Language of document : ECLI:EU:C:2016:934

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

8 de dezembro de 2016 (*)

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2008/48/CE — Proteção dos consumidores — Crédito aos consumidores — Artigo 2.°, n.° 2, alínea j) — Acordos de pagamento a prestações — Pagamentos diferidos sem encargos — Artigo 3.°, alínea f) — Intermediários de crédito — Sociedades de cobranças que atuam em nome dos mutuantes»

No processo C‑127/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria), por decisão de 17 de fevereiro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de março de 2015, no processo

Verein für Konsumenteninformation

contra

INKO, Inkasso GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, M. Vilaras, J. Malenovský, M. Safjan (relator) e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 25 de fevereiro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Verein für Konsumenteninformation, por S. Langer, Rechtsanwalt,

–        em representação da INKO, Inkasso GmbH, por C. Rabl, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze, M. Hellmann, J. Kemper e D. Kuon, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por D. Colas e S. Ghiandoni, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo lituano, por K. Dieninis, D. Kriaučiūnas e J. Nasutavičienė, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e G. Goddin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 21 de julho de 2016,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.°, alínea j), e do artigo 3.°, alínea f), da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO 2008, L 133, p. 66; retificações no JO 2009, L 207, p. 14, no JO 2010, L 199, p. 40, no JO 2011, L 234, p. 46, e no JO 2015, L 36, p. 15).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Verein für Konsumenteninformation (Associação para a Informação dos Consumidores, a seguir «Associação») à INKO, Inkasso GmbH (a seguir «Inko») a propósito de uma prática desta última que consiste em celebrar com consumidores acordos de pagamento a prestações de dívidas que têm por objeto a concessão do pagamento diferido, sem lhes ter comunicado informações pré‑contratuais.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O considerando 24 da Diretiva 2008/48 enuncia:

«É necessário que o consumidor seja exaustivamente informado antes da celebração do contrato de crédito, independentemente de haver ou não um intermediário envolvido na comercialização do crédito. Por conseguinte, de um modo geral, os requisitos de informação pré‑contratual deverão também ser aplicáveis aos intermediários de crédito. Contudo, se os fornecedores de bens ou os prestadores de serviços atuarem na qualidade de intermediários de crédito a título acessório, não é conveniente impor‑lhes a obrigação jurídica de prestarem informações pré‑contratuais nos termos da presente diretiva. Pode considerar‑se, por exemplo, que os fornecedores de bens e serviços atuam como intermediários de crédito a título acessório se a sua atividade nessa qualidade não for o principal objetivo da sua atividade comercial ou profissional. Nestes casos, é ainda garantido um nível suficiente de proteção do consumidor, dado que o mutuante tem a responsabilidade de assegurar que o consumidor receba toda a informação pré‑contratual, seja através do intermediário — se o mutuante e o intermediário assim o acordarem — seja de qualquer outro modo adequado.»

4        Nos termos do artigo 2.° desta diretiva, com a epígrafe «Âmbito de aplicação»:

«1.      A presente diretiva é aplicável aos contratos de crédito.

2.      A presente diretiva não é aplicável a:

[…]

f)      Contratos de crédito cujo crédito é concedido sem juros ou outros encargos e contratos de crédito por força dos quais o crédito deva ser reembolsado no prazo de três meses e pelos quais apenas o pagamento de encargos insignificantes é devido;

[…]

j)      Contratos de crédito que digam respeito ao pagamento diferido, sem encargos, de uma dívida existente;

[…]

6.      Os Estados‑Membros podem determinar que apenas sejam aplicáveis os artigos 1.° a 4.°, 6.°, 7.°, 9.°, o n.° 1 do artigo 10.°, as alíneas a) a i), l) e r) do n.° 2 do artigo 10.°, o n.° 4 do artigo 10.°, os artigos 11.°, 13.°, 16.° e 18.° a 32.° aos contratos de crédito que prevejam que o mutuante e o consumidor acordem em disposições relativas ao pagamento diferido ou a métodos de reembolso, se o consumidor já estiver em falta aquando da celebração do contrato de crédito inicial e nos casos em que:

a)      Essas disposições sejam suscetíveis de afastar a possibilidade de ação judicial relativa a essa falta; e

b)      O consumidor não fique sujeito a condições menos favoráveis que as do contrato de crédito inicial.

