Language of document : ECLI:EU:C:2006:672

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

26 de Outubro de 2006 (*)

«Incumprimento de Estado – Directiva 92/100/CEE – Direitos de autor – Direito de aluguer e direito de comodato – Não transposição no prazo fixado»

No processo C‑36/05,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 31 de Janeiro de 2005,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por R. Vidal Puig e W. Wils, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Reino de Espanha, representado por I. del Cuvillo Contreras, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, A. Borg Barthet e J. Malenovský (relator), juízes,

advogada‑geral: E. Sharpston,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 29 de Junho de 2006,

profere o presente

Acórdão

1        Na petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao isentar da obrigação de remuneração devida aos autores pelos comodatos, efectuados pela quase totalidade, se não pela totalidade, das categorias de estabelecimentos que praticam o comodato público de obras protegidas por direitos de autor, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.º e 5.º da Directiva 92/100/CEE do Conselho, de 19 de Novembro de 1992, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos aos direitos de autor em matéria de propriedade intelectual (JO L 346, p. 61, a seguir «directiva»).

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

2        O sétimo considerando da directiva tem a seguinte redacção:

«considerando que o trabalho criativo e artístico dos autores e dos artistas intérpretes e executantes exige uma remuneração adequada na perspectiva da continuação desse trabalho criativo e artístico; que os investimentos exigidos em especial para a produção de fonogramas e filmes são especialmente elevados e arriscados; que o pagamento dessa remuneração e a recuperação desse investimento só podem ser assegurados efectivamente através de uma protecção legal adequada dos titulares envolvidos».

3        O artigo 1.° da directiva dispõe:

«1.      Em conformidade com o disposto neste capítulo, os Estados‑Membros deverão prever, sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, o direito de autorizar ou proibir o aluguer e o comodato de originais e cópias de obras protegidas por direitos de autor e de outros objectos referidos no n.° 1 do artigo 2.º

2.      Para efeitos da presente directiva, entende‑se por ‘aluguer’ a colocação à disposição para utilização, durante um período de tempo limitado e com benefícios comerciais directos ou indirectos.

3.      Para efeitos da presente directiva, entende-se por ‘comodato’ a colocação à disposição para utilização, durante um período de tempo limitado, sem benefícios económicos ou comerciais, directos ou indirectos, se for efectuada através de estabelecimentos acessíveis ao público.

4.      Os direitos referidos no n.° 1 não se esgotam com a venda ou qualquer outro acto de distribuição dos originais ou cópias de obras protegidas por direitos de autor ou de outros objectos previstos no n.° 1 do artigo 2.°»

4        O artigo 5.°, n.os 1 a 3, da directiva prevê:

«1.      Os Estados‑Membros poderão derrogar o direito exclusivo previsto para os comodatos públicos no artigo 1.º, desde que pelo menos os autores aufiram remuneração por conta de tais comodatos. Os Estados‑Membros poderão determinar livremente tal remuneração tendo em conta os seus objectivos de promoção da cultura.

2.      Sempre que os Estados‑Membros não aplicarem o direito exclusivo de comodato referido no artigo 1.º relativamente aos programas, filmes e programas de computadores, deverão introduzir uma remuneração, pelo menos, para os autores.

3.      Os Estados‑Membros poderão isentar determinadas categorias de estabelecimentos do pagamento da remuneração referida nos n.os 1 e 2.»

 Legislação nacional

5        A directiva foi transposta para o ordenamento jurídico espanhol pela Lei 43/1994, de 30 de Dezembro de 1994, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos aos direitos de autor em matéria de propriedade intelectual (BOE n.° 313, de 31 de Dezembro de 1994, p. 39504). Essa lei foi alterada pelo Real Decreto‑Lei 1/1996, de 12 de Abril de 1996, que aprova a versão consolidada da lei da propriedade intelectual (BOE n.° 97, de 22 de Abril de 1996, p. 14369, a seguir «decreto‑lei»).

