Language of document : ECLI:EU:C:2017:389

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

18 de maio de 2017 (*) (i)

«Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 314.° — Regime da margem de lucro — Requisitos de aplicação — Negação pelas autoridades tributárias nacionais a um sujeito passivo do direito de aplicar o regime da margem de lucro — Menções nas faturas relativas à aplicação pelo fornecedor do regime da margem de lucro e à isenção do IVA — Não aplicação pelo fornecedor do regime da margem de lucro à entrega — Indícios que permitem suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude na entrega»

No processo C‑624/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius, Lituânia), por decisão de 2 de novembro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de novembro de 2015, no processo

«Litdana» UAB

contra

Valstybinė mokesčių inspekcija prie Lietuvos Respublikos finansų ministerijos,

sendo intervenientes:

Klaipėdos apskrities valstybinė mokesčių inspekcija,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: E. Juhász, presidente de secção, C. Vajda (relator) e K. Jürimäe, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 11 de janeiro de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da «Litdana» UAB, por P. Gruodis, advokatas,

–        em representação do Governo lituano, por K. Dieninis, D. Stepanienė e D. Kriaučiūnas, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo cipriota, por K.‑K. Kleanthous e E. Symeonidou, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Lozano Palacios e J. Jokubauskaitė, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 226.°, pontos 11 e 14, e do artigo 314.°, alíneas a) e d), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2010/45/UE do Conselho, de 13 de julho de 2010 (JO 2010, L 189, p. 1) (a seguir «Diretiva IVA»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a «Litdana» UAB à Valstybinė mokesčių inspekcija prie Lietuvos Respublikos finansų ministerijos (Inspeção Nacional dos Impostos sob a tutela do Ministério das Finanças da República da Lituânia, a seguir «Inspeção Nacional dos Impostos») a propósito da recusa desta autoridade em lhe conceder o direito de aplicar o regime de tributação da margem de lucro, para efeitos do cálculo do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) sobre a venda de automóveis em segunda mão adquiridos a uma empresa dinamarquesa.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O considerando 51 da Diretiva IVA enuncia:

«É conveniente adotar um regime de tributação comunitário aplicável no setor dos bens em segunda mão, dos objetos de arte e de coleção e das antiguidades, a fim de evitar a dupla tributação e as distorções de concorrência entre sujeitos passivos.»

4        Nos termos do artigo 226.° desta diretiva:

«Sem prejuízo das disposições específicas previstas na presente diretiva, as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas faturas emitidas em aplicação do disposto nos artigos 220.° e 221.° são as seguintes:

[…]

11)      Em caso de isenção, a referência à disposição aplicável da presente diretiva, ou à disposição nacional correspondente, ou qualquer outra menção indicando que a entrega de bens ou a prestação de serviços beneficia de isenção;

[…]

14)      Em caso de aplicação de um dos regimes especiais aplicáveis no domínio dos bens em segunda mão, dos objetos de arte e de coleção e das antiguidades, a menção “Regime da margem de lucro — Bens em segunda mão”, “Regime da margem de lucro — Objetos de arte” ou “Regime da margem de lucro — Objetos de coleção e antiguidades”, respetivamente;

[…]»

5        O artigo 313.°, n.° 1, da referida diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros aplicam às entregas de bens em segunda mão, de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades, efetuadas por sujeitos passivos revendedores, um regime especial de tributação da margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, em conformidade com o disposto na presente subsecção.»

6        O artigo 314.° da mesma diretiva enuncia:

«O regime da margem de lucro é aplicável às entregas de bens em segunda mão, de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades, efetuadas por um sujeito passivo revendedor, quando esses bens lhe tenham sido entregues no interior da Comunidade por uma das seguintes pessoas:

a)      Uma pessoa que não seja sujeito passivo;

b)      Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo esteja isenta em conformidade com o artigo 136.°;

c)      Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo beneficie da isenção para as pequenas empresas prevista nos artigos 282.° a 292.° e incida sobre um bem de investimento;

d)      Outro sujeito passivo revendedor, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo revendedor tenha sido sujeita ao IVA em conformidade com o presente regime especial.»