[…]»

5        O artigo 3.° da referida diretiva, com a epígrafe «Definições», enuncia:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

b)      ‘Mutuante’: a pessoa singular ou coletiva que concede ou promete conceder um crédito no âmbito das suas atividades comerciais ou profissionais;

c)      ‘Contrato de crédito’: o contrato por meio do qual um mutuante concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de pagamento diferido, empréstimo ou qualquer outro acordo financeiro semelhante; excetuam‑se os contratos de prestação de serviços ou de fornecimento de bens do mesmo tipo com caráter de continuidade, nos termos dos quais o consumidor pague esses serviços ou bens a prestações durante o período de validade dos referidos contratos;

[…]

f)      ‘Intermediário de crédito’: uma pessoa singular ou coletiva que não atue como mutuante e que, no exercício das suas atividades comerciais ou profissionais, contra uma remuneração que pode ser de caráter pecuniário ou assumir qualquer outra forma de retribuição financeira que tenha sido acordada:

i)      apresenta ou propõe contratos de crédito aos consumidores;

ii)      presta assistência aos consumidores mediante a realização de trabalhos preparatórios relativos a contratos de crédito diferentes dos referidos na subalínea i); ou

iii)      celebra contratos de crédito com os consumidores em nome do mutuante;

g)      ‘Custo total do crédito para o consumidor’: todos os custos, incluindo juros, comissões, taxas e encargos de qualquer natureza ligados ao contrato de crédito que o consumidor deve pagar e que são conhecidos do mutuante, com exceção dos custos notariais; os custos decorrentes de serviços acessórios relativos ao contrato de crédito, em especial os prémios de seguro, são igualmente incluídos se, além disso, a celebração do contrato de serviço for obrigatória para a obtenção de todo e qualquer crédito ou para a obtenção do crédito nos termos e condições de mercado;

h)      ‘Montante total imputado ao consumidor’: a soma do montante total do crédito e do custo total do crédito para o consumidor;

i)      ‘Taxa anual de encargos efetiva global’: o custo total do crédito para o consumidor expresso em percentagem anual do montante total do crédito e, sendo caso disso, acrescido dos custos previstos no n.° 2 do artigo 19.°;

[…]»

6        O artigo 5.° da Diretiva 2008/48, com a epígrafe «Informações pré‑contratuais», dispõe, no seu n.° 1:

«Em tempo útil, antes de o consumidor se encontrar obrigado por um contrato de crédito ou uma oferta, o mutuante e, se for caso disso, o intermediário de crédito devem, com base nos termos e nas condições do crédito oferecidas pelo mutuante e, se for caso disso, nas preferências expressas pelo consumidor e nas informações por este fornecidas, dar ao consumidor as informações necessárias para comparar diferentes ofertas, a fim de tomar uma decisão com conhecimento de causa quanto à celebração de um contrato de crédito. […]»

7        O artigo 6.° desta diretiva, com a epígrafe «Informações pré‑contratuais a fornecer em determinados contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto e em determinados contratos de crédito específicos», prevê, no seu n.° 1:

«Em tempo útil, antes de o consumidor se encontrar obrigado por um contrato de crédito ou uma proposta referente a um contrato de crédito referidos nos n.os 3, 5 ou 6 do artigo 2.°, o mutuante e, se for caso disso, o intermediário de crédito devem, com base nos termos e nas condições do crédito oferecidas pelo mutuante e, se for caso disso, nas preferências expressas pelo consumidor e nas informações por este fornecidas, dar ao consumidor as informações necessárias para comparar diferentes ofertas, a fim de tomar uma decisão com conhecimento de causa quanto à celebração de um contrato de crédito.