6        Nos termos do artigo 17.º do decreto‑lei:

«O autor exerce de forma exclusiva os direitos de exploração da sua obra sob que forma seja e, designadamente, os direitos de reprodução, de distribuição, de divulgação pública e de transformação que, salvo nos caos previstos na presente lei, não podem ser praticados sem autorização.»

7        O artigo 19.º do decreto‑lei tem a seguinte redacção:

«1.      Entende‑se por ‘distribuição’ a colocação à disposição do público do original e cópias de uma obra através da venda, do aluguer, do comodato ou de qualquer outro meio.

[...]

3.      Entende‑se por ‘aluguer’ a colocação à disposição dos originais e cópias de uma obra para utilização, durante um período de tempo limitado e com benefícios económicos ou comerciais directos ou indirectos.

Estão excluídas do conceito de aluguer a colocação à disposição para efeitos de exibição, de comunicação ao público através de fonogramas ou de gravações audiovisuais, incluindo sob a forma de extractos, e a colocação à disposição para consulta in situ.

4.      Entende‑se por ‘comodato’ a colocação à disposição, para utilização, dos originais e cópias de uma obra, durante um período de tempo limitado, sem benefícios económicos ou comerciais, directos ou indirectos, se for efectuada através de estabelecimentos acessíveis ao público.

Considera‑se que não existem benefícios económicos ou comerciais, directos ou indirectos, quando o comodato efectuado por um estabelecimento acessível ao público dê lugar ao pagamento de um montante em dinheiro que não ultrapasse o montante necessário para cobrir as suas despesas de funcionamento.

Estão excluídas do conceito de comodato as operações mencionadas no segundo travessão do n.° 3 ou aquelas que são efectuadas entre estabelecimentos acessíveis ao público.»

8        O direito exclusivo de comodato conferido ao autor pelos artigos 17.° e 19.° do decreto‑lei está sujeito à seguinte excepção constante do artigo 37.°, n.° 2, do decreto‑lei:

«[…] os museus, arquivos, bibliotecas, hemerotecas, fonotecas e cinematecas, públicos ou que pertençam a entidades de interesse geral de carácter cultural, científico ou educativo sem fins lucrativos, ou a estabelecimentos de ensino que façam parte do sistema educativo espanhol, não necessitam de autorização dos titulares dos direitos nem de lhes pagar uma remuneração pelos comodatos que efectuem.»

 Fase pré‑contenciosa

9        Em 24 de Abril de 2003, a Comissão pediu ao Reino de Espanha para lhe fornecer informações relativas à transposição dos artigos 1.º, 2.º e 5.º da directiva. O Reino de Espanha respondeu por carta datada de 1 de Julho de 2003.

10      Nos termos do procedimento previsto no artigo 226.º, primeiro parágrafo, CE, a Comissão dirigiu ao Reino de Espanha, em 19 de Dezembro de 2003, uma notificação para cumprir convidando‑o a adoptar as medidas necessárias para dar cumprimento à directiva. O referido Estado‑Membro apresentou observações em 19 de Março de 2004.

11      Por considerar que essas explicações não eram satisfatórias, a Comissão enviou, em 9 de Julho de 2004, um parecer fundamentado ao Reino de Espanha convidando‑o a tomar as medidas necessárias para lhe dar cumprimento no prazo de dois meses a contar da respectiva notificação.

12      Em resposta ao referido parecer fundamentado, o Reino de Espanha enviou à Comissão, em 13 de Setembro de 2004, um relatório elaborado pelo Ministério da Cultura em que, por um lado, eram reiterados os argumentos alegados pelas autoridades espanholas na carta de resposta à notificação para cumprir e, por outro, era invocada a «penúria de recursos orçamentais disponíveis».

13      Não estando convencida dos argumentos em que se baseia a posição do Reino de Espanha, a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

14      Segundo a Comissão, resulta do artigo 37.º, n.° 2, do decreto‑lei que a obrigação de remunerar os autores pelo comodato das suas obras que não foi objecto de uma autorização do titular dos direitos é tão limitada que se duvida que possa ter qualquer aplicação prática. A distinção feita entre o «estabelecimento» que efectua os comodatos e a «entidade» que fiscaliza esse estabelecimento é, na realidade, excessivamente formalista. Com efeito, faz depender a remuneração devida aos autores da forma jurídica escolhida por quem efectua o comodato, o que permite iludir muito facilmente a obrigação de remuneração.

