      Em primeiro lugar, o facto de a decisão impugnada dizer respeito a produtos e serviços regulamentados pela CMT em conformidade com as normas europeias aplicáveis não é relevante. Como acertadamente refere a Comissão, na falta de uma derrogação expressa nesse sentido, o direito da concorrência é aplicável aos setores regulamentados (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 1975, Suiker Unie e o./Comissão, 40/73 a 48/73, 50/73, 54/73 a 56/73, 111/73, 113/73 e 114/73, Colet., p. 563, n.os 65 a 72, e de 11 de abril de 1989, Saeed Flugreisen e Silver Line Reisebüro, 66/86, Colet., p. 803). Além disso, a aplicabilidade das regras de concorrência não está excluída, uma vez que as disposições setoriais em causa deixam subsistir a possibilidade de concorrência suscetível de ser impedida, restringida ou falseada por comportamentos autónomos das empresas (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de novembro de 1997, Comissão e França/Ladbroke Racing, C‑359/95 P e C‑379/95 P, Colet., p. I‑6265, n.os 33, 34 e jurisprudência aí referida). Ora, no caso, como a Comissão afirmou nos considerandos 665 a 694 da decisão impugnada, não contestados pelo Reino de Espanha, a Telefónica dispunha de margem de manobra para evitar a compressão tarifária das margens (v., igualmente, n.° 27 supra). O comportamento da Telefónica punido pela decisão impugnada é abrangido pelo artigo 82.° CE (v., igualmente, neste sentido, conclusões do advogado‑geral J. Mazák no processo que deu origem ao acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, C‑280/08 P, Colet., p. I‑9555, n.os 15 e 19).

51      Em segundo lugar, a afirmação do Reino de Espanha de que a Comissão, na decisão impugnada, analisou em «profundidade» a intervenção reguladora da CMT também não é relevante. Embora resulte da decisão impugnada que a Comissão se referiu ao contexto regulamentar no qual a Telefónica fornecia os produtos do mercado grossista regional e nacional, foi em razão da necessidade, para determinar o eventual caráter abusivo de uma prática de preços, de apreciar o conjunto das circunstâncias e examinar se essa prática se destinava a retirar ou limitar ao comprador as possibilidades de escolha de fontes de abastecimento, a impedir o acesso dos concorrentes ao mercado, a aplicar a parceiros comerciais condições desiguais para prestações equivalentes ou a reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada (acórdão Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 175; v. acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, Colet., p. I‑527, n.° 28 e jurisprudência aí referida). Aliás, na decisão impugnada, a Comissão indicou expressamente que a regulamentação nacional que impunha à Telefónica o fornecimento dos produtos grossistas regional e nacional era compatível com o quadro regulamentar da União adotado em 2002 (considerando 294 da decisão impugnada) e que a demonstração de uma infração ao artigo 82.° CE sob a forma de uma compressão tarifária das margens não estava em contradição com a política da CMT (considerando 684 da decisão impugnada). Sublinhou igualmente que a metodologia utilizada na decisão impugnada não estava em contradição com a metodologia utilizada pela CMT em 2001 (considerando 733 da decisão impugnada). Por último, a Comissão referiu que foi a adoção pela CMT de medidas provisórias conducentes a uma redução substancial dos preços dos produtos grossistas regional e nacional que pôs fim à compressão tarifária das margens (considerando 759 da decisão impugnada).

52      Em terceiro lugar, não se pode sustentar que a Comissão puniu a Telefónica em razão de uma prática anticoncorrencial já analisada pela CMT. Com efeito, o Reino de Espanha não contestou, nos seus articulados nem, interrogado sobre esse ponto, na audiência, que a CMT nunca tinha analisado a existência de uma compressão tarifária das margens durante o período da infração entre o produto grossista nacional da Telefónica e os seus produtos a retalho e que a análise de uma compressão tarifária das margens entre o produto grossista regional da Telefónica e os seus produtos a retalho nunca foi efetuada com base nos custos históricos reais da interessada, mas com base em estimativas ex ante (considerandos 726 e 727 da decisão impugnada).

53      Em segundo lugar, contrariamente ao que sustenta o Reino de Espanha, não se pode considerar que a decisão impugnada obsta ao trabalho de regulamentação da CMT, tem repercussões nas suas futuras ações e afeta a sua política reguladora.

54      Em primeiro lugar, há que rejeitar o argumento do Reino de Espanha de que a Comissão não levou em conta a regulamentação setorial.

55      Sem que seja necessário tomar posição sobre a pertinência do acórdão da Supreme Court of the United States (Tribunal Supremo dos Estados Unidos) de 13 de janeiro de 2004 [processo Verizon Communications Inc. v. Law Offices of Curtis V. Trinko, LLP, 540 U.S. 398 (2004)], invocado pelo Reino de Espanha, para analisar no caso concreto as condições de intervenção da Comissão com base no artigo 82.° CE no mercado regulamentado em causa, há que considerar que a Comissão, nos considerandos 287 a 309 da decisão impugnada, examinou efetivamente o contexto regulamentar no qual a Telefónica facultou um acesso grossista a nível regional e a nível nacional, e teve em consideração esse contexto, precisamente em razão da necessidade, acima recordada no n.° 51, de apreciar o conjunto das circunstâncias, entre as quais a obrigação, imposta à Telefónica pelo quadro regulamentar espanhol, de fornecer o acesso grossista a nível regional a partir de março de 1999 e o acesso grossista a nível nacional a partir de abril de 2002 (considerando 287 da decisão impugnada). Aliás, na decisão impugnada, para esse efeito, a Comissão baseou‑se várias vezes na ação da CMT no mercado espanhol. De qualquer forma, mesmo pressupondo que a regulamentação setorial, à qual faz referência o Reino de Espanha resulte de atos de direito derivado da União, cumpre sublinhar que, à luz dos princípios que regem a hierarquia das normas, esses atos não podem, fora de qualquer disposição do Tratado que a isso autorize, derrogar uma disposição do Tratado, no caso o artigo 82.° CE (v., neste sentido, acórdão do Tribunal Geral de 10 de julho de 1990, Tetra Pak/Comissão, T‑51/89, Colet., p. II‑309, n.° 25).

