CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER
apresentadas em 20 de Outubro de 2005 1(1)
Processo C‑436/04
Léopold Henri van Esbroeck
contra
Openbaar Ministerie
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van Cassatie van België)
«Questão prejudicial do artigo 35.° UE – Acervo de Schengen – Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen – Interpretação do artigo 54.° – Princípio ne bis in idem – Aplicação ratione temporis – Conceito de ‘mesmos factos’ – Transporte de uma determinada quantidade de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas de um Estado contratante para outro»
I – Introdução
1. O chamado acervo de Schengen abrange:
a) o Acordo assinado em 14 de Junho de 1985 na cidade luxemburguesa que lhe dá o nome, pelos três Estados que formam a União Económica Benelux, a República Federal da Alemanha e a República Francesa, relativo à supressão gradual de controlos nas fronteiras comuns (2);
b) a Convenção de Aplicação do referido Acordo, assinada em 19 de Junho de 1990 pelas mesmas partes contratantes (a seguir «Convenção») (3);
c) os protocolos e os instrumentos de adesão de outros Estados‑Membros, as declarações e os actos adoptados pelo Comité Executivo criado pela Convenção, bem como os actos ditados pelas instâncias a que o referido Comité atribua competências decisórias (4).
2. O Protocolo (n.° 2) anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (a seguir «Protocolo») integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia, sendo aplicável, nos termos do seu artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, nos treze Estados‑Membros referidos no artigo 1.°, entre os quais se encontra o Reino da Bélgica (5), desde a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão (1 de Maio de 1999).
3. O artigo 6.° do Protocolo compromete a República da Islândia e o Reino da Noruega na execução e no desenvolvimento do acervo de Schengen, países onde está em vigor desde 25 de Março de 2001 (6).
4. O reenvio prejudicial do Hof van Cassatie van België (Tribunal de recurso belga) proporciona ao Tribunal de Justiça a ocasião de interpretar, pela terceira vez (7), o artigo 54.° da Convenção, que enuncia o princípio ne bis in idem, bem como de analisar a sua aplicação ratione temporis e afinar o conceito de idem.
II – Enquadramento legal
A – O direito da União Europeia
5. O património jurídico de Schengen destina‑se, como afirma o preâmbulo do protocolo, «a reforçar a integração europeia e, em especial, a possibilitar que a União Europeia se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça».
6. Baseando‑se no artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, do Protocolo, o Conselho adoptou, em 20 de Maio de 1999, as Decisões 1999/435/CE e 1999/436/CE, em que define o acervo de Schengen e determina, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que o constituem (8).
7. Do artigo 2.° e do anexo A da segunda das decisões referidas resulta que a base jurídica dos artigos 54.° a 58.° da Convenção são os artigos 34.° UE e 31.° UE, que fazem parte do título VI, denominado «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal».
8. Os referidos artigos da Convenção inserem‑se no capítulo 3, que tem como título a «Aplicação do princípio ne bis in idem», do título III, designado «Polícia e segurança».
9. O artigo 54.° dispõe:
«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida».
10. O artigo 71.°, no capítulo 6 («Estupefacientes») do mesmo título III, tem como base jurídica, além dos referidos artigos 34.° UE e 31.° UE, o artigo 30.° UE. Nos termos dos seus primeiros parágrafos, dispõe o seguinte:
«1. As partes contratantes comprometem‑se, no que diz respeito à cessão directa ou indirecta de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas de qualquer natureza, incluindo o canabis, bem como à detenção destes produtos e substâncias para efeitos de cessão ou exportação, a adoptar, em conformidade com as convenções das Nações Unidas existentes, todas as medidas necessárias à prevenção e à repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
2. As partes contratantes comprometem‑se a prevenir e a reprimir, através de medidas administrativas e penais, a exportação ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, incluindo o canabis, bem como a cessão, o fornecimento e a entrega dos referidos produtos e substâncias, sem prejuízo das disposições pertinentes dos artigos 74.°, 75.° e 76.° (9).
[...]»