7        Nos termos do artigo 315.° da Diretiva IVA:

«O valor tributável das entregas de bens referidas no artigo 314.° é constituído pela margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, deduzido o montante do IVA correspondente à própria margem de lucro.

A margem de lucro do sujeito passivo revendedor é igual à diferença entre o preço de venda solicitado pelo sujeito passivo revendedor para os bens e o seu preço de compra.»

8        O artigo 323.° da Diretiva IVA enuncia:

«O sujeito passivo não pode deduzir, do imposto de que é devedor, o IVA devido ou pago pelos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues por um sujeito passivo revendedor, na medida em que a entrega desses bens pelo sujeito passivo revendedor esteja sujeita ao regime da margem de lucro.»

9        O artigo 325.° desta diretiva dispõe:

«O sujeito passivo revendedor não pode indicar separadamente nas faturas por ele emitidas o IVA correspondente às entregas de bens que sujeita ao regime da margem de lucro.»

 Direito lituano

10      O artigo 106.° da Lietuvos Respublikos pridėtinės vertės mokesčio įstatymas n.° IX‑751 (Lei da República da Lituânia n.° IX‑751 relativa ao imposto sobre o valor acrescentado), de 5 de março de 2002 (Žin., 2002, n.° 35‑1271), na versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «Lei do IVA»), enuncia:

«1.      Um sujeito passivo de IVA que entregue bens em segunda mão, obras de arte e de coleção ou antiguidades, tal como definidos neste artigo, deve aplicar o IVA aos bens em segunda mão, obras de arte e de coleção e antiguidades que foram entregues, em conformidade com as regras estabelecidas na presente secção. As disposições da referida secção são aplicáveis aos sujeitos passivos de IVA que, no âmbito da sua atividade económica, se dedicam, a título permanente, à entrega de bens em segunda mão, obras de arte e de coleção ou de antiguidades. Se o sujeito passivo de IVA entregar os seus ativos fixos tangíveis em segunda mão, deve considerar‑se que, no que respeita a essas operações, cumpre os requisitos deste número relativos ao exercício, a título permanente, da atividade de entrega de bens em segunda mão.

2.      As disposições desta secção são aplicáveis quando o sujeito passivo de IVA entrega bens em segunda mão, obras de arte e de coleção e/ou antiguidades adquiridos no território da União Europeia sem IVA, bens em segunda mão, obras de arte e de coleção e/ou antiguidades, a cuja aquisição era aplicável este regime de tributação especial, ou automóveis em segunda mão, aos quais se aplicavam, no momento da aquisição no Estado‑Membro de expedição, as disposições transitórias especiais aplicáveis nesse Estado‑Membro aos automóveis em segunda mão. […]»

11      O artigo 107.°, n.os 1 e 2, da Lei do IVA dispõe:

«1.      No caso das entregas de bens referidos no artigo 106.°, n.° 2, da [Lei do IVA], o valor tributável corresponde à margem de lucro do vendedor, calculada nos termos do n.° 2 deste artigo.

2.      A margem de lucro do vendedor é igual à diferença entre a contraprestação (excluindo o próprio IVA) recebida ou a receber pelo vendedor dos bens entregues e o montante (incluindo IVA) pago ou a pagar por este ao respetivo fornecedor no momento da aquisição desses bens. Se forem entregues bens importados pelo sujeito passivo de IVA, será adicionalmente deduzido o montante dos direitos de importação, das taxas de importação e do IVA sobre a importação cobrado sobre esses bens.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12      A Litdana exerce, a título permanente, a atividade de venda de automóveis em segunda mão. No período compreendido entre 1 de janeiro e 30 de outubro de 2012, a Litdana adquiriu à Handicare Auto A/S, uma sociedade dinamarquesa, automóveis em segunda mão, que revendeu a pessoas singulares e coletivas. Todas as faturas relativas aos automóveis em segunda mão adquiridos remetiam para os artigos 69.° a 71.° da Lei dinamarquesa relativa ao IVA e indicavam, também, que os automóveis vendidos estavam isentos de IVA. Na revenda, a Litdana aplicou aos automóveis em causa o regime da margem de lucro previsto no artigo 106.°, n.° 2, da Lei do IVA.

