Language of document : ECLI:EU:C:2010:128

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 9 de Março de 2010 1(1)

Processo C‑428/08

Monsanto Technology LLC

contra

Cefetra BV e o.

(pedido de decisão a título prejudicial apresentado pelo Rechtbank ’s‑Gravenhage, Países Baixos)

«Protecção jurídica das invenções biotecnológicas – Directiva 98/44/CE – Patente relativa a uma informação genética»





1.        Até hoje, foram poucas as oportunidades que o Tribunal de Justiça teve para se debruçar sobre a directiva relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas. Porém, o presente processo permitir‑lhe‑á precisar alguns pontos importantes no que respeita à protecção que deve ser reconhecida, na União, às patentes concedidas nesse domínio, cuja importância não se pode actualmente subestimar.

I –    Quadro jurídico

A –    O Acordo TRIP

2.        O Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (2) (a seguir «Acordo TRIP») dispõe, nos seus artigos 27.° e 30.°:

«Artigo 27.°

Objecto patenteável

1.      Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3, podem ser obtidas patentes para quaisquer invenções, quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que essas invenções sejam novas, envolvam uma actividade inventiva e sejam susceptíveis de aplicação industrial. Sem prejuízo do disposto no n.° 4 do artigo 65.°, no n.° 8 do artigo 70.° e no n.° 3 do presente artigo, será possível obter patentes e gozar de direitos de patente sem discriminação quanto ao local de invenção, ao domínio tecnológico e ao facto de os produtos serem importados ou produzidos localmente.

2.      Os membros podem excluir da patenteabilidade as invenções cuja exploração comercial no seu território deva ser impedida para protecção da ordem pública ou dos bons costumes, e inclusivamente para protecção da vida e da saúde das pessoas e animais e para preservação das plantas ou para evitar o ocasionamento de graves prejuízos para o ambiente, desde que essa exclusão não se deva unicamente ao facto de a exploração ser proibida pela sua legislação.

3.      Os membros podem igualmente excluir da patenteabilidade:

a) Os métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de pessoas ou animais;

b) As plantas e animais, com excepção dos microrganismos, e os processos essencialmente biológicos de obtenção de plantas ou animais, com excepção dos processos não biológicos e microbiológicos. No entanto, os membros assegurarão a protecção das variedades vegetais, quer por meio de patentes ou de um sistema sui generis eficaz quer por meio de qualquer combinação dessas duas formas. As disposições da presente alínea serão objecto de revisão quatro anos após a data de entrada em vigor do Acordo OMC.

[…]

Artigo 30.°

Excepções aos direitos conferidos

Os membros podem prever excepções limitadas aos direitos exclusivos conferidos por uma patente, desde que essas excepções não colidam de modo injustificável com a exploração normal da patente e não prejudiquem de forma injustificável os legítimos interesses do titular da patente, tendo em conta os legítimos interesses de terceiros.»

B –    A Directiva 98/44/CE

3.        A Directiva 98/44/CE (3) (a seguir «directiva») dispõe, nos seus considerandos:

«[…]

(3)      Considerando que é essencial uma protecção eficaz e harmonizada no conjunto dos Estados‑Membros para preservar e incentivar os investimentos no domínio da biotecnologia;

[…]

(5)      Considerando que existem divergências ao nível da protecção das invenções biotecnológicas entre as leis e práticas dos diferentes Estados‑Membros; que tais disparidades são susceptíveis de criar entraves ao comércio e obstar desse modo ao funcionamento do mercado interno;

(6)      Considerando que tais divergências podem vir a acentuar‑se à medida que os Estados‑Membros forem adoptando novas leis e práticas administrativas diferentes ou que as interpretações jurisprudenciais nacionais se forem desenvolvendo de forma distinta;

(7)      Considerando que a evolução heterogénea das legislações nacionais relativas à protecção jurídica das invenções biotecnológicas na Comunidade pode desencorajar ainda mais o comércio, em detrimento do desenvolvimento industrial das invenções e do bom funcionamento do mercado interno;

(8)      Considerando que a protecção jurídica das invenções biotecnológicas não exige a criação de um direito específico que substitua o direito nacional de patentes; que o direito nacional de patentes continua a ser a referência essencial no que respeita à protecção jurídica das invenções biotecnológicas, embora deva ser adaptado ou completado em certos pontos específicos para tomar em consideração de forma adequada a evolução da tecnologia que utiliza matéria biológica, mas que preenche todavia os requisitos de patenteabilidade;