B – As Convenções das Nações Unidas
11. O artigo 36.° da Convenção Única sobre Estupefacientes, assinada em Nova Iorque em 30 de Março de 1961, prevê que:
«1. a) Sob reserva das suas disposições constitucionais, cada Parte adoptará as medidas necessárias para que a cultura e a produção, o fabrico, a extracção, a preparação, a detenção, a oferta, a comercialização, a detenção, a oferta, a comercialização, a compra, a venda, a entrega, a qualquer título que seja, a corretagem, a remessa, a expedição em trânsito, o transporte, a importação e a exportação de estupefacientes não conformes às disposições da presente Convenção, ou qualquer outro acto que, na opinião da Parte, seja contrário às disposições da presente Convenção, constituam infracções puníveis quando são cometidas intencionalmente e para que as infracções graves sejam passíveis de um castigo adequado, nomeadamente de penas de prisão ou de outras penas privativas da liberdade.
[…]
2. Sob reserva das disposições constitucionais de cada Parte, do seu sistema jurídico e da sua legislação nacional,
a) i) Cada uma das infracções enumeradas no parágrafo 1 será considerada como uma infracção distinta, caso sejam cometidas em países diferentes;
[…]
3. Nenhuma das disposições do presente artigo prejudicará as disposições de direito penal de qualquer Parte em matéria de jurisdição.
4. As disposições do presente artigo serão limitadas em matéria de competência pela legislação penal de cada uma das Partes.»
12. O conteúdo do artigo 22.° da Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas, celebrada em 1971, é praticamente idêntico ao do artigo 36.° da Convenção de 1961.
III – Matéria de facto no processo principal e questões prejudiciais
13. L. van Esbroeck, cidadão belga, foi condenado em 2 de Outubro de 2000 pelo Bergens tingrett [tribunal de primeira instância de Bergen (Noruega)] a cinco anos de privação da liberdade, como autor de um delito de importação ilegal de produtos estupefacientes, cometido em 1 de Junho de 1999.
14. Uma vez cumprida metade da pena e posto em liberdade condicional, regressou ao seu país, onde em 27 de Novembro de 2002 se iniciou um processo penal, em que era acusado de ter exportado, em 31 de Maio de 1999, as substâncias que introduzira na Noruega no dia seguinte, tendo sido então condenado pelo Hof van Beroep te Antwerpen, correctionele kamer (tribunal correccional de Antuérpia), em um ano de prisão por sentença de 19 de Março de 2003, confirmada em sede de recurso por decisão de 9 de Janeiro de 2004.
15. L. van Esbroeck interpôs recurso em que invocou a violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.° da Convenção.
16. Antes de se pronunciar, o Hof van Cassatie (órgão jurisdicional de recurso) apresentou ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:
«1. Deve o artigo 54.° da Convenção […] ser interpretado no sentido de que o mesmo é aplicável num tribunal belga relativamente a uma pessoa a quem foi instaurado um processo penal na Bélgica, após 25 de Março de 2001, pelos mesmos factos pelos quais esta mesma pessoa foi julgada e condenada por sentença de um tribunal penal norueguês em 2 de Outubro de 2000, tendo cumprido a pena a que foi condenada, na medida em que, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, do Acordo celebrado pelo Conselho da União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega […] [a] Convenção [designadamente o seu artigo 54.°] […] só será executad[a] e aplicad[a] pela Noruega a partir de 25 de Março de 2001?
Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:
2. Deve o artigo 54.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 19 de Junho de 1999, em conjugação com o disposto no artigo 71.° desta mesma Convenção, ser interpretado no sentido de que as infracções de posse para efeitos de exportação e de posse para efeitos de importação, que dizem respeito aos mesmos estupefacientes e substâncias psicotrópicas de qualquer natureza, incluindo canabis, e que foram objecto de processos penais por importação e por exportação em diferentes países signatários da Convenção […] ou nos quais se executa e aplica o acervo de Schengen, devem ser consideradas relativas aos ‘mesmos factos’, na acepção do referido artigo 54.°?»
IV – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça
17. Apresentaram observações escritas no presente processo L. van Esbroeck, a Comissão, os Governos neerlandês, checo, austríaco, polaco e eslovaco, tendo comparecido os representantes dos quatro primeiros na audiência realizada em 22 de Setembro de 2005, ocasião em que apresentaram oralmente as suas alegações.
V – Análise das questões prejudiciais
A – A natureza e o fundamento do princípio ne bis in idem
18. Nas conclusões apresentadas nos processos Gözütok e Brügge, já referidas (n.os 48 e segs.), assinalei que o artigo 54.° da Convenção é uma genuína expressão do princípio que impede que, devido a uma mesma conduta ilícita, uma pessoa seja submetida a mais de um processo punitivo e, eventualmente, punida mais de uma vez, pois esta duplicação de procedimentos e de sanções implica uma reiteração inadmissível no exercício do ius puniendi.
