CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
JÁN MAZÁK
apresentadas em 16 de Dezembro de 2010 (1)
Processo C‑360/09
Pfleiderer AG
contra
Bundeskartellamt
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgericht Bonn (Alemanha)]
«Concorrência – Cartel – Acção cível de indemnização – Requerimento de acesso ao pedido de clemência e a outros documentos e informações voluntariamente apresentados pelos requerentes de clemência a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência – Possíveis efeitos negativos no funcionamento da Rede Europeia da Concorrência (European Competition Network – ECN) e na aplicação do direito da concorrência pelos poderes públicos»
I – Introdução
1. No presente pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência pode permitir o acesso, por parte de um terceiro lesado, a informação voluntariamente apresentada pelos membros de um cartel ao abrigo do regime de clemência dessa autoridade, para efeitos da formulação, por parte daquele terceiro, de um pedido cível de indemnização relativo a danos alegadamente causados pelo cartel; e, em caso de resposta afirmativa, em que medida pode fazê‑lo. É solicitado ao Tribunal que analise, em especial, se o acesso a tal informação poderá prejudicar a aplicação efectiva do direito da concorrência da União Europeia (UE) ou o sistema de cooperação e de intercâmbio de informação entre a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência, nos termos dos artigos 11.° e 12.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (2).
2. Na minha opinião, o pedido de decisão prejudicial exige que o Tribunal de Justiça pondere, em especial, os interesses possivelmente divergentes em presença, a saber, o de assegurar a eficácia dos regimes de clemência estabelecidos com o objectivo de detectar, punir e, em última análise, dissuadir a formação de cartéis ilegais nos termos do artigo 101.° TFUE e o direito de qualquer indivíduo a pedir uma indemnização pelos danos causados por tais cartéis.
3. O Tribunal deve assim, no presente caso, avaliar os interesses aparentemente conflituantes de assegurar a aplicação eficaz do artigo 101.° TFUE e a possibilidade de um terceiro alegadamente lesado ter acesso a informação (3), que pode ser apresentada como prova numa acção cível de indemnização e que, por conseguinte, pode auxiliar essa parte no exercício do seu direito de acção, num processo cível baseado na violação do artigo 101.° TFUE. O direito fundamental de acção nas instâncias cíveis é garantido, na minha opinião, pelo artigo 47.°, conjugado com o artigo 51.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a «Carta») (4), interpretados à luz do artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a «CEDH») (5), sobre o direito a um processo equitativo, e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direito do Homem desenvolvida com base neste artigo.
II – O processo principal e a questão prejudicial
4. Em Janeiro de 2008, o Bundeskartellamt da República Federal da Alemanha (autoridade de concorrência federal) proferiu uma decisão, entretanto já definitiva e executória, que, com fundamento no artigo 81.° CE (actualmente, o artigo 101.° TFUE), aplicou coimas no valor total de 62 milhões de euros aos três maiores produtores europeus de papéis decorativos (papéis especiais para o tratamento de superfícies de madeira transformada) e a cinco pessoas singulares responsáveis, com fundamento na existência de acordos de fixação de preços e de limitação da produção. As referidas decisões basearam‑se, designadamente, em informações e documentos que o Bundeskartellamt obteve no âmbito do seu regime de clemência.
5. A Pfleiderer AG (a seguir «Pfleiderer») é uma empresa adquirente de papéis decorativos e é uma das três principais produtoras, a nível mundial, de madeira transformada, de produtos revestidos e de revestimentos de soalho laminados. Alegou ter comprado nos três anos anteriores, às produtoras de papel decorativo arguidas, mercadoria de valor superior a 60 milhões de euros. A Pfleiderer, tendo em vista a preparação de uma acção de indemnização civil, requereu ao Bundeskartellamt, por carta datada de 26 de Fevereiro de 2008, que lhe fosse autorizada a consulta, sem limitações, dos autos do processo de contra‑ordenação em matéria de concorrência relativo ao «papel decorativo».
6. Depois de ter recebido cópias das três decisões de aplicação de coimas, sem a identificação dos intervenientes, e, uma lista dos meios de prova obtidos durante a investigação, a Pfleiderer solicitou expressamente, através de um segundo requerimento, que lhe fosse autorizada a consulta dos autos na parte relativa aos pedidos de clemência, aos documentos voluntariamente fornecidos pelas partes que cooperaram e aos meios de prova confidenciais. Por carta de 14 de Outubro de 2008, o Bundeskartellamt comunicou à Pfleiderer ser sua intenção deferir apenas parcialmente o requerimento e limitar a consulta dos autos a uma compilação que não inclua segredos comerciais ou industriais, documentos internos, ou outros documentos previstos no número 22 do regime de clemência (6).