[…]

(22)      Considerando que o debate sobre a patenteabilidade de sequências ou sequências parciais de genes é fonte de controvérsia; que, nos termos da presente directiva, a concessão de uma patente a invenções que se relacionem com essas sequências ou sequências parciais deve obedecer aos mesmos critérios de patenteabilidade aplicados a todos os outros domínios tecnológicos: novidade, actividade inventiva e aplicação industrial; que a aplicação industrial de uma sequência ou de uma sequência parcial deve ser exposta de forma concreta no pedido da patente tal como foi depositado;

(23)      Considerando que uma mera sequência de ADN sem indicação de uma função biológica não contém quaisquer ensinamentos de natureza técnica, pelo que não poderá constituir uma invenção patenteável;

(24)      Considerando que, para que o critério da aplicação industrial seja respeitado no caso de uma sequência parcial de um gene ser utilizada para a produção de uma proteína ou proteína parcial, é necessária a especificação da proteína ou proteína parcial produzida ou da função assegurada;

[…]».

4.        O artigo 1.° da directiva dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros devem proteger as invenções biotecnológicas através do direito nacional de patentes. Se necessário, os Estados‑Membros ad[a]ptarão o seu direito nacional de patentes de modo a ter em conta o disposto na presente directiva.

2.      A presente directiva não prejudica as obrigações que decorrem, para os Estados‑Membros, das convenções internacionais, nomeadamente do Acordo TRIP e da Convenção sobre a Diversidade Biológica».

5.        O artigo 5.° da directiva prevê:

«[…]

3.      A aplicação industrial de uma sequência ou de uma sequência parcial de um gene deve ser concretamente exposta no pedido de patente».

6.        O artigo 9.° da directiva tem a seguinte redacção:

«A protecção conferida por uma patente a um produto que contenha uma informação genética ou que consista numa informação genética abrange qualquer matéria, sob reserva do disposto no n.° 1 do artigo 5.°, em que o produto esteja incorporado e na qual esteja contida e exerça a sua função».

C –    Legislação nacional

7.        A Lei relativa às patentes de 1995 dos Países Baixos (Rijksoctrooiwet 1995), (a seguir «ROW95»), com as alterações que lhe foram introduzidas, transpõe o artigo 9.° da directiva para a legislação nacional nos termos seguintes:

«Artigo 53.°a

[…]

3.      Sem prejuízo do disposto no artigo 3.°, n.° 1, alínea b), no que diz respeito a uma patente de um produto que contenha uma informação genética ou que consista numa informação genética, a protecção abrange qualquer matéria em que o produto esteja incorporado e na qual esteja contido e exerça a sua função».

II – Matéria de facto, tramitação processual a nível nacional e questões prejudiciais

8.        A sociedade Monsanto é titular de uma patente europeia (a seguir também designada por «patente»), concedida em 19 de Junho de 1996, relativa a uma sequência genética que, depois de introduzida no ADN de uma planta de soja, a torna resistente ao glifosato, um herbicida produzido por esta mesma sociedade e que é comercializado sob o nome de «Roundup».

9.        As plantas de soja geneticamente modificadas (designadas por «soja RR», ou seja, «Roundup ready») são cultivadas em vários países em todo o mundo, não sendo no entanto cultivadas no território da União Europeia. Para os agricultores, a vantagem da utilização da soja geneticamente modificada consiste na possibilidade de o herbicida Roundup ser utilizado para destruir as plantas infestantes, sem receio de causar danos à cultura da soja.

10.      Na Argentina, a soja RR é cultivada em grande escala e constitui um importante produto de exportação. No entanto, por razões que se prendem com o direito interno, a Monsanto não é titular na Argentina de nenhuma patente relativa à sequência genética que caracteriza a planta em questão.

11.      Em 2005 e 2006, as sociedades demandadas no processo principal importaram alguns carregamentos de farinha de soja provenientes da Argentina. A análise de amostras da farinha, efectuada a pedido da Monsanto, indicou que existiam vestígios do ADN característico da soja RR. Por conseguinte, concluiu‑se que, na Argentina, para produzir a farinha importada, que havia sido descarregada no porto de Amesterdão e que se destinava à produção de alimentos para animais, havia sido utilizada soja geneticamente modificada, sendo a Monsanto titular de uma patente europeia desse tipo de soja.