19. Acrescentei então que na base deste princípio encontram‑se dois pilares de todo e qualquer sistema jurídico: a segurança jurídica e a equidade. O infractor deve saber que, mediante a execução da pena, expiou a sua culpa, sem receio de nova punição. No caso de ser absolvido, tem de ter a certeza de que não se instaurará outro processo para o julgar novamente.
20. Além disso, não se pode esquecer que toda e qualquer sanção tem uma dupla finalidade: repressiva e dissuasora. Tem por objectivos punir uma conduta e desincentivar os autores e outros possíveis infractores da prática de actos juridicamente reprováveis. Tem que ser, pois, proporcionada a tais fins, mantendo o equilíbrio necessário para retribuir a conduta punida e, ao mesmo tempo, ser um exemplo. O princípio da equidade, de que a regra da proporcionalidade é um instrumento, impede assim uma acumulação de condenações.
21. A proibição do nebis in idem tem, portanto, dois fundamentos. Por um lado, revela‑se como uma manifestação da tutela judicial do cidadão frente ao ius puniendi, derivada do direito ao processo devido e ao julgamento justo (10), de nível constitucional nalguns Estados‑Membros abrangidos pelo acervo de Schengen (11). Por outro lado, é uma exigência estrutural do sistema jurídico, cuja legitimidade assenta no respeito do caso julgado (12).
22. Este dualismo orientará a nossa resposta às perguntas do Hof van Cassatie, atendendo também ao objectivo do artigo 54.° da Convenção.
B – A finalidade do princípio ne bis in idem no quadro de Schengen
23. A disposição mencionada (13), que reconhece validade internacional ao princípio ne bis in idem, contém uma regra ao serviço da integração europeia, criando um espaço comum de liberdade, segurança e justiça.
24. A supressão gradual dos controlos nas fronteiras constitui um passo inevitável no sentido desse espaço comum, se bem que tal eliminação de obstáculos administrativos beneficia a todos, incluindo os que aproveitam a diminuição da vigilância para expandir as suas actividades ilícitas.
25. Por esse motivo, torna‑se imprescindível um incremento da cooperação, especialmente em matéria de polícia e de segurança, entre os Estados, que se convertem assim em protagonistas da luta contra o crime no conjunto da sociedade europeia, colaborando para a estabilidade da ordem. Mas esta maior contundência na perseguição das infracções deve conseguir‑se sem diminuição das garantias inalienáveis numa sociedade democrática de direito.
26. Para este objectivo contribui o artigo 54.° da Convenção, que, nos termos dos acórdãos Gözütok e Brügge, e Miraglia, já referidos, assegura a liberdade de circulação dos cidadãos na União (n.os 38 e 32, respectivamente), desígnio constante do artigo 2.° UE, primeiro parágrafo, quarto travessão.
C – A aplicação no tempo do artigo 54.° da Convenção (primeira questão prejudicial)
27. O Acervo de Schengen vincula a Bélgica, desde 1 de Maio de 1999, e a Noruega, desde 25 de Março de 2001. A operação de que é acusado L. van Esbroeck desenrolou‑se em 31 de Maio e 1 de Junho de 1999, tendo sido condenado no país nórdico em 2 de Outubro de 2000 como autor de um crime de importação ilegal de substâncias proibidas e, no outro Estado, em 19 de Março de 2003, como responsável pela exportação ilícita de produtos idênticos.
28. Tendo em conta esta sucessão cronológica, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a proibição da dupla incriminação consagrada no artigo 54.° da Convenção, que não estava em vigor na Noruega quando foi proferida a primeira sentença, podia invalidar uma pena posterior na Bélgica.
29. Há que constatar que no Acervo de Schengen não existe nenhuma disposição específica acerca da entrada em vigor do artigo 54.° da Convenção nem sobre os seus efeitos no tempo.
30. A solução da dúvida de interpretação do órgão jurisdicional de reenvio, em que, à excepção do Governo eslovaco, coincidem todos os participantes no processo prejudicial, encontra‑se, sem mais, na essência e nos alicerces do princípio ne bis in idem.
