Language of document : ECLI:EU:C:2014:2166

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 4 de setembro de 2014 (1)

Processo C‑260/13

Sevda Aykul

contra

Land Baden‑Württemberg

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgericht Sigmaringen (Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Diretivas 91/439/CEE e 2006/126/CE — Carta de condução — Artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 e artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126/CE — Recusa de um Estado‑Membro reconhecer, a uma pessoa que conduziu no seu território sob a influência de produtos estupefacientes, a validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro — Comportamento culposo do titular da carta de condução posterior à emissão desta carta — Apreensão da carta de condução — Procedimento de verificação das aptidões — Autoridades competentes — Melhoria da segurança da circulação rodoviária»





1.        O pedido de decisão prejudicial submetido ao Tribunal de Justiça tem como objeto a interpretação de disposições da Diretiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa à carta de condução (2), e da Diretiva 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006 (3), que a substituiu.

2.        Mais precisamente, o Tribunal de Justiça é convidado a pronunciar‑se sobre a possibilidade de um Estado‑Membro, em cujo território o titular de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro reside temporariamente, recusar reconhecer a validade desta carta de condução na sequência de um comportamento infrator do seu titular — no caso em apreço, a condução sob influência de produtos estupefacientes — que ocorreu nesse território posteriormente à emissão da referida carta de condução.

3.        O presente processo é distinto dos vários processos em que o Tribunal de Justiça teve de se pronunciar até hoje em matéria de cartas de condução (4), uma vez que, nestes processos anteriores, estava em causa a possibilidade de invocar num Estado‑Membro, após a apreensão ou a suspensão de uma carta de condução neste Estado, uma carta de condução obtida noutro Estado‑Membro.

4.        A particularidade deste processo reside igualmente no facto de que, por força do direito nacional do Estado‑Membro em cujo território a infração foi cometida, no caso em apreço a República Federal da Alemanha, a carta de condução foi objeto de apreensão nesse território, uma vez que o interessado deixou de ter aptidão para conduzir.

5.        Assim, a apreciação da aptidão não é posta em causa na fase da emissão da carta de condução, mas após esta emissão, na sequência de um comportamento infrator do titular da referida carta de condução. A questão que se coloca consiste em saber quais são as autoridades competentes para verificar se este último está novamente apto para conduzir no território do Estado‑Membro onde foi cometida a infração.

6.        No âmbito da nossa apreciação, iremos, a título preliminar, determinar as disposições do direito da União aplicáveis ao presente processo, bem como reformular as questões colocadas pelo Verwaltungsgericht Sigmaringen (tribunal administrativo de Sigmaringen, Alemanha).

7.        Finda tal análise, iremos propor ao Tribunal de Justiça que responda a estas questões no sentido de que o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 obriga um Estado‑Membro a recusar o reconhecimento da validade dessa carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando, na sequência de uma infração à circulação rodoviária com caráter penal cometida no território do primeiro Estado‑Membro posterior à emissão dessa carta de condução, esta foi apreendida nesse território por o seu titular ter deixado de estar apto para conduzir e se ter tornado um perigo para a segurança rodoviária. O titular da carta de condução estará novamente apto para conduzir no referido território quando as condições previstas pela legislação do Estado‑Membro em cujo território a infração foi cometida estiverem reunidas, desde que as regras nacionais não tenham como efeito a imposição de condições que não são exigidas pela Diretiva 2006/126 para a emissão deste título, nem a recusa de reconhecer indefinidamente a validade da carta de condução.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

1.      Diretiva 91/439

8.        Com o objetivo de facilitar a circulação de pessoas na Comunidade Europeia ou o seu estabelecimento num Estado‑Membro diferente daquele em que essas pessoas obtiveram a sua carta de condução, a Diretiva 91/439 instituiu o princípio do reconhecimento mútuo das cartas de condução (5).

9.        O primeiro considerando da referida diretiva estabelece que:

«[c]onsiderando que, em termos de política comum de transportes e tendo em vista contribuir para a melhoria da segurança da circulação rodoviária, bem como para facilitar a circulação das pessoas que se estabelecem num Estado‑Membro diferente daquele em que foram aprovadas num exame de condução, é desejável que exista uma carta de condução nacional de modelo comunitário mutuamente reconhecido pelos Estados‑Membros sem obrigação de troca».

10.      Nos termos do quarto considerando da Diretiva 91/439, «[p]ara satisfazer certos imperativos da segurança rodoviária é necessário fixar condições mínimas de emissão da carta de condução».

11.      O décimo considerando da Diretiva 91/439 dispõe que:

«[c]onsiderando ainda que, por razões de segurança e de circulação rodoviárias, é necessário que os Estados‑Membros possam aplicar as suas disposições nacionais em matéria de apreensão, suspensão e anulação da carta de condução a qualquer titular de uma carta de condução que tenha passado a ter a residência habitual [(6)] no seu território».

12.      O artigo 7.°, n.° 4, da referida diretiva prevê que:

«Sem prejuízo das disposições penais e de polícia nacionais, os Estados‑Membros podem aplicar à emissão da carta de condução as disposições da sua regulamentação nacional relativa a condições diferentes das contempladas na presente diretiva, após consulta à Comissão.»

13.      Nos termos do artigo 8.°, n.os 2 e 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 91/439:

«2.      Sem prejuízo do cumprimento do princípio da territorialidade das leis penais e das disposições de polícia, o Estado‑Membro de residência habitual pode aplicar ao titular de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro as suas disposições nacionais em matéria de restrição, suspensão, retirada ou anulação do direito de conduzir e, se necessário, proceder, para o efeito, à troca dessa carta.

[...]

4.      Um Estado‑Membro pode recusar, a uma pessoa que seja objeto no seu território de uma das medidas referidas no n.° 2, reconhecer a validade de qualquer carta de condução emitida por outro Estado‑Membro.»

2.      Diretiva 2006/126

14.      A Diretiva 2006/126 reformula a Diretiva 91/439, que sofreu numerosas alterações (7).

15.      Em conformidade com o segundo considerando da Diretiva 2006/126:

«A regulamentação relativa à carta de condução é um elemento indispensável para realizar a política comum dos transportes, contribuindo para melhorar a segurança rodoviária e facilitar a circulação das pessoas que se estabelecem num Estado‑Membro distinto daquele que emitiu a carta de condução. Atendendo à importância dos meios de transporte individuais, a posse de uma carta de condução devidamente reconhecida pelo Estado de acolhimento pode assim favorecer a livre circulação e a liberdade de estabelecimento das pessoas. [...]»

16.      Nos termos do oitavo considerando desta diretiva, «[p]or razões de segurança rodoviária, é necessário fixar as condições mínimas para a emissão de uma carta de condução».

17.      O décimo quinto considerando da referida diretiva dispõe que:

«Por razões de segurança rodoviária, é necessário que os Estados‑Membros possam aplicar as suas disposições nacionais em matéria de apreensão, suspensão, renovação e cassação da carta de condução a qualquer titular de uma carta de condução que tenha passado a ter a residência habitual [(8)] no seu território.»

18.      Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, desta diretiva, «[a]s cartas de condução emitidas pelos Estados‑Membros serão reciprocamente reconhecidas».

19.      O artigo 7.°, n.° 1, alínea a), da referida diretiva prevê que:

«1.      As cartas de condução só serão emitidas aos candidatos:

a)      aprovados num exame de controlo de aptidão e de comportamento e num exame teórico de avaliação dos conhecimentos, e que satisfaçam as normas médicas, nos termos dos Anexos II e III».

20.      O artigo 11.° da Diretiva 2006/126 estabelece, nos seus n.os 2 e 4, o seguinte:

«2.      Sem prejuízo do cumprimento do princípio da territorialidade das leis penais e de polícia, o Estado‑Membro de residência habitual pode aplicar ao titular de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro as suas disposições nacionais em matéria de restrição, suspensão, retirada ou inibição do direito de conduzir e, se necessário, proceder, para o efeito, à troca dessa carta.

[...]

4.      [...]

Um Estado‑Membro recusará emitir uma carta de condução a um candidato cuja carta de condução tenha sido objeto de restrição, suspensão ou retirada noutro Estado‑Membro.

[...]»