13      A Litdana foi sujeita a uma inspeção fiscal efetuada pela Klaipėdos apskrities valstybinė mokesčių inspekcija (Inspeção dos Impostos do distrito de Klaipėda, Lituânia, a seguir «Inspeção Regional dos Impostos»), que incidiu sobre o cálculo do IVA no período compreendido entre 1 de janeiro e 30 de outubro de 2012. Essa inspeção deu lugar a um relatório de inspeção, datado de 28 de abril de 2014, no qual a Inspeção Regional dos Impostos concluiu que a Litdana tinha aplicado, sem fundamento, o regime da margem de lucro aos 25 automóveis em segunda mão adquiridos à Handicare Auto e revendidos a pessoas singulares e coletivas, uma vez que esta última não tinha aplicado o regime da margem de lucro aos automóveis vendidos. Consequentemente, a Inspeção Regional dos Impostos exigiu à Litdana o pagamento de IVA no montante de 15 745,48 euros.

14      Em 23 de junho de 2014, a Inspeção Regional dos Impostos aprovou o relatório de inspeção e ordenou à Litdana o pagamento de 15 745,48 euros de IVA e de 3 141,76 euros de juros de mora, bem como uma coima que ascendia a 1 574,66 euros. Por decisão de 21 de agosto de 2014, a Inspeção Nacional dos Impostos confirmou essa decisão.

15      A Litdana interpôs recurso na Mokestinių ginčų komisija prie Lietuvos Respublikos Vyriausybės (Comissão de Contencioso Tributário sob a tutela do Governo da República da Lituânia, a seguir «Comissão de Contencioso Tributário»), pedindo a anulação das decisões da Inspeção Regional dos Impostos e da Inspeção Nacional dos Impostos.

16      Por decisão de 31 de outubro de 2014, a Comissão de Contencioso Tributário confirmou a decisão da Inspeção Nacional dos Impostos, mas isentou a Litdana da obrigação de pagar juros de mora.

17      A Litdana recorreu dessas várias decisões para o Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius, Lituânia).

18      O órgão jurisdicional de reenvio precisa que as autoridades tributárias lituanas recusaram à Litdana a aplicação do regime da margem de lucro tendo em conta apenas a informação, prestada pela autoridade tributária dinamarquesa, de que a Handicare Auto não tinha aplicado o regime da margem de lucro à entrega dos automóveis em causa. Assim, por um lado, a Inspeção Nacional dos Impostos não teve em consideração o facto de que as faturas apresentadas pela Handicare Auto indicavam que os automóveis vendidos estavam isentos de IVA e remetiam para os artigos 69.° a 71.° da Lei dinamarquesa relativa ao IVA e, por outro, a Comissão de Contencioso Tributário considerou que a Litdana, se tivesse agido diligentemente, teria contactado a Handicare Auto e pedido a confirmação de que esses automóveis tinham sido vendidos ao abrigo do regime da margem de lucro ou perguntado às autoridades tributárias dinamarquesas se essa sociedade tinha transmitido à base de dados eletrónica do Sistema de Intercâmbio de Informações sobre o IVA (VIES) os dados relativos à entrega dos automóveis em causa.

19      Consequentemente, a questão que se coloca ao órgão jurisdicional de reenvio é a de saber se um sujeito passivo, que tenha recebido uma fatura da qual constam menções relativas ao regime da margem de lucro e à isenção de IVA, tem o direito de aplicar o referido regime, previsto no artigo 314.° da Diretiva IVA, não obstante resultar de uma inspeção posterior das autoridades tributárias que o sujeito passivo revendedor que forneceu os bens em causa não o aplicou.