31. Qualificado como um direito individual material destinado a que ninguém, depois de cometer uma infracção e de ter cumprido a sua pena, seja perseguido e corrigido novamente, concretiza‑se quando esses pressupostos se consolidam, momento esse em que nasce, como reverso da mesma medalha, a obrigação do poder público de se abster de qualquer reacção repressiva. A decisão definitiva anterior serve de premissa para a entrada em cena do princípio.
32. Pois bem, a justiça belga instaurou um processo penal contra L. van Esbroeck e puniu‑o, não obstante existir uma sentença condenatória estrangeira, quando o artigo 54.° da Convenção vinculava os dois Estados. Nestas circunstâncias, sugiro que o Tribunal de Justiça esclareça o Hof van Cassatie no sentido de que a disposição referida é aplicável numa situação como a do processo principal.
33. Nas referidas conclusões dos processos Gözütok e Brügge, defendi (n.° 114) que a proibição do princípio ne bis in idem não é de natureza processual, constituindo, pelo contrário, uma garantia fundamental dos cidadãos nos sistemas jurídicos que, como os dos membros da União Europeia, assentam no reconhecimento ao indivíduo de um conjunto de direitos e liberdades perante a acção dos poderes públicos (14). Nesta linha, mesmo que se considerasse que, para efeitos desse princípio, o enquadramento legal do segundo processo é o que estava em vigor quando foi instaurado o primeiro ou, inclusivamente, o que era aplicável ao tempo em que a infracção foi cometida, devia aplicar‑se retroactivamente o enquadramento legal actual por ser mais vantajoso para o arguido, de acordo com um axioma básico de política criminal comummente admitido nos referidos sistemas jurídicos.
34. Entendendo‑se o artigo 54.° da Convenção na sua dimensão processual, a solução é idêntica, pois, salvo disposição expressa em contrário, as regras desse cariz regulam os processos iniciados após a sua entrada em vigor e o processo principal teve início na Bélgica depois de o referido preceito se ter tornado vinculativo nesse país e na Noruega.
D – A definição de idem (a segunda questão prejudicial)
1. Precisões preliminares
35. O órgão jurisdicional de reenvio pede que se defina o alcance da expressão «os mesmos factos» contida no artigo 54.° da Convenção.
36. A tarefa de destrinçar se os factos que estão na origem de um processo penal coincidem com os de outro processo anterior está no âmago da função judicial, para a qual apenas está habilitado o juiz que tem conhecimento imediato da realidade sujeita à sua apreciação, sem prejuízo de recurso numa segunda instância.
37. O Tribunal de Justiça, portanto, tem de resistir à tentação de o suplantar. A sua função restringe‑se a fornecer critérios de interpretação que, atendendo aos fundamentos e à finalidade da norma, indiquem a direcção mais conveniente para alcançar um tratamento uniforme em todo o território da União Europeia.
38. Neste estádio da análise, confesso que uma leitura apressada da segunda proposta do Hof van Cassatie me incitou a embarcar no trabalho de definir os contornos do conceito jurídico indeterminado «os mesmos factos», para fazer decorrer do direito comunitário critérios autónomos no sentido de avançar um critério geral a fim de enfrentar as eventuais hipóteses que surjam no futuro.
39. Esse objectivo, além de presunçoso, torna‑se impossível de atingir, pois a contingência das políticas criminais e a natureza do julgamento penal dificultam as construções de valor universal, de modo que uma abordagem útil em relação a alguns ilícitos ou a certas formas de participação pode ser inadequada para outros (15).
40. Parece mais sensato assumir uma posição intermédia, que, sem se perder nos factos do processo principal, tenha em conta as circunstâncias particulares do caso, a fim de ajudar o órgão jurisdicional nacional com regras destinadas à decisão de causa em conformidade com o espírito da norma cuja interpretação está em causa neste processo prejudicial.
2. A dimensão estritamente factual do conceito
41. Esta aproximação ecléctica está latente na pergunta do Hof van Cassatie quando pretende averiguar se, para efeitos do artigo 54.°, o transporte ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas entre dois países signatários da Convenção constitui «os mesmos factos» ou se, pelo contrário, cabe a cada Estado puni‑lo como uma infracção diferente.
42. A relevância desta questão torna‑se evidente, não tanto pela complexidade jurídica que reveste, mas porque nessa forma de criminalidade se repetem com frequência comportamentos semelhantes. A doutrina anunciara esses problemas (16) e a realidade confirmou‑os (17).
