Language of document : ECLI:EU:T:2014:547

Processo T‑286/09

(publicação por excertos)

Intel Corp.

contra

Comissão Europeia

«Concorrência — Abuso de posição dominante — Mercado dos microprocessadores — Decisão que declara uma infração ao artigo 82.° CE e do artigo 54.° do Acordo EEE — Descontos de fidelidade — Restrições ‘não dissimuladas’ — Qualificação de prática abusiva — Análise do concorrente igualmente eficaz — Competência internacional da Comissão — Obrigação de instrução da Comissão — Limites — Direitos de defesa — Princípio da boa administração — Estratégia de conjunto — Coimas — Infração única e continuada — Orientações de 2006 para o cálculo do montante das coimas»

Sumário — Acórdão do Tribunal Geral (Sétima Secção alargada) de 12 de junho de 2014

1.      Processo judicial — Petição inicial — Requisitos de forma — Documentos anexados à petição — Volume de uma peça ou de um documento — Produção parcial por extratos — Admissibilidade — Exigência de apresentação de um documento completo na Secretaria — Alcance — Desrespeito — Possibilidade de regularização

[Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 21.°; Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 43.°, n.° 5)

2.      Direitos fundamentais — Presunção de inocência — Processo em matéria de concorrência — Aplicabilidade

(Artigo 6.°, n.° 2, UE; Artigo 82.° CE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 47.° e 48.°, n.° 1)

3.      Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Modo de prova — Recurso a um conjunto de indícios — Aplicabilidade ao processo em matéria de abuso de posição dominante

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho)

4.      Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Modo de prova — Recurso a um conjunto de indícios — Grau de força probatória exigido tratando‑se dos indícios individualmente considerados — Ónus probatório das empresas que contestam a realidade da infração

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 2.°)

5.      Posição dominante — Concessão de descontos por uma empresa em posição dominante — Três categorias de descontos — Descontos quantitativos — Descontos de exclusividade ou de fidelidade — Descontos com efeito potencialmente fidelizante — Caráter abusivo — Critérios de apreciação

(Artigo 82.° CE)

6.      Posição dominante — Abuso — Descontos de exclusividade ou de fidelidade — Caráter abusivo por natureza desse sistema de descontos — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de afastamento — Papel de parceiro comercial incontornável — Apreciação — Obrigação de análise das circunstâncias do caso concreto — Inexistência — Circunstâncias não pertinentes

(Artigo 82.° CE)

7.      Posição dominante — Abuso — Descontos de exclusividade ou de fidelidade — Caráter abusivo por natureza desse sistema de descontos — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de afastamento — Análise do concorrente igualmente eficaz

(Artigo 82.° CE)

8.      Posição dominante — Abuso — Restrições não dissimuladas — Concessão de pagamentos em contrapartida de restrições impostas à comercialização de um produto de um concorrente — Caráter abusivo pelo seu objeto — Capacidade para restringir a concorrência

(Artigo 82.° CE)

9.      Concorrência — Regras da União — Âmbito de aplicação territorial — Competência da Comissão — Admissibilidade dessa aplicação, à luz do direito internacional público — Execução ou efeitos qualificados das práticas abusivas no EEE — Vias alternativas — Critério do efeito imediato, substancial e previsível — Apreciação — Tomada em conta da execução das referidas práticas pelo cliente da empresa em posição dominante — Admissibilidade

(Artigo 82.° CE)

10.    Concorrência — Procedimento administrativo — Comunicação de acusações — Prazo fixado para a apresentação das observações escritas — Pedido tardio de audição — Preclusão — Obrigação de conceder uma audição — Inexistência

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigos 27, n.os 1 e 2, e 33.°, n.° 1, alínea c); Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigos 10.°, n.° 2, e 12.°]

11.    Concorrência — Procedimento administrativo — Respeito dos direitos de defesa — Acesso ao processo — Objeto — Documentos úteis à defesa — Apreciação exclusivamente pela Comissão — Inadmissibilidade — Obrigação de tornar acessível a integralidade do dossier — Alcance quanto aos documentos internos ou confidenciais

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 27.°, n.° 2; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigo 15.°, n.° 2)

12.    Concorrência — Procedimento administrativo — Princípio da boa administração — Obrigação de diligência e de imparcialidade — Obrigação da Comissão de obter certos documentos a pedido da empresa visada por um inquérito — Requisitos

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 41.°, n.° 1; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão)