7. A Pfleiderer recorreu desta decisão para o Amtsgericht Bonn (Tribunal Local).
8. Em 3 de Fevereiro de 2009, o Amtsgericht Bonn começou por proferir uma decisão em que, no essencial, reconhecia razão à Pfleiderer. O Amtsgericht afirmou que, nos termos do § 406e do Strafprozessordnung (Código de Processo Penal alemão, a seguir «StPO») (7), relativo ao direito do lesado à informação em processo penal, que se aplica, com as necessárias adaptações, ex vi do § 46, n.os 1 e 3, quarta frase, última parte, da Gesetz über Ordnungswidrigkeiten (lei alemã das contra‑ordenações, a seguir «OWiG»), a processos de contra‑ordenação (em matéria de concorrência), o lesado pode, através de advogado, consultar os autos e meios de prova à guarda das autoridades, desde que prove a existência de um interesse legítimo no conhecimento desses elementos. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a Pfleiderer deve ser considerada lesada, uma vez que se deve pressupor que pagou preços artificialmente elevados induzidos pelo cartel pelas mercadorias que adquiriu às empresas nele participantes. Também existe um interesse legítimo pelo facto de o lesado pretender, através da consulta dos autos, obter elementos que lhe permitam preparar uma acção cível de indemnização. A consulta dos autos também deve ser autorizada em relação à documentação voluntariamente fornecida pelos requerentes de clemência e que corresponda às informações a que se refere o n.° 22 do regime de clemência do Bundeskartellamt. Porém, o direito à informação já sofre uma limitação no que toca a segredos comerciais ou industriais e a documentos internos (isto é, apontamentos das autoridades ou correspondência no âmbito da Rede Europeia da Concorrência – REC –, tendo em vista a distribuição do processo). A exacta abrangência deste direito deve ser ponderada casuisticamente e está limitada aos elementos dos autos necessários à concretização dos pedidos de indemnização.
9. No seguimento de uma arguição de irregularidade, o Amtsgericht Bonn anulou o posterior à decisão contestada. Embora mantenha o entendimento acima exposto, o Amtsgericht considera que a decisão que tem em vista proferir declarará implicitamente a incompatibilidade da redacção actual do regime de clemência do Bundeskartellamt com o § 406e do StPO e com o § 46, n.° 1, da OWiG. O Amtsgericht faz referência, em particular, ao número 22 do regime de clemência do Bundeskartellamt.
10. O órgão jurisdicional de reenvio entende, porém, que a decisão que tem em vista proferir pode conflituar com os artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003, bem como com o artigo 10.°, segundo parágrafo, CE (que corresponde actualmente ao artigo 4.°, n.° 3 TUE), em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003 impõem à Comissão e às autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência o dever de actuarem em estreita cooperação e prevêem o intercâmbio de informações, incluindo as de natureza confidencial, para efeitos de utilização como meios de prova em processos destinados à aplicação dos artigos 81.° e 82.° CE (actualmente, os artigos 101.° e 102.° TFUE). A eficácia e a funcionalidade destas disposições podem implicar que em processos de contra‑ordenação em matéria de concorrência seja necessário recusar aos terceiros lesados a consulta dos pedidos de clemência e dos documentos fornecidos voluntariamente pelas partes que cooperaram. Se o Bundeskartellamt fosse obrigado a reduzir este nível de protecção e a permitir aos terceiros a consulta dos autos na parte relativa aos pedidos de clemência, não aplicando o n.° 22 do seu regime de clemência, daí adviriam duas consequências graves.
11. Por um lado, a Comissão deixaria de disponibilizar ao Bundeskartellamt informações com origem em pedidos de clemência. Também os demais membros da REC deixariam de lhe comunicar informações desse tipo, visto que as demais autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência previram a protecção contra o acesso do público nos respectivos regimes nacionais de clemência (8), de acordo com o modelo REC. Deste modo, não apenas se perturbaria significativamente a cooperação no âmbito da REC, como também deixaria de ser possível haver uma distribuição eficiente dos processos dentro dessa rede, pondo em causa toda a sua funcionalidade.
12. Por outro lado, existiria o perigo de as empresas se absterem de colaborar no âmbito do regime de clemência para as partes que cooperam, ficando então cartéis por denunciar, que permaneceriam ocultos porque o hipotético requerente de clemência recearia que os documentos e as informações que voluntariamente fornecera viessem a ser directamente utilizados contra si no âmbito de acções cíveis de indemnização. Neste caso, o requerente de clemência ficaria numa posição ainda mais desfavorável do que a dos membros do cartel que não cooperassem com as autoridades responsáveis em matéria de concorrência.
13. Face a estas dúvidas, o Amtsgericht decidiu suspender a instância e solicitar ao Tribunal que se pronunciasse, a título prejudicial, sobre a seguinte questão:
«As regras comunitárias em matéria de concorrência – em especial os artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003 e o artigo 10.°, segundo parágrafo, CE, em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE – devem ser interpretadas no sentido de que, para formular um pedido cível de indemnização, um lesado por um cartel não pode ter acesso aos pedidos de clemência e a outros documentos e informações voluntariamente apresentados pelos requerentes de clemência a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, ao abrigo de um programa nacional de clemência, no âmbito de um processo de contra‑ordenação destinado (designadamente) à aplicação do artigo 81.° CE?»