43. Trata‑se, pois, de delimitar a noção do segundo elemento da máxima ne bis in idem, para o que convém situarmo‑nos num triplo ponto de vista: o de considerar os factos, sem mais, o de nos centrarmos na sua qualificação jurídica ou o de salientar os bens protegidos com o tipo penal.
44. Uma aproximação linguística dá suporte à primeira possibilidade. A versão espanhola da Convenção, em que se lê «por los mismos hechos», não oferece dúvidas; os textos alemão, francês, inglês, italiano e neerlandês («wegen derselben Tat», «pour les mêmes faits», «for the same acts», «per i medesimi fatti» e «wegens dezelfde feiten», respectivamente) também não se prestam a polémica, pois todos aludem ao idem factum, ao conjunto de acontecimentos que se julgam como fenómeno histórico que o juiz há‑de apreciar, retirando as consequências jurídicas relevantes.
45. Esta posição é reforçada tendo em conta o fundamento e o sentido desta garantia básica dos cidadãos: a livre circulação no espaço Schengen exige que o responsável de um acto saiba que, uma vez condenado e cumprida a pena ou, se for caso disso, uma vez absolvido definitivamente num Estado‑Membro, pode deslocar‑se nesse território sem medo de ser perseguido noutro Estado, com base em que aquele comportamento corresponde no seu ordenamento a uma infracção distinta. Se se admitisse esta abordagem, o alcance do artigo 2.° UE, primeiro parágrafo, quarto travessão, tornar‑se‑ia ilusório e erguer‑se‑iam no espaço interno tantos obstáculos a essa liberdade quantos os sistemas penais existentes, os quais, além disso, apesar dos desejos harmonizadores das decisões‑quadro aprovadas pelo Conselho da União, apresentam uma forte marca nacional.
46. Pelas mesmas razões, há que afastar também o critério do bem jurídico protegido, porque se encontra tão vinculado às opções legítimas das políticas criminais nacionais que permitiria punir repetidamente uma mesma conduta, frustrando a aspiração do artigo 54.° da Convenção.
47. Se, em lugar dos simples factos, se ponderassem as violações da lei ou os valores que se protegem com a sua proibição, o princípio ne bis in idem nunca operaria no âmbito internacional (18).
48. Essa circunstância explica provavelmente que, ao contrário do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em que se impede a dupla punição por uma mesma «infracção» (artigo 14.°, n.° 7), e do Protocolo n.° 7 à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais que, com o mesmo propósito, se refere à «infracção» (artigo 4.°) (19), que tratam ambos da dimensão interna do princípio, outros acordos, que abordam a sua dimensão internacional, se situem na posição estritamente factual (20). A Iniciativa da República Helénica tendo em vista a adopção de uma decisão‑quadro do Conselho relativa à aplicação do princípio ne bis in idem (21) assumiu um critério semelhante, definindo o idem como uma «segunda infracção penal fundada exclusivamente nos mesmos factos, ou em factos substancialmente idênticos, independentemente da sua qualificação jurídica» [artigo 1.°, alínea e)].
49. Por outro lado, neste processo há que referir que o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Justiça belgas divulgaram em 10 de Dezembro de 1998 uma circular (22), esclarecendo que, em relação ao artigo 54.° da Convenção, não se exige a identidade de qualificações jurídicas, mas apenas dos factos (23). Um tribunal belga seguiu esse critério (24).
3. O caso particular do processo principal
50. As reflexões expostas são reforçadas quando se projectam sobre as circunstâncias do caso controvertido.
51. É indiscutível que, de um ponto de vista material, o facto pelo qual L. van Esbroeck foi punido na Noruega coincide com a que veio a constituir a acusação e a condenação na Bélgica: o transporte clandestino de um país para outro de uma quantidade de drogas entre 31 de Maio e 1 de Junho de 1999. Essa conduta recebe uma qualificação jurídica diferente em cada Estado: na Bélgica, exportação, e na Noruega, importação das referidas substâncias ilícitas. Se o idem se considerar exclusivamente factual, L. van Esbroeck tem a protecção do artigo 54.° da Convenção, ao passo que, se tiver uma dimensão jurídica, a dupla punição torna‑se possível.