13.    Posição dominante — Abuso — Descontos de exclusividade ou de fidelidade — Inexistência de requisito formal de exclusividade — Modo de prova — Projeções internas de um cliente — Admissibilidade — Requisito

(Artigo 82.° CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 2.°)

14.    Concorrência — Procedimento administrativo — Poderes da Comissão — Poder de recolha das declarações — Declarações relativas ao objeto de um inquérito — Distinção entre os interrogatórios formais e as conversas informais — Consequências — Obrigação de consignar as declarações recebidas no decurso de reuniões ou de conversas telefónicas — Requisitos

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 41.°; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 19.°, n.° 1; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigo 3.°, n.os 1 e 3)

15.    Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Abuso de posição dominante — Modo de prova — Declaração de uma empresa terceira, cliente de uma empresa em posição dominante — Valor probatório

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 2.°)

16.    Concorrência — Coimas — Pluralidade de infrações — Imposição de uma coima única — Admissibilidade — Obrigação da Comissão de individualizar a tomada em conta dos diferentes elementos abusivos — Inexistência

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2; Comunicação 2006/C 210/02 da Comissão)

17.    Concorrência — Coimas — Montante — Determinação — Quadro jurídico — Artigo 23.°, n.os 2 e 3, do Regulamento n.° 1/2003 — Poder de apreciação conferido à Comissão pelo referido artigo — Introdução pela Comissão de novas orientações para o cálculo das coimas — Violação dos princípios da legalidade das penas e da segurança jurídica — Falta

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 49.°, n.° 1; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.os 2 e 3; Comunicação 2006/C 210/02 da Comissão)

18.    Concorrência — Regras da União — Infrações — Realização deliberada ou negligente — Conceito — Empresa em posição dominante que põe em execução práticas abusivas que consistem na concessão de descontos de exclusividade e em restrições não dissimuladas — Inclusão

(Artigo 82.° CE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2)

19.    Direito da União Europeia — Princípios — Direito a uma proteção jurisdicional efetiva — Fiscalização jurisdicional das decisões adotadas pela Comissão em matéria de concorrência — Fiscalização da legalidade e da plena jurisdição, tanto de direito como de facto — Violação — Inexistência

(Artigos 261.° TFUE e 263.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 47.° e 52.°, n.° 3; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 31.°)

20.    Concorrência — Coimas — Montante — Determinação — Princípio da igualdade de tratamento — Prática decisória da Comissão — Caráter indicativo

(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.os 2 e 3)

21.    Concorrência — Coimas — Montante — Determinação — Critérios — Gravidade da infração — Inexistência de lista vinculativa ou exaustiva de critérios — Margem de apreciação reservada à Comissão — Tomada em consideração do impacto concreto de uma infração no mercado — Alcance

[Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.os 2 e 3; Comunicação 2006/C 210/02 da Comissão, ponto 22)

1.      Resulta do artigo 43.°, n.° 5, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral que, se, dado o volume de alguma peça ou documento, apenas forem exibidos extratos, deve ser entregue na Secretaria o documento integral ou uma cópia completa do mesmo.

Em contrapartida, este artigo não exige que todos os outros documentos aos quais faz referência a um documento anexo a um ato processual sejam igualmente apresentados na Secretaria.

Além disso, mesmo que a referida disposição devesse ser interpretada no sentido de que impõe às partes uma obrigação de apresentar na Secretaria uma versão completa de qualquer documento de que as partes apresentam excertos em anexo a um ato processual, a violação desta obrigação poderia, de qualquer modo, ser regularizada.

(cf. n.os 53, 55, 57)

2.      V. texto da decisão.

(cf. n.os 62, 63)

3.      No quadro de um processo relativo a violações das regras de concorrência, embora seja necessário que a Comissão apresente provas precisas e concordantes para basear a firme convicção de que a infração foi cometida, cada uma das provas apresentadas pela Comissão não tem de corresponder necessariamente a estes testes em relação a cada elemento da infração. Basta que o conjunto de indícios invocado pela instituição, apreciado globalmente, preencha este requisito, conforme julgado no que respeita à aplicação do artigo 81.° CE. Este princípio é aplicável igualmente nos assuntos que dissessem respeito a aplicação do artigo 82.° CE.