III – Tramitação no Tribunal de Justiça
14. A Pfleiderer, a Firma Felix Schoeller Holding GmbH & Co. KG e a Firma Technocell Dekor GmbH & Co. KG, a Arjo Wiggins Deutschland GmbH, os governos belga, checo, alemão, holandês, cipriota, espanhol e italiano, a Comissão e o Órgão de Fiscalização da EFTA apresentaram alegações escritas. Numa audiência realizada em 14 de Setembro de 2010, os governos belga, cipriota e holandês não apresentaram produziram alegações. A Munksjö Paper GmbH apresentou alegações na audiência.
15. A Pfleiderer entende que o objecto do processo principal é uma disputa puramente nacional, baseada na lei processual alemã. Concorda com a afirmação feita pelo Amtsgericht de que a recusa de acesso à informação de clemência com base no n.° 22 do regime de clemência do Bundeskartellamt é incompatível com o § 406e do StPO. A Pfleiderer entende que a questão colocada pelo Amtsgericht deve obter resposta negativa, uma vez que a legislação da UE sobre esta matéria não é suficientemente específica e os outros instrumentos interpretativos possíveis, tal como o modelo de regime da REC, carecem de rigor e do necessário carácter vinculativo.
16. A sociedade Felix Schoeller Holding GmbH & Co. KG e a sociedade Technocell Dekor GmbH & Co. KG, a Arjo Wiggins Deutschland GmbH, os Governos belga, checo, alemão, holandês, cipriota, espanhol e italiano entendem, no essencial, que não deve ser concedido a um lesado por um cartel, para o efeito de formular um pedido cível de indemnização, o acesso aos pedidos de clemência e a outros documentos e informações voluntariamente apresentados pelos requerentes de clemência a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, ao abrigo de um programa nacional de clemência, no âmbito de um processo de contra‑ordenação destinado à condenação no pagamento de coimas, (designadamente) por força da aplicação do artigo 101.° TFUE.
17. A Comissão considera, essencialmente, que deve ser feita uma distinção entre, por um lado, as declarações voluntárias dos requerentes de clemência sobre o seu conhecimento do cartel e o papel que nele desempenham, para os efeitos de submissão a um regime nacional de clemência (9), conhecidas como «declarações da empresa», e, por outro lado, os restantes documentos preexistentes e apresentados pelo requerente de clemência. Entende que não deve ser concedido aos terceiros lesados por um cartel o acesso às declarações da empresa requerente para efeitos da formulação de pedidos cíveis de indemnização, uma vez que o requerente de clemência ficaria numa posição mais desfavorável do que a dos demais membros do cartel, o que comprometeria a eficácia do regime de clemência. A Comissão alega que o acesso a outros documentos apresentados pelo requerente de clemência deverá ser avaliado casuisticamente e estabelece uma analogia com a sua prática em relação à transmissão de informações aos tribunais nacionais de informação, nos termos do artigo 15.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 (10).
18. O Órgão de Fiscalização da EFTA, por seu turno, entende que, uma vez que a maior parte dos regimes de clemência aplicados na UE prevê um procedimento oral (11) concebido para impedir que as declarações das empresas sejam reveladas em acções civis de indemnização, o direito da concorrência da UE não proíbe uma legislação nacional que disponha que um Estado‑Membro concede o acesso aos documentos do processo de clemência detidos pela sua autoridade responsável em matéria de concorrência a um potencial autor numa acção civil de indemnização contra participantes num cartel secreto e ilegal.
IV – Observações preliminares
19. Em minha opinião, convém abordar uma série de assuntos relevantes, que emergem da decisão de reenvio e que estão relacionados com o processo principal. Por um lado, o acesso à informação em questão no processo principal não está a ser solicitado por um membro do público com base nas regras de transparência nacionais. Pelo contrário, resulta da decisão de reenvio que a Pfleiderer goza, em princípio, de direitos específicos nos termos da lei de processo alemã, relativos ao acesso a informação detida pelo Bundeskartellamt sobre o cartel, uma vez que a Pfleiderer é considerada um terceiro que se presume lesado pelo cartel e tem um interesse legítimo em obter tal acesso para efeitos de preparação de um pedido cível de indemnização. Nestas circunstâncias, o acesso é concedido por um tribunal nos termos do §406e do StPO a um advogado, e não à Pfleiderer em si. Assim, qualquer analogia com as regras sobre a transparência e o acesso público a documentos, tal como estabelecidas, por exemplo, no Regulamento (CE) n.° 1049/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Maio de 2001, relativo ao acesso do público aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão (12), e a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre este assunto será inapropriada uma vez que iria limitar um direito mais alargado de acesso à prova, do qual goza, ao abrigo do disposto no §406e do StPO, um terceiro lesado como a Pfleiderer, para os efeitos de um pedido cível de indemnização perante os tribunais.