[…]»

8        Nos termos do artigo 7.° da referida diretiva, com a epígrafe «Isenções dos requisitos de informação pré‑contratual»:

«Os artigos 5.° e 6.° não são aplicáveis aos fornecedores ou prestadores de serviços que intervenham a título acessório como intermediários de crédito. Esta disposição não prejudica a obrigação do mutuante de assegurar que o consumidor receba as informações pré‑contratuais referidas nesses artigos.»

9        Nos termos do artigo 21.° da mesma diretiva, com a epígrafe «Certas obrigações dos intermediários de crédito perante os consumidores»:

«Os Estados‑Membros devem assegurar que:

a)      Um intermediário de crédito indica, tanto na publicidade como nos documentos destinados aos consumidores, o alcance dos seus poderes, nomeadamente o facto de trabalhar de forma exclusiva com um ou mais mutuantes ou na qualidade de corretor independente;

b)      A eventual taxa a pagar pelo consumidor ao intermediário de crédito pelos seus serviços é comunicada ao consumidor e acordada entre o consumidor e o intermediário de crédito em papel ou noutro suporte duradouro antes da celebração do contrato de crédito;

c)      A eventual taxa a pagar pelo consumidor ao intermediário de crédito pelos seus serviços é comunicada ao mutuante pelo intermediário de crédito com o objetivo de calcular a taxa anual de encargos efetiva global.»

 Direito austríaco

10      O § 6 da Verbraucherkreditgesetz (Lei do crédito ao consumo) de 20 de maio de 2010 (BGBl. I, 28/2010, a seguir «VKrG») tem a seguinte redação:

«1.      Em tempo útil, antes de o consumidor se encontrar obrigado por um contrato de crédito ou uma oferta, o mutuante deve, com base nos termos e nas condições do crédito oferecidas pelo mutuante e, se for caso disso, nas preferências expressas pelo consumidor e nas informações por este fornecidas, dar ao consumidor as informações necessárias para comparar diferentes ofertas, a fim de tomar uma decisão com conhecimento de causa quanto à celebração de um contrato de crédito. Essas informações devem ser dadas em papel ou noutro suporte duradouro e devem especificar em especial o seguinte:

1)      O tipo de crédito;

[…]

3)      O montante total do crédito e as condições de utilização;

4)      A duração do contrato de crédito;

[…]

7)      A taxa anual de encargos efetiva global e o montante total imputado ao consumidor, ilustrada através de um exemplo representativo que indique todos os pressupostos utilizados no cálculo desta taxa, nos termos do § 27; […]

[…]

8.      As obrigações de informação previstas nos n.os 1 a 7 aplicam‑se igualmente ao intermediário do crédito, se este não for apenas um fornecedor de bens ou prestador de serviços que se limita a participar no contrato numa função subalterna.»

11      O § 25 da VKrG prevê:

«1.      As disposições da secção 2 […] são aplicáveis […] aos contratos através dos quais uma empresa concede a um consumidor, mediante remuneração, a possibilidade de pagamento diferido ou outra facilidade de financiamento. […]

2.      […] O preço de venda a pronto bem como os bens ou as prestações de serviços devem igualmente constar das informações pré‑contratuais (§ 6, n.° 1) […]»

12      Nos termos do § 1000, n.° 1, do Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil).

«Os juros que tenham sido acordados sem indicação da respetiva taxa ou que resultem da lei são pagos à taxa de 4% ao ano, quando a lei não preveja de modo diferente.»

13      O § 1333 desse código dispõe:

«1.      O prejuízo que o devedor tenha causado ao seu credor por mora no pagamento de um crédito em dinheiro é compensado através dos juros legais (§ 1000, n.° 1).

2.      O credor pode também pedir, além dos juros legais, a reparação de outros danos que lhe tenham sido causados pelo devedor, em especial as despesas necessárias correspondentes às medidas de cobrança extrajudicial, desde que estas sejam proporcionadas ao crédito de que se trata.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14      A Associação está habilitada, ao abrigo da legislação austríaca, a propor ações inibitórias coletivas para proteger os interesses dos consumidores.