15      Na realidade, essa obrigação não se aplica quando as entidades que efectuam os comodatos pertencem a organismos públicos, a estabelecimentos que façam parte do sistema educativo espanhol ou ainda a entidades privadas «de interesse geral de carácter cultural, científico ou educativo» sem fins lucrativos.

16      Por conseguinte, a obrigação de remuneração apenas se aplica em dois casos. O primeiro, quando o estabelecimento que efectua o comodato é uma entidade privada com fins lucrativos. Ora, o comodato efectuado «com fins lucrativos» não é considerado «comodato» para efeitos da directiva, mas sim «aluguer». Por outro lado, é pouco provável, na prática, que uma entidade com fins lucrativos efectue comodatos gratuitos. O segundo caso ocorre quando o referido estabelecimento é uma entidade privada, sem fins lucrativos, mas que não consiste numa entidade «de interesse geral de carácter cultural, científico ou educativo». É aqui também dificilmente concebível que os museus, as bibliotecas, as fonotecas, as cinematecas ou qualquer outro estabelecimento que efectue comodatos públicos sem fim lucrativo não possam ser considerados «entidades de interesse geral de carácter cultural, científico ou educativo».

17      Assim, embora seja verdade que, no caso vertente, o decreto‑lei possibilita que se efectue uma distinção formal entre as diferentes categorias de estabelecimentos, essa distinção não pode contudo ser considerada válida, uma vez que produz o mesmo efeito que a inexistência de qualquer distinção e conduz à isenção da obrigação de remuneração de todos os comodatos.

18      Além disso, o artigo 5.º, n.° 3, da directiva, enquanto derrogação à obrigação de remuneração prevista no n.° 1 desse artigo, é de interpretação estrita. Daqui resulta que não atribuir qualquer significado ao adjectivo «determinada» empregue na expressão «determinadas categorias de estabelecimentos» significa privar de qualquer efeito útil a obrigação de remuneração e dar ao referido n.° 3 uma interpretação contrária ao objectivo da directiva. Além disso, embora seja verdade que esta última disposição concede aos Estados‑Membros uma margem de apreciação importante para definir as categorias de estabelecimentos isentos da obrigação de remuneração, uma «isenção» aplicável a todos ou quase todos os estabelecimentos passa a ser a regra geral.

19      Por outro lado, as remunerações auferidas pelos autores devem compensar os seus esforços de criação. Daqui resulta que o não pagamento ou um pagamento de tal forma reduzido que é manifestamente inadequado para compensar tais esforços de criação não podem, portanto, ser considerados uma «remuneração» na própria acepção deste termo.

20      Na sua defesa, o Reino de Espanha considera, antes de mais, que não é exacto qualificar de «extremamente restrito» o domínio de aplicação da obrigação de remuneração dos autores prevista pela legislação espanhola, dado que a Comissão equipara erradamente «estabelecimentos» e «entidades». Na realidade, a inexistência de fins lucrativos é um requisito que se deveria aplicar não ao próprio estabelecimento, mas à entidade detentora desse estabelecimento. A equiparação entre estabelecimento e entidade presta‑se portanto a confusão ao deixar crer que os fins lucrativos e o interesse geral se devem aplicar ao estabelecimento e não à entidade sua detentora. Nestas condições, o domínio de aplicação da referida obrigação, qualificado de extremamente restrito pela Comissão, é mais amplo. Além disso, é muito frequente que sociedades privadas exerçam actividades de patrocínio ou de mecenato efectuando o comodato público gratuito de obras e nada obsta a que as entidades proprietárias desses estabelecimentos paguem uma remuneração aos autores que a peçam.