20. Por outro lado, a investigação da violação do direito da concorrência em causa no processo principal foi concluída com a decisão (que já não é susceptível de recurso) de aplicação de uma coima nos termos, designadamente, do artigo 101.° TFUE. Nestas circunstâncias, o acesso à informação não pode prejudicar a investigação daquela infracção em particular, nem influenciar o seu resultado. Deve, assim, distinguir‑se entre o presente caso e aqueles casos em que um terceiro lesado solicita o acesso à informação detida por uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência antes da decisão final desta autoridade em conformidade com o direito da concorrência da UE. No entanto, permanece a questão de saber se o acesso ao tipo de informação em questão, ou seja, nomeadamente, a informação e os documentos voluntariamente apresentados no âmbito de um regime de clemência, pode, em geral, prejudicar o processo de investigação relativo a violações do artigo 101.° TFUE e, por conseguinte, comprometer a aplicação de tais disposições por parte do Bundeskartellamt e de outras autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência, em conformidade com os poderes e deveres conferidos pelo Regulamento n.° 1/2003.
21. Por último, a questão objecto de reenvio pelo Amtsgericht centra‑se no acesso à informação e aos documentos apresentados por um requerente de clemência. Da decisão de reenvio decorre que o Amtsgericht defendeu que o direito de acesso a segredos comerciais e a documentos internos (13) é limitado. O Amtsgericht mantém a sua decisão sobre este assunto. Nesta medida, analisarei nas presentes conclusões a questão do acesso à informação e aos documentos apresentados por um requerente de clemência, partindo do princípio que estes não contêm segredos comerciais nem constituem documentos internos.
V – Apreciação
22. Através do presente pedido de decisão prejudicial, o Amtsgericht procura obter esclarecimentos sobre o impacto que o acesso de um terceiro lesado (14) à informação comunicada por um requerente de clemência a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência pode ter no sistema de cooperação e de intercâmbio de informações estabelecido nos artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003.
23. O Regulamento n.° 1/2003 atribui poderes tanto à Comissão como às autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência (15) para aplicar os artigos 101.° e 102.° TFUE (16). Embora os poderes da Comissão e das autoridades dos Estados‑Membros para a aplicação dos artigos 101.° e 102.° TFUE não coincidam totalmente, eles sobrepõem‑se consideravelmente, dando origem a um sistema de aplicação descentralizado de competências paralelas. Nos termos do Regulamento n.° 1/2003, a Comissão tem poderes específicos e detalhados com vista à aplicação dos artigos 101.° e 102.° TFUE. Pelo contrário, as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência e os tribunais nacionais (17) aplicam os artigos 101.° e 102.° TFUE maioritariamente em conformidade com os seus ordenamentos jurídicos nacionais (18), por força do princípio da autonomia processual, garantida desde que respeitem os princípios da equivalência (19) e da eficácia (20). Creio pois, que em conformidade, designadamente, com o artigo 4.°, n.° 3 TUE e o Regulamento n.° 1/2003 (21), os Estados‑Membros devem assegurar a aplicação efectiva dos artigos 101.° e 102.° TFUE nos seus territórios (22).
24. Com vista a limitar a potencial aplicação divergente por parte dos poderes paralelos, e não obstante a autonomia de que gozam, em princípio, as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência e os tribunais, o capítulo IV do Regulamento n.° 1/2003, intitulado «Cooperação», estabelece várias regras de procedimento para assegurar que o sistema de poderes paralelos funciona de forma coordenada e eficaz. A Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência formam uma rede (23) de autoridades públicas que aplicam o direito da concorrência da UE em estreita cooperação (24). O referido capítulo deu origem a um sistema (25) entre os membros da REC que dispõe, designadamente, sobre a divisão de trabalho e a distribuição de processos entre autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência e a Comissão, e sobre a aplicação coerente do direito da concorrência da UE. Creio, pois, que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência devem agir por forma a assegurar o cumprimento efectivo das suas obrigações de cooperação nos termos do Regulamento n.° 1/2003.
25. Nem o Regulamento n.° 1/2003 nem a Comunicação de Cooperação contêm qualquer disposição relativa à concessão de acesso, a um terceiro, à informação voluntariamente apresentada por um requerente de clemência (26). No entanto, o número 30 do Modelo de Regime da REC dispõe que: «os apontamentos de declarações orais prestadas no âmbito do presente regime apenas poderão ser trocados entre [Autoridades da Concorrência] nos termos do artigo 12.° do Regulamento n.° 1/2003 se estiverem preenchidas as condições estabelecidas na [Comunicação de Cooperação] e desde que a protecção relativa à divulgação concedida pela autoridade receptora [Autoridade da Concorrência] seja equivalente àquela conferida pela autoridade transmitente [Autoridade da Concorrência]» (27).
26. O Modelo de Regime da REC constitui um instrumento não vinculativo que visa estabelecer de facto ou facilitar a harmonização dos regimes de clemência das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência, por forma a evitar que os potenciais requerentes não se sintam desencorajados em virtude das discrepâncias entre os regimes de clemência no âmbito da REC. O Modelo de Regime da REC estabelece, assim, o tipo de tratamento que o requerente pode esperar em qualquer jurisdição pertencente à REC, uma vez efectuada a harmonização de todos os regimes. O modelo da REC tem ainda o objectivo de reduzir o encargo associado às notificações múltiplas. Não obstante a natureza não legislativa deste instrumento, bem assim como de outros instrumentos, como a Comunicação de Cooperação e a Declaração Conjunta, os seus efeitos práticos não podem ser ignorados, em especial no que toca ao funcionamento das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência e da Comissão. Nesta medida, é de lamentar que documentos tais como o Modelo de Regime da REC e a Declaração Conjunta não sejam publicados no Jornal Oficial da União Europeia, de modo a garantir transparência e posteridade.
