Language of document : ECLI:EU:C:2014:2214

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 11 de setembro de 2014 (1)

Processo C‑419/13

Art & Allposters International BV

contra

Stichting Pictoright

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«Direito de autor e direitos conexos ― Diretiva 2001/29 ― Direito de distribuição ― Direito exclusivo dos autores a autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público ― Esgotamento ― Direito de reprodução ― Nova forma»





1.        O titular do direito de autor de uma obra pictórica que deu o seu consentimento para que a imagem representada seja comercializada sob a forma de poster pode opor‑se à comercialização dessa mesma imagem transferida para uma tela? Esta é, no essencial, a questão que é debatida no processo que deu origem ao presente pedido de decisão prejudicial e para cuja decisão o Hoge Raad dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de desenvolver a jurisprudência sobre a Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (2).

I ―    Quadro normativo

A ―    Direito internacional

1.      Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre direito de autor (3)

2.        Em conformidade com o artigo 1.°, n.° 4, do Tratado, as partes contratantes devem observar o disposto nos artigos 1.° a 21.° da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas (a seguir «Convenção de Berna») (4) e no respetivo anexo.

3.        O artigo 6.° do Tratado, sob a epígrafe «Direito de distribuição», dispõe o seguinte:

«1)      Os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar a colocação à disposição do público do original e de cópias das suas obras, por meio da venda ou por outra forma de transferência de propriedade.

2)      Nenhuma das disposições do presente tratado afeta a liberdade das partes contratantes para determinar as eventuais condições em que o direito previsto no n.° 1 se esgota após a primeira venda do original ou de uma cópia da obra, ou outra forma de transferência de propriedade, realizada com o consentimento do autor».

2.      Convenção de Berna

4.        Relativamente aos «Direitos morais», o artigo 6.°‑BIS da Convenção de Berna estabelece o seguinte:

«1)      Independentemente dos direitos patrimoniais de autor, e mesmo após a cessão dos referidos direitos, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação da obra ou a qualquer outro atentado contra a mesma obra, prejudicial à sua honra ou à sua reputação.

2)      Os direitos reconhecidos ao autor em virtude da alínea 1) supra são, após a sua morte, mantidos pelo menos até à extinção dos direitos patrimoniais e exercidos pelas pessoas ou instituições às quais a legislação nacional do país em que a proteção é reclamada dá legitimidade. Todavia, os países cuja legislação, em vigor no momento da ratificação do presente Ato ou da adesão a este, não contenha disposições assegurando a proteção após a morte do autor de todos os direitos reconhecidos por virtude da alínea 1) supra têm a faculdade de prever que alguns desses direitos não se mantêm após a morte do autor.

3)      Os meios de recurso para salvaguardar os direitos reconhecidos no presente artigo são regulados pela legislação do país em que a proteção é reclamada.»

5.        Em conformidade com o artigo 12.° da Convenção de Berna, com a epígrafe «Direito de adaptação, arranjo e outras transformações», «[o]s autores de obras literárias ou artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar as adaptações, arranjos e outras transformações das suas obras».

B ―    Direito da União

6.        O considerando 9 da Diretiva 2001/29 enuncia que «[q]ualquer harmonização do direito de autor e direitos conexos deve basear‑se num elevado nível de proteção, uma vez que tais direitos são fundamentais para a criação intelectual. A sua proteção contribui para a manutenção e o desenvolvimento da atividade criativa, no interesse dos autores, dos intérpretes ou executantes, dos produtores, dos consumidores, da cultura, da indústria e do público em geral. A propriedade intelectual é pois reconhecida como parte integrante da propriedade».

7.        De acordo com o considerando 10 da diretiva, «[o]s autores e os intérpretes ou executantes devem receber uma remuneração adequada pela utilização do seu trabalho, para poderem prosseguir o seu trabalho criativo e artístico, bem como os produtores, para poderem financiar esse trabalho. [...] É necessária uma proteção jurídica adequada dos direitos de propriedade intelectual no sentido de garantir tal remuneração e proporcionar um rendimento satisfatório desse investimento».

8.        Nos termos do considerando 28 da diretiva, «[a] proteção do direito de autor nos termos da presente diretiva inclui o direito exclusivo de controlar a distribuição de uma obra incorporada num produto tangível. A primeira venda na Comunidade do original de uma obra ou das suas cópias pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, esgota o direito de controlar a revenda de tal objeto na Comunidade. Tal direito não se esgota em relação ao original ou cópias vendidas pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, fora da Comunidade. [...]».

9.        O considerando 31 da diretiva estabelece que «[d]eve ser salvaguardado um justo equilíbrio de direitos e interesses entre as diferentes categorias de titulares de direitos, bem como entre as diferentes categorias de titulares de direitos e utilizadores de material protegido. As exceções ou limitações existentes aos direitos estabelecidas a nível dos Estados‑Membros devem ser reapreciadas à luz do novo ambiente eletrónico. As diferenças existentes em termos de exceções e limitações a certos atos sujeitos a restrição têm efeitos negativos diretos no funcionamento do mercado interno do direito de autor e dos direitos conexos. Tais diferenças podem vir a acentuar‑se tendo em conta o desenvolvimento da exploração das obras através das fronteiras e das atividades transfronteiras. No sentido de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, tais exceções e limitações devem ser definidas de uma forma mais harmonizada. O grau desta harmonização deve depender do seu impacto no bom funcionamento do mercado interno».