21.      O artigo 16.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2006/126 prevê que:

«1.      Os Estados‑Membros adotarão e publicarão, o mais tardar até 19 de janeiro de 2011, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento ao n.° 1 do artigo 1.°, ao artigo 3.°, aos n.os 1, 2, 3 e 4, alíneas b) a k), do artigo 4.°, aos n.os 1, 2, alíneas a), c), d) e e), do artigo 6.°, aos n.os 1, alíneas b), c) e d), 2, 3 e 5 do artigo 7.°, ao artigo 8.°, ao artigo 10.°, ao artigo 13.°, ao artigo 14.°, ao artigo 15.°, assim como ao ponto 2 do Anexo I, ao ponto 5.2 do Anexo II, no que se refere às categorias A1, A2 e A, ao Anexo IV, V e VI. Os Estados‑Membros comunicarão imediatamente à Comissão o texto das referidas disposições.

2.      Os Estados‑Membros aplicarão essas disposições a partir de 19 de janeiro de 2013.»

22.      O artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/126 tem a seguinte redação:

«A Diretiva 91/439 CEE [...] é revogada com efeitos a partir de 19 de janeiro de 2013, sem prejuízo das obrigações dos Estados‑Membros no que respeita aos prazos de transposição da diretiva para o direito nacional indicados na Parte B do Anexo VII.»

23.      O artigo 18.° da Diretiva 2006/126 estabelece que:

«A presente diretiva entra em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia.

O n.° 1 do artigo 2.°, o artigo 5.°, o n.° 2, alínea b), do artigo 6.°, o n.° 1, alínea a), do artigo 7.°, o artigo 9.°, os n.os 1, 3, 4, 5 e 6 do artigo 11.°, o artigo 12.° e os Anexos I, II e III são aplicáveis a partir de 19 de janeiro de 2009.»

B –    Legislação alemã

24.      O § 2 da Lei relativa à circulação rodoviária (Straβenverkehrsgesetz), na sua versão aplicável ao processo principal (9), dispõe que:

«(1)      Quem conduzir um veículo a motor na via pública deve ser autorizado para o efeito (autorização para conduzir) pela administração competente (administração que emite as cartas de condução). [...]

(4)      Está apto para a condução de veículos a motor quem preencher as condições físicas e mentais necessárias para o efeito, e não tenha cometido infrações graves ou reiteradas às disposições relativas à circulação rodoviária ou a disposições penais. [...]

(11)      Por força de disposições mais detalhadas previstas por um regulamento [...], as cartas de condução estrangeiras conferem igualmente o direito à condução de veículos a motor no território nacional. [...]»

25.      O § 3 da StVG, sob a epígrafe «Apreensão da carta de condução», estabelece nos seus n.os 1 e 2:

«(1)      Quando uma pessoa revele não ter a aptidão ou a capacidade para conduzir veículos a motor, a administração que emite as cartas de condução deve retirar‑lhe a carta de condução. No caso de uma carta de condução estrangeira, a apreensão — mesmo quando ocorra por força de outras disposições — tem como efeito a recusa do reconhecimento do direito de utilização dessa carta de condução no território nacional. [...]

(2)      A apreensão faz cessar a autorização para conduzir. No caso de carta de condução estrangeira, a apreensão faz cessar o direito de condução de veículos a motor no território nacional. Após a apreensão, a carta de condução deve ser remetida à administração que a emitiu ou deve ser apresentada no seguimento do registo da decisão. Os primeiro a terceiro períodos são igualmente aplicáveis sempre que a administração da carta de condução retire a carta de condução com fundamento noutras disposições.»

26.      O § 29 da StVG, sob a epígrafe «Prazos de cancelamento», prevê, no seu n.° 1, que:

«As inscrições constantes do registo são canceladas após a expiração dos [seguintes] prazos:

1.      dois anos e seis meses em caso de decisões relativas a uma infração administrativa

a)      que [...] seja acompanhada de um ponto enquanto infração administrativa que afeta a segurança rodoviária ou enquanto infração administrativa equiparada ou

b)      desde que não se trate de um caso abrangido pelo n.° 1, alínea a), ou do n.° 2, alínea b), e que a decisão tenha imposto uma proibição de condução,

2.      cinco anos

a)      em caso de decisão relativa a uma infração penal (‘Straftat’), sem prejuízo do n.° 3, alínea a),

b)      em caso de decisão relativa a uma infração administrativa que [...] seja acompanhada de dois pontos enquanto infração administrativa que afeta a segurança rodoviária ou enquanto infração administrativa equiparada,

[...]

3.      dez anos

a)      em caso de decisões relativas a uma infração penal através das quais a carta de condução tenha sido retirada ou através das quais tenha sido imposta uma proibição isolada,

[...]»

27.      O § 11, n.° 1, do Regulamento relativo ao acesso das pessoas à circulação rodoviária (regulamento relativo à carta de condução) [Verordnung über die Zulassung von Personen zum Straβenverkehr (Faverelaubnis‑Verordnung)], de 18 de agosto de 1998 (10), na sua versão aplicável ao processo principal, prevê que:

«As pessoas que requerem uma autorização para conduzir devem preencher as condições físicas e mentais necessárias para o efeito. As condições não estão preenchidas, nomeadamente, quando exista uma das doenças ou uma das insuficiências referidas no anexo 4 ou no anexo 5, que exclui a aptidão ou a aptidão parcial para a condução de veículos a motor. Por outro lado, estas pessoas não devem ter violado, de forma grave ou reiterada, disposições relativas à segurança rodoviária ou leis penais, o que conduz à exclusão da aptidão.»

28.      O anexo 4 do § 11 do FeV refere que o consumo de cannabis está incluído nas doenças e insuficiências frequentes que podem afetar ou excluir por um longo período a aptidão para a condução de veículos a motor. Uma pessoa que consome regularmente cannabis é considerada inapta para conduzir, ao passo que uma pessoa que consome ocasionalmente cannabis é considerada apta desde que, todavia, dissocie o consumo da condução, não utilize de modo suplementar álcool ou outras substâncias psicoativas e não tenha problemas de personalidade nem perda de controlo.

29.      O § 29 do FeV, com a epígrafe «Carta de condução estrangeiras», tem a seguinte redação:

«(1)      Os titulares de uma carta de condução estrangeira podem, nos limites autorizados pela sua carta, conduzir veículos a motor no território nacional quando não tenham aí residência habitual na aceção do artigo 7.°

[...]

(3)      A autorização, nos termos do n.° 1, não é aplicável aos titulares de uma carta de condução estrangeira,

[...]

3.      aos quais a autorização para conduzir no território nacional tenha sido retirada a título provisório ou definitivo por um tribunal ou de forma executiva ou permanente por uma autoridade administrativa [...]

(4)      Após uma das decisões referidas no n.° 3, pontos 3 e 4, o direito de utilização de uma carta de condução estrangeira no território nacional é concedido, a pedido, quando os fundamentos de retirada deixam de existir.»

30.      O § 46 do FeV, com a epígrafe «Apreensão, limitações, condições» dispõe que:

(1)      Se o titular de uma carta de condução revelar ser inapto para conduzir veículos a motor, a administração que emite a carta de condução deve apreender‑lhe a sua carta. Tal aplica‑se, nomeadamente, quando existam as doenças ou as insuficiências referidas nos anexos 4, 5 e 6 ou quando as disposições do direito da circulação rodoviária ou das leis penais tenham sido violadas de forma grave ou reiterada, o que exclui a aptidão para condução de veículos a motor. [...]

(5)      Em caso de carta de condução estrangeira, a apreensão produz o efeito de uma recusa do reconhecimento do direito de utilização dessa carta de condução no território nacional.

(6)      A apreensão faz cessar a autorização para conduzir. Em caso de carta de condução estrangeira, faz cessar o direito de condução de veículos a motor no território nacional.»

31.      O § 69 do Código Penal (Strafgesetzbuch) estabelece que:

«(1)      Se uma pessoa for condenada por um ato ilícito que tenha cometido na condução de um veículo a motor, ou no momento em que conduzia, ou por violar as obrigações que incumbem aos condutores de veículos a motor, ou se não for condenada apenas por a sua falta de responsabilidade penal ter sido demonstrada, ou não poder ser excluída, o tribunal deverá retirar‑lhe a sua carta de condução quando resultar do ato que não está apta para conduzir veículos a motor. [...]

(2)      Quando, nos casos previstos no n.° 1, o ato ilícito constituir um delito

[...]

2.      de circulação em estado de embriaguez (§ 316),

[...]