27. Entendo, pois, especialmente em face ao número 30 do Modelo de Regime da REC, e na ausência de legislação da UE sobre o assunto, que as diferentes normas de concessão de acesso a terceiros por parte das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência à informação voluntariamente apresentada por requerentes de clemência, poderá potencialmente afectar as disposições de cooperação estabelecidas pelo Regulamento n.° 1/2003.
28. Resulta do processo apresentado no Tribunal, e dependendo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que a autoridade sueca responsável em matéria de concorrência cooperou com o Bundeskartellamt na investigação da violação em causa. Contudo, não existe qualquer indicação de que qualquer outra autoridade, para além do Bundeskartellamt, pudesse ser competente para a aplicação do artigo 101.° TFUE relativamente ao cartel em questão, que pudesse levar à multiplicação de processos perante autoridades diferentes e à possibilidade de reatribuição nos termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 1/2003 (28). Assim, pode haver a tendência para surgirem processos múltiplos perante autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência em casos em que os membros de um cartel requerem clemência e, na falta de um procedimento único reforçado («one‑stop‑shop») de clemência nos termos do direito da UE ou de um sistema totalmente harmonizado de regimes de clemência extensível a toda a UE (29), aquelas autoridades podem ter necessidade de apresentar o pedido a todas as autoridades competentes para aplicação do artigo 101.° TFUE em relação à infracção em causa. No entanto, não há qualquer prova de que sejam estas as circunstâncias no processo principal. É de destacar, igualmente, que o órgão jurisdicional de reenvio referiu expressamente na decisão de reenvio que a Pfleiderer não requereu o acesso à informação ou aos documentos detidos pelo Bundeskartellamt e a este apresentados no âmbito do artigo 12.° do Regulamento n.° 1/2003 (30).
29. Parece, assim, que os artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003 não são relevantes para os efeitos do presente processo e que a parte da questão prejudicial que diz respeito a estas disposições é, conforme defendido pela Comissão nas suas considerações (31) hipotética (32). Creio que, na falta de indicação de quaisquer factos concretos na decisão de reenvio, relativamente à questão da cooperação ao abrigo do capítulo IV do Regulamento n.° 1/2003, qualquer decisão sobre esta matéria no presente processo seria meramente especulativa.
30. O órgão jurisdicional de reenvio questiona igualmente se a eficácia da aplicação do artigo 101.° TFUE por parte da autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência pode ser posta em perigo se for autorizada a um terceiro lesado, para efeitos de preparação de pedido cível de indemnização, a consulta dos autos em relação a pedidos de clemência ou a documentos fornecidos voluntariamente por um requerente de clemência.
31. É evidente que tanto a Comissão como as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência desempenham um papel importante na aplicação do artigo 101.° TFUE no que toca aos cartéis ilegais. Dada a natureza secreta dos cartéis proibidos pelo artigo 101.° TFUE, a detecção, a investigação e a consequente proibição e punição destas infracções que, muitas vezes, se situam entre as infracções mais graves do direito da concorrência (33) devido aos seus efeitos perniciosos na estrutura da concorrência, tem sido difícil tanto para a Comissão como para as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência (34). Naquele que eu considero ser um expediente prático (35), a Comissão pôs em prática, desde 1996, com a adopção da sua Comunicação sobre a não aplicação ou a redução de coimas nos processos relativos a acordos, decisões e práticas concertadas (36), um regime de clemência que recompensa a colaboração prestada por membros do cartel que leve à detecção e punição de cartéis com imunidade e redução das coimas. Decorre claramente da Comunicação da Comissão relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis, de 2006 (37), que a Comissão considera que: «para os consumidores e os cidadãos em geral, a detecção e sanção dos cartéis secretos reveste‑se de maior interesse do que a aplicação de coimas às empresas que permitem à Comissão detectar e proibir essas práticas. [...] A Comissão considera que a colaboração de uma empresa para a detecção da existência de um cartel possui um valor intrínseco» (38). Creio que o benefício de um regime deste tipo vai além da detecção e punição de violações individualmente consideradas, conduzindo a um clima geral de incerteza entre os potenciais membros de cartéis, o que pode evitar a formação de novos cartéis.