15      A Inko explora uma agência de cobrança de créditos. No âmbito da sua atividade, envia aos devedores, por conta dos credores, cartas de interpelação em que menciona o montante do crédito em dívida, incluindo os juros vencidos, e os seus próprios encargos de cobrança. Convida os devedores a pagarem a sua dívida no prazo de três dias ou a preencherem um formulário previamente redigido relativo à aceitação de um plano de pagamento a prestações da sua dívida e a reenviar‑lho. Ao formalizarem o acordo, os devedores reconhecem a existência do crédito «acrescido dos juros e encargos administrativos a calcular até à data de vencimento». Obrigam‑se a pagar a sua dívida, em prestações mensais de um montante determinado, em conformidade com o referido plano, sendo os pagamentos efetuados imputados, em primeiro lugar, aos encargos da Inko e, depois, ao capital e aos juros.

16      A Associação apresentou no Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena, Áustria) um pedido no sentido de que a Inko fosse proibida de celebrar com os consumidores acordos de reembolso de dívidas que tenham por objeto a concessão do pagamento diferido, sem a comunicação das informações a que se refere o § 6 da VKrG.

17      Por decisão de 14 de novembro de 2013, este órgão jurisdicional julgou procedente o pedido da Associação.

18      Na sequência de um recurso interposto desta decisão, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) reformou‑a parcialmente, por acórdão de 30 de julho de 2014.

19      Tanto a Associação como a Inko interpuseram um recurso de «Revision» desse acórdão para o órgão jurisdicional de reenvio.

20      Este último observa que uma agência de cobrança de créditos como a Inko atua a título profissional e remunera a sua atividade através da faturação de diversos encargos. Propõe aos devedores, em nome dos credores, a celebração de acordos que têm por objeto o pagamento diferido, ou um pagamento a prestações dos reembolsos.

21      Resulta da decisão de reenvio que o objeto social da Inko consiste, em primeiro lugar, na cobrança de créditos. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma agência de cobranças como a Inko, cuja atividade enquanto intermediário de crédito tem apenas caráter secundário em relação às outras atividades profissionais que exerce a título principal, pode ser considerada um «intermediário de crédito» na aceção do artigo 3.°, alínea f), da Diretiva 2008/48.

22      No que se refere às consequências financeiras da mora no pagamento de uma dívida, previstas na legislação austríaca, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o devedor é obrigado não só a pagar os juros legais a uma taxa de 4%, mas também a reparar os outros danos sofridos pelo credor, incluindo os referentes aos encargos de cobrança do crédito, na medida em que sejam proporcionados.

23      Resulta da decisão de reenvio que a Associação não provou que os juros e encargos imputados pela Inko aos mutuários em situação de incumprimento excedem, pelos seus montantes, os devidos aos credores em conformidade com a legislação austríaca, quando estes últimos concedem o pagamento diferido aos referidos devedores.

24      Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se os acordos de pagamento a prestações de dívidas que têm por objeto a concessão do pagamento diferido, celebrados pela Inko com os consumidores, podem ser considerados «sem encargos», nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48 e, por esse facto, excluídos do âmbito de aplicação dessa diretiva.

25      Nestas condições, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Uma agência de cobranças que, na sua atividade profissional de cobrança de créditos em nome dos seus mandantes, propõe aos respetivos devedores a assinatura de um acordo de pagamento a prestações, faturando comissões pela sua atividade, que têm de ser finalmente suportadas pelos devedores, exerce a atividade de ‘intermediário de crédito’ na aceção do artigo 3.°, alínea f), da [Diretiva 2008/48]?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Um acordo de pagamento a prestações, concluído por intermédio de uma agência de cobranças entre um devedor e o respetivo credor, é um ‘pagamento diferido, sem encargos’ na aceção do artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48/CE, quando o devedor apenas se obriga no referido acordo a pagar o crédito não reembolsado e os mesmos juros e encargos que já teria de pagar por força da lei — ou seja, mesmo sem esse acordo — em virtude de ter incorrido em mora?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à segunda questão

26      Com a sua segunda questão, que há que analisar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido de que um acordo de pagamento a prestações de um crédito que, na sequência do incumprimento do consumidor, é celebrado entre este e o mutuante, por intermédio de uma agência de cobranças, é «sem encargos» nos termos dessa disposição, quando, através desse acordo, o consumidor se obriga a reembolsar o montante total desse crédito e a pagar os juros e encargos a que estaria obrigado, na falta do referido acordo, em conformidade com a regulamentação nacional.