4.      de embriaguez total (§ 323‑A) relacionado com um dos atos previstos nos n.os 1 a 3,

o seu autor deve, regra geral, ser considerado inapto para conduzir veículos a motor. [...]»

32.      O § 69‑B do Código Penal tem a seguinte redação:

«Efeito da apreensão em caso de carta de condução estrangeira

(1)      Se o autor estiver autorizado a conduzir no território nacional ao abrigo de uma carta de condução emitida no estrangeiro, sem que lhe tenha sido emitida uma carta de condução por uma autoridade alemã, a apreensão da carta de condução produz o efeito de uma recusa de reconhecimento do direito de utilizar tal carta no território nacional. O direito de condução de veículos a motor no território nacional cessa na data em que a decisão adquiriu força de caso julgado. Durante o período da proibição, não podem ser concedidos nem o direito de utilizar novamente a carta de condução estrangeira, nem uma carta de condução nacional.

(2)      Se a carta de condução estrangeira tiver sido emitida por uma autoridade de um Estado‑Membro da União Europeia ou por outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu e se o seu titular tiver residência habitual no território nacional, a carta de condução será confiscada por sentença e reenviada à autoridade que a emitiu. Nos outros casos, a apreensão e a proibição de utilização da carta de condução serão mencionadas na carta de condução estrangeira.»

II – Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

33.      S. Aykul, cidadã austríaca, nasceu em 1980 e tem, desde o seu nascimento, domicílio na Áustria. Em 19 de outubro de 2007, a Bezirkshauptmannschaft Bregenz (autoridade administrativa do distrito de Bregenz, Áustria) emitiu‑lhe uma carta de condução austríaca.

34.      Em 11 de maio de 2012, foi sujeita a um controlo policial, em Leutkirchen (Alemanha). Uma vez que aparentemente estava sob a influência de drogas, foi efetuado um teste à urina cujo resultado revelou o consumo de cannabis. Na sequência deste teste, foram ordenadas e efetuadas no mesmo dia análises clínicas ao sangue. O relatório médico constatou que S. Aykul não mostrava sinais de estar sob a influência de drogas. Segundo o exame toxicológico do laboratório Enders de Stuttgart (Alemanha), de 18 de maio de 2012, a análise da amostra de sangue revelou um teor de tétrahydrocannabinol (a seguir «THC») de 18,8 ng/ml e um teor de THC‑COOH de 47,4 ng/ml.

35.      Em 4 de julho de 2012, o Ministério Público de Ravensburg (Alemanha) arquivou sem consequências o processo de instrução penal.

36.      Por decisão em matéria de aplicação de coimas da cidade de Leutkirch de 18 de julho de 2012, S. Aykul foi condenada a uma coima de 590,80 euros por condução de um veículo sob a influência do produto estupefaciente THC e a uma proibição de conduzir pelo período de um mês.

37.      Por decisão de 17 de setembro de 2012, o Landratsamt Ravensburg (Alemanha) retirou a S. Aykul a sua carta de condução austríaca no território alemão e ordenou a execução imediata desta medida com o fundamento de que era inapta para conduzir veículos a motor. Os valores constatados na análise da amostra de sangue demonstravam que S. Aykul consumia cannabis, pelo menos de forma ocasional, e que tinha conduzido um veículo a motor sob a influência do THC. S. Aykul não estava em condições de dissociar o seu consumo de drogas da condução de veículos a motor. No anexo da decisão de 17 de setembro de 2012, S. Aykul teve conhecimento de que podia pedir nova autorização para conduzir veículos a motor na Alemanha ao abrigo da sua carta de condução austríaca. Esse pedido apenas poderia ser aceite na sequência da apresentação, por parte de S. Aykul, de um relatório positivo elaborado por um centro de controlo da aptidão para a condução oficialmente reconhecido na Alemanha, que estaria, em regra, subordinado à prova de abstinência de um ano.

38.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que as reações às infrações rodoviárias e aos indícios de falta de aptidão para conduzir previstas pelo direito alemão ocorrem em três planos diferentes, a saber, no plano penal, no plano da legislação em matéria de infrações administrativas e no plano da legislação em matéria de cartas de condução.

39.      O caso de S. Aykul corresponde à prática em matéria de legislação relativa às cartas de condução, direito de polícia cujo objetivo é combater os perigos para a segurança da circulação. O órgão jurisdicional de reenvio afirma que as administrações nacionais da carta de condução e os serviços de polícia partem, assim, do princípio de que as autoridades alemãs são competentes para retirar cartas de condução estrangeiras quando uma infração rodoviária cometida na Alemanha revele sinais de inaptidão para a condução.

40.      Em 19 de outubro de 2012, S. Aykul apresentou uma reclamação e um pedido de medidas provisórias no Verwaltungsgericht Sigmaringen com o fundamento de que as autoridades alemãs não tinham competência para verificar a aptidão para a condução.

41.      A Bezirkshauptmannschaft Bregenz, informada do processo pelo Landratsamt Ravensburg, declarou que as condições de uma intervenção das autoridades austríacas não estavam reunidas segundo a legislação austríaca em matéria de circulação rodoviária.

42.      Por decisão de 15 de novembro de 2012, o Landratsamt Ravensburg anulou a execução imediata da sua decisão de 17 de setembro de 2012. Na sequência desta anulação, o Verwaltungsgericht Sigmaringen pôs termo ao processo de medidas provisórias por despacho de 29 de setembro de 2012.

43.      O Regierungspräsidium Tübingen (Alemanha) indeferiu a reclamação de S. Aykul por decisão de 20 de dezembro de 2012, alegando que a apreensão da carta de condução austríaca é uma medida posterior que estava abrangida pelo artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439, o que foi contestado por S. Aykul no órgão jurisdicional de reenvio.

44.      Em resposta ao pedido apresentado pelo Verwaltungsgericht Sigmaringen em 13 de março de 2013, a Bezirkshauptmannschaft Bregenz declarou novamente que as condições para uma intervenção das autoridades austríacas não estavam reunidas segundo a legislação austríaca relativa às cartas de condução. Referiu que, para as autoridades austríacas, S. Aykul continuava a ser considerada apta para conduzir e, por conseguinte, mantinha a sua carta de condução austríaca.

45.      Por ter dúvidas quanto à conformidade da legislação alemã com a obrigação de reconhecimento mútuo das cartas de condução emitidas pelos Estados‑Membros, o Verwaltungsgericht Sigmaringen decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O dever de reconhecimento mútuo das cartas de condução emitidas pelos Estados‑Membros, que decorre do artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2006/126/CE, opõe‑se a uma regulamentação nacional da República Federal da Alemanha nos termos da qual o direito de utilizar uma carta de condução estrangeira na Alemanha deve ser retirado a posteriori por via administrativa quando o seu titular conduz[a] na Alemanha um veículo a motor sob a influência de drogas consideradas ilegais, pelo que, nos termos das disposições alemãs, já não é considerado apto para conduzir?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o mesmo [é aplicável] quando o Estado de emissão se abstém de agir apesar de ter tido conhecimento da condução sob a influência de drogas, pelo que o risco que o titular da carta de condução estrangeira representa não é eliminado?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, pode a República Federal da Alemanha fazer depender a restituição do direito de utilizar a carta de condução estrangeira na Alemanha do cumprimento dos pressupostos de restituição nacionais?

4)      a)     A reserva do cumprimento do princípio da territorialidade das leis penais e de polícia contid[a] no artigo 11.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126/CE pode justificar [a] atuação [de um Estado‑Membro ao abrigo da] legislação [em matéria de] carta[s] de condução […] em vez do Estado de emissão? [Essa] reserva permite, por exemplo, a perda a posteriori do direito de utilizar a carta de condução estrangeira na Alemanha através do recurso a uma medida de segurança de natureza penal?

b)      Em caso de resposta afirmativa à [alínea] a), tendo em consideração o dever de reconhecimento, para a restituição do direito de utilizar a carta de condução na Alemanha, deve ser considerado competente o Estado‑Membro que impõe a medida de segurança ou o Estado de emissão?»

III – Apreciação

A –    Considerações preliminares

1.      Direito da União aplicável ratione temporis

46.      Tanto na decisão de reenvio como nas observações escritas submetidas ao Tribunal de Justiça, é feita referência às disposições da Diretiva 91/439 e às da Diretiva 2006/126.

47.      Importa observar que o artigo 11.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126, mencionado pelo órgão jurisdicional de reenvio nas suas questões, ainda não tinha entrado em vigor à data dos factos que estão na origem do litígio no processo principal.