20      Nestas circunstâncias, o Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius) decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

«1)      Nos termos dos artigos 314.°, alínea a), e 226.°, ponto 11, da Diretiva [IVA], bem como dos artigos 314.°, alínea d), e 226.°, ponto 14, desta diretiva, são admissíveis regras nacionais e/ou práticas nacionais baseadas nessas regras que impeçam um sujeito passivo de aplicar o regime da margem de lucro do IVA pelo facto de uma inspeção realizada pela autoridade tributária ter revelado que tinham sido fornecidos informações/dados incorretos sobre o regime da margem de lucro do IVA e/ou sobre a isenção do IVA nas faturas dos bens entregues, quando o sujeito passivo não sabia nem podia saber desse facto?

2)      Deve o artigo 314.° da Diretiva [IVA] ser entendido e interpretado no sentido de que, embora a fatura de IVA indique que os bens estão isentos de IVA (artigo 226.°, ponto 11, da Diretiva [IVA]) e/ou que o vendedor aplicou o regime da margem de lucro à entrega dos bens (artigo 226.°, ponto 14, da Diretiva [IVA]), o sujeito passivo só adquire o direito de aplicar o regime da margem de lucro do IVA se o fornecedor dos bens aplicar efetivamente esse regime e cumprir as suas obrigações em matéria de pagamento do IVA (paga IVA sobre a margem no seu Estado)?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

21      É pacífico que se deve entender que a menção «Sections 6971», que remete para as disposições de direito dinamarquês aplicáveis e que figura nas faturas recebidas pela Litdana, corresponde, em substância, à menção «Regime da margem de lucro — Bens em segunda mão», que, de acordo com o artigo 226.°, ponto 14, da Diretiva IVA, deve obrigatoriamente figurar nas faturas em caso de aplicação do regime especial aplicável no domínio dos bens em segunda mão. Além disso, não decorre da decisão de reenvio nem das observações apresentadas no Tribunal de Justiça pelas partes no processo principal que a questão da conformidade das faturas recebidas pela Litdana com as exigências previstas no artigo 226.° da Diretiva IVA se coloque no processo principal.

 Quanto às questões

22      Com as suas questões, que importa analisar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 314.° da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades competentes de um Estado‑Membro neguem a um sujeito passivo, que recebeu uma fatura da qual constam menções relativas ao regime da margem de lucro e à isenção de IVA, o direito de aplicar este mesmo regime, se resultar de uma inspeção posterior das referidas autoridades que o sujeito passivo revendedor que forneceu os bens em segunda mão não aplicou efetivamente o referido regime à entrega desses bens.

23      A título preliminar, deve recordar‑se que o regime de tributação da margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor no momento da entrega de bens em segunda mão, como os que estão em causa no processo principal, constitui um regime especial de IVA, derrogatório do regime geral da Diretiva IVA. Consequentemente, o artigo 314.° desta diretiva, que identifica os casos de aplicação deste regime especial, deve ser objeto de interpretação estrita (v. acórdão de 19 de julho de 2012, Bawaria Motors, C‑160/11, EU:C:2012:492, n.os 28 e 29 e jurisprudência referida).

24      Como resulta dos artigos 314.° e 315.° da Diretiva IVA, o regime da margem de lucro permite que o sujeito passivo revendedor apenas aplique o IVA sobre a margem de lucro que realizou na revenda de bens em segunda mão, objetos de arte e de coleção ou antiguidades, adquiridos às pessoas abrangidas pelo artigo 314.°, alíneas a) a d), da Diretiva IVA, margem de lucro essa que corresponde à diferença entre o preço de venda solicitado pelo sujeito passivo revendedor pelo bem e o preço de compra.