10.      O artigo 2.° da Diretiva 2001/29, sob a epígrafe «Direito de reprodução», dispõe que «[o]s Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe: a) [a]os autores, para as suas obras; [...]».

11.      O artigo 4.° da mesma diretiva, com a epígrafe «Direito de distribuição», estabelece o seguinte:

«1.      Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores, em relação ao original das suas obras ou respetivas cópias, o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público através de venda ou de qualquer outro meio.

2.      O direito de distribuição não se esgota, na Comunidade, relativamente ao original ou às cópias de uma obra, exceto quando a primeira venda ou qualquer outra forma de primeira transferência da propriedade desse objeto, na Comunidade, seja realizada pelo titular do direito ou com o seu consentimento».

C ―    Direito neerlandês

12.      O artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 foi transposto para o direito neerlandês pela Auteurswet (Lei dos Direitos de Autor, a seguir «Aw»).

13.      O artigo 1.° da Aw define o direito de autor como o direito exclusivo do autor de uma obra literária, científica ou artística, ou dos titulares do direito sobre a mesma, de a tornar pública ou de a reproduzir, sem prejuízo das limitações previstas na lei.

14.      Nos termos do artigo 12.°, n.° 1, da Aw, entende‑se por publicação de uma obra literária, científica ou artística «a publicação de uma reprodução, total ou parcial, da obra [...]».

15.      De acordo com o artigo 12b da Aw, se um exemplar de uma obra literária, científica ou artística tiver sido posto em circulação, pela primeira vez, num Estado‑Membro pelo seu autor ou por um titular do direito sobre a mesma, ou com o seu consentimento, a colocação em circulação desse exemplar de outra forma, excetuando o aluguer ou o comodato, não constitui uma violação do direito de autor.

II ― Matéria de facto

16.      A Stichting Pictoright (a seguir «Pictoright») é uma sociedade neerlandesa de gestão coletiva de direitos de autor, que defende, entre outros, os direitos dos herdeiros de pintores de renome (a seguir «titulares dos direitos»).

17.      A Art & Allposters International BV (a seguir «Allposters»), comercializa, através da Internet, posters e outras reproduções de obras desses artistas.

18.      As pessoas que querem encomendar uma reprodução artística à Allposters podem escolher entre um poster, um poster emoldurado, um poster em madeira ou um poster em tela. Neste último caso, o método de reprodução é o seguinte: é colocada uma lâmina de plástico sobre um poster em papel, a imagem do poster é transferida para uma tela através de um processo químico e a tela é esticada sobre uma moldura de madeira. Este método e o seu resultado são designados «canvas transfer» («transferência para tela»).

19.      Não tendo a Allposters dado seguimento à sua interpelação para que cessasse a venda sem consentimento de reproduções de obras dos seus clientes obtidas através do referido método, a Pictoright intentou uma ação contra a Allposters no Rechtbank Roermond (Tribunal de primeira instância de Roermond), com vista a obter a cessação de qualquer violação direta ou indireta dos direitos de autor e dos direitos morais dos titulares dos direitos.

20.      Por sentença de 22 de setembro de 2010, a ação foi julgada improcedente, tendo a Pictoright recorrido da mesma para o Gerechtshof te’s‑Hertogenbosch (Tribunal de segunda instância de ‘s‑Hertogenbosch), que, por acórdão de 3 de janeiro de 2012, deu provimento ao recurso. O Tribunal de segunda instância adotou a doutrina estabelecida pelo Hoge Raad no acórdão de 19 de janeiro de 1979 (5), de acordo com a qual há uma nova colocação à disposição do público, nos termos do artigo 12.° Aw, quando o exemplar introduzido no mercado pelo titular é disponibilizado ao público sob uma forma diversa, originando‑se assim uma nova possibilidade de exploração para quem comercializa esta nova forma do exemplar originalmente introduzido no mercado (denominada «doutrina Poortvliet»). À luz desta doutrina, o Tribunal de segunda instância concluiu que, na medida em que as transferências para tela implicam uma modificação profunda dos posters cuja imagem é transferida, a sua comercialização exige o consentimento dos titulares dos direitos.

21.      A Allposters interpôs recurso de cassação perante o Hoge Raad, alegando que a doutrina Poortvliet tinha sido indevidamente aplicada, uma vez que os conceitos de esgotamento e de disponibilização, em termos de direitos de autor, foram, entretanto, harmonizados a nível europeu. Em seu entender, o esgotamento, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29, só ocorre aquando da distribuição de uma obra incorporada numa coisa tangível caso esse exemplar seja introduzido no mercado pelo titular do direito ou com o seu consentimento. Uma eventual modificação posterior do exemplar ou do objeto não tem qualquer consequência para o esgotamento.

22.      Por seu lado, a Pictoright sustentou que o direito de adaptação não foi harmonizado e que, portanto, a doutrina Poortvliet continua a ser aplicável. Em todo o caso, considera que esta doutrina ― nomeadamente a ideia de que uma modificação (substancial) do objeto exclui o esgotamento ― se coaduna facilmente com o direito da União.