12.      A Monsanto intentou uma acção no órgão jurisdicional de reenvio contra as sociedades importadoras, por entender que estas são responsáveis por uma violação da sua patente.

13.      O órgão jurisdicional nacional, considerando que a interpretação da directiva é necessária para dirimir o litígio, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias as seguintes questões prejudiciais:

«1.      O artigo 9.° da [directiva] deve ser interpretado no sentido de que a protecção conferida nesse artigo também pode ser invocada numa situação, como a do presente processo, em que o produto (a sequência de ADN) faz parte de uma matéria importada para a União Europeia (farinha de soja), não exercendo a sua função no momento da alegada infracção, mas [tendo‑a] efectivamente exercido (na planta da soja) ou [podendo] eventualmente [vir] a exercê‑la novamente, depois de isolado daquela matéria e introduzido na célula de um organismo?

2)      Partindo do pressuposto da presença da sequência de ADN com o número EP 0 546 090 descrita na [reivindicação] 6 da patente na farinha de soja importada para a Comunidade pela Cefetra e pela [Toepfer] e de que o ADN foi incorporado na farinha de soja, no sentido do artigo 9.° da [directiva], e não exerce aí a sua função, a protecção conferida pela directiva, em especial pelo seu artigo 9.°, a uma patente relativa a uma matéria biológica impede que a legislação nacional em matéria de patentes atribua (adicionalmente) uma protecção absoluta ao produto (ADN) enquanto tal, independentemente de o ADN exercer a sua função, devendo portanto a protecção do artigo 9.° ser considerada exclusiva na situação referida nesse artigo, de o produto ser constituído por informação genética ou conter tal informação, estando o produto incorporado na matéria [que contém] a informação genética?

3)      Para a resposta à questão anterior, é relevante o facto de a patente com o número EP 0 546 090 ter sido solicitada e concedida em 19 de Junho de 1996, ou seja, antes da aprovação da [directiva], e de tal protecção absoluta do produto segundo a legislação nacional em matéria de patentes ter sido conferida antes de ter sido aprovada esta directiva?

4)      Na resposta às questões precedentes, é possível ter em conta o [acordo ADPIC], em especial os seus artigos 27.° e 30.°?»

III – Considerações preliminares

14.      No presente caso, como decorre da breve síntese dos factos efectuada, a Monsanto intentou uma acção exclusivamente contra importadores de farinha de soja proveniente da Argentina. Isto porque a Monsanto, como ela própria reconhece, não é titular naquele Estado de uma patente para a soja RR. Ao contrário do que sucede na Argentina, a Monsanto recebe noutros países produtores de soja, como por exemplo no Brasil, uma contrapartida pela utilização da sua invenção, devido à protecção conferida pela patente ou a acordos celebrados com os agricultores.

15.      No entanto, deve salientar‑se que a opção de limitar as acções judiciais intentadas no território da União unicamente aos produtos provenientes da Argentina decorre uma simples decisão de política comercial da Monsanto. Na verdade, se o Tribunal de Justiça viesse a declarar que, no território da União Europeia, a Monsanto pode invocar direitos relativamente à farinha de soja proveniente da Argentina, nada a impediria de, posteriormente, invocar direitos análogos relativamente à farinha proveniente de outros países. Com efeito, o princípio do esgotamento só é aplicável depois da primeira introdução de um produto no território da União realizada com o acordo do titular da patente (4).

16.      Por conseguinte, a interpretação que o Tribunal de Justiça vier a fazer será aplicável, de modo geral, a todos os casos de importação para o território da União de um produto derivado da transformação, num Estado terceiro, de uma planta geneticamente modificada, protegida por uma patente válida no território da União Europeia.

IV – Quanto à primeira questão prejudicial

A –    Observações preliminares

17.      Com a primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio solicita ao Tribunal de Justiça que esclareça se, num caso como o do litígio do processo principal, o artigo 9.° da directiva também protege a posição da Monsanto quando a sequência genética não exerça a sua função no momento presente, mas a tenha exercido no passado ou possa vir a exercê‑la no futuro.