21      O Reino de Espanha alega, seguidamente, que nenhum artigo da directiva fornece informações ou critérios de interpretação quanto ao alcance relativo que podem ter a regra geral de remuneração dos autores bem como a isenção do seu pagamento. Assim, a Comissão, sobre a qual incide o ónus da prova, não demonstrou que o facto de a isenção do pagamento da remuneração aos autores pelo comodato das suas obras ser muito ampla tenha originado uma insuficiência de rendimentos em detrimento destes últimos susceptível de os impedir de poder realizar novas criações. Por outro lado, a Comissão não produziu a prova nem sequer apresentou a alegação de que essa isenção tenha afectado a realização do mercado interno.

22      Contrariamente ao que alega a Comissão, que procura limitar, sem fundamento legal, a faculdade reconhecida aos Estados‑Membros de isentar determinadas categorias de estabelecimentos, se não a sua totalidade, a directiva confere aos referidos Estados‑Membros um amplo poder de apreciação que lhes permite limitar, ou mesmo privar de efeito, a obrigação de remuneração na medida necessária para atingir os objectivos culturais a que se propuseram, exigência prioritária que prima sobre a que visa garantir aos autores rendimentos suficientes. A declaração da Comissão, no seu relatório ao Conselho da União Europeia, ao Parlamento Europeu e ao Comité Económico e Social Europeu sobre o direito de comodato público na União Europeia, de 12 de Setembro de 2002 [COM(2002) 502 final, a seguir «relatório de 2002 sobre o direito de comodato público»], confirma esta interpretação. Com efeito, a Comissão afirma, neste documento, que «[s]ob certas condições [o artigo 5.º] permite que os Estados‑Membros substituam o direito exclusivo por um direito de remuneração, ou mesmo que não prevejam qualquer remuneração».

23      Por último, o Reino de Espanha alega que a expressão «determinadas categorias de estabelecimentos» não se refere à quantidade, ao número ou à importância destes, mas significa indiferentemente categorias de estabelecimentos distintas, diferenciadas ou definidas. Daqui resulta que a interpretação do artigo 5.º, n.° 3, da directiva preconizada pela Comissão não corresponde ao significado real da referida expressão.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

24      Através da presente acção por incumprimento, a Comissão suscita, essencialmente, a questão relativa ao alcance que há que conferir às disposições do artigo 5.°, n.° 3, da directiva, segundo as quais os Estados‑Membros podem isentar «determinadas categorias de estabelecimentos» do pagamento da remuneração prevista no n.° 1 do mesmo artigo.

25      Segundo jurisprudência assente, cabe atender, na interpretação de uma disposição de direito comunitário, não apenas aos respectivos termos mas também ao seu contexto e aos objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (v., nomeadamente, acórdãos de 18 de Maio de 2000, KVS International, C‑301/98, Colect., p. I‑3583, n.° 21, e de 19 de Setembro de 2000, Alemanha/Comissão, C‑156/98, Colect., p. I‑6857, n.° 50 ).

26      Tendo em conta a principal finalidade da directiva, tal como resulta mais particularmente do seu sétimo considerando, esta tem por objectivo assegurar aos autores, artistas intérpretes ou executantes uma remuneração apropriada e amortizar os investimentos extremamente elevados e aleatórios que exige em particular a produção de fonogramas e filmes (acórdãos de 28 de Abril de 1998, Metronome Musik, C‑200/96, Colect., p.I‑1953, n.° 22, e de 6 de Julho de 2006, Comissão/Portugal, C‑53/05, Colect., p. I‑0000, n.° 24).

27      O facto de isentar a quase totalidade, se não a totalidade, das categorias de estabelecimentos que efectuam esses comodatos da obrigação prevista no artigo 5.°, n.° 1, da directiva privaria os autores de uma remuneração que lhes permita amortizar os seus investimentos, o que também não deixaria de ter repercussões na actividade de criação de novas obras (v. acórdãos, já referidos, Metronome Musik, já referido, n.° 24, e Comissão/Portugal, n.° 25). Nestas condições, uma transposição da directiva que conduza, na prática, à isenção da quase totalidade, se não da totalidade, das categorias de estabelecimentos é contrária ao objectivo principal dessa directiva.