48.      Com efeito, estes factos ocorreram em 11 de maio de 2012, data em que S. Aykul foi sujeita a um controlo policial, e em 17 de setembro de 2012, data em que o Landratsamt Ravensburg decidiu retirar‑lhe a sua carta de condução austríaca.

49.      Nos termos do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/126, a Diretiva 91/439 é revogada com efeitos a partir de 19 de janeiro de 2013. Em conformidade com o artigo 18.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126, determinadas disposições desta são, todavia, aplicáveis a partir de 19 de janeiro de 2009. É o caso, nomeadamente, dos seus artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, sendo que esta última disposição substitui o artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439 referido na decisão de reenvio. Por seu turno, o artigo 11.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126 não faz parte das disposições aplicáveis a partir de 19 de janeiro de 2009. Assim, o artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 continua a ser aplicável.

50.      Além disso, o Tribunal de Justiça esclareceu que, embora o artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2006/126 preveja o reconhecimento mútuo das cartas de condução emitidas pelos Estados‑Membros, o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, dessa diretiva dispõe, contudo, que um Estado‑Membro deve recusar reconhecer a validade de qualquer carta de condução emitida por outro Estado‑Membro a uma pessoa cuja carta de condução seja objeto de restrição, suspensão ou retirada no seu território, independentemente da questão de saber se a referida carta foi emitida antes da data em que a referida disposição se tornou aplicável (11).

51.      Em conformidade com jurisprudência assente, fundada na necessidade de responder de forma útil ao órgão jurisdicional de reenvio (12), há que reformular as questões de modo a interpretar as disposições do direito da União que eram aplicáveis à data dos factos do litígio no processo principal ou seja, no caso em apreço, o artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439, que, de resto, tem uma redação essencialmente idêntica à do artigo 11.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126, visado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

52.      Por conseguinte, neste contexto, importa examinar as questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio sob a perspetiva dos artigos 2.°, n.° 1, e 11.°, n.° 4, da Diretiva 2006/126, assim como do artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439.

2.      Apreciação das questões prejudiciais

53.      Consideramos que as questões colocadas ao Tribunal de Justiça devem ser apreciadas em conjunto.

54.      Com efeito, da resposta às questões relativas ao princípio do reconhecimento mútuo da carta de condução, às derrogações a este princípio e ao alcance de tais derrogações [primeira e segunda questões, assim como quarta questão, alínea a)] resultará a resposta à questão de saber quem são as autoridades competentes para decidir se o titular da carta de condução está novamente apto para conduzir no território do Estado‑Membro onde a infração foi cometida.

B –    Quanto às questões

55.      Consideramos que, através das questões que colocou ao Tribunal de Justiça, o Verwaltungsgericht pretende, efetivamente, saber:

–        se um Estado‑Membro em cujo território o titular de uma carta de condução, emitida por outro Estado‑Membro, reside temporariamente tem a possibilidade de recusar reconhecer a validade desta carta de condução na sequência de um comportamento infrator do seu titular — no caso em apreço, a condução sob a influência de produtos estupefacientes — que ocorreu e foi punido naquele território em conformidade com a lei nacional após emissão da referida carta de condução, e

–        se a mesma lei nacional é competente, com exclusão da lei do Estado‑Membro de emissão, para fixar as condições a que estará sujeito o titular da carta de condução para recuperar o direito de condução no território do Estado‑Membro onde foi cometida a infração.

56.      Importa observar, a título preliminar, que o presente processo não tem por objeto questionar, à luz do artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 91/439 e do artigo 7, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2006/126, as condições de «emissão» da carta de condução de S. Aykul.

57.      Conforme observa corretamente o Governo polaco, o objeto do litígio é relativo a uma decisão de apreensão da carta de condução com fundamento num comportamento da recorrente no processo principal «posterior» à emissão desta carta, uma vez que tal comportamento foi qualificado de ameaça à segurança rodoviária pelas autoridades alemãs. Em caso algum, o referido objeto consiste numa recusa em respeitar a apreciação da aptidão para a condução efetuada pelo Estado‑Membro de emissão, em conformidade com estas disposições, «à data em que a carta de condução foi emitida» (13).

58.      A este respeito, o Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que «a posse de uma carta de condução emitida por um Estado‑Membro constitui a prova de que o titular da referida carta satisfazia, no dia em que esta lhe foi concedida, [as condições mínimas impostas pelo direito da União]» (14).

59.      No presente processo, a República Federal da Alemanha não põe em causa as condições de posse da carta de condução de S. Aykul no momento em que a carta lhe foi emitida, mas na sequência de um comportamento desta, no seu território, posterior àquela emissão.

60.      Com efeito, a carta de condução austríaca de S. Aykul foi apreendida por esta ter conduzido um veículo a motor no território alemão sob a influência de produtos estupefacientes. Em resultado desta sanção, foi‑lhe retirado o direito de utilizar essa carta no território alemão. Por conseguinte, S. Aykul pode continuar a conduzir no território dos Estados‑Membros diferentes da República Federal da Alemanha, onde cometeu a infração.

61.      Assim, o problema está relacionado com a imposição dessa sanção, que tem como efeito as autoridades alemãs recusarem reconhecer no seu território o direito de condução de S. Aykul, por esta ter deixado de estar apta para conduzir na sequência do seu comportamento infrator.

62.      Dito de outro modo, é possível autorizar essa recusa de reconhecimento da validade da carta de condução estrangeira a título das derrogações admitidas ao princípio do reconhecimento mútuo das cartas de condução previsto no artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2006/126?

63.      Segundo jurisprudência assente, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça estabelecido no artigo 267.° TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, cabe ao Tribunal de Justiça reformular, se necessário, as questões que lhe foram apresentadas (15), a fim de interpretar todas as disposições do direito da União de que o órgão jurisdicional nacional necessite para decidir.

64.      Para o efeito, o Tribunal pode extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, as normas e os princípios do direito da União que carecem de interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (16).

65.      Consideramos que o artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 invocado pelo órgão jurisdicional de reenvio nas suas questões não é aplicável no presente processo. Em contrapartida, é à luz do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 que se deve responder‑lhe de forma útil.

1.      O artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 não é aplicável

66.      Importa recordar que o sistema instituído pela Diretiva 91/439 para a emissão de cartas de condução é um sistema de competência territorial. Esta emissão é da responsabilidade do Estado‑Membro territorialmente competente em razão da localização da residência habitual, o qual, para o efeito, deve respeitar os requisitos «mínimos» impostos por esta diretiva, condições evidentemente necessárias para justificar o reconhecimento mútuo das cartas de condução.

67.      Na sequência da referida emissão e do exercício, por parte das pessoas, da sua liberdade de circulação, é possível encontrar dois tipos de situação.

68.      A primeira situação ocorre quando o titular da carta de condução muda de residência habitual e, neste caso, o novo Estado‑Membro de residência pode, ao abrigo da competência territorial que lhe é então transferida, em conformidade com as suas leis penais e de polícia, impor as suas disposições nacionais em matéria de restrição, suspensão, retirada ou anulação do direito de conduzir e, se necessário, proceder, para o efeito, à troca dessa carta.

69.      Esta situação era regulada, à data dos factos, pelo artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 que, importa recordar, dispõe que «[s]em prejuízo do cumprimento do princípio da territorialidade das leis penais e das disposições de polícia, o Estado‑Membro de residência habitual pode aplicar ao titular de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro as suas disposições nacionais em matéria de restrição, suspensão, retirada ou anulação do direito de conduzir e, se necessário, proceder, para o efeito, à troca dessa carta».

70.      Esta disposição deve ser conjugada com os primeiro e décimo considerandos da Diretiva 91/439, que dispõem que, para facilitar a circulação das pessoas «que se estabelecem num Estado‑Membro diferente daquele em que foram aprovadas num exame de condução», é desejável que exista uma carta de condução mutuamente reconhecida pelos Estados‑Membros, mas que, por razões de segurança e de circulação rodoviárias, estes Estados podem aplicar as suas disposições nacionais em matéria de apreensão, suspensão e anulação da carta de condução a qualquer titular de uma carta de condução «que tenha passado a ter a residência habitual no seu território».