52. Esta opção parece‑me inaceitável, por três ordens de razões. Desde logo, conduz a uma solução restritiva, incompatível com a força expansiva própria das garantias básicas do indivíduo que protegem a sua dignidade. Além disso, opõe‑se frontalmente ao objectivo declarado do artigo 54.° da Convenção de assegurar a livre circulação de cidadãos, ao deixar pender sobre quem cumpriu a sua pena a espada de Dâmocles de novas punições se passar as fronteiras do ordenamento onde a expiou. Finalmente, é irónico falar de importação e de exportação num território regido por um ordenamento jurídico que, precisamente, tende, por essência, a derrubar as fronteiras, tanto para as pessoas como para as mercadorias (25).
4. O artigo 71.° da Convenção
53. Esta disposição obriga os Estados signatários a tomarem as medidas necessárias para se reprimir o tráfico ilegal de drogas, em conformidade com os pactos das Nações Unidas, designadamente, as Convenções sobre estupefacientes e substâncias psicotrópicas, que obrigam a considerar infracções diferentes as condutas infractoras se forem cometidas em países diferentes (artigos 36.° e 22.°, respectivamente).
54. Aparentemente, as disposições referidas contradizem a exposição anterior destas conclusões, mas uma aproximação cuidadosa ao seu conteúdo permite indicar que, longe de as pôr em causa, as reafirmam.
55. O artigo 71.° pretende que os Estados não cedam, no quadro de Schengen, na luta contra essa manifestação de criminalidade e, para esse fim, renova a sua vinculação às Convenções sectoriais das Nações Unidas. Tem alcance geral e, portanto, não implica um limite específico ao artigo 54.°
56. Com base nesta premissa, os referidos acordos das Nações Unidas têm de ser analisados no seu contexto histórico e normativo, pois os seus artigos 22.° e 36.°, quando obrigam as partes contratantes a tomar medidas para reprimir as condutas que sobrevêm nesse comércio ilegal, não o fazem de modo incondicional, deixando a salvo as limitações impostas pelos seus respectivos sistemas jurídicos. O artigo 54.° da Convenção faz parte do direito próprio dos Estados que o assinaram, pelo que aquelas disposições não podem afectar a sua eficácia.
57. Também não nos podemos esquecer que a referidas Convenções das Nações Unidas surgiram para lutar, a nível mundial, contra o negócio ilícito de drogas, estupefacientes e substâncias psicotrópicas, uma vez que não existia uma resposta inequívoca em todos os países. Esta visão confere aos artigos 22.° e 36.° referidos o seu verdadeiro significado, de modo que, tendo os factos sido praticados em vários Estados signatários, se possa persegui‑los e puni‑los em qualquer um deles, com o objectivo de que, perante o eventual enfraquecimento de alguns países, os autores não fiquem impunes. Ora, esta abordagem não tem sentido no espaço Schengen, fundado, tal como afirmei nas conclusões dos processos Gözütok e Brügge (n.° 124) e o Tribunal de Justiça reiterou no acórdão de 11 de Fevereiro de 2003 (n.° 33), na confiança recíproca dos Estados‑Membros nos seus sistemas de justiça penal (26).
58. Em suma, os referidos artigos tratam de impedir a despenalização material de uma conduta, mas, uma vez punida esta, nos ordenamentos que, como o Acervo de Schengen, admitem a regra ne bis in idem, torna‑se impossível uma nova punição. Não existe, pois, contradição entre os dois sistemas normativos.
59. Assim, em conformidade com o artigo 54.°, conjugado com o artigo 71.° da Convenção, constitui «os mesmos factos», para efeitos do artigo 54.°, o transporte dos mesmos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de qualquer tipo, incluindo o canabis, entre dois Estados signatários da Convenção ou nos quais se executa e aplica o Acervo de Schengen, independentemente da qualificação jurídica que receba nos respectivos ordenamentos jurídicos.
VI – Conclusão
60. À luz das reflexões anteriores, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda às questões suscitadas pelo Hof van Cassatie van België que:
«1) O artigo 54.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen aplica‑se, ratione temporis, quando um processo penal por factos já julgados tem início depois da sua entrada em vigor , sendo irrelevante a data em que se realizou o primeiro julgamento.
2) Em conformidade com o artigo 54.° referido, conjugado com o artigo 71.° da mesma Convenção, é considerado ‘os mesmos factos’ o transporte dos mesmos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de qualquer tipo, incluindo o canabis, entre dois Estados signatários da Convenção ou dois países nos quais se executa e aplica o Acervo de Schengen, independentemente da qualificação jurídica que tal conduta mereça nos respectivos ordenamentos jurídicos.»