23.      Nestas circunstâncias, o Hoge Raad submeteu o presente pedido de decisão prejudicial.

III ― Questões submetidas

24.      A redação das questões prejudiciais submetidas em 24 de julho de 2013 é a seguinte:

«1)      O artigo 4.° da Diretiva dos Direitos de Autor regula a resposta à questão de saber se o direito de distribuição dos titulares de direitos de autor pode ser exercido em relação a uma reprodução de uma obra, protegida em termos de direitos de autor, que tenha sido vendida e entregue no Espaço Económico Europeu pelo titular dos direitos ou com o seu consentimento, caso essa reprodução tenha posteriormente sofrido uma modificação quanto à sua forma e seja novamente colocada no mercado sob essa forma?

2      (a)      Em caso de resposta afirmativa à questão 1, a circunstância de se verificar a modificação a que se refere a questão 1 é relevante para responder à questão de saber se é impedido ou interrompido o esgotamento a que se refere o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva dos Direitos de Autor?

(b)      Em caso de resposta afirmativa à questão 2(a), quais serão os critérios para determinar se se verifica uma modificação, quanto à forma da reprodução, que possa impedir ou interromper o esgotamento a que se refere o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva dos Direitos de Autor?

(c)      Estes critérios permitem a manutenção do critério desenvolvido nos Países Baixos, segundo o qual deixa de se verificar o esgotamento unicamente porque o revendedor deu uma nova forma às reproduções e as divulgou ao público sob essa forma [acórdão do Hoge Raad de 19 de janeiro de 1979 (...), Poortvliet]?»

IV ― Tramitação processual no Tribunal de Justiça

25.      Intervieram no processo, tendo apresentado alegações escritas, as partes no processo principal, o Governo francês e a Comissão. Todos eles, para além do Governo do Reino Unido, compareceram na audiência pública, realizada em 22 de maio de 2014. Na mesma, e de acordo com o artigo 61.°, n.os 1 e 2, do Regulamento de Processo, as partes foram convidadas a responder a três questões: 1) Possibilidade de a transferência para tela ser considerada uma adaptação da obra, na aceção do artigo 12.° da Convenção de Berna; 2) Eventual relevância ― para efeitos da apreciação do esgotamento do direito de distribuição ― do princípio da remuneração adequada, em caso de a modificação aumentar o preço do objeto que contém a obra protegida; 3) Eventual relevância dos direitos morais para efeitos da interpretação da regra do esgotamento.

V ―    Alegações

A ―    Primeira questão prejudicial

26.      Em relação à primeira das questões prejudiciais submetidas, a Allposters, a título preliminar, precisa que por «uma modificação quanto à sua forma» deve entender‑se a transformação do suporte da obra protegida pelo direito de autor, e não da imagem da referida obra. Assim sendo, sustenta que a questão deve ter resposta afirmativa. Em seu entender, no presente caso, não foi a obra que foi modificada, mas sim o seu suporte, pelo que é aplicável o artigo 4.° da Diretiva 2001/29, que levou a cabo uma harmonização completa, tanto do direito de distribuição (n.° 1), como da regra do esgotamento (n.° 2), motivo pelo qual não há qualquer margem para que os Estados‑Membros introduzam exceções.

27.      Por seu lado, a Pictoright inclina‑se para uma resposta negativa, pois, na sua opinião, o artigo 4.° da Diretiva 2001/29 diz respeito apenas ao caso de não ter havido modificação da reprodução da obra protegida. Neste sentido, alega que do teor do n.° 2 da disposição resulta que a regra do esgotamento diz respeito ao «objeto», ou seja, ao «original ou às cópias de uma obra», sem que estejam incluídas neste conceito as reproduções transferidas para tela, uma vez que estas diferem substancialmente dos originais ou das cópias dos mesmos, devido às modificações substanciais a que os posters são sujeitos durante o processo de transferência para a tela.

28.      A Pictoright traz à colação, a este propósito, a doutrina e a legislação da União em matéria de direito de marcas, invocando o artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 2008/95/CE (6) e o artigo 13.° do Regulamento (CE) n.° 207/2009 (7), que são praticamente idênticos, ao dispor que o esgotamento do direito conferido pela marca «não é aplicável sempre que motivos legítimos justifiquem que o titular se oponha à comercialização posterior dos produtos, nomeadamente sempre que o estado dos produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no mercado». Com base nisso, considera que o direito de adaptação, em matéria de direito de autor, não foi harmonizado pela União, embora esta, ao aprovar o Tratado da OMPI, se tenha comprometido a respeitar o artigo 12.° da Convenção de Berna, que reconhece aos autores de obras literárias ou artísticas o direito exclusivo de autorizar as adaptações, arranjos e outras transformações das suas obras.

29.      O Governo francês cingiu as suas alegações a esta primeira questão, considerando que a mesma deve ter resposta conjunta com a subquestão formulada na alínea a) da segunda questão. Em seu entender, resulta do artigo 4.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2001/29, à luz do considerando 28 da mesma, que o autor da obra protegida tem o direito exclusivo de autorizar ou proibir a primeira forma de distribuição, através de venda ou de qualquer outro meio, de cada bem material ou de cada objeto que incorpore a obra ou uma cópia desta. Por conseguinte, o direito de distribuição só se esgota se o titular do direito tiver realizado ou consentido a primeira venda ou transferência da propriedade desse bem material ou objeto.

30.      No que diz respeito ao caso em apreço, o Governo francês entende que a transferência de uma obra ou de uma cópia de uma obra para tela implica a criação de um objeto novo, cuja reprodução e distribuição compete ao titular do direito exclusivo autorizar ou proibir. O facto de a obra ter sido comercializada sob outra forma não esgotaria o direito exclusivo de distribuição do titular do direito relativamente ao novo objeto.