25      O objetivo do regime da margem de lucro é, como decorre do considerando 51 da Diretiva IVA, evitar as duplas tributações e as distorções de concorrência entre sujeitos passivos no domínio dos bens em segunda mão, dos objetos de arte e de coleção e das antiguidades (v., neste sentido, acórdão de 3 de março de 2011, Auto Nikolovi, C‑203/10, EU:C:2011:118, n.° 47 e jurisprudência referida).

26      Tributar pela totalidade do seu preço a entrega de bens em segunda mão, de objetos de arte, de coleção ou de antiguidades por um sujeito passivo revendedor, quando o preço a que este adquiriu esses bens inclui uma quantia de IVA paga a montante por uma pessoa que pertence a uma das categorias identificadas no artigo 314.°, alíneas a) a d), da referida diretiva, e que nem essa pessoa nem o sujeito passivo revendedor puderam deduzir, implicaria, com efeito, uma dupla tributação (v., neste sentido, acórdão de 3 de março de 2011, Auto Nikolovi, C‑203/10, EU:C:2011:118, n.° 48 e jurisprudência referida).

27      Os requisitos que devem ser preenchidos para que um sujeito passivo possa aplicar o regime da margem de lucro estão previstos no artigo 314.° da Diretiva IVA. Este artigo, além de precisar o tipo de bens que um sujeito passivo revendedor pode entregar ao abrigo do regime da margem de lucro, estabelece, nos seus pontos a) a d), a lista de pessoas a quem esse sujeito passivo revendedor se deve dirigir para adquirir esses bens e que lhe permitem, assim, aplicar esse regime especial. Essas várias pessoas têm em comum o facto de não poderem de modo nenhum deduzir o imposto pago a montante no momento da compra desses bens e, por conseguinte, suportaram integralmente esse imposto (v., neste sentido, acórdão de 19 de julho de 2012, Bawaria Motors, C‑160/11, EU:C:2012:492, n.° 37).

28      No presente caso, decorre da decisão de reenvio que nas faturas que a Litdana recebeu da Handicare Auto figuravam menções relativas ao regime da margem de lucro e à isenção de IVA. Assim, na fatura n.° 96681, incluída nos autos apresentados ao Tribunal de Justiça, e que constitui um exemplo tipo de fatura emitida pela Handicare Auto pela entrega dos bens em causa no processo principal, figuram, além das menções relativas à data de emissão da fatura, ao número de identificação IVA sob o qual a Handicare Auto efetuou a entrega dos bens, ao nome completo e à morada dessa sociedade, à quantidade e à natureza dos bens entregues, ao preço unitário, ao preço «Total DKK», ao montante de IVA igual a «0» e ao montante «Total DKK incl. VAT», as menções «Sections 6971» e «Free of VAT».

29      Resulta da decisão de reenvio que a indicação da menção constante das faturas emitidas pela Handicare Auto quanto à aplicação do regime da margem de lucro não estava correta, pois, na sequência de uma inspeção das autoridades tributárias, constatou‑se que a Handicare Auto não tinha efetivamente aplicado esse regime à entrega dos automóveis em segunda mão em causa. As referidas autoridades concluíram daí que a Litdana não tinha o direito de aplicar o regime da margem de lucro por não estarem preenchidos os requisitos de aplicação do referido regime, razão pela qual pediram posteriormente à Litdana o pagamento do IVA no montante aplicável.

30      A este respeito, note‑se que é pressuposto da aplicação do regime da margem de lucro previsto no artigo 314.°, alínea d), da Diretiva IVA que os bens contemplados neste artigo sejam entregues ao sujeito passivo por outro sujeito passivo revendedor que tenha aplicado esse regime especial à entrega, pressuposto que no presente caso não está preenchido. Além disso, não decorre das indicações constantes da decisão de reenvio que a situação no processo principal se enquadre noutro caso de aplicação do referido regime previsto neste artigo 314.o

31      Recorde‑se, neste contexto, que o Tribunal de Justiça considerou reiteradamente que os particulares não se podem prevalecer abusiva ou fraudulentamente das normas do direito da União (acórdão de 18 de dezembro de 2014, Schoenimport «Italmoda» Mariano Previti e o., C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2455, n.° 43).