18.      Desde logo, a questão pode ser interpretada no sentido de que o problema se limita apenas ao tempo verbal utilizado no artigo 9.° da directiva, que, como se viu, apenas assegura a protecção nele prevista quando a informação genética «exerça a sua função». Nesse caso, a resposta poderia limitar‑se a salientar que o tempo verbal utilizado no artigo é o presente, pelo que é totalmente irrelevante que a sequência genética patenteada tenha efectivamente exercido a sua função no passado ou possa eventualmente vir a exercê‑la no futuro (5). Para efeitos da aplicação do artigo 9.°, cada momento deve ser considerado de forma independente. Só o exercício «presente» da função torna aplicável a referida disposição. O artigo 9.° não pode ser violado quando a função não esteja a ser exercida: como é natural, a protecção prevista no artigo 9.° volta a ser aplicável a partir do momento em que a sequência recomece a exercer a sua função.

19.      Com excepção da Monsanto, as partes que apresentaram observações responderam neste sentido à primeira questão prejudicial. Caso o Tribunal de Justiça entenda que deve abordar a questão nos termos restritivos que referi, também eu sugiro que se responda neste sentido ao órgão jurisdicional de reenvio.

20.      Porém, considero que é um erro interpretar de forma restritiva a questão e que, para dar uma resposta adequada ao órgão jurisdicional de reenvio, é necessário interpretar o artigo 9.° no contexto global da directiva e da protecção que esta confere às patentes de invenções biotecnológicas. De resto, não se deve esquecer que, tanto nas observações escritas como na audiência, a Monsanto insistiu no facto de que, em seu entender, a protecção conferida pela patente que esta sociedade pode invocar não decorre do artigo 9.° da directiva mas da protecção «clássica» que, na acepção do direito das patentes tradicional e da própria directiva, deve ser reconhecida à sequência genética enquanto tal. Segundo a Monsanto, por outras palavras, o pedido que esta apresentou às autoridades jurisdicionais dos Países Baixos tem por objecto a sequência de ADN entendida como substância química. A Monsanto declara que não tem nenhuma pretensão relativamente à farinha, afirmando que, se o ADN patenteado não estivesse contido na farinha, não teria tido nenhum fundamento para demandar as sociedades importadoras.

B –    Quanto à protecção conferida pela patente em função da finalidade

21.      A verdadeira questão que tem de ser resolvida, para responder de forma útil às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio, consiste portanto em saber se, num caso como o presente, existe ou não uma protecção clássica conferida por patente que abrange a informação genética enquanto tal. Há assim que determinar se a informação genética é protegida como composto químico, inclusivamente quando esteja presente, como uma espécie de «resíduo», num produto que por sua vez é o resultado da transformação do produto biológico (neste caso, as plantas de soja) no qual a sequência exercia a sua função.

22.      Poderíamos ser tentados a considerar que este problema é irrelevante, entendendo que no presente caso apenas a farinha é objecto do litígio, não o sendo o ADN enquanto tal que nela se encontra incorporado. No entanto, esta solução não me parece satisfatória. De facto, do ponto de vista físico não há dúvida de que se pode detectar na farinha o ADN que é objecto da patente e que, por isso, também ele foi importado para o território da União Europeia.

23.      Com excepção da Monsanto e do Governo italiano, as outras partes que apresentaram observações não tomaram nenhuma posição sobre este problema específico, nem mesmo depois de, na audiência, terem sido expressamente convidadas a fazê‑lo. A sua atenção centrou‑se exclusivamente na farinha.

24.      Segundo a Monsanto, como foi já referido, independentemente da eventual protecção da farinha (que esta sociedade não reivindica), a protecção conferida pela patente abrange a sequência de ADN enquanto tal. Essa protecção não resulta do artigo 9.° da directiva, mas das disposições gerais da mesma, que mantêm intacto o direito geral das patentes. O artigo 9.° tem unicamente por função alargar, em determinadas circunstâncias, essa protecção de base. Contudo, independentemente do artigo 9.° ser ou não aplicável, a sequência de ADN enquanto tal continua a beneficiar da protecção de base.