32. Assim, a Comunicação de Clemência estabelece, de forma transparente, as normas e procedimentos que permitem aos requerentes de clemência prever o tratamento que receberão por parte da Comissão. Creio que a transparência e previsibilidade são necessárias para o eficaz funcionamento do regime de clemência da comissão, uma vez que a incerteza relativamente ao tratamento por parte da Comissão poderia desencorajar potenciais requerentes. Acresce que o Tribunal considerou que uma redução da coima a título de cooperação durante o procedimento administrativo só se justifica se o comportamento da empresa em causa tiver permitido à Comissão detectar a existência de uma infracção com menos dificuldade e, eventualmente, pôr‑lhe termo (39). Uma empresa que colabora com a Comissão nos termos da Comunicação de Clemência cria uma legítima expectativa de poder beneficiar de uma determinada percentagem de redução (40). Além disso, nos termos da Comunicação de Clemência, a Comissão, em princípio, não concede o acesso às declarações da empresa requerente (41). Por outro lado, a Comissão aceita que as declarações da empresa (42) possam ser prestadas oralmente (43). A Comunicação de Clemência não dispõe, no entanto, quanto à recusa do acesso de terceiros aos documentos preexistentes (44) apresentados por um requerente de clemência nos termos daquela Comunicação.
33. Não resulta do direito da UE nenhuma obrigação expressa para as autoridades do Estados‑Membros no sentido de estabelecerem um regime de clemência relativo aos cartéis que violam o disposto no artigo 101.° TFUE, e o direito da UE não regula a questão do acesso ao processo de clemência junto daquelas autoridades. No entanto, não obstante a inexistência, nos termos da lei da UE, de uma obrigação das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência de estabelecerem um regime de clemência relativo aos cartéis ilegais e o facto de os Estados‑Membros gozarem de autonomia processual a este respeito, decorre do processo que a esmagadora maioria das autoridades responsáveis em matéria de concorrência nos 27 Estados‑Membros, incluindo o Bundeskartellamt, aplicam actualmente alguma forma de regime de clemência. A decisão de reenvio afirma que o regime de clemência do Bundeskartellamt é baseado no Modelo de Regime da REC. Uma vez que o Bundeskartellamt tomou a iniciativa de aplicar um regime de clemência, creio que, dependendo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, esta autoridade responsável em matéria de concorrência considerou que tal regime era necessário para assegurar a aplicação eficaz do artigo 101.° TFUE, entre outros (45). Com efeito, na decisão de reenvio, o Amtsgericht afirma que «o regime de clemência implementado pelo Bundeskartellamt em 2000, revela bem que constitui um instrumento extremamente eficaz no combate aos cartéis». Entre 2001 e 2008, foram apresentados, no total, 210 pedidos de clemência, no âmbito de 69 processos distintos» (46).
34. Creio que, sempre que um Estado‑Membro, através da(s) sua(s) autoridade(s) responsável(is) em matéria de concorrência, adoptar um regime de clemência com vista à aplicação eficaz do artigo 101.° TFUE, deve, não obstante a autonomia processual de que goza na aplicação da referida disposição, assegurar que o regime é criado e aplicado de forma eficaz.
35. No que toca à relação entre os regimes de clemência e as acções civis de indemnização, a Comunicação de Clemência, embora explique que a Comissão exerce o seu poder discricionário na aplicação de sanções aos membros de cartéis que colaboram, afirma expressamente que o facto de ser concedida imunidade em matéria de coimas ou uma redução do seu montante não protege a empresa das consequências de direito civil da sua participação numa infracção ao artigo 101.° TFUE (47). Acresce que o número 24 do regime de clemência do Bundeskartellamt, relativo à imunidade, dispõe que: «esta comunicação não produz qualquer efeito relativamente à aplicação do direito da concorrência por via do direito civil.» (48)
36. Com efeito, o direito dos lesados de formular pedidos de indemnização por danos causados pela violação dos artigos 101.° e 102.° TFUE foi claramente sublinhado pelo Tribunal. Assim, é jurisprudência assente que os artigos 101.° e 102.° TFUE produzem efeitos directos nas relações entre particulares e criam na sua esfera jurídica direitos (49) que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger (50). Embora as regras relativas às acções civis de indemnização por violação dos artigos 101.° e 102.° TFUE não tenham ainda sido harmonizadas ao nível da UE, o Tribunal sustentou que a plena eficácia do artigo 101.° TFUE e, em particular, o efeito útil da proibição enunciada no seu número 1, seriam postos em causa se não fosse possível a qualquer pessoa reclamar a reparação do prejuízo que lhe houvesse sido causado por um contrato ou por um comportamento susceptível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (51). Resulta do exposto que qualquer pessoa tem o direito de pedir a reparação do dano sofrido quando existe um nexo de causalidade entre o referido dano e um acordo ou uma prática proibida pelo artigo 101.° TFUE (52). Em Courage e Crehan, o Tribunal enfatizou igualmente o efeito desencorajador das acções civis de indemnização. A esse respeito, o Tribunal afirmou que um direito deste tipo reforça o carácter operacional das regras comunitárias da concorrência e desencoraja acordos ou práticas, frequentemente disfarçados, capazes de restringir ou de falsear o jogo da concorrência. Nesta perspectiva, as acções de indemnização por perdas e danos junto dos órgãos jurisdicionais nacionais são susceptíveis de contribuir substancialmente para a manutenção de uma concorrência efectiva na Comunidade (53).