27      Para responder a esta questão, importa, a título preliminar, salientar que a Diretiva 2008/48 prevê, em matéria de crédito aos consumidores, uma harmonização plena e imperativa em determinados domínios essenciais, que é considerada necessária para garantir que todos os consumidores da União Europeia beneficiam de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para facilitar o surgimento de um mercado interno que funcione corretamente em matéria de crédito ao consumo (v. acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.° 21).

28      Em conformidade com o seu artigo 2.°, n.° 1, esta diretiva aplica‑se aos contratos de crédito, com exceção, designadamente, segundo o n.° 2, alínea j), do referido artigo, dos contratos de crédito que digam respeito ao pagamento diferido, sem encargos, de uma dívida existente.

29      No que se refere, por um lado, ao conceito de «contrato de crédito», este é definido no artigo 3.°, alínea c), da referida diretiva como o contrato por meio do qual um mutuante concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de pagamento diferido, empréstimo ou qualquer outro acordo financeiro semelhante; excetuam‑se os contratos de prestação de serviços ou de fornecimento de bens do mesmo tipo com caráter de continuidade, nos termos dos quais o consumidor pague esses serviços ou bens a prestações durante o período de validade dos referidos contratos.

30      Importa constatar que o conceito de «contrato de crédito», definido pela referida disposição, é particularmente amplo e abrange um acordo como o que está em causa no processo principal, que prevê o pagamento a prestações dos reembolsos de uma dívida existente.

31      A este respeito, resulta expressamente do artigo 2.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 que esta se aplica, em princípio, aos contratos de crédito que prevejam um acordo relativo ao pagamento diferido ou a métodos de reembolso entre o mutuante e o consumidor, se este último já estiver em falta aquando da celebração do contrato de crédito inicial.

32      Por conseguinte, tal acordo, celebrado com o consumidor quer diretamente pelo mutuante quer por um intermediário de crédito que atua em nome desse mutuante, deve ser considerado um «contrato de crédito» na aceção do artigo 3.°, alínea c), da referida diretiva, sem prejuízo das derrogações previstas no seu artigo 2.°, n.° 2.

33      Não obstante, por outro lado, há que apreciar se um contrato deste tipo é «sem encargos» nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da mesma diretiva, quando um consumidor se obriga a reembolsar o montante total do crédito e a pagar os juros e encargos a que estaria obrigado, na falta desse contrato, em conformidade com a regulamentação nacional.

34      Embora a Diretiva 2008/48 não defina expressamente o conceito de «encargos», importa salientar que, segundo o artigo 3.°, alínea g), dessa diretiva, o custo total do crédito para o consumidor designa todos os custos ligados ao contrato de crédito, que este deve pagar e que são conhecidos do mutuante (v. acórdão de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.° 84).

35      As definições particularmente amplas do conceito de «contrato de crédito» na aceção do artigo 3.°, alínea c), da Diretiva 2008/48 e do conceito de «custo total do crédito para o consumidor» na aceção do artigo 3.°, alínea g), da mesma diretiva correspondem ao objetivo prosseguido por esta, recordado no n.° 27 do presente acórdão, na medida em que permitem garantir uma proteção alargada dos consumidores.

36      Além disso, qualquer limitação do âmbito de aplicação da referida diretiva, nos termos do seu artigo 2.°, n.° 2, deve ser interpretada à luz desse objetivo.