56      Há que rejeitar igualmente o argumento do Reino de Espanha segundo o qual a adoção da decisão impugnada pela Comissão terá consequências nas futuras ações da CMT e afeta a sua política reguladora. Com efeito, para além de o Reino de Espanha não precisar nos seus articulados essas consequências nem as razões pelas quais a sua política reguladora seria afetada, importa sublinhar que o controlo ex ante de uma ARN e o controlo ex post da Comissão têm um objeto e uma finalidade distintos, uma vez que as normas de concorrência previstas no Tratado CE completam, através do exercício de um controlo ex post, o quadro regulamentar adotado pelo legislador da União para regular ex ante os mercados das telecomunicações (acórdão Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 92).

57      Em segundo lugar, há que rejeitar o argumento do Reino de Espanha baseado na Decisão 2003/570/CE da Comissão de 30 de abril de 2003, relativa a um procedimento ao abrigo do artigo 81.° [CE] e do artigo 53.° do Acordo EEE –Processo COMP/38.370 – O2 UK Limited/T‑Mobile UK Limited («UK Network Sharing Agreement») (JO L 200, p. 59), e em diversos comunicados de imprensa da Comissão, de onde entende resultar que, noutros processos do setor das telecomunicações, a Comissão considerou que a concorrência era suficientemente preservada devido à intervenção da ARN. Com efeito, as apreciações da Comissão são efetuadas em função das circunstâncias próprias de cada processo e as decisões referentes a outros processos só podem ter caráter indicativo, pois os dados circunstanciais dos processos não são idênticos (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 21 de setembro de 2006, JCB Service/Comissão, C‑167/04 P, Colet., p. I‑8935, n.os 201 e 205, e de 7 de junho de 2007, Britannia Alloys & Chemicals/Comissão, C‑76/06 P, Colet., p. I‑4405, n.° 60). Por conseguinte, as apreciações da Comissão sobre as circunstâncias factuais dos processos anteriores, que, de resto, no caso em apreço, apenas são apoiadas com referência a comunicados de imprensa da Comissão, não são transponíveis para o presente caso (v., neste sentido, acórdão do Tribunal Geral de 9 de julho de 2007, Sun Chemical Group e o./Comissão, T‑282/06, Colet., p. II‑2149, n.° 88).

58      Resulta das considerações expostas que o presente fundamento deve ser julgado improcedente.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo à violação do artigo 82.° CE em razão de erros manifestos de apreciação da Comissão

59      Com este fundamento, o Reino de Espanha alega que a Comissão cometeu vários erros manifestos de apreciação no âmbito da aplicação do artigo 82.° CE. A este respeito, o Reino de Espanha sustenta que os produtos grossistas em causa não eram indispensáveis para os operadores que subscreviam as suas propostas, que o cálculo dos custos específicos cobrados aos utilizadores finais dos concorrentes hipotéticos tão eficazes como a Telefónica não é correto e que a análise dos efeitos dos comportamentos anticoncorrenciais da Telefónica no mercado espanhol está errada.

60      A título preliminar, há que recordar que, segundo jurisprudência assente, embora o juiz da União exerça de maneira geral uma fiscalização total sobre a questão de saber se as condições de aplicação das disposições relativas à concorrência se encontram ou não reunidas, a fiscalização que exerce sobre as apreciações económicas complexas feitas pela Comissão limita‑se necessariamente à verificação do respeito das regras de processo e de fundamentação, bem como da exatidão material dos factos, da inexistência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder (acórdãos do Tribunal de Justiça de 11 de julho de 1985, Remia e o./Comissão, 42/84, Recueil, p. 2545, n.° 34; de 17 de novembro de 1987, British American Tobacco e Reynolds Industries/Comissão, 142/84 e 156/84, Colet., p. 4487, n.° 62; e de 7 de janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão, C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, Colet., p. I‑123, n.° 279; acórdão do Tribunal Geral de 10 de abril de 2008, Deutsche Telekom/Comissão, T‑271/03, Colet., p. II‑477, n.° 185).

61      Do mesmo modo, na medida em que a decisão da Comissão resulte de apreciações técnicas complexas, estas são, em princípio, objeto de uma fiscalização jurisdicional limitada, que implica que o juiz da União não possa substituir pela sua a apreciação dos factos feita pela Comissão (acórdãos do Tribunal Geral, Microsoft/Comissão, referido no n.° 43 supra, n.° 88, e de 9 de setembro de 2009, Clearstream/Comissão, T‑301/04, Colet., p. II‑3155, n.° 94).

62      No entanto, embora o juiz da União reconheça à Comissão uma margem de apreciação em matéria económica ou técnica, isso não implica que se deva abster de fiscalizar a interpretação que a Comissão faz de dados dessa natureza. Com efeito, o juiz da União deve, designadamente, verificar não só a exatidão material dos elementos de prova invocados, a sua fiabilidade e a sua coerência mas também verificar se esses elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes que devem ser tomados em consideração para apreciar uma situação complexa e se são suscetíveis de fundamentar as conclusões que deles são retiradas (acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de fevereiro de 2005, Comissão/Tetra Laval, C‑12/03 P, Colet., p. I‑987, n.° 39; acórdãos Microsoft/Comissão, referido no n.° 43 supra, n.° 89, e Clearstream/Comissão, referido no n.° 61 supra, n.° 95).