37. Na minha opinião, a concessão de acesso a um terceiro lesado, por parte de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, à informação voluntariamente apresentada por membros de um cartel nos termos do regime de clemência, pode, em princípio, facilitar ao lesado a preparação da acção civil de indemnização por violação do artigo 101.° TFUE perante os tribunais nacionais relativamente aos danos alegadamente causados pelo cartel (54). Uma acção que pode levar não só à determinação do direito do lesado a ser indemnizado, como também à aplicação do artigo 101.° TFUE (55). Nesta medida, entendo que, não obstante a autoridade do Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência não ser parte na acção civil de indemnização, não deve (56), na falta de razões imperiosas de necessidade pública ou privada, negar a um terceiro alegadamente lesado o acesso a documentos na sua posse que podem ser apresentados como prova para fundamentar uma acção civil de indemnização contra um membro de um cartel por violação do artigo 101.° TFUE, uma vez que a recusa pode, de facto, afectar e diminuir o direito fundamental dessa parte a uma acção, garantido pelos artigos 101.° TFUE e 47.° (57), conjugados com o artigo 51.°, da Carta, e o artigo 6.°, n.° 1 CEDH. Assim, é necessário analisar se e em que circunstâncias uma autoridade nacional responsável em matéria de concorrência pode legitimamente recusar o acesso à informação e aos documentos apresentados por um requerente de clemência.
38. Do meu ponto de vista, em certas circunstâncias a concessão de acesso, por parte de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, a toda a informação e documentação apresentada por um requerente de clemência pode prejudicar seriamente a atractividade e, logo, a eficácia do regime de clemência daquela autoridade, uma vez que os potenciais requerentes de clemência podem entender que são colocados numa posição mais desfavorável, no tocante aos pedidos cíveis de indemnização, devido às declarações auto‑incriminatórias que são obrigatoriamente (58) apresentadas à autoridade, do que a posição dos membros do cartel que se recusam a cooperar. Assim, pode entender‑se que o benefício da imunidade ou da redução de coimas concedido a um requerente é anulado pelo risco acrescido de responsabilidade por danos quando for concedido o acesso ao processo de clemência, especialmente nos casos em que os membros dos cartéis forem solidariamente responsáveis nos termos das legislações nacionais. Assim, um membro de um cartel pode abster‑se de apresentar um pedido de clemência ou, por outro lado, ser menos colaborante com a autoridade do Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência no decorrer do respectivo processo (59).
39. Existe, assim, um conflito aparente entre, por um lado, a eficácia do regime de clemência aplicado por uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência e, logo, a aplicação pública do direito da concorrência e, por outro, a concessão de acesso, por parte de um terceiro, à informação voluntariamente apresentada pelos requerentes de clemência (60), para efeitos de formular um pedido cível de indemnização por violação do artigo 101.° TFUE.
40. Entendo que nem o Regulamento n.° 1/2003 nem a jurisprudência do Tribunal estabeleceram uma hierarquia de jure ou uma ordem de prioridade (61) entre a aplicação pública do direito da concorrência da UE e as acções civis de indemnização. Não obstante, creio que o papel desempenhado pela Comissão e pelas autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência assume muito maior importância na aplicação dos artigos 101.° e 102.° TFUE do que as acções civis de indemnização. Com efeito, o peso actual das acções civis de indemnização é de tal forma reduzido que não posso deixar de manifestar renitência na utilização excessiva da expressão «aplicação privada» (62).
41. Acresce que, no meu entendimento, o conflito em questão é mais aparente do que real uma vez que a aplicação de regimes de clemência eficazes com vista à detecção e punição de cartéis secretos visa não só a protecção do interesse público como o dos particulares lesados por tais cartéis (63). Por um lado, sem um programa de clemência eficaz, haverá um grande número de cartéis que permanecerá por identificar ou cuja existência não se conseguirá provar, pelo que os mesmos poderão subsistir em contínuo prejuízo da concorrência em geral e dos terceiros lesados. Por outro lado, a investigação e detecção de tais cartéis por parte das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência, como consequência de um pedido de clemência, pode levar a decisões de aplicação de coimas nos termos da legislação nacional (64). Estas decisões podem facilitar a prova por parte dos terceiros lesados nas acções civis de indemnização. É de notar, a este respeito, que embora o Regulamento n.° 1/2003 não contenha nenhuma disposição relativa à influência das decisões das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência (65) nas decisões dos tribunais nacionais, ao contrário do que sucede no artigo 16.°, n.° 1 do mesmo Regulamento (66) creio que tais decisões devem ser tratadas pelos tribunais nacionais pelo menos como prova corroborativa (67). No entanto, mesmo nas jurisdições em que um demandante civil não pode usar como prova em tribunal uma decisão de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, recaindo sobre ele o ónus de prova na sua totalidade, designadamente, o ónus da prova da violação do artigo 101.° TFUE, creio que tal decisão constitui uma boa base para a acção, uma vez que tenderá a explicar em pormenor o funcionamento do cartel em questão e a natureza da violação do artigo 101.° TFUE.