25.      Segundo o Governo italiano, pelo contrário, a partir do momento em que uma sequência de ADN se encontra dentro de outra matéria, esta deixa de poder beneficiar da protecção clássica conferida por patente, podendo apenas beneficiar, desde que estejam reunidos os pressupostos, da protecção dos produtos «incorporantes» prevista no artigo 9.°

26.      Embora a tese do Governo italiano seja interessante, não a posso subscrever. Com efeito, importa observar que, regra geral, a directiva completa o direito pré‑existente em matéria de patentes. Neste sentido, veja‑se, por exemplo, o considerando 8. É certo que, no seu artigo 1.°, a própria directiva prevê a possibilidade de os Estados adaptarem as respectivas legislações nacionais de patentes de modo a torná‑las compatíveis com as disposições específicas da legislação comunitária em causa. No entanto, o Governo italiano faz uma interpretação que não se baseia em nenhum texto. Não se deve esquecer que, de acordo com o direito geral das patentes, o facto de uma invenção ser incorporada noutro produto não prejudica, regra geral, a protecção que lhe é reconhecida.

27.      Por outro lado, parece‑me inegável que o artigo 9.° da directiva constitui uma norma de extensão da protecção conferida pela patente. Com efeito, este artigo parte do pressuposto de que o ADN patenteado é protegido enquanto tal, alargando a protecção que lhe é conferida, em determinadas circunstâncias, também à «matéria» na qual a sequência genética se encontra, desde que esta exerça a sua função. Sendo facto assente que a sequência genética patenteada não exerce nenhuma função na farinha de soja, uma vez que constitui apenas um resíduo, a protecção adicional garantida pelo artigo 9.° não pode ser invocada no presente caso.

28.      Porém, há ainda que analisar se, como defende a Monsanto, a sequência genética é aqui protegida enquanto tal, na acepção das disposições gerais em matéria de patentes. O problema específico a resolver consiste em determinar quando é que uma sequência patenteada de ADN é protegida como produto autónomo.

29.      A meu ver, atendendo à redacção e aos objectivos prosseguidos pela directiva, há que considerar que uma sequência genética só deve ser protegida, inclusivamente como produto autónomo, quando exerça a função para a qual foi patenteada. Por outras palavras, parece‑me que a directiva admite – e, efectivamente, exige – uma interpretação segundo a qual, no território da União, a protecção conferida às sequências genéticas é uma protecção dita «em função da finalidade» («purpose‑bound»). Embora a directiva não indique explicitamente que deve ser reconhecida às sequências genéticas uma protecção deste tipo, muitos elementos, relativos ao sistema global das patentes no domínio da biotecnologia, militam a favor da referida interpretação.

30.      Em primeiro lugar, várias disposições da directiva chamam a atenção para a necessidade, para se poder obter uma patente relativa a uma sequência genética, de indicar a função específica que a sequência exerce. Vejam‑se, neste sentido, os considerandos 22, 23 e 24, bem como o artigo 5.°, n.° 3, da directiva. É certo que são disposições respeitantes ao âmbito da patenteabilidade e não ao âmbito da protecção do produto patenteado. No entanto, constituem remissões que revestem alguma importância para demonstrar que, na óptica do legislador da União, em matéria de patentes, uma sequência genética é totalmente irrelevante quando não se indique a função que essa sequência exerce.

31.      A grande importância que a directiva atribui à função que uma sequência genética exerce visa, naturalmente, permitir que se distinga «descoberta» de «invenção». A identificação de uma sequência genética sem que seja indicada a sua função constitui uma simples descoberta, não patenteável enquanto tal. Ao invés, é a indicação de uma função exercida pela sequência que a transforma numa invenção, susceptível de beneficiar da protecção conferida pela patente. Ora, uma interpretação segundo a qual uma sequência genética beneficia da protecção «clássica» conferida pela patente, ou seja, de uma protecção alargada a todas as funções possíveis da mesma sequência, mesmo às que não são conhecidas no momento em que é efectuado o pedido de patente, equivale a reconhecer uma patente para funções ainda desconhecidas no momento em que esta foi pedida. Por outras palavras, bastaria apresentar um pedido de patente para uma única função de uma sequência genética para obter protecção para todas as outras funções possíveis dessa mesma sequência. Em meu entender, esta interpretação acabaria por permitir, na prática, a patenteabilidade de uma simples descoberta, situação que é incompatível com os princípios básicos em matéria de direito de patentes.