(cf. n.° 64)

4.      V. texto da decisão.

(cf. n.os 65‑67, 542, 1525, 1528, 1529, 1547)

5.      Em matéria de concorrência, o facto de uma empresa em posição dominante num mercado vincular compradores — ainda que a pedido destes — através de uma obrigação ou promessa de se abastecerem na totalidade ou numa parte considerável das suas necessidades exclusivamente junto da referida empresa constitui uma exploração abusiva de uma posição dominante na aceção do artigo 82.° CE, quer a obrigação em questão esteja estipulada sem mais, quer tenha a sua contrapartida na concessão de descontos. A situação é idêntica quando a referida empresa, sem vincular os compradores através de uma obrigação formal, aplica, quer por força de acordos celebrados com os compradores quer unilateralmente, um regime de descontos de fidelidade, isto é, de abatimentos ligados à condição de o cliente — qualquer que seja, aliás, o montante das suas compras — se abastecer na totalidade ou numa parte importante das suas necessidades, junto da empresa em posição dominante.

No que respeita, à qualificação da concessão de descontos por uma empresa em posição dominante como abusiva, três categorias de descontos.

Em primeiro lugar, os regimes de descontos (descontos de quantidade), ligados exclusivamente ao volume das compras efetuadas numa empresa em posição dominante, são geralmente considerados como não produzindo um efeito de preclusão proibido pelo artigo 82.° CE. Se o aumento da quantidade fornecida se traduzir num custo inferior para o fornecedor, este tem com efeito o direito de repercutir essa redução sobre o seu cliente através de uma tarifa mais favorável. É, portanto, suposto os descontos de quantidade refletirem ganhos de eficiência e economias de escala realizados pela empresa em posição dominante.

Em segundo lugar, existem descontos cuja concessão depende da condição de que o cliente se abasteça, relativamente à totalidade ou a uma parte importante das suas necessidades, junto da empresa em posição dominante. Trata‑se de «descontos de fidelidade no sentido da jurisprudência Hoffmann‑La Roche», ou seja, «descontos de exclusividade». Esta categoria não se restringe aos descontos ligados a uma condição de fornecimento a 100%, mas inclui também os descontos ligados à condição de que o cliente se abasteça, para uma parte importante das suas necessidades, junto da empresa em posição dominante. Esses descontos de exclusividade, concedidos por uma empresa em posição dominante, são incompatíveis com o objetivo de uma concorrência não falseada no mercado comum, porque não assentam — salvo circunstâncias excecionais — numa prestação económica que justifique esse benefício financeiro, mas destinam‑se a retirar ao comprador ou limitar‑lhe a possibilidade de escolha no que respeita às suas fontes de abastecimento e a impedir a entrada no mercado aos outros produtores.

Em terceiro lugar, existem outros sistemas de descontos em que a concessão de um incitamento não está diretamente ligada a uma condição de um abastecimento exclusivo ou quase exclusivo junto da empresa em posição dominante, mas em que o mecanismo da concessão dos descontos pode também revestir um efeito fidelizador. Esta categoria de descontos inclui, designadamente, sistemas de descontos dependentes da realização de objetivos de vendas individuais que não constituem descontos de exclusividade, uma vez que não contêm qualquer compromisso de exclusividade ou de cobertura de uma determinada quota das suas necessidades junto da empresa em posição dominante. Para examinar se a aplicação de tal desconto constitui um abuso de posição dominante, há que apreciar todas as circunstâncias, nomeadamente os testes e as modalidades da concessão de descontos, e examinar se esse desconto se destinam, através de uma vantagem que não assenta em qualquer prestação económica que a justifique, a retirar ao comprador ou a restringir‑lhe a possibilidade de escolha no que respeita às suas fontes de abastecimento, impedir o acesso ao mercado aos concorrentes ou a reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada.

(cf. n.os 72‑78)

6.      Em matéria de concorrência, a qualificação de um desconto de exclusividade como abusivo não depende de uma análise das circunstâncias do caso que visa estabelecer um potencial efeito de exclusão.

Assim, resulta da jurisprudência, que é unicamente no caso dos descontos com efeito fidelizador que é necessário apreciar todas as circunstâncias, e não no caso dos descontos de exclusividade. Esta abordagem justifica‑se pelo facto de os descontos de exclusividade concedidos por uma empresa em posição dominante terem pela sua própria natureza capacidade para restringir a concorrência.