31.      Na opinião do Governo francês, esta é a única interpretação conforme com o objetivo da Diretiva 2001/29 de assegurar aos autores um elevado nível de proteção dos seus direitos e uma remuneração adequada pela utilização das suas obras. Milita neste sentido o facto de a operação de transferência para tela afetar não só o direito exclusivo de distribuição de que gozam os autores, mas também outros aspetos do direito de autor, como os direitos exclusivos de reprodução e de adaptação, embora este último não esteja formalmente reconhecido no direito da União.

32.      Na audiência, o Governo do Reino Unido defendeu que o conceito de distribuição ao público abrange unicamente os atos que dizem respeito à transferência da propriedade do objeto. A dificuldade poderia surgir quando, uma vez colocado o objeto no mercado com a autorização do autor, o mesmo é modificado de modo que a obra original não é afetada, criando‑se um objeto diferente, como seria o caso da realização de um collage a partir de fotografias publicadas numa revista. No entanto, em seu entender, neste tipo de casos, o direito de distribuição já se teria esgotado.

33.      O Governo do Reino Unido considera que o Tribunal de Justiça deve ser muito prudente no que diz respeito à determinação das condições de esgotamento desse direito. Em seu entender, não se deveria chegar à conclusão de que não existe esgotamento quando são reutilizadas ou recicladas cópias de uma obra sob formas diferentes. Na sua opinião, a questão‑chave é saber se, uma vez realizada a primeira venda autorizada de um objeto, a produção de um artigo novo implica uma reprodução não autorizada da criação intelectual do autor. Se não for esse o caso, nada impede que o comprador utilize o artigo da forma que lhe pareça conveniente.

34.      Por seu lado, a Comissão propõe que seja dada resposta à primeira questão no sentido de que o artigo 4.° da Diretiva 2001/29 é aplicável a uma situação como a do litígio no processo principal e, em especial, que os titulares dos direitos em causa, em princípio, podem invocar o direito de distribuição definido no n.° 1 desta disposição. Em seu entender, tendo em conta as expressões «qualquer forma de distribuição» e «original das suas obras ou respetivas cópias», utilizadas no artigo 4.°, n.° 1, e o objetivo prosseguido pela Diretiva 2001/29, ou seja, assegurar aos autores um elevado nível de proteção, é adequada uma interpretação extensiva do direito de distribuição.

35.      A Comissão entende que a modificação da forma que resulta da transferência para tela não impede que o resultado seja considerado uma «cópia» de uma obra, na aceção do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. Em função da modificação, o resultado é, ou uma cópia idêntica ao poster, ou uma nova reprodução da obra original, que também deve ser considerada uma «cópia». No seu entender, em ambos os casos, o titular dos direitos tem o direito exclusivo de autorizar ou proibir a distribuição do resultado da transferência para tela.

B ―    Segunda questão prejudicial

36.      A Allposters propõe uma resposta negativa à subquestão constante da alínea a) da segunda questão prejudicial. Na sua opinião, a interrupção da regra do esgotamento em caso de modificação do suporte da obra protegida é contrária ao princípio da livre circulação de mercadorias e à ratio do direito de autor. Portanto, a faculdade de explorar comercialmente o objeto protegido está limitada à sua primeira difusão, que garante ao titular do direito a obtenção de uma vantagem económica.

37.      A Allposters salienta que, no âmbito do direito de autor, se distingue entre «corpus mechanicum» (o objeto corpóreo) e o «corpus mysticum» (a criação imaterial), sendo exclusivamente esta última que constitui a obra, na aceção do direito de autor, e que beneficia da sua proteção. Para a Allposters, o conteúdo da obra deveria ser considerado de forma independente do seu suporte, que não é um elemento da «criação intelectual própria». Em seu entender, no caso em apreço, a transferência para tela implica uma modificação do «corpus mechanicum», na medida em que o papel é substituído pela tela, mas o «corpus mysticum» permanece inalterado. Na medida em que, do ponto de vista do direito de autor, a reprodução da obra protegida não tinha sido modificada, a modificação do seu suporte não tinha influência sobre a aplicação da regra do esgotamento e não a interrompia.

38.      A Allposters entende que o que foi anteriormente exposto só se alteraria no caso excecional de a modificação do suporte atentar contra os direitos morais do titular do direito de autor, que protegem a integridade da obra e que, de acordo com a jurisprudência, são extensivos, tanto às obras originais, como às suas reproduções, sem que estejam limitados à primeira comercialização da obra. No entanto, entende que não é este o caso no presente processo.

39.      Uma vez que propõe que seja dada resposta em sentido negativo à subquestão apresentada na alínea a) da segunda questão, a Allposters abstém‑se de responder às subquestões constantes das alíneas b) e c), embora alegue que a doutrina Poortvliet não está em vigor e que é contrária ao artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29.

40.      Dado o teor da sua proposta relativamente à primeira questão, a Pictoright só alega, a título subsidiário, no que diz respeito à segunda, que uma modificação da obra tem como consequência o impedimento ou a interrupção do esgotamento do direito de distribuição. Neste sentido, recorda que a Diretiva 2001/29 parte de um elevado nível de proteção e que, além disso, o esgotamento, enquanto limitação do direito de distribuição do titular do direito, deve ser objeto de uma interpretação restritiva.