71.      Resulta da própria redação do artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439, conjugado com os primeiro e décimo considerandos desta, que o mesmo regula os casos em que o titular da carta de condução tem a sua residência num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de emissão dessa carta. Se esta pessoa cometer uma infração no território do Estado‑Membro de residência, o artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 autoriza este Estado‑Membro a aplicar as suas próprias disposições nacionais em matéria de restrição, suspensão, retirada ou anulação do direito de conduzir concedido por outro Estado‑Membro (17).

72.      Assim, é evidente que as disposições do artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439, e atualmente as do artigo 11.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126, são apenas aplicáveis em caso de uma transferência da residência habitual. Tratar‑se‑ia da hipótese em que S. Aykul tivesse a sua residência habitual na Alemanha. Ora, no presente processo, não é esse o caso, uma vez que esta reside habitualmente na Áustria.

73.      A segunda situação que é possível encontrar ocorre quando o titular da carta de condução apenas reside temporariamente no território de outro Estado‑Membro. Esta situação é, em nossa opinião, regulada pelo artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126.

2.      O artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 é aplicável

74.      O artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 é aplicável não só ratione temporis, conforme referimos anteriormente, mas também ratione materiae.

75.      Recordamos que esta disposição tem a seguinte redação:

«Um Estado‑Membro recusará emitir uma carta de condução a um candidato cuja carta de condução tenha sido objeto de restrição, suspensão ou retirada noutro Estado‑Membro. [(18)]»

76.      A referida disposição regula, em nosso entender, a hipótese do caso em apreço, na qual a sanção é aplicável nos termos das leis penais e de polícia de um Estado‑Membro que é o Estado‑Membro onde foi cometida a infração sem ser, no entanto, o Estado‑Membro de emissão da carta de condução ou o da nova residência habitual (19).

77.      Na audiência a Comissão fez uma interpretação «histórica» do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126, segundo a qual o artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439 se referia ao artigo 8.°, n.° 2, desta diretiva, pelo que o Estado‑Membro em causa só podia ser o Estado‑Membro de residência habitual. De acordo com a Comissão, a não referência ao Estado‑Membro de residência habitual neste n.° 2 constituía apenas um erro do legislador da União, que, por conseguinte, devia ser corrigido.

78.      Não concordamos com tal interpretação.

79.      De facto, parece‑nos que o disposto no artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 é aplicável de forma autónoma, e isto em relação tanto ao n.° 2 deste mesmo artigo como ao n.° 2 do artigo 8.° da Diretiva 91/439, com idêntico teor, aplicável à data dos factos do litígio no processo principal. Esta independência exclui, segundo a nossa análise, que apenas é aplicável perante a hipótese de uma transferência da residência habitual. É possível invocar vários argumentos neste sentido.

80.      Antes de mais, a epígrafe do artigo 11.° da Diretiva 2006/126 precisa que este é relativo a disposições «diversas», o que, por definição, parece significar que estas não estão necessariamente ligadas entre si.

81.      Em seguida, sublinhamos que o n.° 4 deste artigo foi separado pelo legislador da União do n.° 2 do mesmo artigo, pois a sua data de entrada em vigor foi antecipada quatro anos em relação a esta última disposição, o que não parece apontar no sentido da indissociabilidade dos elementos do referido artigo.

82.      Por último e principalmente, constatamos que as diversas disposições do n.° 4 do artigo 11.° regulam hipóteses claramente distintas. Deste modo, os primeiro e último parágrafos deste número são aplicáveis nas hipóteses em que o Estado‑Membro em causa intervém como Estado‑Membro de emissão (20). Por seu turno, o segundo parágrafo do referido número, regula uma situação totalmente diferente, que ocorre quando o Estado‑Membro aplica a uma carta emitida pelo Estado‑Membro de emissão restrições que resultam da sua lei nacional vinculativa, lei penal ou de polícia, que é precisamente o caso do processo controvertido. As disposições do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 têm portanto um sentido claro, sem que seja necessário associá‑las ao n.° 2 deste artigo.

83.      As próprias disposições do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 são uma ilustração do princípio da territorialidade, uma vez que dizem respeito à restrição da validade, no território de um Estado‑Membro, de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro.

84.      O equívoco está aqui tanto menos presente que a nova fórmula utilizada pelo legislador da União traduz uma vontade de endurecimento, que não poderia ser alcançada se a tese de S. Aykul fosse admitida. Com efeito, enquanto o artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 deixava aos Estados‑Membros um poder de apreciação relativo à recusa de reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, a redação do artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 impõe‑lhes, doravante, tal recusa.

85.      O resultado concreto desse endurecimento constitui, aliás, uma limitação do reconhecimento mútuo das cartas de condução que é conforme ao espírito do sistema, visto que o reconhecimento mútuo favorece a livre circulação, e que a limitação do referido reconhecimento como consequência de uma infração, punindo uma imprudência e procurando suprimir uma potencial fonte de perigo, reforça a segurança rodoviária e, assim, a liberdade de circulação, o que constitui o próprio objeto da Diretiva 2006/126 (21). A limitação no tempo e no espaço do reconhecimento mútuo é aqui necessária para evitar o efeito inverso ao prosseguido pela Diretiva 2006/126 no n.° 4 do seu artigo 11.°, ou seja, um aumento da segurança através de uma maior repressão de um comportamento perigoso. Também aqui, apenas podemos salientar que a aplicação antecipada do n.° 4 desta disposição corresponde a uma vontade inequívoca do legislador da União.

86.      Com efeito, qual seria o efeito útil desta diretiva se as autoridades de um Estado‑Membro não pudessem aplicar sanções aos cidadãos da União que cometem infrações no seu território por estes se limitarem a «circular» no seu território? Isso equivaleria a admitir que estes cidadãos não podem ser punidos mesmo que representem um risco para si próprios e para os outros utilizadores da estrada.

87.      Reconhecer a validade de uma carta de condução no caso em apreço seria contrário a este objetivo de melhoria da segurança rodoviária.

88.      Além disso, relativamente a esta nova fórmula utilizada pelo legislador da União, o Tribunal de Justiça declarou que se deve considerar que a diferença de redação existente entre o artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439 e o artigo 11.°, n.° 4, da Diretiva 2006/126 não é suscetível de pôr em causa as condições, que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça, em que o reconhecimento de uma carta de condução podia ser recusado nos termos das disposições da Diretiva 91/439, e deve agora sê‑lo nos termos das disposições da Diretiva 2006/126 (22).

89.      O Tribunal de Justiça acrescentou que a constatação de que o artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439 constitui uma derrogação ao princípio geral de reconhecimento mútuo das cartas de condução e que, por isso, deve ser objeto de interpretação estrita (23) permanece válida em relação à obrigação que atualmente figura no artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 (24).

90.      O Tribunal de Justiça esclareceu igualmente que as circunstâncias em que uma carta de condução pode não ser reconhecida como válida, em conformidade com o artigo 8.°, n.os 2 e 4, da Diretiva 91/439, não estão limitadas ao caso em que o titular requer a troca desta carta. Tal disposição tem igualmente por objetivo permitir a um Estado‑Membro aplicar, no seu território, as suas disposições nacionais em matéria de apreensão, de suspensão ou de anulação da carta de condução quando, por exemplo, o titular desta carta tenha cometido uma infração (25).

91.      Importa agora determinar se a medida de apreensão, pela sua natureza, está abrangida pelo artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126. Dito de outro modo, deve considerar‑se que a distinção entre a natureza penal e a natureza administrativa da sanção é eficaz?

92.      No presente processo, o Ministério Público de Ravensburg arquivou sem consequências o processo de instrução penal (26). A decisão de reenvio deixa transparecer que a medida de apreensão da carta de condução de S. Aykul foi adotada pelo Landratsamt Ravensburg, que é um órgão jurisdicional administrativo, e refere que esta medida está fundamentada na legislação em matéria de carta de condução. Deste modo, quando existem dúvidas sobre a aptidão para a condução, a ordem jurídica alemã prevê, em primeiro lugar, que esta deve ser verificada e, caso se demonstre que a aptidão para a condução não existe ou deixou de existir, a lei alemã prevê que a administração emitente está obrigada a retirar a carta de condução. O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que não existe qualquer poder de apreciação a este respeito (27).

93.      A Comissão, apesar de se referir ao artigo 11.°, n.° 2, da Diretiva 2006/126 (28), não partilha a perspetiva de que a apreensão da carta de condução por inaptidão para a condução pode ser considerada uma medida cautelar de natureza penal (29) e, por conseguinte, se inclui no direito penal abrangido pela reserva relativa ao princípio da territorialidade das leis penais e de polícia (30).