63      É à luz dos princípios acima referidos que se deve examinar se a Comissão cometeu os erros manifestos de apreciação invocados pelo Reino de Espanha.

64      Em primeiro lugar, o Reino de Espanha alega que a jurisprudência exige, para que exista uma compressão das margens entre um produto grossista e um produto a retalho contrária ao artigo 82.° CE, como declarada na decisão impugnada, que o produto grossista seja indispensável para o fornecimento do serviço de retalho, o que não é aqui o caso.

65      Interrogada na audiência sobre o sentido e alcance da sua argumentação, atendendo nomeadamente ao acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, o Reino de Espanha reiterou que entendia que, quando, como no caso, havia uma obrigação regulamentar de fornecer um produto grossista, a Comissão tinha a obrigação, para efeitos de determinar a existência de uma compressão das margens contrária ao artigo 82.° CE, de demonstrar que o referido produto era indispensável para o fornecimento do produto a retalho. Indicou também que as considerações do referido acórdão só eram aplicáveis quando os produtos grossistas em causa tivessem sido voluntariamente colocados no mercado, sem qualquer obrigação legal.

66      Segundo a jurisprudência acima referida no n.° 51, para determinar se a empresa em posição dominante explorou de forma abusiva essa posição ao aplicar as suas práticas tarifárias, é preciso analisar todas as circunstâncias e apurar se essa prática tende a suprimir ou a restringir a possibilidade de o comprador escolher as suas fontes de abastecimento, a impedir o acesso dos concorrentes ao mercado, a aplicar a parceiros comerciais condições desiguais para prestações equivalentes, ou a reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada.

67      Em especial, uma prática tarifária de uma empresa dominante integrada verticalmente, com caráter não equitativo na medida em que comprime efetivamente as margens dos seus concorrentes no mercado a retalho, em razão da divergência entre os preços dos seus produtos grossistas e os preços dos seus produtos a retalho, é suscetível de constituir um abuso de posição dominante contrário ao artigo 82.° CE (v., neste sentido, acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 30).

68      Com efeito, é a compressão de margens que, atendendo ao efeito de expulsão que pode criar para os concorrentes pelo menos tão eficientes como a empresa dominante, pode, por si própria, na falta de qualquer justificação objetiva, constituir um abuso na aceção do artigo 82.° CE (acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 31).

69      A este respeito, há que rejeitar também o argumento do Reino de Espanha, apresentado na audiência, segundo o qual as considerações do acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 55 supra, só se aplicam quando os produtos grossistas em causa tiverem sido voluntariamente colocados no mercado sem qualquer obrigação legal.

70      No referido acórdão, o Tribunal de Justiça recordou, efetivamente, que o artigo 82.° CE se refere apenas a comportamentos anticoncorrenciais adotados pelas empresas por sua própria iniciativa. Se uma legislação nacional impuser às empresas um comportamento anticoncorrencial ou criar um quadro jurídico que, por si só, elimina qualquer possibilidade de comportamento concorrencial por sua parte, o artigo 82.° CE não é aplicável. Em tal situação, a restrição da concorrência não tem a sua causa, como decorre dessa disposição, em comportamentos autónomos das empresas (v. acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 49 e jurisprudência aí referida).

71      Em contrapartida, o artigo 82.° CE pode ser aplicado se se verificar, como no caso em apreço (considerandos 665 a 685 da decisão impugnada) (v., igualmente, n.° 27 supra), que a legislação nacional deixa subsistir a possibilidade de concorrência que possa ser impedida, restringida ou falseada por comportamentos autónomos das empresas (v., neste sentido, acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 50 e jurisprudência aí referida).

72      O Tribunal de Justiça precisou que, apesar de tal legislação, se uma empresa em posição dominante verticalmente integrada dispõe de margem de manobra para modificar mesmo apenas os seus preços retalhistas, isso é suficiente para que a compressão de margens lhe possa ser imputada (v., neste sentido, acórdãos de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 85, e TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 51).

73      Por outro lado, se o Reino de Espanha sustenta que, se a margem entre os produtos grossistas nacional e regional, por um lado, e o produto a retalho, por outro, era tão estreita que chegava a ser negativa, pelo que nenhum operador alternativo podia utilizar esses produtos grossistas, essa conduta deveria então ser considerada uma recusa de acesso que só deve ser considerada abusiva segundo os critérios enunciados no acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, Colet., p. I‑7791), esse argumento também não pode ser acolhido.

74      Com efeito, o Tribunal de Justiça precisou que não se pode deduzir desse acórdão que as condições necessárias para determinar a existência de uma recusa abusiva de fornecimento devem ser necessariamente aplicadas também ao apreciar o caráter abusivo de um comportamento que consiste em sujeitar a prestação de serviços ou a venda de produtos a condições desfavoráveis nas quais o adquirente possa não estar interessado. Com efeito, esses comportamentos podem, em si, ser constitutivos de uma forma autónoma de abuso diferente da recusa de fornecimento (acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.os 55 e 56).

75      A interpretação contrária do acórdão Bronner, acima referido no n.° 73, equivaleria a exigir, para que qualquer comportamento de uma empresa dominante relativo às suas condições comerciais pudesse ser considerado abusivo, que fossem sempre observadas as condições exigidas para demonstrar a existência de uma recusa de contratar, o que reduziria indevidamente o efeito útil do artigo 82.° CE (v., neste sentido, acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 58).