28      No entanto, o Reino de Espanha alega a este respeito que o objectivo de promoção da cultura prima sobre o que visa garantir aos autores um rendimento apropriado. A liberdade reconhecida aos Estados‑Membros pela directiva permite‑lhes, assim, só reconhecer aos autores uma remuneração muito limitada, simbólica, ou até mesmo zero. Além disso, o relatório de 2002 sobre o direito de comodato público confirma esta interpretação.

29      É certo que a promoção da cultura constitui um objectivo de interesse geral que permite que se isentem, ao abrigo do artigo 5.º, n.° 3, da directiva, determinados estabelecimentos de comodato público da obrigação de remuneração. No entanto, a protecção dos titulares dos direitos, de modo a garantir a estes últimos a percepção de um rendimento apropriado, é igualmente um objectivo específico dessa mesma directiva, tal como precisa expressamente o seu sétimo considerando. É precisamente para preservar esse direito à remuneração que o legislador comunitário pretendeu limitar o alcance da isenção exigindo das autoridades nacionais que só isentem determinadas categorias de estabelecimentos da referida obrigação.

30      Por outro lado, a interpretação da directiva baseada no seu objectivo principal, tal como resulta do n.° 26 do presente acórdão, é corroborada pela própria redacção do artigo 5.°, n.° 3, disposição que visa apenas «determinadas categorias de estabelecimentos». Por conseguinte, o legislador comunitário não pretendeu permitir que os Estados‑Membros isentem a quase totalidade, se não a totalidade, das categorias de estabelecimentos do pagamento da remuneração prevista no n.° 1 do mesmo artigo (acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 21).

31      Além disso, nos termos do seu artigo 5.°, n.° 3, a directiva permite, na realidade, que os Estados‑Membros derroguem, no que respeita ao comodato público, a obrigação geral de remuneração dos autores prevista no n.° 1 do mesmo artigo. Ora, de acordo com jurisprudência assente, as disposições de uma directiva que derrogam um princípio geral consagrado por essa mesma directiva devem ser objecto de interpretação estrita (acórdãos de 29 de Abril de 2004, Kapper, C‑476/01, Colect., p. I‑5205, n.° 72, e Comissão/Portugal, já referido, n.° 22).

32      Daqui resulta que, contrariamente ao que alega o Reino de Espanha e tal como resulta do n.° 30 do presente acórdão, a expressão «determinadas categorias de estabelecimentos» do referido artigo 5.º, n.° 3, deve ser entendida no sentido de que se refere a um conceito de carácter quantitativo. Assim, apenas pode ser isenta da referida obrigação um número limitado de categorias de estabelecimentos potencialmente obrigados a pagar uma remuneração nos termos do n.° 1 do mesmo artigo.

33      Por último, há que recordar que, não existindo critérios comunitários suficientemente precisos numa directiva para delimitar as obrigações dela decorrentes, compete aos Estados‑Membros determinar, nos seus territórios, os critérios mais pertinentes para assegurar, dentro dos limites impostos pelo direito comunitário, nomeadamente pela directiva em causa, o respeito desta última (v., neste sentido, acórdãos de 6 de Fevereiro de 2003, SENA, C‑245/00, Colect., p. I‑1251, n.° 34, e de 16 de Outubro de 2003, Comissão/Bélgica, C‑433/02, Colect., p. I‑12191, n.° 19).

34      A este respeito, já foi declarado que o artigo 5.°, n.° 3, da directiva autoriza, mas não obriga, um Estado‑Membro a prever uma isenção para determinadas categorias de estabelecimentos. Por conseguinte, se as circunstâncias prevalecentes no Estado‑Membro em questão não permitirem determinar os critérios pertinentes para efectuar uma distinção válida entre as categorias de estabelecimentos, há que impor a todos os estabelecimentos em causa a obrigação de pagar a remuneração prevista no n.° 1 do referido artigo (acórdão Comissão/Bélgica, já referido, n.° 20).

35      O Reino de Espanha argumenta que a isenção prevista no artigo 37.º, n.° 2, do decreto‑lei não se aplica ao «estabelecimento» que efectua os comodatos, mas à «entidade» que controla esse estabelecimento.