Com efeito, a capacidade de vincular os clientes à empresa em posição dominante é inerente aos descontos de exclusividade. o facto de uma empresa em posição dominante, de conceder um desconto em contrapartida de um abastecimento exclusivo ou sobre uma parte importante das necessidades do cliente implica que a empresa em posição dominante concede um benefício financeiro destinado a impedir o abastecimento dos clientes dos produtores concorrentes. Não é, portanto, necessário examinar as circunstâncias do caso concreto para determinar se esse desconto destina‑se a impedir de os clientes se abastecerem junto dos concorrentes. Um efeito de exclusão não se produz unicamente quando o acesso ao mercado é impossibilitado para os concorrentes, mas também quando esse acesso é dificultado. Um incitamento financeiro concedido por uma empresa em posição dominante com vista a incitar um cliente a não se abastecer, relativamente à parte do seu pedido que é afetada pela condição de exclusividade junto dos seus concorrentes é pela sua própria natureza capaz de dificultar o acesso ao mercado a esses concorrentes. A existência de tal incitamento não depende da questão de saber se o desconto é reduzido ou suprimido em caso de violação do requisito de exclusividade a que a sua concessão está sujeita. Com efeito, basta referir a este respeito que a empresa dominante dá a impressão ao cliente de que tal é o caso. O que importa são as circunstâncias que o cliente devia esperar no momento em que fez as encomendas, em conformidade com o que lhe foi assinalado pela empresa em posição dominante, e não a reação efetiva desta última à decisão do cliente mudar a sua fonte de abastecimento.

Por outro lado, é inerente a uma posição dominante forte que, quanto a uma boa parte da procura, não exista substituto adequado para o produto fornecido pela empresa que detém a posição dominante. O fornecedor em posição dominante é, pois, em larga medida, um parceiro comercial incontornável. Resulta da posição de parceiro comercial incontornável que os clientes se abastecerão de qualquer forma para determinada parte das suas necessidades, junto da empresa em posição dominante (parte não contestável). O concorrente de uma empresa em posição dominante não está, portanto, em condições de competir quanto ao abastecimento total de um cliente, mas apenas acanto à quota‑parte do pedido que excede a parte não contestável (parte contestável). A parte contestável é, assim, a parte das necessidades de um cliente que pode, de forma realista, ser transferida para um concorrente da empresa em posição dominante num período de referência. A concessão de descontos de exclusividade por uma empresa em posição dominante torna mais difícil a um concorrente o fornecimento dos seus próprios produtos aos clientes desta. Com efeito, se um cliente da empresa em posição dominante se abastecer junto de um concorrente não respeitando a condição de exclusividade ou de quase‑exclusividade, corre o risco de perder não só os descontos quanto às unidades que transferiu para esse concorrente mas a totalidade do desconto de exclusividade.

Para apresentar uma proposta atrativa, não é, portanto, suficiente para o concorrente de uma empresa em posição dominante oferecer condições atrativas para as unidades que pode ele próprio fornecer ao cliente, mas deve igualmente oferecer a este cliente uma compensação pela perda do desconto de exclusividade. A fim de apresentar uma proposta atrativa, o concorrente deve, portanto, repartir o desconto que a empresa em posição dominante concede para a totalidade ou a quase‑totalidade das necessidades do cliente, incluindo a parte não contestável, sobre a parte contestável. Assim, a concessão de um desconto de exclusividade por um parceiro comercial incontornável torna estruturalmente mais difícil a possibilidade de um concorrente de apresentar uma proposta a um preço atrativo e, portanto, de aceder ao mercado. A concessão de descontos de exclusividade permite a uma empresa em posição dominante utilizar o seu poder económico sobre a parte não contestável da procura do cliente como alavanca para garantir igualmente a parte contestável, tornando assim o acesso ao mercado mais difícil para um concorrente.

Perante tal instrumento comercial, não é necessário proceder a uma análise dos efeitos concretos dos descontos na concorrência, nem demonstrar um nexo de causalidade entre as práticas censuradas e os efeitos concretos no mercado.

Por fim, o caráter eventualmente diminuto das quotas de mercado afetado pelos descontos de exclusividade concedidos por uma empresa em posição dominante não é de natureza a excluir a sua ilegalidade, uma vez que um critério sensibilidade ou um limiar de minimis não é tomado em conta para efeitos de uma do artigo 82.° CE. Além disso, os clientes que se encontram na parte bloqueada do mercado deviam ter a possibilidade de aproveitar todo o grau possível de concorrência no mercado, e os concorrentes deveriam poder concorrer, pelo seu mérito, em todo o mercado, e não apenas numa parte dele. Uma empresa em posição dominante não pode, portanto, justificar a concessão de descontos de exclusivos a certos clientes pela circunstância de que os seus concorrentes podem fornecer livremente os outros clientes. Do mesmo modo, uma empresa em posição dominante não pode justificar a concessão de descontos sob condição de um abastecimento quase exclusivo por um cliente num segmento determinado de um mercado pela circunstância de esse cliente se abastecer livremente junto dos concorrentes para as suas necessidades nos outros segmentos.