76      Daqui decorre que o Reino de Espanha não pode alegar que, para provar a própria existência de uma compressão das margens, a Comissão tinha de demonstrar na decisão impugnada que os produtos grossistas em causa eram indispensáveis para os operadores que tinham subscrito as suas propostas. Assim, também não colhem os seus argumentos destinados a demonstrar que, na decisão impugnada, a Comissão considerou que os produtos grossistas regional e nacional eram necessários a partir de uma interpretação errada da teoria da escala dos investimentos.

77      Por último, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida no n.° 51 que, para demonstrar se a empresa em posição dominante explorou de forma abusiva essa posição ao aplicar as suas práticas tarifárias, há que analisar todas as circunstâncias e apurar se essa prática tende a suprimir ou a restringir a possibilidade de o comprador escolher as suas fontes de abastecimento, a impedir o acesso dos concorrentes ao mercado, a aplicar a parceiros comerciais condições desiguais para prestações equivalentes ou a reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada.

78      Ora, como a Comissão explicou nos considerandos 287 a 309 da decisão impugnada, a comercialização pela Telefónica dos seus produtos grossistas e o seu dever, previsto no quadro regulamentar espanhol, de permitir o acesso às suas infraestruturas constituem uma realidade preexistente do mercado espanhol. Por um lado, relativamente ao produto grossista nacional, resulta dos considerandos 110 e 287 a 289 da decisão impugnada que a Telefónica começou a prestar o serviço ADSL‑IP Total por sua própria iniciativa, a partir de setembro de 1999, e, quanto ao ADSL‑IP, estava sujeita pela CMT a uma obrigação de abastecimento a partir de abril de 2002. A afirmação, não sustentada, do Reino de Espanha, na audiência, de que o serviço ADSL‑IP Total foi utilizado de forma marginal deve igualmente ser rejeitada, visto o referido serviço ter, no mínimo, sido o produto grossista mais utilizado até ao último trimestre de 2002 (considerando 98 da decisão impugnada). Por outro lado, relativamente ao produto grossista regional, a Telefónica está sujeita a uma obrigação de abastecimento desde março de 1999. A Comissão não violou, assim, o artigo 82.° CE nem cometeu nenhum erro manifesto de apreciação, ao examinar neste contexto as práticas tarifárias da Telefónica a título do período em causa.

79      Resulta das considerações expostas que a primeira parte do segundo fundamento do Reino de Espanha, como acima exposta no n.° 64, deve ser rejeitada.

80      Em segundo lugar, o Reino de Espanha alega que a análise dos custos efetuada pela Comissão apresenta importantes erros, uma vez que sobreavalia as tarifas grossistas aplicáveis aos operadores alternativos assim como os custos específicos da Telefónica. Para sustentar este argumento, o Reino de Espanha limita‑se a afirmar, por um lado, que os operadores alternativos utilizam uma combinação ótima dos produtos grossistas que existem no mercado, a qual lhes permite minimizar os respetivos custos, e, por outro, que os custos específicos utilizados na decisão impugnada são diferentes dos utilizados pela CMT e não correspondem à realidade do mercado espanhol. O Reino de Espanha alega ainda que a Comissão não explica por que é que os «valores» dos custos específicos utilizados pela CMT não devem ser considerados corretos.

81      Em primeiro lugar, há que rejeitar o argumento do Reino de Espanha segundo o qual a Comissão não explica por que é que os «valores» dos custos específicos utilizados pela CMT, que são diferentes dos utilizados na decisão impugnada, não devem ser considerados corretos, uma vez que a Comissão lhes dedicou os considerandos 492 a 511 da decisão impugnada. A este respeito, como a Comissão refere nesses considerandos, cujas afirmações não são contestadas pelo Reino de Espanha, os custos utilizados pela CMT não permitiam avaliar a compatibilidade dos preços da Telefónica em matéria de acesso de alta velocidade com o artigo 82.° CE, na medida em que o modelo da CMT não se baseava em informações recentes relativas aos custos realmente suportados pela Telefónica. Além disso, segundo a Comissão, o modelo de custos dos consultores externos subestimava, de modo significativo, os custos de rede marginais da Telefónica e não tinha em conta os custos de promoção da Telefónica. Pelo contrário, o modelo da Comissão baseia‑se em dados históricos mais recentes, tal como foram fornecidos pela sociedade, bem como no plano de negócios da Telefónica (considerando 511 da decisão impugnada).

82      Em segundo lugar, há que rejeitar o argumento do Reino de Espanha relativo à utilização por um concorrente igualmente eficaz de uma combinação ótima dos produtos grossistas a fim de minimizar os respetivos custos. Com efeito, há que salientar antes de mais que a utilização pelos operadores alternativos, durante o período da infração, em cada central, de uma combinação ótima dos produtos grossistas, que inclua a desagregação do lacete local, não está demonstrada. Assim, resulta dos considerandos 102 e 103 da decisão impugnada, cujos dados não foram contestados pelo Reino de Espanha, que, até 2002, a France Telecom comprou quase exclusivamente o produto grossista nacional da Telefónica, tendo este sido substituído, no final de 2002, por uma oferta grossista nacional alternativa baseada no produto grossista regional da Telefónica. Foi só a partir de fevereiro de 2005 que o número de lacetes locais desagregados da France Telecom aumentou significativamente enquanto se verificava uma diminuição do número de linhas nacionais alternativas por grosso baseadas no produto grossista regional da Telefónica. Além disso, até ao último trimestre de 2004, a Ya.com comprou exclusivamente o produto grossista nacional da Telefónica e começou a utilizar progressivamente a desagregação do lacete local a partir de julho de 2005, com a sua aquisição da Albura.

83      Em seguida, como observa a Comissão, essa combinação otimizada só pode ser utilizada por concorrentes da Telefónica que disponham de uma rede que lhes permita a desagregação do lacete local, com exclusão dos concorrentes potenciais da Telefónica.