41.      Em seu entender, o titular do direito de autor tem direito a decidir, não só se, mas também sob que forma quer colocar a sua obra em circulação, de modo que pode pôr condições às licenças que concede. Para a Pictoright, por analogia com o direito de marcas da União, nada justifica que o titular do direito de autor tenha de tolerar uma comercialização posterior da sua obra ― ou de uma cópia da mesma ― depois de o estado da reprodução da sua obra ter sido modificado, pois, caso contrário, poderia ser causado um prejuízo real à reputação do artista, e à exclusividade da sua obra, o que não seria compatível com o artigo 12.° da Convenção de Berna.

42.      Quanto às subquestões das alíneas b) e c) da segunda questão prejudicial, a Pictoright considera que, de acordo com o acórdão Peek & Cloppenburg (8), deve ser deixada aos Estados‑Membros a escolha dos critérios que pretendem aplicar para determinar se se verifica uma modificação da forma de uma reprodução que impeça ou interrompa o esgotamento, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29.

43.      A título subsidiário, a Pictoright propõe que sejam estabelecidos ou os critérios de aplicação do artigo 12.° da Convenção de Berna, que confere ao autor de uma obra o direito exclusivo de autorizar qualquer adaptação, arranjo ou transformação da mesma, ou critérios comparáveis aos previstos no artigo 6.°‑BIS da mesma Convenção, dispondo que há modificação da forma da reprodução suscetível de impedir ou interromper o esgotamento quando a modificação em causa for contrária aos direitos morais do autor, na aceção do referido artigo 6.°‑BIS. Na sua opinião, estes critérios deixariam margem de manobra para a aplicação da doutrina Poortvliet.

44.      O Governo do Reino Unido entende que a adaptação de uma obra implica uma forma de reprodução da mesma, não sendo esse o caso na hipótese da transferência para tela, uma vez que a transferência não implica uma criação intelectual e uma originalidade suficientes. Além disso, em seu entender, na medida em que não haja reprodução, o aumento de preço do objeto sobre o qual a obra protegida é incorporada é irrelevante, dado que a remuneração adequada é a que já foi recebida pela venda do objeto original. Por último, os direitos morais também não deveriam ser tomados em consideração para efeitos da interpretação do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29.

45.      A Comissão aborda conjuntamente as três subquestões da segunda questão, propondo, em primeiro lugar, que o âmbito de aplicação material da regra do esgotamento prevista no artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29 seja analisado partindo da interpretação do termo «objeto» utilizado nessa disposição. Partindo de uma interpretação literal, legislativa, comparada e jurisprudencial, a Comissão conclui que se deve entender por «objeto» uma obra, ou cópia da mesma, incorporada num bem material, que representa uma criação intelectual do autor, cuja proteção jurídica a Diretiva 2001/29 pretende assegurar.

46.      Em seguida, a Comissão considera que uma modificação quanto à forma constitui um critério importante para a apreciação do esgotamento. Se o «objeto» tiver sofrido uma certa modificação da sua forma depois de realizada a primeira venda no EEE com o consentimento do titular do direito, o critério determinante para estabelecer se há, ou não, esgotamento é o de saber se, após essa modificação, continua a estar perante o mesmo bem material que representa a criação intelectual do autor ou se a modificação é tal que se trata de outro bem material com uma forma diferente que representa essa criação. No primeiro caso, a distribuição estaria abrangida pelo consentimento previamente dado. No segundo, não haveria esgotamento, e os interesses dos titulares dos direitos que a Diretiva 2001/29 pretende proteger justificariam a exceção à livre circulação de mercadorias.

47.      No que diz respeito à possibilidade de aplicação da doutrina Poortvliet, a Comissão alega que, de acordo com a jurisprudência, num caso como o dos autos, a questão do esgotamento é inteiramente regulada pelo direito da União. Por conseguinte, compete ao órgão jurisdicional nacional determinar em que medida essa doutrina é compatível com a Diretiva 2001/29, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, e garantir a plena eficácia do direito da União.

VI ― Apreciação

48.      Reduzida aos seus termos essenciais, a questão de fundo submetida no presente processo é a de saber se o consentimento dado para a distribuição de uma reprodução de uma obra de arte sob a forma de poster também abrange a sua distribuição sob a forma de tela.

A ―    Considerações preliminares

49.      De acordo com a exposição dos factos controvertidos constante do despacho de reenvio do presente pedido de decisão prejudicial, bem como com a informação fornecida pelas partes nas suas alegações escritas e no decurso da audiência, parece claro que não existe qualquer vínculo comercial entre a Pictoright e a Allposters. É certo que os titulares dos direitos de autor autorizaram a reprodução das pinturas controvertidas sob a forma de poster, mas quem adquiriu esse direito não foi a Allposters. A Allposters adquire no mercado os posters comercializados por quem foi autorizado a reproduzir as pinturas controvertidas sob essa forma e produz, a partir dos mesmos, as telas que, por sua vez, oferece no mercado.

50.      Parece igualmente claro que, no que diz respeito aos posters considerados em si mesmos, o direito de distribuição se esgotou, no máximo, com a aquisição dos mesmos pela Allposters. O problema é que a Allposters realiza reproduções sobre tela e, precisamente, a partir dos posters cujo direito de distribuição se esgotou. Daqui resulta que a atividade da Allposters não se limita à distribuição, mas que efetua, previamente, um trabalho de manipulação a partir dos referidos posters de que resulta um produto, digamos assim, diferente.