94.      Não concordamos com esta opinião, corroborada por S. Aykul na audiência.

95.      Conforme referimos, o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 regula, em nossa opinião, a hipótese em causa no caso em apreço, na qual a sanção é aplicável por força das leis penais e de polícia de um Estado‑Membro que é o Estado‑Membro onde foi cometida a infração.

96.      As expressões «leis penais» e «leis de polícia» surgem no período inicial do n.° 2, do artigo 8.°, da Diretiva 91/439, nos termos do qual «[s]em prejuízo do cumprimento do princípio da territorialidade das leis penais e das disposições de polícia». Todavia, o texto desta diretiva, tal como o da Diretiva 2006/126, não define este período inicial nem estas expressões, e a jurisprudência não refere como devem ser interpretados.

97.      A expressão «lei penal» basta‑se a si própria. Quanto à expressão «lei de polícia» (31), sugere imediatamente o conceito de polícia administrativa. As duas expressões remetem incontestavelmente para a ideia de ordem pública do Estado, conceito que se aplica nos limites territoriais deste.

98.      A prática de infrações que põem em perigo os cidadãos devido ao risco e à insegurança que criam constitui uma ofensa a essa ordem pública e justifica uma sanção.

99.      Esta pode assumir diferentes formas, segundo a sua natureza, a sua gravidade, a organização jurisdicional do Estado que pode, ou não, efetuar uma separação dos atos administrativos e judiciais, mas todas centradas num mesmo objetivo, aqui fixado pela Diretiva 2006/126.

100. Por conseguinte, a utilização destas duas expressões, «lei penal» e «lei de polícia», longe de sugerir uma diferença, introduz, em contrapartida, uma complementaridade.

101. Esta complementaridade é, aliás, imposta pelo conceito de «matéria penal», tal como desenvolvido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

102. Com efeito, conforme referimos no âmbito das conclusões apresentadas no processo que deu lugar ao acórdão Comissão/Parlamento e Conselho (C‑43/12, EU:C:2014:298), aquele Tribunal adotou uma abordagem funcional para definir o que está abrangido pela matéria penal no âmbito do artigo 6.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950. Referimo‑nos ao seu acórdão Öztürk c. Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 (32), relativo a infrações rodoviárias. Se seguirmos esta abordagem funcional, é indubitável que as infrações rodoviárias têm natureza penal, na medida em que dão lugar, nos Estados‑Membros, a sanções tanto com caráter punitivo como dissuasor. Assim, pouco importa que essas sanções sejam do domínio do direito administrativo repressivo ou do direito penal dos Estados‑Membros (33).

103. A complementaridade das duas expressões é igualmente ilustrada pelo desenrolar do processo nacional.

104. Com efeito, foi a este título que, com base na infração cometida, juridicamente punida tanto pela via penal como pela via administrativa, a autoridade judiciária que apreciou o processo efetuou uma escolha que consistiu em, através do arquivamento da via penal, preferir a via administrativa, sem dúvida mais rápida e com maior economia de meios, para uma infração cuja simplicidade jurídica e fatual inquestionavelmente não justificava as dificuldades de um processo penal clássico.

105. Esta escolha concedida pela lei e efetuada pelo Ministério Público é a ilustração de um sistema clássico designado, em determinados Estados, «apreciação da oportunidade dos processos», expressão equívoca que preferimos substituir por «apreciação da proporcionalidade dos processos». Independentemente do seu nome, esta técnica constitui uma via processual clássica que faz parte de uma apreciação e de uma aplicação globais, coordenadas e proporcionadas da sanção de uma ofensa à ordem pública de um Estado.

106. Assim, consideramos que a aplicação desta complementaridade ao caso de S. Aykul se assume como a solução concreta.

107. Com efeito, no caso de S. Aykul, a lei alemã territorialmente aplicável prevê, por um lado, que a prática da infração implica uma suspensão do direito de condução, uma sanção imediata, não apenas como resposta ao comportamento infrator, mas igualmente devido ao potencial perigo que constitui para os outros utilizadores o facto de S. Aykul não dissociar o consumo de cannabis da condução de veículos e, por outro, que, após a suspensão, a mesma apenas pode recuperar o seu direito de condução no território alemão depois de ter satisfeito com sucesso as exigências de um exame médico. Esta combinação dos dois aspetos, a saber, a sanção a que se somam medidas designadas por certas legislações como «medidas de segurança», centradas na prevenção da repetição da situação infratora perigosa, é perfeitamente clássica nas legislações modernas.

108. Apesar de, pela sua natureza, a medida de apreensão estar abrangida, em nossa opinião, pelo artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126, importa agora retirar as consequências da aplicação do princípio da territorialidade das leis penais e de polícia.

3.      Reconhecimento, por parte de outros Estados‑Membros, da decisão com caráter penal que afeta a carta de condução

109. Por força do princípio da territorialidade das leis penais e de polícia, uma pessoa que circule no território de um Estado‑Membro deve respeitar as leis deste Estado.

110. Conforme observa o Governo polaco (34) e como reconhece a recorrente no processo principal (35), o Tribunal de Justiça já declarou que, quando uma infração é cometida no território de um Estado‑Membro, este é o único competente para a punir, adotando, sendo caso disso, uma medida de apreensão da carta de condução em relação a essa pessoa (36).

111. S. Aykul foi sujeita a uma medida de apreensão da sua carta de condução austríaca que teve por efeito impedi‑la de conduzir no território alemão até que provasse estar novamente apta para conduzir neste território. A questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio consiste em saber quais são as autoridades competentes para verificar essa aptidão.

112. O Tribunal de Justiça tem reiteradamente considerado que a aptidão para conduzir é um requisito para a «emissão» da carta de condução que compete apenas ao Estado‑Membro de emissão verificar (37). Ora, conforme vimos, no processo principal, a aptidão para conduzir é posta em causa não no momento da emissão da carta de condução, mas na sequência de um comportamento infrator do titular desta carta de condução cuja sanção apenas produz efeitos no território do Estado‑Membro onde a infração foi cometida.

113. À semelhança do Governo polaco, consideramos que, em consequência da aplicação do princípio da territorialidade das leis penais e de polícia, compete às autoridades do Estado‑Membro em cujo território a infração foi cometida determinar se o titular da carta de condução estrangeira está novamente apto para conduzir no seu território.

114. Com efeito, deixar que o Estado‑Membro de emissão aplique as suas próprias regras de verificação da aptidão para que o titular da carta de condução recupere o seu direito de condução no território do Estado‑Membro onde cometeu a infração parece incoerente.

115. Conforme referiu corretamente o Governo polaco, uma vez que a perda do direito de condução resultou de regras que não são aplicáveis no Estado‑Membro de emissão (38), dificilmente se pode esperar que este Estado‑Membro aplique um processo de recuperação do dito direito segundo as suas próprias regras de apreciação (39).

116. Aceitar a competência exclusiva do Estado‑Membro de emissão poderia, efetivamente, conduzir a duas soluções opostas, nomeadamente, numa situação como a de S. Aykul, aquele poderia verificar se as condições impostas pela lei do lugar da prática da infração estão reunidas, — tal solução vai além do reconhecimento de uma decisão jurisdicional de um Estado‑Membro por outro — ou recusar reconhecer as prescrições da lei do Estado‑Membro onde foi cometida a infração com o fundamento de que estas não existem na lei do Estado‑Membro de emissão. Foi esta posição, aprovada pela Comissão, que a República da Áustria adotou.

117. Acolher esta última hipótese equivale necessariamente a admitir que a Diretiva 2006/126 tinha tido por efeito, em circunstâncias como as do processo principal, harmonizar o direito penal dos Estados‑Membros em benefício do Estado‑Membro de emissão mas com um efeito limitado ao território do Estado‑Membro onde foi cometida a infração. Parece‑nos, no mínimo, difícil afirmar, por mais implicitamente que seja, que se trata de uma das maiores inovações pretendidas por esta diretiva.