84      Por último, a argumentação do Reino de Espanha de que uma eventual combinação ótima dos produtos grossistas impediria o estabelecimento de uma compressão tarifária das margens está em contradição com as obrigações regulamentares específicas impostas pela CMT à Telefónica, nomeadamente, a de assegurar que todas as suas ofertas a retalho sejam replicáveis com base no seu produto grossista regional (considerando 114 da decisão impugnada). Aliás, a este respeito, o Reino de Espanha não contesta, na réplica ou na audiência, as referências, feitas a título de exemplo, da Comissão às decisões da CMT de 8, 22 e 28 de julho, 21 de outubro, 11 de novembro e 20 de dezembro de 2004, pelas quais esta proibiu novas ofertas comerciais da Telefónica que não deixassem uma margem suficiente entre os seus preços de retalho e os preços do produto grossista regional (v., igualmente, considerando 115 da decisão impugnada).

85      Em terceiro lugar, como observa acertadamente a Comissão, o Reino de Espanha não contesta as suas conclusões quanto aos custos calculados na decisão impugnada nem quanto ao nível dos preços de retalho em Espanha. Limita‑se a sustentar que a prova da existência de erros de cálculo na decisão impugnada resulta do facto de os custos de acesso aos serviços ADSL‑IP Total (entre 2001 e 2004) e ADSL‑IP (entre 2002 e 2004) terem sido inferiores aos custos do GigADSL, que, no entanto, foi a proposta mais subscrita pelos operadores alternativos a partir do último semestre de 2002 (considerando 99 da decisão impugnada), o que seria «aparentemente irracional». Ora, o Reino de Espanha não indica em que medida pode tal afirmação demonstrar a ilegalidade dos cálculos efetuados pela Comissão ou a inexistência de uma compressão das margens.

86      Em quarto lugar, embora o Reino de Espanha invoque uma comparação dos preços por grosso e os preços de retalho em França, não precisa em que medida pode essa comparação demonstrar a ilegalidade do cálculo dos custos efetuado pela Comissão no âmbito da prova de uma compressão tarifária das margens no mercado espanhol. Por conseguinte, tal argumento deve ser rejeitado.

87      Em face do exposto, a segunda parte do segundo fundamento do Reino de Espanha, como acima exposta no n.° 80, deve igualmente ser rejeitada.

88      Em terceiro lugar, o Reino de Espanha alega que a análise dos efeitos dos comportamentos anticoncorrenciais da Telefónica está errada.

89      Há que recordar que, segundo a jurisprudência, ao proibir a exploração abusiva de uma posição dominante, na medida em que o comércio entre Estados‑Membros seja suscetível de ser afetado, o artigo 82.° CE visa os comportamentos de uma empresa em posição dominante que, num mercado onde, devido precisamente à presença dessa empresa, o grau de concorrência já está enfraquecido, tenham por efeito impedir, através do recurso a meios diferentes dos que regem uma concorrência normal dos produtos e dos serviços com base nas prestações dos operadores económicos, a manutenção do grau de concorrência ainda existente no mercado ou o desenvolvimento dessa concorrência (v. acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 174 e jurisprudência aí referida).

90      O efeito a que alude a jurisprudência referida no número anterior não respeita necessariamente ao efeito concreto do comportamento abusivo em causa. Para a demonstração de uma violação do artigo 82.° CE, basta demonstrar que o comportamento abusivo da empresa em posição dominante tende a restringir a concorrência ou, por outras palavras, que o comportamento é adequado ou suscetível de ter tal efeito (acórdãos do Tribunal Geral de 30 de setembro de 2003, Michelin/Comissão, T‑203/01, Colet., p. II‑4071, n.° 239; de 17 de dezembro de 2003, British Airways/Comissão, T‑219/99, Colet., p. II‑5917, n.° 293; e Microsoft/Comissão, referido no n.° 43 supra, n.° 867). Assim, o efeito anticoncorrencial da prática de preços em causa no mercado deve existir, mas não tem de ser necessariamente concreto, sendo suficiente a demonstração de um efeito anticoncorrencial potencial capaz de afastar os concorrentes pelo menos tão eficazes como a empresa em posição dominante (acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra, n.° 64).

91      Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça, acima referida no n.° 51, que, para determinar se a empresa que ocupa uma posição dominante explorou de forma abusiva essa posição através das suas práticas tarifárias, há que apreciar todas as circunstâncias e examinar se essa prática se destina a retirar ou limitar ao comprador as possibilidades de escolha de fontes de abastecimento, a impedir o acesso de concorrentes ao mercado, a aplicar a parceiros comerciais condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando‑os, por esse facto, em desvantagem na concorrência, ou a reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada.

92      Uma vez que o artigo 82.° CE se refere não só às práticas suscetíveis de causar um prejuízo imediato aos consumidores mas também às que lhes causam prejuízo por prejudicarem o jogo da concorrência, incumbe à empresa que detém uma posição dominante uma responsabilidade especial de, com o seu comportamento, não prejudicar uma concorrência efetiva e não falseada no mercado comum (v. acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 176 e jurisprudência aí referida).

93      Daqui resulta que o artigo 82.° CE proíbe, nomeadamente, que uma empresa em posição dominante utilize práticas tarifárias que produzam efeitos de expulsão dos seus concorrentes igualmente eficazes, reais ou potenciais, isto é, práticas capazes de dificultar ou mesmo impossibilitar o seu acesso ao mercado, bem como dificultar ou mesmo impossibilitar aos seus cocontratantes a escolha entre várias fontes de abastecimento ou parceiros comerciais, reforçando assim a sua posição dominante, recorrendo a meios diferentes daqueles que pertencem a uma concorrência pelo mérito. Nesta perspetiva, nem toda a concorrência através dos preços pode, portanto, ser considerada legítima (v. acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 177 e jurisprudência aí referida).