51.      Deste ponto de vista, cabe perguntar se não poderia ter sido colocado um problema relativo ao direito de reprodução, ou seja, o de saber se a Allposters tinha, ou não, adquirido legalmente o direito de reproduzir as referidas obras sobre tela, sendo, a este respeito, indiferente que o tivesse feito diretamente ou através da manipulação de reproduções sobre papel.

52.      Não é nestes termos, ou seja, em termos de direito de reprodução, que o órgão jurisdicional de reenvio coloca a sua questão de interpretação da Diretiva 2001/29. A questão é colocada em relação ao direito de distribuição, ou seja, quanto a saber se a Pictoright pode invocar o direito de controlar a distribuição das obras pictóricas em causa, enquanto direito «não esgotado», como fundamento do seu pedido destinado a impedir a comercialização das suas obras sobre um suporte têxtil.

53.      Por conseguinte, as minhas conclusões abster‑se‑ão de qualquer consideração baseada no direito de reprodução reconhecido no artigo 2.° da Diretiva 2001/29, para analisar o pedido de interpretação submetido pelo Hoge Raad no contexto em que ele mesmo o colocou, ou seja, no âmbito do direito de distribuição consagrado no artigo 4.° da mesma diretiva.

B ―    Primeira questão

54.      A Pictoright entende que a transferência para tela representa uma mudança no «original ou [n]uma cópia da obra» e, portanto, implica uma «adaptação» da obra, de modo que a questão estaria fora do âmbito de aplicação da Diretiva 2001/29, que não abrange o direito de adaptação. Por outras palavras, para a Pictoright, a transferência para tela afeta a obra e não unicamente o objeto ou suporte material em que esta é apresentada.

55.      Pelo contrário, a Allposters, a Comissão e o Governo francês defendem que a transferência para tela implica uma modificação do objeto ou suporte material, de modo que estaríamos perante um caso de «distribuição», e não de «adaptação», sendo, consequentemente, aplicável a Diretiva 2001/29.

56.      Por conseguinte, em primeiro lugar, há que resolver a questão de saber se o caso concreto sobre o qual o tribunal de reenvio tem de se pronunciar constitui, ou não, uma «adaptação» da obra, pois nesta hipótese, a Diretiva 2001/29 não seria aplicável, uma vez que a mesma não trata do denominado «direito de adaptação», cujo garante, para efeitos da União, é a Convenção de Berna.

57.      O artigo 12.° da Convenção de Berna reserva aos autores o «direito exclusivo de autorizar as adaptações, arranjos e outras transformações das suas obras». Em meu entender, o caso concreto do processo principal não corresponde a uma «adaptação». A «adaptação» afeta a própria «obra» enquanto resultado de uma criação artística. O caso típico é a adaptação de uma obra literária ao cinema, processo em virtude do qual o produto artístico do génio literário se converte num produto de arte cinematográfica, ou seja, numa manifestação artística que recria o conteúdo daquela obra numa linguagem e num universo conceptual e expressivo próprios, diferentes daquele em que foi inicialmente concebida.

58.      É precisamente na diferença de linguagens e de técnicas artísticas que radica um dos fundamentos da «adaptação», como processo de adequação do conteúdo da criação artística às formas de expressão próprias das diferentes artes. Outro dos seus fundamentos tem a ver com a adaptação como técnica de manifestação criativa, com a qual o que se pretende não é tanto a adequação da obra às características expressivas de outra linguagem artística, mas a intervenção na obra em si mesma, transformando‑a, na sua própria linguagem, numa obra diferente, na medida em que apenas pode ser vagamente reconhecível na sua manifestação original.

59.      No presente caso, parece‑me claro que a transferência para tela não afeta a imagem reproduzida, ou seja, a «obra» ou resultado da criação artística. Muito pelo contrário, o mérito da transferência reside em que a imagem original seja reproduzida exatamente sobre a tela. Assim, por um lado, a obra original não é transposta para uma linguagem artística diferente daquela em que foi concebida, nem, por outro, a imagem é distorcida ou são suprimidos elementos da composição ou acrescentados elementos alheios à criação do artista. Trata‑se de alcançar o maior grau possível de identidade com o original.

60.      Nestas circunstâncias, considero que o caso concreto debatido no processo principal não é enquadrável no conceito de «adaptação».

61.      Por conseguinte, deve entender‑se que, quando na sua primeira questão, o tribunal de reenvio afirma que a «reprodução […] [sofreu] uma modificação quanto à sua forma» não quer dizer que a mudança verificada implica uma «adaptação», na aceção do artigo 12.° da Convenção de Berna. Deve entender‑se, antes, que a «modificação quanto à sua forma» diz respeito a uma mudança no suporte da obra, e não nesta enquanto tal, ou seja, como produto da criação artística.

62.      Nestas circunstâncias, é irrelevante a questão de saber se o direito de adaptação foi, ou não, objeto de harmonização ou se o artigo 12.° da Convenção de Berna é aplicável. Importa apenas que o direito em causa é o consagrado no artigo 4.° da Diretiva 2001/29 ― ou seja, aquele que reconhece aos seus titulares a faculdade exclusiva de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público do original ou das cópias da obra protegida ― e que, de acordo com a jurisprudência e com o próprio objetivo da diretiva, se pode considerar que a referida disposição procedeu a uma plena harmonização da regra do esgotamento do direito de distribuição (9), independentemente do facto de, também segundo a jurisprudência, a Diretiva 2001/29 «[dever] normalmente encontrar, em toda a Comunidade, uma interpretação autónoma e uniforme» (10).