118. Em contrapartida, uma vez aplicada a sanção, o Estado‑Membro onde foi cometida a infração não pode exigir, para restabelecer o direito de condução no seu território, condições mais restritivas do que as que são exigidas pela referida diretiva quando esta estabelece as condições que devem estar reunidas para a emissão de uma carta de condução. Dito de outro modo, a exigência do dever de sujeição, num caso como o de S. Aykul, a um exame médico não deve conduzir a um resultado diferente da constatação de que a pessoa sancionada já apresenta as garantias exigidas pela Diretiva 2006/126, nem mais nem menos. A este respeito, o artigo 7.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2006/126 prevê que a carta de condução só será emitida aos candidatos aprovados num exame de controlo de aptidão e de comportamento e num exame teórico de avaliação dos conhecimentos, e que satisfaçam as normas médicas, nos termos dos anexos II e III da referida diretiva.

119. Resulta dos pontos 15 e 15.1 do anexo III da Diretiva 2006/126 que é proibida a emissão ou a renovação de uma carta de condução a uma pessoa em situação de dependência de droga ou que, embora não seja dependente, tenha por hábito consumi‑la regularmente.

120. O processo previsto pelo direito alemão, em aplicação dos pontos 15 e 15.1 do anexo III da Diretiva 2006/126, que surge na sequência da prática de uma infração, tem precisamente por objetivo verificar se o interessado ainda está sob a influência da droga e se deixou de constituir um perigo para si mesmo e para os outros utilizadores da estrada.

121. Embora as autoridades do Estado‑Membro em cujo território a infração foi cometida sejam efetivamente competentes para verificar se o titular da carta de condução está novamente apto para conduzir no seu território, importa, todavia, verificar se, em razão de outras eventuais disposições ou de outro dos seus efeitos, nomeadamente quanto à sua duração, a medida de apreensão não se subtrai ao respeito das disposições do direito da União (40).

122. A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 8.°, n.° 4, da Diretiva 91/439 não pode ser invocado por um Estado‑Membro para recusar indefinidamente reconhecer a uma pessoa que foi objeto, no seu território, de uma medida de apreensão ou de anulação de uma carta de condução emitida por esse Estado‑Membro a validade de qualquer carta de condução que, posteriormente, isto é, após o período de interdição, lhe possa vir a ser emitida por outro Estado‑Membro (41).

123. Em nossa opinião, tal interpretação impõe‑se a fortiori no caso em que o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 não pode ser invocado por um Estado‑Membro para recusar reconhecer indefinidamente a validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando o titular desta carta tenha sido objeto, no território do primeiro Estado‑Membro, de uma medida restritiva.

124. Com efeito, admitir que um Estado‑Membro se possa basear nessas disposições nacionais para se opor indefinidamente ao reconhecimento de uma carta de condução emitida noutro Estado‑Membro seria a própria negação do princípio do reconhecimento mútuo das cartas de condução, que constitui a pedra angular do sistema instituído pela Diretiva 91/439 (42).

125. Assim, importa apreciar se, através da aplicação das suas próprias regras, a República Federal da Alemanha não está, na realidade, a opor‑se indefinidamente ao reconhecimento da carta de condução emitida pelas autoridades austríacas.

126. Recorde‑se que, em conformidade com o direito alemão, S. Aykul foi objeto de uma coima e de uma apreensão da carta por um período de um mês apenas no território alemão. S. Aykul tem a possibilidade de pedir para ser novamente autorizada a conduzir veículos a motor na Alemanha ao abrigo da sua carta de condução austríaca. A este respeito, uma aptidão para conduzir veículos a motor, suficiente para participar na circulação rodoviária na Alemanha, apenas poderia ser aceite após S. Aykul apresentar um relatório positivo elaborado por um centro de controlo da aptidão para a condução oficialmente reconhecido na Alemanha. Um relatório positivo estaria, em geral, subordinado à prova de abstinência durante um ano.

127. Em nossa opinião, as disposições nacionais aplicáveis visam prorrogar os efeitos de uma medida de apreensão no tempo, mas não se opõem indefinidamente ao reconhecimento da carta de condução, uma vez que, como refere o Governo alemão na sua resposta escrita à questão colocada pelo Tribunal de Justiça, na falta de apresentação de um parecer médico‑psicológico positivo e na medida em que se trate de uma carta de condução UE ou EEE, deve igualmente ser reconhecido o direito de utilizar uma carta de condução estrangeira quando a inscrição da falta de aptidão tenha sido cancelada no registo de aptidão para a condução (43).

128. No caso de S. Aykul, segundo os elementos fornecidos por este mesmo Governo, o prazo para o cancelamento deve ser de cinco anos, em conformidade com o § 29, n.° 1, ponto 2, alínea b), da StVG, uma vez que a condução sob a influência de produtos estupefacientes é acompanhada de dois pontos enquanto infração administrativa que afeta particularmente a segurança rodoviária ou enquanto infração administrativa equiparada. Findo este prazo, S. Aykul poderá utilizar novamente na Alemanha a sua carta de condução austríaca sem ter de apresentar um parecer médico‑psicológico positivo (44).

129. O facto de sujeitar o restabelecimento do direito de condução no território alemão a um parecer médico‑psicológico positivo com base num relatório positivo elaborado por um centro de controlo da aptidão para a condução oficialmente reconhecido na Alemanha pode, certamente, parecer vinculativo (45). Em relação a este ponto, temos apenas uma reserva. Com efeito, consideramos que o certificado deve emanar de um centro de controlo, ou equivalente, estabelecido no território de um Estado‑Membro e que aplique os critérios da Diretiva 2006/126. Todavia, a medida constitui, em nosso entender, um meio de prevenção eficaz suscetível de reforçar a segurança rodoviária (46).

130. O programa de ação da Comissão visa, em relação ao objetivo da melhoria da segurança rodoviária, incentivar os utilizadores a um melhor comportamento, nomeadamente através de um maior respeito da legislação em vigor e do prosseguimento dos esforços para combater as práticas perigosas (47).

131. A Comissão recordou igualmente até que ponto era importante educar, formar, controlar e, se fosse caso disso, punir o utilizador da estrada por este último ser o primeiro elo da cadeia da segurança rodoviária (48).

132. Por conseguinte, a medida é conforme, em nossa opinião, à jurisprudência referida e afigura‑se suficientemente eficaz, proporcionada e dissuasória à luz dos objetivos da segurança rodoviária, que constitui o cavalo de batalha da Comissão há vários anos (49). Com efeito, a repressão das infrações não pode ser eficaz sem sanção dissuasória.

133. Em todo o caso, para recuperar o direito de circular no território alemão, S. Aykul pode optar por respeitar o parecer médico durante um período de um ano ou esperar pelo cancelamento da inscrição da sua culpa no registo findo um período de cinco anos.

134. Além disso, observamos que a liberdade de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros da União conferida aos cidadãos da União pelo artigo 21.° TFUE, e cujo exercício a Diretiva 2006/126 visa facilitar, não é limitada no caso de S. Aykul, visto que o não reconhecimento da validade da sua carta de condução austríaca apenas tem um efeito limitado no tempo e ao território alemão, pois S. Aykul pode continuar a circular no território dos outros Estados‑Membros.

135. É igualmente nesta medida que consideramos que a regulamentação alemã está abrangida pelo artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 e não pelo artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439. Com efeito, em nossa opinião, a primeira disposição deve ser entendida no sentido de que pode permitir ao Estado‑Membro em cujo território ocorreu a infração limitar os efeitos da recusa de reconhecimento da validade da carta de condução emitida por outro Estado‑Membro ao seu território, ao passo que a aplicação da segunda disposição, pela possibilidade da troca de carta de condução, produz efeitos em todos os Estados‑Membros.

136. À luz de todas as considerações anteriores, consideramos que o Tribunal de Justiça deve responder que o artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126 obriga um Estado‑Membro a recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando, na sequência de uma infração à circulação rodoviária com caráter penal cometida no território do primeiro Estado‑Membro posterior à emissão dessa carta de condução, esta tenha sido apreendida nesse território por o seu titular ter deixado de estar apto para conduzir e se ter tornado um perigo para a segurança rodoviária. O titular da carta de condução estará novamente apto para conduzir no referido território quando as condições previstas pela legislação do Estado‑Membro em cujo território a infração foi cometida estiverem reunidas, desde que as regras nacionais não tenham como efeito impor condições que não são exigidas pela Diretiva 2006/126 para a emissão deste título, ou recusar indefinidamente o reconhecimento da validade da carta de condução.