(cf. n.os 80, 84‑86, 88, 91‑93, 103, 104, 116, 117, 132, 527)

7.      A análise económica sobre a capacidade dos descontos de afastarem um concorrente que seria tão eficaz como a empresa em posição dominante («as efficient competitor test» ou «test AEC»), efetuada na decisão impugnada toma como ponto de partida o facto de que um concorrente igualmente eficaz, que procura obter a parte contestável das encomendas, até então satisfeitas por uma empresa dominante que é um parceiro comercial incontornável, deve oferecer uma compensação ao cliente para o desconto de exclusividade que perderia se comprasse uma quota mínima definida pela condição de exclusividade ou quase‑exclusividade. O teste AEC visa determinar se o concorrente tão eficiente quanto a empresa em posição dominante, que sofre os mesmos custos que esta, pode sempre cobrir os seus custos nesse caso.

Mesmo admitindo que uma apreciação das circunstâncias do caso seja necessária a fim de demonstrar os efeitos anticoncorrenciais potenciais dos descontos de exclusividade, não é ainda assim, necessário demonstrar mesmo, através de um teste AEC. Este teste apenas permite verificar a hipótese de um acesso ao mercado tornado impossível e não de afastar a possibilidade de um acesso dificultado ao referido mercado. Na verdade, um resultado negativo implica que é economicamente impossível a um concorrente igualmente eficaz garantir a parte contestável da procura de um cliente. Com efeito, para oferecer ao cliente uma compensação pela perda do desconto de exclusividade, o referido concorrente seria obrigado a vender os seus produtos a um preço que não lhe permite mesmo cobrir os seus custos. Todavia, um resultado positivo apenas significa que um concorrente igualmente eficaz está em condições de cobrir os seus custos. Esta circunstância não significa, contudo, que não existe qualquer efeito de exclusão. Com efeito, o mecanismo dos descontos de exclusividade é suscetível de tornar mais difícil o acesso ao mercado dos concorrentes da empresa em posição dominante, mesmo que esse acesso não seja economicamente impossível.

(cf. n.os 141, 146, 150)

8.      Em matéria de concorrência, práticas denominadas «restrições não dissimuladas», que consistem na concessão, sujeita a condições, de pagamentos aos clientes da empresa em posição dominante a fim de que estes atrasem, cancelem ou restrinjam, de uma forma ou de outra, a comercialização de um produto de um concorrente, são suscetíveis de tornar mais difícil o acesso ao mercado para esse concorrente e lesam a estrutura da concorrência. A execução de cada uma destas práticas constitui um abuso de posição dominante na aceção do artigo 82.° CE.

Antes de mais, um efeito de exclusão não se produz unicamente quando o acesso ao mercado é impossibilitado para os concorrentes, mas também quando esse acesso é dificultado. Seguidamente, para efeitos da aplicação do artigo 82.° CE, a demonstração do objeto e do efeito anticoncorrencial pode confundir‑se em certos casos. Se for demonstrado que o objeto prosseguido pelo comportamento de uma empresa em posição dominante é restringir a concorrência, este comportamento é também suscetível de produzir esse efeito. Uma empresa em posição dominante de impedir de forma individualizada a comercialização de produtos equipados com um produto de um concorrente.

Por último, há que sublinhar que incumbe a uma empresa em posição dominante uma responsabilidade especial de não prejudicar, através de um comportamento alheio à concorrência pelo mérito, uma concorrência efetiva e não falseada no mercado comum. Ora, o facto de conceder pagamentos a clientes em contrapartida das restrições impostas à comercialização de produtos equipados com um produto de um concorrente não se enquadra, claramente, numa concorrência pelo mérito.

A qualificação de uma restrição não dissimulada de abusiva depende apenas da capacidade de restringir a concorrência, pelo que não requer a demonstração de um efeito concreto no mercado nem de um nexo de causalidade.

(cf. n.os 198, 201‑207, 212)

9.      Em matéria de concorrência, para demonstrar que a competência da Comissão está demonstrada segundo o direito internacional público, basta demonstrar quer os efeitos qualificados das práticas abusivas (a saber, imediatos, substanciais e previsíveis) que a sua execução no Espaço Económico Europeu (EEE). São, portanto, vias alternativas e não cumulativas.