32      O Tribunal de Justiça começou por concluir, no âmbito de jurisprudência constante sobre o direito a dedução do IVA previsto na Diretiva IVA, que compete às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o benefício do direito a dedução se se demonstrar, à luz de elementos objetivos, que este direito é invocado fraudulenta ou abusivamente. Em seguida, considerou que a consequência de um abuso ou de uma fraude também está, em princípio, relacionada com o benefício do direito à isenção no âmbito de uma entrega intracomunitária (v., neste sentido, acórdão de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 54). O Tribunal de Justiça afirmou, por último, que, visto que uma eventual recusa de um direito baseado na Diretiva IVA reflete o princípio geral segundo o qual ninguém deve beneficiar abusiva ou fraudulentamente dos direitos decorrentes do sistema jurídico da União, tal recusa incumbe, em geral, às autoridades e órgãos jurisdicionais nacionais, qualquer que seja o direito em matéria de IVA afetado pela fraude, incluindo, por conseguinte, o direito ao reembolso do IVA (v., neste sentido, acórdão de 18 de dezembro de 2014, Schoenimport «Italmoda» Mariano Previti e o., C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2455, n.° 46).

33      Segundo jurisprudência constante, é o que sucede não apenas quando a fraude fiscal é cometida pelo próprio sujeito passivo mas igualmente quando o sujeito passivo sabia ou devia saber que, através da operação em causa, participava numa operação envolvida numa fraude ao IVA cometida pelo fornecedor ou por outro operador interveniente a montante ou a jusante da cadeia de entregas (v., em matéria de direito a dedução, acórdão de 6 de dezembro de 2012, Bonik, C‑285/11, EU:C:2012:774, n.os 38 a 40; em matéria de direito a isenção de uma entrega intracomunitária, acórdão de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 54; e, em matéria de reembolso do IVA, acórdão de 18 de dezembro de 2014, Schoenimport «Italmoda» Mariano Previti e o., C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2455, n.os 49 e 50).

34      Assim, não é contrário ao direito da União exigir a um operador que aja de boa‑fé e tome todas as medidas razoavelmente exigíveis para se certificar de que a operação que efetua não implica a sua participação numa fraude fiscal (acórdão de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 48 e jurisprudência referida).

35      Em contrapartida, não é compatível com o regime do direito a dedução previsto na Diretiva IVA recusar esse direito a um sujeito passivo que não sabia nem podia saber que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou que outra operação incluída na cadeia de entregas, anterior ou posterior à realizada pelo referido sujeito passivo, era constitutiva de uma fraude ao IVA. Com efeito, a instituição de um sistema de responsabilidade objetiva ultrapassaria aquilo que é necessário para preservar os direitos do Tesouro Público (acórdão de 6 de dezembro de 2012, Bonik, C‑285/11, EU:C:2012:774, n.os 41 e 42 e jurisprudência referida).

36      Resulta daqui que, mesmo que todos os requisitos materiais de obtenção do direito a isenção do IVA de uma entrega intracomunitária ou a dedução do IVA não estejam todos preenchidos, o Tribunal de Justiça considerou que o referido direito não pode ser recusado ao sujeito passivo que aja de boa‑fé e tome todas as medidas que lhe podem ser razoavelmente exigidas para se certificar de que a operação que efetua não implica a sua participação numa fraude fiscal (v., neste sentido, acórdãos de 27 de setembro de 2007, Teleos e o., C‑409/04, EU:C:2007:548, n.° 68, e de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.os 47 a 50 e 55).

37      As considerações recordadas nos n.os 32 a 35 do presente acórdão são pertinentes em caso de recusa das autoridades ou dos órgãos jurisdicionais nacionais do direito de aplicar o regime da margem de lucro, previsto no artigo 314.° da Diretiva IVA, ponto sobre o qual as partes e os interessados que apresentaram observações no Tribunal de Justiça estão de acordo.