94      A este respeito, embora no seu acórdão TeliaSonera Sverige, referido no n.° 51 supra (n.° 69), o Tribunal de Justiça tenha referido que o caráter indispensável do produto grossista podia ser pertinente no quadro da apreciação dos efeitos da compressão das margens, não se pode deixar de observar que, como acertadamente refere a Comissão, e como o Reino de Espanha expressamente confirmou na audiência, por um lado, este último só invocou o caráter indispensável dos produtos do mercado grossista para refutar a própria existência de uma compressão das margens contrária ao artigo 82.° CE (v. n.° 65 supra) e, por outro, que não contestou a legalidade dos considerandos 543 a 563 da decisão impugnada, nos quais a Comissão considerou que o comportamento da Telefónica era suscetível de restringir a concorrência nos mercados relevantes.

95      Dado que, segundo jurisprudência assente, na medida em que determinados fundamentos de uma decisão sejam, só por si, suscetíveis de a justificar de forma bastante, os vícios de que possam estar feridos outros fundamentos do ato são, de qualquer modo, irrelevantes para a sua parte decisória (acórdão do Tribunal Geral de 21 de setembro de 2005, EDP/Comissão, T‑87/05, Colet., p. II‑3745, n.° 144; v., igualmente, neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2001, Comissão e França/TF1, C‑302/99 P e C‑308/99 P, Colet., p. I‑5603, n.os 26 a 29), devendo as alegações do Reino de Espanha relativas à falta de prova dos efeitos concretos do comportamento da Telefónica no mercado ser rejeitadas como inoperantes no que se refere ao apuramento da infração em causa no presente recurso.

96      Daqui resulta que a terceira parte do segundo fundamento do Reino de Espanha, tal como acima exposta no n.° 88, deve ser rejeitada, tal como o próprio fundamento na íntegra.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo à aplicação ultra vires do artigo 82.° CE

97      O Reino de Espanha sustenta que a Comissão fez uma aplicação ultra vires do artigo 82.° CE.

98      Na sua contestação, a Comissão alega que a menção do exercício ultra vires da sua competência não precisa suficientemente se o fundamento do Reino de Espanha tem por objeto uma incompetência ou um desvio de poder. O presente fundamento poderia, portanto, ser julgado inadmissível por falta de clareza da petição. Esta poderia prejudicar os direitos de defesa, uma vez que a incompetência e o desvio de poder são objeto de critérios de exame distintos.

99      Há que sublinhar, a este respeito, que o Reino de Espanha, nos seus articulados, alegou cinco argumentos para sustentar o seu fundamento relativo à aplicação ultra vires do artigo 82.° CE. Em primeiro lugar, alega que a legislação espanhola está em conformidade com os objetivos das diretivas europeias. Assim, a Comissão não devia ter adotado uma decisão com fundamento no artigo 82.° CE, mas com base no artigo 226.° CE ou recorrer a um dos mecanismos previstos no artigo 7.° da diretiva‑quadro. Em segundo lugar, o Reino de Espanha alega que a Comissão substituiu o quadro regulamentar existente em Espanha por um novo modelo regulamentar. Em terceiro lugar, a decisão impugnada está na origem de uma situação não conforme com os objetivos da política reguladora que as ARN devem prosseguir e os resultados da decisão impugnada não estão em conformidade com a «experiência reguladora internacional». Em quarto lugar, a Comissão impede, de facto, a ARN espanhola de atingir os objetivos estabelecidos pelo quadro regulamentar para as comunicações eletrónicas e a decisão impugnada «dá a entender que a atividade reguladora não respeitava o artigo 82.° CE». Por último, em quinto lugar, o princípio da especialidade foi violado, uma vez que a regulamentação relativa às comunicações eletrónicas prevalece sobre a regulamentação relativa à concorrência.

100    Impõe‑se observar que os argumentos invocados no âmbito do presente fundamento parecem estar ligados, no essencial, quer à incompetência quer ao desvio de poder, ou mesmo, no que respeita a alguns deles, a uma violação do artigo 82.° CE.

101    A este respeito, o Reino de Espanha indicou expressamente na réplica e confirmou na audiência que não invocava, no âmbito do presente fundamento, a incompetência da Comissão nem um desvio de poder, mas uma aplicação do artigo 82.° CE «que vai além da sua letra». Na audiência, também afirmou, no essencial, que, de acordo com o seu fundamento, a Comissão atuou ultra vires ao intervir, de forma tardia, num mercado suficientemente regulado.

102    O Reino de Espanha não forneceu, porém, nenhuma indicação quanto às razões pelas quais a Comissão, no caso em apreço, fez uma «aplicação do artigo 82.° CE que vai além da sua letra». Também não indicou de que modo os argumentos invocados no âmbito do presente fundamento se distinguiam dos invocados no âmbito dos outros fundamentos do presente recurso.

103    Por força do artigo 21.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça e do artigo 44.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo, qualquer petição deve indicar o objeto do litígio e uma exposição sumária dos fundamentos invocados. A fim de garantir a segurança jurídica e uma boa administração da justiça, é necessário, para que um recurso seja admissível, que os elementos essenciais de facto e de direito em que se baseia resultem, pelo menos sumariamente mas de modo coerente e compreensível, da própria petição (v. acórdão do Tribunal Geral de 17 de dezembro de 2010, o EWRIA e o./Comissão, T‑369/08, Colet., p. II‑6283, n.° 48 e jurisprudência aí referida).