A Comissão não é obrigada a demonstrar a existência de efeitos concretos para justificar a sua competência à luz do direito internacional público. A Comissão a manter uma posição passiva quando uma ameaça recai sobre a estrutura de concorrência efetiva no mercado comum e, em consequência, essa instituição pode intervir também quando a ameaça não se concretizou ou ainda não se concretizou.

A fim de examinar se os efeitos das práticas abusivas na União são substanciais, não há que considerar de forma isolada os diversos comportamentos que fazem parte de uma infração única e continuada. Pelo contrário, basta que a infração única, considerada no seu conjunto, possa ter efeitos substanciais. Com efeito, não se pode permitir às empresas subtraírem‑se à aplicação das regras de concorrência combinando vários comportamentos que prosseguem um objetivo idêntico, cada um dos quais, considerado isoladamente, não é suscetível de produzir um efeito substancial na União, mas que, considerados no seu conjunto, são suscetíveis de produzir esse efeito.

Além disso, as modificações da estrutura do mercado devem também ser tomadas em consideração quando se trata de determinar a existência de efeitos consideráveis no interior do EEE. Neste quadro, não só a eliminação de um concorrente é suscetível de ter repercussões sobre a estrutura da concorrência no mercado interno, como também um comportamento suscetível de enfraquecer o único concorrente importante da empresa em posição dominante a nível mundial é suscetível de produzir tais efeitos. Consequentemente, os efeitos potenciais do comportamento da empresa em posição dominante, que consistem em impedir a nível mundial, o acesso do seu concorrente aos canais de venda mais importantes, devem ser considerados substanciais em razão dos efeitos potenciais sobre a estrutura da concorrência efetiva no mercado interno.

Por outro lado, a aplicação das práticas em causa na União é suficiente para justificar a competência da Comissão à luz do direito internacional público. O abuso de posição dominante consistiu, no caso em apreço, em conceder um incitamento financeiro para incentivar a ACER a adiar o lançamento de um determinado modelo de computador portátil no mundo inteiro e quando esta condição a que foram sujeitos os pagamentos concedidos pela referida empresa, era, portanto, destinada a ser posta em prática pelo seu cliente no mundo inteiro, incluindo no EEE, seria artificial limitar‑se a tomar em consideração a aplicação das práticas em causa pela própria empresa em posição dominante. Pelo contrário, há que tomar igualmente em consideração a sua execução pelo cliente desta. Neste quadro, o facto de o cliente da empresa em posição dominante não vender um determinado modelo de computador no EEE durante um certo período deve ser considerado uma aplicação da restrição não dissimulada.

(cf. n.os 236, 243, 244, 251, 252, 268, 270, 273‑275, 301, 305‑307)

10.    No âmbito de um procedimento administrativo em matéria de concorrência, em conformidade com o artigo 12.° do Regulamento n.° 773/2004 relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos 81.° e 82.° do Tratado CE, uma empresa à qual a Comissão tenha dirigido uma comunicação de acusações vê precludido o seu direito a uma audição quando não a solicitar no prazo fixado para a apresentação das suas observações escritas.

(cf. n.os 323‑326)

11.    V. texto da decisão.

(cf. n.os 350‑357, 623)

12.    Em matéria de concorrência, cabe à Comissão determinar, a forma pela qual deseja desencadear a instrução e decidir que documentos deve recolher a fim de ter uma imagem suficientemente completa do processo. Por conseguinte, não há que lhe impor uma obrigação de obter um máximo de documentos a fim de se certificar de obter qualquer elemento potencial de defesa.

Face a um pedido de obtenção de certos documentos, a Comissão dispõe de uma margem de apreciação para decidir a questão de saber se há que obter os documentos em questão. As partes num processo não dispõem de um direito incondicional a que a Comissão obtenha determinados documentos, pois compete a esta última, e não às empresas em causa, decidir quanto à maneira como conduz a instrução de um processo.

Em certas condições, pode existir uma obrigação de a Comissão obter determinados documentos a pedido de uma empresa visada por um inquérito. Essa obrigação para a Comissão deve, no entanto, ser limitada a circunstâncias excecionais.

Neste âmbito, é necessário ponderar a obrigação da Comissão de instruir um processo com diligência e imparcialidade, por um lado, e a prerrogativa da Comissão de decidir sobre a forma como pretende levar a cabo a sua instrução e utilizar os seus recursos a fim de garantir, de modo eficaz o respeito do direito da concorrência, por outro.

A obrigação de a Comissão obter determinados documentos a pedido de uma empresa deve, portanto, estar sujeita, além da condição de um pedido neste sentido feito no procedimento administrativo, pelo menos às condições cumulativas seguintes.