38      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a determinação das medidas que podem, num caso concreto, ser razoavelmente exigidas a um sujeito passivo que pretende exercer um direito conferido pela Diretiva IVA para se certificar de que as suas operações não fazem parte de uma fraude cometida por um operador a montante depende essencialmente das circunstâncias do referido caso concreto (v., por analogia, acórdãos de 21 de junho de 2012, Mahagében e Dávid, C‑80/11 e C‑142/11, EU:C:2012:373, n.os 53, 54 e 59, e de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 53).

39      Quando existem indícios que permitem suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude, o operador prudente pode, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, ver‑se obrigado a obter informações sobre outro operador a quem pretende adquirir bens ou serviços, para se certificar da fiabilidade desse operador (v., por analogia, acórdão de 21 de junho de 2012, Mahagében e Dávid, C‑80/11 e C‑142/11, EU:C:2012:373, n.° 60).

40      Contudo, a administração fiscal não pode exigir de maneira geral que o sujeito passivo que pretende exercer o direito de aplicar o regime da margem de lucro, por um lado, verifique, nomeadamente, que o emitente da fatura referente aos bens em função dos quais o exercício deste direito é pedido cumpriu as suas obrigações de declaração e de pagamento do IVA, a fim de se certificar de que não existem irregularidades ou fraude a nível dos operadores a montante, ou, por outro, possua documentos a este respeito (v., por analogia, acórdão de 21 de junho de 2012, Mahagében e Dávid, C‑80/11 e C‑142/11, EU:C:2012:373, n.° 61).

41      Com efeito, em princípio, incumbe às autoridades fiscais efetuar as inspeções necessárias junto dos operadores a fim de detetar irregularidades e fraudes ao IVA, bem como aplicar sanções ao operador que cometa essas irregularidades ou essas fraudes (v., por analogia, acórdão de 21 de junho de 2012, Mahagében e Dávid, C‑80/11 e C‑142/11, EU:C:2012:373, n.° 62).

42      Assim, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, à luz dos princípios plasmados nos n.os 37 a 41 do presente acórdão, apreciar a questão de saber se a Litdana agiu de boa‑fé e tomou todas as medidas que lhe podem ser razoavelmente exigidas para se certificar de que as operações que efetuou não estavam implicadas numa fraude fiscal.

43      Entre os elementos e circunstâncias de facto que o órgão jurisdicional de reenvio pode ter em consideração a este respeito poderá nomeadamente figurar o facto de que não está demonstrado que a Litdana sabia que a Handicare Auto não tinha efetivamente aplicado o regime da margem de lucro às entregas em causa no processo principal. Em todo o caso, tal não decorre da decisão de reenvio.

44      Quanto ao ponto de saber se a Litdana tomou todas as medidas necessárias para se certificar de que as operações que realizou não estavam implicadas numa fraude fiscal, o órgão jurisdicional de reenvio poderá, no âmbito da sua apreciação global, ter nomeadamente em consideração o facto de que as entregas em causa no processo principal pareciam enquadrar‑se numa relação comercial de longa data entre a Litdana e a Handicare Auto, em cujo contexto a Litdana tomou no passado a diligência de verificar, junto das autoridades tributárias, o significado da menção «Sections 6971», constante das faturas emitidas pela Handicare Auto, e obteve das referidas autoridades a confirmação de que as faturas em que figurava esta menção eram prova suficiente para poder aplicar o regime da margem de lucro. Ora, nessas circunstâncias, seria contrário ao princípio da proporcionalidade exigir que o sujeito passivo verifique sistematicamente, em cada entrega, se o fornecedor aplicou efetivamente o regime da margem de lucro, pelo menos quando não existem indícios que permitam suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude na aceção do n.° 39 do presente acórdão.