37      Por conseguinte, quando, através de um acordo que prevê novas condições de pagamento de uma dívida existente, o consumidor se obriga não só a reembolsar o montante total do crédito mas também a pagar juros ou encargos que não estavam previstos no contrato inicial nos termos do qual foi concedido o crédito não reembolsado, tal acordo não pode ser considerado «sem encargos» nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48.

38      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio que os acordos de pagamento de créditos a prestações, propostos pela Inko aos consumidores na sequência de situações de incumprimento, preveem que estes se obrigam a pagar a sua dívida em prestações mensais, sendo os pagamentos efetuados imputados, em primeiro lugar, aos encargos da Inko e, depois, ao restante capital em dívida e aos juros.

39      Este acordo, que prevê a obrigação de o consumidor pagar os encargos de uma agência de cobrança de créditos, no caso vertente a Inko, encargos esses que não estavam previstos no contrato de crédito inicial, não pode ser considerado como dizendo respeito a um pagamento diferido «sem encargos» nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48.

40      Tendo em conta o objetivo, referido no n.° 27 do presente acórdão, de garantir a todos os consumidores um nível elevado de defesa dos seus interesses, esta constatação não é suscetível de ser posta em causa pelos montantes cumulados dos juros e dos encargos previstos por esse acordo, mesmo que estes montantes não ultrapassem os que seriam exigíveis, na falta de acordo entre as partes, em conformidade com a regulamentação nacional aplicável na sequência da mora no pagamento.

41      Nestas condições, há que responder à segunda questão que o artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido de que um acordo de pagamento a prestações de um crédito que é celebrado, na sequência de um incumprimento do consumidor, entre este e o mutuante, por intermédio de uma agência de cobranças, não é «sem encargos» nos termos dessa disposição, quando, através desse acordo, o consumidor se obriga a reembolsar o montante total desse crédito e a pagar juros ou encargos que não estavam previstos no contrato inicial nos termos do qual o referido crédito foi concedido.

 Quanto à primeira questão

42      Com a sua primeira questão, que há que analisar em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.°, alínea f), e o artigo 7.° da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que uma agência de cobranças que celebra, em nome de um mutuante, um acordo de pagamento a prestações de um crédito em dívida, mas que atua como intermediário de crédito apenas a título acessório, deve ser considerada um «intermediário de crédito» na aceção do referido artigo 3.°, alínea f), e estar sujeita à obrigação de informação pré‑contratual do consumidor por força dos artigos 5.° e 6.° dessa diretiva.

43      A este respeito, importa recordar que, nos termos do referido artigo 3.°, alínea f), um «intermediário de crédito» é uma pessoa singular ou coletiva que não atue como mutuante e que, no exercício das suas atividades comerciais ou profissionais, contra uma remuneração que pode ser de caráter pecuniário ou assumir qualquer outra forma de retribuição financeira que tenha sido acordada, apresenta ou propõe contratos de crédito aos consumidores, presta assistência aos consumidores mediante a realização de trabalhos preparatórios relativos a contratos de crédito ou celebra contratos de crédito com os consumidores em nome do mutuante.

44      Por conseguinte, uma agência de cobranças como a Inko, que atua em nome de um mutuante na celebração de um acordo de pagamento a prestações de um crédito em dívida, nos termos do qual o consumidor se obriga a reembolsar o montante total do crédito e a pagar juros e encargos, deve ser qualificada de «intermediário de crédito» na aceção dessa disposição.

45      O litígio no processo principal tem por objeto a questão de saber se uma agência de cobranças como a Inko está obrigada, a título das suas atividades enquanto intermediário de crédito, a comunicar aos consumidores as informações pré‑contratuais referidas no § 6 da VKrG, que transpõe para o direito austríaco o artigo 5.° da Diretiva 2008/48.

46      A este respeito, há que observar que tal intermediário de crédito está, em princípio, sujeito à obrigação de informação pré‑contratual do consumidor, prevista nos artigos 5.° e 6.° da referida diretiva.