Em primeiro lugar, esta obrigação é sujeita à condição de que seja efetivamente impossível para a empresa em causa obter ela própria os documentos em questão ou de os divulgar à Comissão. Consequentemente, compete à empresa em causa demonstrar que levou a cabo todas as diligências para obter os documentos em causa e ou obter a autorização para os utilizar no inquérito da Comissão.

Em segundo lugar, compete à empresa em causa identificar os documentos cuja obtenção solicita à Comissão de forma tão precisa que lhe é possível, o que pressupõe uma cooperação por parte dessa empresa.

Em terceiro lugar, uma obrigação de a Comissão obter determinados documentos a pedido de uma empresa objeto de um inquérito está sujeita à condição de que os documentos em causa revestem provavelmente uma importância considerável para a defesa da empresa em causa. A Comissão dispõe de uma margem de apreciação para decidir se a importância de pretensos elementos de defesa justifica a sua obtenção e pode, por exemplo, indeferir um pedido com o fundamento de que os elementos potencialmente ilibatórios dizem respeito a questões que não fazem parte das verificações substanciais necessárias para demonstrar uma infração.

Em quarto lugar, a Comissão pode designadamente em indeferir um pedido se o volume dos documentos em causa for desproporcionado em relação à importância que os documentos podem ter no âmbito do inquérito. Neste quadro, é permitido à Comissão tomar em consideração, se for esse o caso, que a obtenção e análise dos documentos em causa podem atrasar substancialmente a instrução do processo. A Comissão pode ponderar o volume dos documentos solicitados e o atraso que a obtenção e o estudo desses documentos poderão ocasionar para a instrução do processo, por um lado, e o grau de pertinência potencial para a defesa da empresa, por outro.

(cf. n.os 360‑362, 371, 373‑378, 380, 382)

13.    Em matéria de concorrência, num sistema de descontos de exclusividade e na falta de uma condição formal de exclusividade, a Comissão não viola o princípio da segurança jurídica quando tem em conta projeções de um cliente da empresa dominante a fim de demonstrar um comportamento próprio à referida empresa, sempre que essas projeções não sejam desrazoáveis.

(cf. n.os 521‑523, 525)

14.    No âmbito de um procedimento administrativo em matéria de concorrência, o artigo 19.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 prevê que a Comissão pode ouvir qualquer pessoa singular ou coletiva que a tal dê o seu consentimento para efeitos da recolha de informações sobre o objeto de um inquérito. O artigo 3.° do Regulamento n.° 773/2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos 81.° e 82.° do Tratado CE, sujeita os interrogatórios ao respeito de certas formalidades.

No entanto, o âmbito de aplicação destas disposições não se estende a todas as audições relativas ao objeto de uma investigação efetuada pela Comissão. Com efeito, há que distinguir os interrogatórios formais efetuados pela Comissão por força das referidas disposições das audições informais.

A Comissão goza de um poder discricionário para decidir se submete uma entrevista aos requisitos formais do artigo 3.° do Regulamento n.° 773/2004. Assim, as referidas disposições não se aplicam a qualquer audição relativa ao objeto de um inquérito, mas apenas às situações relativamente às quais a Comissão prossegue o objetivo de recolher informações, tanto de acusação como de defesa, nas quais a Comissão poderá basear‑se como elemento de prova na sua decisão que põe termo a uma investigação dada. Em contrapartida, estas disposições não têm por finalidade restringir a possibilidade de a Comissão recorrer a audições informais.

Se a Comissão se propõe utilizar, na sua decisão, um elemento de acusação que lhe foi transmitido quando de uma reunião informal, deve torná‑lo acessível às empresas destinatárias da comunicação de acusações, sendo caso disso, criando, para esse efeito um documento escrito destinado a figurar no processo.

Contudo, a Comissão pode servir‑se de informações obtidas por ocasião de uma reunião informal, nomeadamente para obter elementos de prova mais sólidos, ao mesmo tempo que as informações obtidas no âmbito de uma reunião informal acessíveis à empresa em causa.

O princípio da boa administração pode, em função das circunstâncias particulares do caso em apreço, impor à Comissão uma obrigação de consignar as declarações por ela recebidas no decurso de reuniões ou conversas telefónicas. A este respeito, há que precisar que a existência de uma obrigação para a Comissão de consignar as informações que recebe durante reuniões ou conversas telefónicas, bem como a natureza e o alcance dessa obrigação dependem do conteúdo dessas informações. A Comissão está obrigada a elaborar uma documentação adequada, incluída nos autos a que as empresas em causa têm acesso, sobre os aspetos essenciais relativos ao objeto de um inquérito. Essa conclusão vale para todos os elementos que revestem uma certa importância e que possuem uma ligação objetiva com objeto de inquérito, independentemente do seu caráter de acusação ou de defesa.