IV – Conclusão

137. Tendo em consideração o exposto, propomos ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais colocadas pelo Verwaltungsgericht Sigmaringen da seguinte forma:

«O artigo 11.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativa à carta de condução, obriga um Estado‑Membro a recusar o reconhecimento da validade de uma carta de condução emitida por outro Estado‑Membro, quando, na sequência de uma infração à circulação rodoviária com caráter penal cometida no território do primeiro Estado‑Membro posterior à emissão dessa carta de condução, esta tenha sido apreendida nesse território por o seu titular ter deixado de estar apto para conduzir e se ter tornado um perigo para a segurança rodoviária. O titular da carta de condução estará novamente apto para conduzir no referido território quando as condições previstas pela legislação do Estado‑Membro em cujo território a infração foi cometida estiverem reunidas, desde que as regras nacionais não tenham como efeito impor condições que não são exigidas pela Diretiva 2006/126 para a emissão deste título, ou recusar indefinidamente o reconhecimento da validade da carta de condução.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      JO L 237, p. 1. Conforme alterada pela Diretiva 2009/112/CE da Comissão, de 25 de agosto de 2009 (JO L 223, p. 26, a seguir «Diretiva 91/439»).


3 —      JO L 403, p. 18, e — retificativo — JO 2009, L 19, p. 67.


4 —      V., nomeadamente, acórdãos Kapper (C‑476/01, EU:C:2004:261); Wiedemann e Funk (C‑329/06 e C‑343/06, EU:C:2008:366); Weber (C‑1/07, EU:C:2008:640); Grasser (C‑184/10, EU:C:2011:324); Akyüz (C‑467/10, EU:C:2012:112); e Hofmann (C‑419/10, EU:C:2012:240).


5 —      V., artigo 1.°, n.° 2, desta diretiva.


6 —      A residência habitual é definida no artigo 9.°, primeiro parágrafo, desta diretiva como sendo «o local onde uma pessoa vive habitualmente, isto é, durante pelo menos 185 dias por ano civil, em consequência de vínculos pessoais e profissionais ou, no caso de uma pessoa sem vínculos profissionais, em consequência de vínculos pessoais, indiciadores de relações estreitas entre ela própria e o local onde vive».


7 —      V., primeiro considerando da Diretiva 2006/126.


8 —      A definição de residência habitual que figura no artigo 12.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/126 é idêntica à que consta do artigo 9.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 91/439.


9 —      BGBl. 2003 I, p. 310, a seguir «StVG».


10 —      BGBl. 1998 I, p. 2214, a seguir «FeV».


11 —      Acórdão Akyüz (EU:C:2012:112, n.° 32).


12 —      V. acórdão Derudder (C‑290/01, EU:C:2004:120, n.os 37 e 38), assim como acórdão Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (C‑157/10, EU:C:2011:813, n.os 17 a 21).


13 —      V. n.os 10 e 11 das observações escritas do Governo polaco.


14 —      Itálico nosso. V., nomeadamente, acórdãos Schwarz (C‑321/07, EU:C:2009:104, n.° 77); Grasser (EU:C:2011:324, n.° 21); e Hofmann (EU:C:2012:240, n.° 46).


15 —      V. acórdão Le Rayon d’Or (C‑151/13, EU:C:2014:185, n.° 25 e jurisprudência referida).


16 —      Ibidem (n.° 26 e jurisprudência referida).


17 —      V. n.° 3 das observações do Governo italiano.


18 —      Itálico nosso.


19 —      Na carta do Ministério dos Transportes e das Infraestruturas do Land de Baden‑Württemberg, foi exposto que, ao contrário da redação do artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439, a do artigo 11.°, n.° 4, da Diretiva 2006/126 autoriza o não reconhecimento não só ao Estado‑Membro da residência habitual, mas também a qualquer outro Estado‑Membro (p. 5 da versão francesa da decisão de reenvio).


20 —      Nos termos do primeiro parágrafo, «[u]m Estado‑Membro recusará emitir uma carta de condução» e, nos termos do último parágrafo, «Um Estado‑Membro pode igualmente recusar emitir uma carta de condução».


21 —      A União fez do objetivo de melhoria da segurança rodoviária o seu cavalo de batalha desde há vários anos e visa objetivos ambiciosos de redução do número de acidentes até 2020 (v. comunicação da Comissão de 20 de julho de 2010 ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité económico e social europeu e ao Comité das regiões, intitulado «Rumo a um espaço europeu de segurança rodoviária: orientações para a política de segurança rodoviária de 2011‑2020» [COM(2010) 389 final]).


22 —      V. acórdão Hofmann (EU:C:2012:240, n.° 65).


23 —      Acórdão Kapper (EU:C:2004:261, n.os 70 e 72 e jurisprudência referida). V., igualmente, despacho Halbritter (C‑227/05, EU:C:2006:245, n.° 26).


24 —      V. acórdão Hofmann (EU:C:2012:240, n.° 71).


25 —      V. acórdão Kapper (EU:C:2004:261, n.° 73).


26 —      V. p. 3 da versão francesa da decisão de reenvio.


27 —      V. p. 13 da versão francesa da decisão de reenvio.


28 —      Recordamos que é o artigo 8.°, n.° 2, da Diretiva 91/439 que se aplica ratione temporis no presente processo.


29 —      O órgão jurisdicional de reenvio utiliza, em relação ao presente processo, a expressão «medida de segurança de natureza penal».


30 —      V. n.os 39 a 41 das observações da Comissão.


31 —      O órgão jurisdicional de reenvio refere, na sua decisão de reenvio, que a legislação em matéria de cartas de condução é um «direito de polícia» (v. pp. 13 e 14 da versão francesa da decisão de reenvio).


32 —      Série A n.° 73, nomeadamente, §§ 53 a 56.


33 —      Conclusões no processo Comissão/Parlamento e Conselho (C‑43/12, EU:C:2013:534, n.° 65).


34 —      V. n.° 25 das observações do Governo polaco.


35 —      V. n.° 9 das observações escritas da recorrente no processo principal.


36 —      Acórdão Weber (EU:C:2008:640, n.° 38).


37 —      Acórdão Hofmann (EU:C:2012:240, n.° 45 e jurisprudência referida).


38 —      A República da Áustria não teria iniciado o processo e, por conseguinte, punido S. Aykul se esta tivesse cometido a infração no seu território (v., pp. 4 a 6 da versão francesa da decisão de reenvio).


39 —      V. n.° 34 das observações do Governo polaco.


40 —      V., neste sentido, acórdão Unamar (C‑184/12, EU:C:2013:663, n.os 46 e 47 e jurisprudência referida).


41 —      V. acórdão Hofmann (EU:C:2012:240, n.° 50 e jurisprudência referida).


42 —      V. acórdão Akyüz (EU:C:2012:112, n.° 57).


43 —      V. ponto 11 dessa resposta escrita.


44 —      V. ponto 13 da referida resposta escrita.


45 —      Através do parecer médico‑psicológico, é necessário apresentar prova de uma abstinência de droga durante um ano. Esta abstinência deve ser demonstrada por exames médicos com base em, pelo menos, quatro exames de laboratório marcados de forma imprevisível no prazo de um ano.


46 —      V. segundo considerando da Diretiva 2006/126.


47 —      V. ponto 4 da comunicação da Comissão intitulada «Programa de Ação Europeu ‑ Reduzir para metade o número de vítimas da estrada na União Europeia até 2010: uma responsabilidade de todos» [COM(2003) 311 final].


48 —      V. comunicação da Comissão referida na nota 21 (ponto 5).


49 —      V. programa de ação referido na nota 47, que estabelece que «o desrespeito das regras do código da estrada deve ser combatido [...] através da introdução de medidas que melhorem a fiscalização e a aplicação de sanções eficazes, proporcionais e dissuasivas ao nível da União» (ponto 10); Resolução do Conselho de 27 de novembro de 2003, relativa ao impacto do uso de substâncias psicoativas nos acidentes rodoviários (JO 2004, C 97, p. 1), que salienta que importa «[a]provar todas as disposições adequadas, que prevejam igualmente sanções, no que diz respeito aos condutores de veículos encontrados sob o efeito de substâncias psicoativas que reduzam a sua capacidade de condução» (n.° 29), e Recomendação da Comissão, de 6 de abril de 2004, relativa ao controlo do cumprimento das regras de segurança rodoviária (JO L 111, p. 75), que dispõe, no seu nono considerando, que «os Estados‑Membros devem velar para que as infrações sejam seguidas da aplicação de sanções efetivas, proporcionadas e dissuasórias».