104    Resulta ainda da jurisprudência que a exposição sumária dos fundamentos invocados pela parte demandante deve ser suficientemente clara e precisa para permitir que a parte demandada prepare a sua defesa e que o Tribunal decida a causa, sem mais informações se for caso disso. São requeridas exigências análogas quando um argumento é apresentado em apoio de um fundamento (v. acórdão do Tribunal Geral de 14 de dezembro de 2005, Honeywell/Comissão, T‑209/01, Colet., p. II‑5527, n.° 55 e jurisprudência aí referida).

105    Em face do exposto, e uma vez que o Reino de Espanha expressamente afirmou que não alegava a incompetência da Comissão nem um desvio de poder, há que concluir que o presente fundamento não contém uma exposição de argumentos jurídicos coerentes que critiquem especificamente as considerações da decisão impugnada. Este fundamento é, portanto, demasiado obscuro para obter uma resposta, de modo que deve ser julgado inadmissível (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de outubro de 2003, Thyssen Stahl/Comissão, C‑194/99 P, Colet., p. I‑10821, n.os 105 e 106).

 Quanto ao quarto fundamento, relativo à violação do princípio da segurança jurídica

106    O Reino de Espanha alega, no essencial, que, ao adotar a decisão impugnada, a Comissão violou o princípio da segurança jurídica, dado que esta decisão implica uma alteração da conceção, introduzida ex post, do quadro regulamentar definido ex ante. A decisão impugnada viola o quadro regulamentar em função do qual os operadores do setor das comunicações eletrónicas tinham planificado consideráveis investimentos a longo prazo, o que cria uma grande incerteza nos agentes económicos. Através da decisão impugnada, a Comissão tornou‑se um organismo que pode rever a ação administrativa das ARN, o que tem a consequência de ser aplicada uma dupla regulamentação dos preços. Também existia em Espanha, durante o período em causa, abundante regulamentação ex ante e incumbia à Comissão, nos termos do artigo 7.° da diretiva‑quadro, fiscalizar as medidas regulamentares adotadas pela CMT. A Comissão não se opôs, através dos relatórios anuais de execução ou de uma ação por incumprimento contra o Reino de Espanha, aos instrumentos reguladores concebidos por esta ou à sua ação no mercado. A violação da segurança jurídica tem igualmente «consequências futuras», tendo em conta as diferenças expressas na decisão impugnada no que diz respeito à definição dos mercados ou à metodologia de análise que as ARN podem utilizar no âmbito da regulamentação ex ante.

107    Há que recordar que o princípio da segurança jurídica exige que as normas jurídicas sejam claras e precisas e visa garantir a previsibilidade das situações e das relações jurídicas abrangidas pelo direito da União (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de novembro de 2008, Förster, C‑158/07, Colet., p. I‑8507, n.° 67; acórdãos do Tribunal Geral de 12 de dezembro de 2007, Itália/Comissão, T‑308/05, Colet., p. II‑5089, n.° 158, e de 13 de novembro de 2008, SPM/Conselho e Comissão, T‑128/05, não publicado na Coletânea, n.° 147).

108    Este princípio não foi violado no presente caso. Com efeito, como salienta a Comissão, o fundamento do Reino de Espanha baseia‑se na premissa errada de que a Comissão modificou ex post o quadro regulamentar, o que não está demonstrado.

109    Em primeiro lugar, há que observar que a regulamentação setorial a que se refere o Reino de Espanha de modo nenhum afeta a competência conferida à Comissão diretamente pelo artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.° CE] e [82.° CE] (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), e, a partir de 1 de maio de 2004, pelo artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003, para declarar as infrações aos artigos 81.° CE e 82.° CE (v., neste sentido, acórdão de 10 de abril de 2008, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 60 supra, n.° 263).

110    Com efeito, como acima referido no n.° 56, as normas de concorrência previstas no Tratado CE completam, através do exercício de um controlo ex post, o quadro regulamentar adotado pelo legislador da União para regular ex ante os mercados das telecomunicações (acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 92).

111    Uma vez que a Telefónica dispunha de margem de manobra para evitar a compressão tarifária das margens (v., igualmente, n.os 27 e 50 supra), o seu comportamento, punido na decisão impugnada, era abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 82 CE (v., neste sentido, conclusões do advogado‑geral J. Mazák no processo que deu origem ao acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.os 15 e 19).

112    Além disso, esse quadro regulamentar não pode pôr em causa, para efeitos da aplicação do artigo 82.° CE, a repartição das competências estabelecidas a nível do direito primário pelos artigos 83.° CE e 85.° CE (v., igualmente, conclusões do advogado‑geral J. Mazák no processo que deu origem ao acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 19).

113    Em segundo lugar, o Reino de Espanha não pode alegar que incumbia à Comissão, nos termos do artigo 7.° da diretiva‑quadro, fiscalizar as medidas regulamentares adotadas pela CMT. Com efeito, como referiu a Comissão nos seus articulados, apenas foram notificadas à Comissão, através do procedimento previsto no referido artigo, as medidas adotadas em junho de 2006, na sequência da implementação do novo quadro regulamentar para as redes e serviços de comunicações eletrónicas pela CMT.

114    Em terceiro lugar, não se pode considerar que a violação da segurança jurídica tem «consequências futuras», tendo em conta as diferenças expressas na decisão impugnada no que diz respeito à definição dos mercados ou à metodologia de análise que as ARN podem utilizar no âmbito da regulamentação ex ante. Com efeito, como resulta, nomeadamente, do artigo 15.° da diretiva‑quadro, a indicação dos mercados de produtos e serviços no setor das comunicações eletrónicas cujas características possam justificar a imposição de obrigações regulamentares fixadas nas diretivas específicas não prejudica os mercados que podem ser definidos em casos específicos no direito da concorrência. Do mesmo modo, o n.° 28 das Orientações da Comissão relativas à análise e avaliação de poder de mercado significativo no âmbito do quadro regulamentar comunitário para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (JO 2002, C 165, p. 6) indica que os mercados definidos no novo quadro regulamentar para as redes e serviços de comunicações eletrónicas podem, em determinados casos, mesmo em domínios semelhantes, ser diferentes dos mercados identificados pelas autoridades da concorrência.