47      Todavia, em conformidade com o artigo 7.°, primeira frase, da Diretiva 2008/48, os fornecedores ou prestadores de serviços que intervenham a título acessório como intermediários de crédito não estão sujeitos a essa obrigação. A este respeito, o considerando 24 dessa diretiva enuncia que se pode considerar, por exemplo, que estes fornecedores de bens ou prestadores de serviços atuam como intermediários de crédito a título acessório se a sua atividade nessa qualidade não for o principal objetivo da sua atividade comercial ou profissional.

48      Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, tendo em conta todas as circunstâncias do processo principal, designadamente o objeto principal da atividade do intermediário de crédito considerado, se pode considerar que este atua como intermediário de crédito a título acessório nos termos do artigo 7.°, primeira frase, da referida diretiva.

49      Ao mesmo tempo, há que salientar que a exceção à obrigação de prestar a informação pré‑contratual ao consumidor, de que o intermediário de crédito pode beneficiar, não é suscetível de afetar o conceito de «intermediário de crédito» na aceção do artigo 3.°, alínea f), da Diretiva 2008/48, mas tem como único efeito excluir que as pessoas que apenas atuam na qualidade de intermediários a título acessório estejam sujeitas à obrigação de informação pré‑contratual prevista nos artigos 5.° e 6.° dessa diretiva, permanecendo aplicáveis a estas pessoas as restantes disposições da referida diretiva, designadamente o seu artigo 21.°, relativo a certas obrigações dos intermediários de crédito perante os consumidores.

50      Esta exceção não tem como efeito afetar o nível de proteção do consumidor, previsto pela Diretiva 2008/48.

51      A este respeito, como salientou, em substância, a advogada‑geral nos n.os 28 a 30 das suas conclusões, a obrigação de informação pré‑contratual do consumidor pelo mutuante e, sendo caso disso, pelo intermediário de crédito, enunciada nos artigos 5.° e 6.° desta diretiva, contribui para a realização do objetivo, referido no n.° 27 do presente acórdão, de garantir a todos os consumidores da União um nível elevado de defesa dos seus interesses (v., neste sentido, acórdãos de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.° 21, e de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.° 61).

52      Ora, como resulta do artigo 7.°, segunda frase, da referida diretiva, lido à luz do seu considerando 24, a exceção, prevista no artigo 7.°, primeira frase, da Diretiva 2008/48, relativamente aos fornecedores de bens ou aos prestadores de serviços que intervenham a título acessório como intermediários de crédito não prejudica a obrigação do mutuante de assegurar que o consumidor receba as informações pré‑contratuais referidas nos artigos 5.° e 6.° dessa diretiva.

53      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 3.°, alínea f), e o artigo 7.° da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que uma agência de cobranças que celebra, em nome do mutuante, um acordo de pagamento a prestações de um crédito em dívida, mas que atua como intermediário de crédito apenas a título acessório, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, deve ser considerada um «intermediário de crédito» na aceção do mesmo artigo 3.°, alínea f), e não está sujeita à obrigação de informação pré‑contratual do consumidor por força dos artigos 5.° e 6.° dessa diretiva.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 2.°, n.° 2, alínea j), da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho, deve ser interpretado no sentido de que um acordo de pagamento a prestações de um crédito que é celebrado, na sequência de um incumprimento do consumidor, entre este e o mutuante, por intermédio de uma agência de cobranças, não é «sem encargos» nos termos dessa disposição, quando, através desse acordo, o consumidor se obriga a reembolsar o montante total desse crédito e a pagar juros ou encargos que não estavam previstos no contrato inicial nos termos do qual o referido crédito foi concedido.

2)      O artigo 3.°, alínea f), e o artigo 7.° da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que uma agência de cobranças que celebra, em nome do mutuante, um acordo de pagamento a prestações de um crédito em dívida, mas que atua como intermediário de crédito apenas a título acessório, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, deve ser considerada um «intermediário de crédito» na aceção do mesmo artigo 3.°, alínea f), e não está sujeita à obrigação de informação pré‑contratual do consumidor por força dos artigos 5.° e 6.° dessa diretiva.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.