36      Ora, como refere com razão a Comissão, fazer depender a isenção da obrigação de remuneração da forma jurídica escolhida por quem efectua o comodato constitui um formalismo jurídico excessivo que pode permitir a este último iludir facilmente a obrigação de remuneração. Além disso, o Reino de Espanha não fornece qualquer justificação susceptível de demonstrar a pertinência da distinção assim efectuada entre o estabelecimento e a entidade de controlo, uma vez que ambos se encontram numa situação substancialmente idêntica à luz da operação de comodato.

37      O Reino de Espanha alega também que a Comissão não demonstrou que a isenção prevista no artigo 37.º, n.° 2, do decreto‑lei prive os autores de um rendimento apropriado e falseie a concorrência no mercado comum.

38      No entanto, este argumento deve ser julgado improcedente à luz da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça segundo a qual a acção por incumprimento tem carácter objectivo (v., nomeadamente, acórdão de 17 de Novembro de 1993, Comissão/Espanha, C‑73/92, Colect., p. I‑5997, n.° 19), de modo que o desrespeito de uma obrigação imposta por uma regra de direito comunitário é, em si mesmo, constitutivo de incumprimento, sendo irrelevante a consideração de que esse desrespeito não produziu consequências negativas (v., nomeadamente, acórdãos de 21 de Setembro de 1999, Comissão/Irlanda, C‑392/96, Colect., p. I‑5901, n.os 60 e 61, bem como de 26 de Junho de 2003, Comissão/França, C‑233/00, Colect., p. I‑6625, n.° 62). Ao considerar que podia interpretar a directiva a partir da análise das consequências da sua execução, tais como a insuficiência das receitas dos autores, o Reino de Espanha faz depender a interpretação da directiva dos efeitos da sua aplicação, o que não respeita a ordem lógica destas duas fases do raciocínio jurídico.

39      Além disso, embora seja verdade que, no relatório de 2002 sobre o direito de comodato público, a Comissão observa que o artigo 5.º da directiva prevê, em determinadas condições, uma remuneração zero, essa possibilidade de não prever nenhuma remuneração visa, contudo, apenas as únicas categorias de estabelecimentos que, nos termos do artigo 5.º, n.° 3, da directiva, estão isentas da obrigação de remuneração. Ora, como resulta do n.° 31 do presente acórdão, esta disposição deve ser objecto de uma interpretação estrita.

40      Em todo o caso, mesmo supondo que o referido relatório possa ser invocado em apoio da argumentação do Reino de Espanha, esse relatório limita‑se, quando muito, a ser um elemento de interpretação entre outros e não vincula o Tribunal de Justiça, tal como foi acertadamente referido pela advogada‑geral no n.° 31 das suas conclusões.

41      Daqui resulta que o Reino de Espanha, ao incluir na lista dos estabelecimentos isentos da obrigação de remuneração prevista no artigo 37.º, n.° 2, do decreto‑lei a quase totalidade, se não a totalidade, das categorias de estabelecimentos normalmente sujeitos à obrigação de remuneração, procede a uma interpretação do artigo 5.º, n.° 3, da directiva que não é conforme com o objectivo principal desta nem com a interpretação estrita que essa disposição reclama na medida em que derroga a obrigação geral de remuneração dos autores.

42      Nestas condições, há que julgar procedente a acção intentada pela Comissão.

43      Em consequência, há que declarar que, o Reino de Espanha, ao isentar da obrigação de remuneração devida aos autores pelo comodato efectuado pela quase totalidade, se não pela totalidade, das categorias de estabelecimentos que praticam o comodato público de obras protegidas por direitos de autor, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.º e 5.º da directiva.

 Quanto às despesas

44      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Reino de Espanha e tendo este sido vencido, há que condená‑lo nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:

1)      Ao isentar da obrigação de remuneração devida aos autores pelo comodato efectuado pela quase totalidade, se não pela totalidade, das categorias de estabelecimentos que praticam o comodato público de obras protegidas por direitos de autor, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.º e 5.º da Directiva 92/100/CEE do Conselho, de 19 de Novembro de 1992, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos aos direitos de autor em matéria de propriedade intelectual.

2)      O Reino de Espanha é condenado nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.