115    Por último, em quarto lugar, embora o Reino de Espanha sustente que a Comissão devia ter intentado uma ação por incumprimento contra ele nos termos do artigo 226.° CE, se tivesse chegado à conclusão de que as decisões da CMT, enquanto órgão de um Estado‑Membro, não permitiam evitar uma compressão dos preços e, portanto, não respeitavam o quadro regulamentar já referido, por um lado, há que referir que, na decisão impugnada, a Comissão não fez essa consideração. Por outro, de todo o modo, mesmo admitindo que a CMT tivesse violado uma norma do direito da União e que a Comissão pudesse, com esse fundamento, iniciar um processo por incumprimento contra o Reino de Espanha, essas eventualidades não seriam de forma alguma suscetíveis de afetar a legalidade da decisão impugnada. Com efeito, nessa decisão, a Comissão limitou‑se a declarar que a Telefónica cometeu uma infração ao artigo 82.° CE, disposição que não respeita aos Estados‑Membros, mas tão‑só aos operadores económicos (v., neste sentido, acórdão de 10 de abril de 2008, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 60 supra, n.° 271). Por outro lado, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, no sistema instituído pelo artigo 226.° CE, a Comissão dispõe de um poder discricionário para intentar uma ação por incumprimento e não compete aos órgãos jurisdicionais da União apreciar a oportunidade do seu exercício (acórdão de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, referido no n.° 50 supra, n.° 47).

116    Daqui resulta que improcede o presente fundamento.

 Quanto ao quinto fundamento, relativo à violação do princípio da proteção da confiança legítima

117    O Reino de Espanha sustenta que, ao quebrar o quadro regulamentar através de uma decisão tomada num domínio que já tinha sido regulamentado pela CMT, a Comissão viola o princípio da proteção da confiança legítima não só no que respeita ao operador punido mas também aos outros operadores no mercado, que acreditavam agir sob a tutela do âmbito setorial de acesso grossista estabelecido pela CMT. A violação do princípio da proteção da confiança legítima é particularmente clara na medida em que a CMT tinha executado ações pontuais relativas às ofertas comerciais da Telefónica. Por conseguinte, a decisão impugnada viola o princípio da proteção da confiança legítima ao afirmar que o facto de um operador se adaptar ao quadro estabelecido por uma ARN não basta para se presumir que essa conduta é lícita.

118    Há que recordar que a possibilidade de invocar o princípio da proteção da confiança legítima é facultada a qualquer operador económico em quem uma instituição tenha criado esperanças fundadas. Além disso, nada se opõe a que um Estado‑Membro alegue em sede de recurso de anulação que um ato das instituições viola a confiança legítima de certos operadores económicos (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 19 de novembro de 1998, Espanha/Conselho, C‑284/94, Colet., p. I‑7309, n.° 42, e de 10 de março de 2005, Espanha/Conselho, C‑342/03, Colet., p. I‑1975, n.° 47 e jurisprudência aí referida).

119    Todavia, quando esses operadores económicos estão em condições de prever a adoção da medida da União que afeta os seus interesses, o benefício do princípio da proteção da confiança legítima não pode ser invocado (v. acórdão de 10 de março de 2005, Espanha/Conselho, referido no n.° 118 supra, n.° 48 e jurisprudência aí referida).

120    No caso, já acima se referiu nos n.os 109 a 111 que a regulamentação setorial a que se refere o Reino de Espanha de nenhum modo afeta a competência da Comissão para declarar as infrações aos artigos 81.° CE e 82.° CE e que o comportamento da Telefónica punido pela decisão impugnada era abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 82.° CE. A intervenção da Comissão com base no artigo 82.° CE não pode, por conseguinte, ser considerada imprevisível.

121    Além disso, embora seja certo que, como salienta o Reino de Espanha, a CMT executou efetivamente ações pontuais relativas às ofertas comerciais da Telefónica, nomeadamente para efeitos de evitar uma compressão das margens, há que recordar que a CMT não é uma autoridade da concorrência, mas uma autoridade reguladora, e que nunca interveio para fazer respeitar o artigo 82.° CE, nem adotou decisões relativas às práticas punidas na decisão impugnada (considerandos 678 e 683 da decisão impugnada). Por outro lado, como acima se refere no n.° 52, o Reino de Espanha não contestou o facto de a CMT nunca ter analisado a existência de uma compressão tarifária das margens durante o período da infração entre o produto grossista nacional da Telefónica e os seus produtos a retalho e de a análise de uma compressão tarifária das margens entre o produto grossista regional da Telefónica e os seus produtos de retalho nunca ter sido efetuada com base nos custos históricos reais da interessada, mas com base em estimativas ex ante (considerandos 726 e 727 da decisão impugnada).

122    Nestas condições, nem as decisões da CMT nem o quadro regulamentar por esta estabelecido podiam fundar uma confiança legítima da Telefónica ou dos outros operadores em que qualquer comportamento que respeitasse as referidas decisões ou esse quadro regulamentar estaria em conformidade com o artigo 82.° CE.

123    Por conseguinte, o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente, bem como o recurso na íntegra.

 Quanto às despesas

124    Nos termos do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

125    Tendo o Reino de Espanha sido vencido, há que condená‑lo nas despesas, em conformidade com o pedido da Comissão.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      O Reino de Espanha é condenado nas despesas.

Truchot

Martins Ribeiro

Kanninen

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 29 de março de 2012.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.