63.      Em suma, deveria ser dada resposta afirmativa à primeira questão; ou seja, no sentido de que o direito em causa no processo judicial a quo é o «direito de distribuição» dos exemplares concretos nos quais está incorporada a obra de arte reproduzida, sendo aplicável, portanto, o artigo 4.° da Diretiva 2001/29.

C ―    Segunda questão

1.      Relevância da «modificação quanto à forma»

64.      Coloca‑se, então, a questão central do caso, ou seja, a de saber se a «modificação quanto à forma» (id est, quanto ao suporte material da reprodução) impede ou interrompe o esgotamento do direito de distribuição, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29.

65.      É conveniente regressar ao texto da disposição:

«O direito de distribuição não se esgota, na Comunidade, relativamente ao original ou às cópias de uma obra, exceto quando a primeira venda ou qualquer outra forma de primeira transferência da propriedade desse objeto, na Comunidade, seja realizada pelo titular do direito ou com o seu consentimento.»

66.      Toda a dificuldade reside em determinar se, num caso como o presente, o termo «objeto» diz respeito à criação artística ou ao seu suporte material. Pelo que foi exposto, parece claro que se trata do segundo, como consideram também a Allposters, o Governo francês e a Comissão.

67.      Claramente, o objeto em causa não pode ser a obra enquanto corpus mysticum, dado que o direito de autor sobre a obra assim entendida só se «esgota» com a transferência da propriedade desse direito, ao passo que o esgotamento do direito de distribuição se dá com a transferência da propriedade de outra coisa necessariamente diferente: precisamente, a propriedade do objeto no qual a obra foi reproduzida.

68.      Por outras palavras: uma vez transferida a propriedade do objeto (suporte material), esgota‑se o direito de distribuição, mas não a propriedade do direito de autor, cujo objeto continua a ser a criação artística.

69.      Em meu entender, esta interpretação é confirmada pelo teor do considerando 28 da própria Diretiva 2001/29, no qual é afirmado que a proteção do direito de autor «inclui o direito exclusivo de controlar a distribuição de uma obra incorporada num produto tangível» (11), dispondo, em seguida, que a primeira venda «do original de uma obra ou das suas cópias pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, esgota o direito de controlar a revenda de tal objeto» (12), numa referência clara àquele «produto tangível» (13).

70.      Nestas condições, entendo que se deveria responder à primeira alínea da segunda questão no sentido de que a «modificação quanto à forma» é relevante para efeitos de determinar se o esgotamento, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29 é impedido ou interrompido. E isto porque o direito de distribuição pode ser cedido relativamente a qualquer suporte material possível ou apenas relativamente a determinados suportes.

2.      Critérios relevantes para a determinação da existência de uma «modificação quanto à forma»

71.      Cabe, então, estabelecer, de acordo com a segunda alínea da segunda questão, «quais serão os critérios para determinar se se verifica uma modificação, quanto à forma da reprodução, que possa impedir ou interromper o esgotamento a que se refere o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva dos Direitos de Autor».

72.      Na opinião da Comissão, a este respeito, deveria ser tido em conta o grau da modificação em causa, pois seria decisivo determinar «se, depois da modificação, ainda se trata do mesmo bem material que representa a criação intelectual do autor ou se a modificação sofrida pelo bem em causa cria outro bem material, que, com outra forma, representa essa criação» (14).

73.      Em meu entender, no presente caso, a qualidade da modificação sofrida pelo suporte material da criação intelectual dos artistas é de tal natureza que se poderia, até, chegar a defender que, na realidade, a operação realizada pela Allposters implica uma nova reprodução das criações intelectuais protegidas.

74.      Com essa operação, uma imagem inicialmente reproduzida em papel é transposta para uma tela, o que supõe uma modificação evidente do produto tangível sobre o qual a distribuição das obras pictóricas foi autorizada. O que faz desta modificação algo de singular é o facto de, com a transferência para uma tela, não se estar a transpor a imagem para um suporte qualquer, mas sim, precisamente, para um suporte do mesmo tipo daquele em que está executada a obra original. Na minha opinião, com isto, caberia perguntar se o direito que está realmente em jogo é o direito de distribuição ou, antes ainda, o direito de reprodução da obra artística na sua íntegra, ou seja, enquanto conjunto integrado por uma imagem representada num determinado suporte. Por outras palavras, poderia sustentar‑se que a Allposters não se limita a distribuir em papel uma imagem originalmente executada numa tela, mas que, na realidade reproduz a criação artística integral. Em conclusão, não comercializa a imagem de um quadro, mas sim um equivalente do quadro em si.

75.      Mas, deixando esta última consideração de lado, e em conformidade com os termos em que o Hoge Raad submeteu este pedido prejudicial, como o que afirmei nos n.os 49 a 53, a resposta do Tribunal de Justiça deve circunscrever‑se à determinação de se, nas circunstâncias do caso, a modificação realizada pela Allposters representa uma mudança do suporte material de tal importância que implica, pelo menos, uma distribuição das obras reproduzidas face à qual o direito que o artigo 4.° da Diretiva 2001/29 garante à Pictoright não se esgotou.