42. Creio, pois, que a protecção dos interesses públicos e privados na detecção e punição dos cartéis exige que se mantenha, tanto quanto possível, a atractividade do regime de clemência das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência sem restringir de forma indevida o direito de acesso de um demandante civil à informação e à acção.
43. Relativamente ao objecto do processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio não especifica na decisão de reenvio a natureza da informação e dos documentos apresentados pelos requerentes de clemência. Não obstante, e uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio afirmou que o regime de clemência do Bundeskartellamt se baseia no Modelo REC, procederei a uma apreciação, no presente contexto, sobre o acesso às declarações de empresa ou declarações auto‑incriminatórias (68) prestadas pelos requerentes de clemência e aos documentos preexistentes apresentados pelos mesmos.
44. Creio que a concessão, aos demandantes civis, do acesso ao conteúdo de declarações auto‑incriminatórias (69) prestadas por requerentes de clemência (70), no curso e para os efeitos de um procedimento de clemência, nas quais um requerente efectivamente admite a sua participação numa violação do artigo 101.° TFUE e fornece detalhes à autoridade, pode reduzir substancialmente a atractividade e, logo, a eficácia do regime de clemência de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência (71). Isto poderá, por sua vez, comprometer a eficácia da aplicação do artigo 101.° TFUE pela autoridade do Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência e, em última análise, da possibilidade de os particulares poderem fazer valer os seus direitos numa acção. Assim, embora a recusa de acesso possa criar obstáculos ou dificultar, em certa medida, a obtenção, por parte de um terceiro aparentemente lesado, de uma reparação efectiva, entendo que a interferência com esse direito é justificada pela prossecução do objectivo de garantia de aplicação eficaz do artigo 101.° TFUE pelas autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência e também pelos interesses privados na detecção e punição dos cartéis.
45. Acresce que, dependendo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece que (72) os requerentes de clemência criam a legítima expectativa de que o Bundeskartellamt, no âmbito do seu poder discricionário, não concederá o acesso às declarações auto‑incriminatórias prestadas voluntariamente. Considero que embora o direito fundamental à acção deva ser, tanto quanto possível, respeitado, deve prevalecer a legítima expectativa do requerente no sentido de não serem divulgadas tais declarações auto‑incriminatórias.
46. Considero, assim, que, em regra (73), não deve ser concedido o acesso às declarações auto‑incriminatórias prestadas por um requerente de clemência.
47. No entanto, exceptuando as referidas declarações auto‑incriminatórias, os terceiros alegadamente lesados, como a Pfleiderer, devem ter acesso a todos os outros documentos preexistentes apresentados por um requerente de clemência no curso do respectivo procedimento (74) que facilitariam a prova, para efeitos de acções civis de indemnização, da violação do artigo 101.° TFUE (75), dos danos causados aos terceiros e do nexo causal entre a violação e o dano (76). Os documentos em questão não constituem um produto do processo de clemência, como é o caso das declarações auto‑incriminatórias referidas, existem independentemente de tal processo e poderiam, pelo menos teoricamente, ser divulgados noutra sede. Não antevejo nenhuma razão pertinente para ser recusado o acesso a tais documentos, especialmente vocacionados para a prova numa acção civil de indemnização. A recusa de acesso a tais documentos por parte de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência em circunstâncias como as do processo principal seria contrária ao direito fundamental a uma acção.
VI – Conclusão
48. À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal que responda à questão submetida pelo Amtsgericht Bonn (Alemanha) nos seguintes termos:
Os lesados por um cartel não podem ter acesso, para efeitos de formulação de um pedido cível de indemnização, ao conteúdo de declarações auto‑incriminatórias prestadas pelos requerentes de clemência, no curso e para os efeitos do respectivo processo, dirigido por uma autoridade do Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência com vista à aplicação efectiva do artigo 101.° TFUE, nas quais um requerente efectivamente admita a sua participação numa violação do artigo 101.° TFUE e forneça detalhes à autoridade, uma vez que daqui pode resultar uma redução substancial da atractividade e, logo, da eficácia do regime de clemência de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência e, por sua vez, o prejuízo da eficácia da aplicação do artigo 101.° TFUE por essa autoridade. Embora a recusa de acesso possa criar obstáculos ou dificultar, em certa medida, o exercício, por parte de um terceiro alegadamente lesado, do direito fundamental a uma acção e a um julgamento equitativo, garantido pelo artigo 47.°, conjugado com o artigo 51.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a interferência nesse direito é justificada pela prossecução do objectivo de garantia de aplicação eficaz do artigo 101.° TFUE pelas autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência e também pelos interesses privados na detecção e punição dos cartéis.
A recusa, por parte de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, da concessão de acesso a outros documentos preexistentes apresentados por um requerente de clemência no curso do respectivo procedimento e que facilitariam a prova, para efeitos de acções civis de indemnização, da violação do artigo 101.° TFUE, dos danos causados aos terceiros e do nexo causal entre a violação e o dano, por parte de uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, seria contrária ao direito fundamental a uma acção e a um julgamento equitativo, garantidos pelo artigo 47.°, conjugado com o artigo 51.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.