(cf. n.os 613‑617, 619, 620)

15.    Em matéria de concorrência, não há que estabelecer uma regra geral segundo a qual a declaração de uma empresa terceira, que indica que uma empresa em posição dominante adotou um certo comportamento, nunca pode, por si só, bastar para demonstrar os factos que consubstanciam uma infração ao artigo 82.° CE. O facto de se estabelecer uma regra geral constitui uma exceção ao princípio da livre administração das provas. No caso de uma empresa que declara ter participado num acordo contrário ao artigo 81.° CE, essa regra é justificada, pois uma empresa objeto de um inquérito, ou que se manifesta junto da Comissão a fim de beneficiar de imunidade ou de uma redução de coima, pode ter tendência para atenuar a sua própria responsabilidade numa infração e para pôr em evidência a responsabilidade de outras empresas.

A situação é diferente no que respeita às declarações de uma empresa terceira que é, em substância, uma testemunha. Quando não se afigura que a terceira empresa tem interesse incriminar injustamente a empresa em posição dominante, a declaração da empresa terceira pode, em princípio, bastar, por si só, para demonstrar a existência de uma infração.

(cf. n.os 722‑725)

16.    V. texto da decisão.

(cf. n.os 1564‑1591)

17.    V. texto da decisão.

(cf. n.° 1598)

18.    Quanto à questão de saber se infrações às regras de concorrência são cometidas deliberadamente ou por negligência, e são, por esse facto, suscetíveis de ser punidas com coima por força do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003, a condição está preenchida quando a empresa em causa não pode ignorar o caráter anticoncorrencial do seu comportamento, independentemente de ter ou não tido consciência de infringir as regras de concorrência do Tratado.

Uma empresa tem consciência do caráter anticoncorrencial do seu comportamento quando os elementos de facto materiais que justificam quer a constatação de uma posição dominante no mercado em causa quer a apreciação pela Comissão de um abuso dessa posição eram do seu conhecimento.

Dado que os tribunais da União condenaram por diversas vezes a execução, por uma empresa em posição dominante, de práticas que consistem em conceder incitamentos financeiros que dependem de condições de exclusividade, e dado que a qualificação de abusivas das práticas designadas de «restrições não dissimuladas» não pode ser considerada como nova, uma empresa em posição dominante que deu execução a essas práticas não pode ignorar o caráter anticoncorrencial do seu comportamento.

Desde que se demonstre que uma empresa em posição dominante levou a cabo uma estratégia anticoncorrencial de conjunto e que essa empresa se esforçou por dissimular o caráter anticoncorrencial do seu comportamento no que respeita às suas relações com certas empresas, pode concluir‑se que a infração foi cometida, pelo menos, por negligência.

(cf. n.os 1601‑1603)

19.    V. texto da decisão.

(cf. n.os 1609‑1612, 1643)

20.    V. texto da decisão.

(cf. n.os 1614, 1615, 1619)

21.    Nos termos do artigo 23.°, n.° 3, do Regulamento n.° 1/2003, para determinar o montante da coima, deve tomar‑se em consideração, além da gravidade da infração, a sua duração. Neste âmbito, o impacto concreto da infração no mercado não é, em princípio, segundo os critérios desenvolvidos pela jurisprudência, um elemento obrigatório, mas apenas um elemento pertinente entre outros para apreciar a gravidade da infração e fixar o montante da coima. Além disso, os elementos relativos ao objeto de um comportamento podem ter mais importância para efeitos de fixação do montante da coima do que os relativos aos seus efeitos.

Quando fixa a proporção do valor das vendas a tomar em consideração em função da gravidade, em conformidade com o n.° 22 das orientações para o cálculo das coimas aplicadas nos termos do artigo 23.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 1/2003, a Comissão não deve necessariamente ter em conta a falta de impacto concreto como um fator atenuando na apreciação da gravidade.

Em contrapartida, se a Comissão considera oportuno ter em conta o impacto concreto da infração no mercado para aumentar essa proporção, deve fornecer indícios concretos, credíveis e suficientes que permitam apreciar a influência efetiva que a infração teve na concorrência no referido mercado.

(cf. n.os 1622, 1624, 1625)