45      Quanto ao ponto de saber se, no processo principal, existem indícios que permitem suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude, saliente‑se que o Governo lituano admitiu na audiência, em resposta a uma questão do Tribunal de Justiça, que a mera indicação da menção «Sections 6971» constante das faturas recebidas pela Litdana não constitui, isoladamente, um indício que lhe permitisse suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude. No entender deste governo, é o facto de inserir simultaneamente nas faturas a menção «Sections 6971» e a menção «Free of VAT» que constitui um índice da existência de irregularidades ou de fraude, na aceção do n.° 39 do presente acórdão.

46      A este respeito, embora esta dupla menção não esteja desprovida de ambiguidades, pois parece remeter quer para as regras da tributação da entrega com base na margem de lucro do revendedor quer para as regras que isentam a entrega de IVA, cabe salientar, na senda da Comissão Europeia, que não é certo que a referida dupla menção possa levar um operador prudente, que não seja perito em matéria de IVA, a suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude cometidas por um operador a montante. Com efeito, não é de excluir a possibilidade de o sujeito passivo interpretar essa dupla menção como a confirmação de que a entrega foi efetuada, ao abrigo do artigo 314.°, alínea d), da Diretiva IVA, por outro sujeito passivo revendedor, quando a entrega pelo outro sujeito passivo revendedor esteve sujeita ao IVA em conformidade com o regime da margem de lucro. Quer a menção relativa à isenção de IVA quer a menção relativa ao regime da margem de lucro nas faturas em causa no processo principal podem também ser interpretadas pelo sujeito passivo, como assinalou a Litdana na audiência, como a confirmação de que só a margem do revendedor era tributada, ficando o valor dos bens em causa isento, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

47      Além disso, e sem prejuízo da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a menção «Free of VAT», conjugada com as menções «Sections 6971» e «Total DKK incl. VAT», constantes dessas faturas, também pode ser interpretada pelo sujeito passivo como a confirmação de que, no âmbito da aplicação do regime da margem de lucro, este não pode, em conformidade com o artigo 323.° da Diretiva IVA, deduzir o imposto pago a montante no momento da compra dos bens em questão, ou ainda que se trata de entregas sujeitas ao referido regime, ao abrigo do qual, de acordo com o artigo 325.° desta diretiva, as faturas emitidas pelo sujeito passivo revendedor não podem mostrar separadamente o IVA correspondente às entregas.

48      Atendendo às considerações expostas, há que responder às questões submetidas que o artigo 314.° da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades competentes de um Estado‑Membro neguem ao sujeito passivo que tenha recebido uma fatura da qual constam menções relativas ao regime da margem de lucro e à isenção de IVA o direito de aplicar o regime da margem de lucro, mesmo que resulte de uma inspeção posterior das referidas autoridades que o sujeito passivo revendedor que forneceu os bens em segunda mão não aplicou efetivamente este regime à entrega desses bens, a menos que as autoridades competentes demonstrem que o sujeito passivo não agiu de boa‑fé ou não tomou todas as medidas razoáveis ao seu alcance para se certificar de que a operação que realiza não implica a sua participação numa fraude fiscal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto às despesas

49      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.


Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O artigo 314.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, conforme alterada pela Diretiva 2010/45/UE do Conselho, de 13 de julho de 2010, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades competentes de um EstadoMembro neguem ao sujeito passivo que tenha recebido uma fatura da qual constam menções relativas ao regime da margem de lucro e à isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) o direito de aplicar o regime da margem de lucro, mesmo que resulte de uma inspeção posterior das referidas autoridades que o sujeito passivo revendedor que forneceu os bens em segunda mão não aplicou efetivamente este regime à entrega desses bens, a menos que as autoridades competentes demonstrem que o sujeito passivo não agiu de boafé ou não tomou todas as medidas razoáveis ao seu alcance para se certificar de que a operação que realiza não implica a sua participação numa fraude fiscal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assinaturas


*      Língua do processo: lituano.


i      O dispositivo do presente texto, foi objeto de uma alteração de ordem linguística, posteriormente à sua disponibilização em linha.