76.      Nestas condições, parece‑me evidente que a modificação em causa é suficientemente relevante e qualificada para permitir concluir que não se pode considerar esgotado o direito de distribuição da Pictoright em relação à mesma. A sua relevância resulta do facto de essa modificação não implicar uma mudança qualquer no suporte material da obra distribuída, mas, precisamente, a utilização de um suporte que é da mesma natureza que o suporte em que a criação intelectual foi originariamente executada. Esta circunstância confere ao presente caso um caráter muito especial, distinguindo‑o dos casos em que o suporte utilizado para a distribuição da criação intelectual é de tal natureza que não pode provocar confusão com a obra original. Tipicamente, o caso das collages, invocado pelo Governo do Reino Unido.

77.      Em meu entender, será suficiente concluir que, nas circunstâncias do caso, a modificação realizada pela Allposters é suficientemente importante para permitir considerar que houve uma mudança substancial no produto tangível da obra protegida que justifica que seja excluído o esgotamento do direito de distribuição. Para além desta consideração, entendo que não se justificaria pronunciarmo‑nos em abstrato sobre as condições que, com caráter geral, devem estar verificadas para se concluir que existe uma modificação suficiente para efeitos da exclusão do esgotamento do direito de distribuição. Pelo contrário, neste caso, trata‑se da concretização jurisdicional do alcance de uma disposição legislativa, que só pode ser empreendida caso a caso, no âmbito de processos sucessivos sobre litígios concretos e singulares.

78.      Em conclusão, entendo que, no presente caso, o direito de a Pictoright controlar a distribuição das reproduções das obras em causa não se esgotou com a primeira venda dos posters, uma vez que o que a Allposters pretende distribuir é, claramente, «outra coisa», independentemente do facto de essa «outra coisa» ter sido obtida a partir da manipulação dos referidos posters, circunstância aleatória esta que não pode ser determinante.

3.      Jurisprudência nacional relevante no caso e a sua compatibilidade com o direito da União

79.      A terceira e última das subquestões que compõem a segunda questão diz respeito à compatibilidade da jurisprudência neerlandesa (doutrina Poortvliet) com o direito da União.

80.      De acordo com a exposição feita pelo Hoge Raad, a referida doutrina sustenta que, em princípio, «se pode falar de uma nova colocação à disposição do público [...] quando o exemplar introduzido no mercado pelo titular é colocado à disposição do público sob uma forma diversa, o que origina uma nova possibilidade de exploração para quem comercializa esta nova forma do exemplar originalmente introduzido no mercado» (15).

81.      Nestas condições, parece evidente que o Tribunal de Justiça não é chamado a pronunciar‑se sobre o mérito da jurisprudência nacional. Apenas lhe cabe indicar que é ao tribunal de reenvio que compete determinar ― à luz da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça à Diretiva 2001/29 e tendo em conta os critérios que lhe forem fornecidos para aplicar a referida diretiva ao caso em litígio ― se essa jurisprudência é compatível, ou não, com o direito da União.

VII ― Conclusão

82.      À luz das considerações desenvolvidas, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas, nos seguintes termos:

«1)      O artigo 4.° da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação regula a resposta à questão de saber se o direito de distribuição dos titulares de direitos de autor pode ser exercido em relação a uma reprodução de uma obra, protegida em termos de direitos de autor, que tenha sido vendida e entregue no Espaço Económico Europeu pelo titular dos direitos ou com o seu consentimento, caso essa reprodução tenha posteriormente sofrido uma modificação quanto à sua forma e seja novamente colocada no mercado sob essa forma.

2)      a)      A circunstância de se verificar a modificação a que se refere a questão 1 é relevante para responder à questão de saber se é impedido ou interrompido o esgotamento a que se refere o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva dos Direitos de Autor.

b)      Num caso como o que está em litígio no processo principal, a modificação que consiste na utilização de um suporte material da mesma natureza que o da obra original exclui o esgotamento do direito de distribuição a que se refere o artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/29.

c)      Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se o que foi anteriormente exposto deixa margem para a aplicação do critério jurisprudencial desenvolvido no direito interno dos Países Baixos.»


1 ―      Língua original: espanhol.


2 ―      JO L 167, p. 10.


3 ―      Adotado em Genebra em 20 de dezembro de 1996. Aprovado, em nome da Comunidade, por Decisão do Conselho de 16 de março de 2000 (JO L 89, p. 6).


4 ―      Convenção de 9 de setembro de 1886, revista em Paris a 24 de julho de 1971 e modificada em 28 de setembro de 1979.


5 ―      NJ 1979/412, Poortvliet.


6 ―      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO L 299, p. 25).


7 ―      Regulamento do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (JO L 78, p. 1).


8 ―      Acórdão C‑456/06, EU:C:2008:232, n.os 31 e 34.


9 ―      Nesta linha, acórdão Laserdisken (C‑479/04, EU:C:2006:549, n.os 23 a 25).


10 ―      Acórdão Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465, n.° 27).


11 ―      O sublinhado é meu.


12 ―      O sublinhado é meu.


13 ―      O Tribunal de Justiça veio pronunciar‑se neste sentido no acórdão UsedSoft (C‑128/11, EU:C:2012:407, n.° 60).


14 ―      Alegações escritas apresentadas pela Comissão, n.° 59. Em itálico no original.


15 ―      N.° 3.3 do despacho de reenvio.