32.      Também não se deve esquecer que, em princípio, a natureza intrínseca de uma patente se caracteriza por uma verdadeira troca. Por um lado, o inventor torna pública a sua invenção, permitindo assim que a comunidade beneficie da mesma. A título de contrapartida, durante um período limitado de tempo, o inventor goza de um direito exclusivo sobre a própria invenção. Parece‑me que reconhecer protecção absoluta a uma invenção que consiste numa sequência genética, reconhecendo assim ao titular de uma patente relativa àquela sequência um direito exclusivo alargado a todos os usos possíveis da sequência, incluindo os usos não indicados e desconhecidos no momento em que é apresentado o pedido de patente, violaria aquele principio fundamental, porquanto conferiria ao titular de uma patente uma protecção desproporcionada.

33.      Observe‑se também que, caso se seguisse a tese da Monsanto, o artigo 9.° da directiva perderia o seu efeito útil de disposição que alarga a protecção conferida pela patente. Com efeito, se a sequência fosse protegida enquanto tal, ainda que não exercesse a sua função, não se vislumbra o motivo pelo qual o artigo 9.° deveria subordinar o alargamento da protecção ao exercício da função por parte da sequência. De facto, independentemente de tudo, a protecção seria de qualquer modo garantida, na prática, pela simples presença da sequência, como sucede no presente caso. O facto de a Monsanto reclamar protecção para a sequência e não para a farinha não altera o facto de, em concreto, a protecção também produzir os seus efeitos em relação à farinha.

34.      Parece‑me que seguir a interpretação defendida pela Monsanto levaria a reconhecer ao titular de uma patente biotecnológica uma protecção demasiado ampla. Com efeito, como indicaram várias partes, tanto nas observações escritas como na audiência, não é possível determinar até que momento ou até que ponto da cadeia alimentar e dos produtos derivados os vestígios do ADN originário da planta geneticamente modificada continuam a ser identificáveis. Trata‑se obviamente de sequências que já não exercem nenhuma função, mas a sua mera presença levaria a submeter ao controlo da pessoa que patenteou a sequência genética de uma planta um número indeterminado de produtos derivados. Como o Governo argentino salientou, num raciocínio só parcialmente paradoxal, caso fossem encontrados vestígios da sequência no estômago de um bovino, por o animal ser alimentado com produtos derivados da planta geneticamente modificada, a própria importação do bovino em questão poderia ser considerada uma violação do direito do titular da patente (6).

35.      Não restam dúvidas de que a falta de protecção da invenção da Monsanto na Argentina parece ser injusta. No entanto, do mesmo modo, independentemente das razões que estão na base dessa inexistência de protecção, parece‑me que a actuação da Monsanto consiste em tentar utilizar um ordenamento jurídico (o da União) para solucionar problemas encontrados noutro (o ordenamento jurídico da Argentina). Ora, parece‑me que tal é inaceitável. O facto de a Monsanto não poder obter na Argentina uma contrapartida adequada pela sua patente não pode ser compensado através do reconhecimento de uma protecção alargada na União Europeia.

36.      Como é sabido, a protecção em função da finalidade não constitui uma novidade absoluta no domínio das biotecnologias. Em especial, no âmbito da matéria que é objecto da directiva, os legisladores francês e alemão optaram por uma protecção deste tipo, embora esta se refira apenas às sequências genéticas relativas ao corpo humano (7). Também o Parlamento Europeu adoptou uma resolução na qual recomenda, para as patentes relativas ao ADN humano, uma protecção em função da finalidade (8). Além disso, no âmbito das patentes relativas a substâncias químicas, a prática consolidada consiste em reconhecer a patenteabilidade de um uso novo de uma substância já patenteada, com referência a outros usos (9).

37.      Impõe‑se fazer um esclarecimento neste momento. Limitar a protecção das sequências genéticas conferida por uma patente às funções para as quais a patente foi concedida, segundo o modelo da protecção em função da finalidade, não significa limitar a protecção aos casos em que o gene patenteado está «activo». Com efeito, de um ponto de vista biológico, há genes que só estão activos («vivos») em determinadas circunstâncias: por exemplo, como foi revelado na audiência, um gene que atribui a uma planta uma resistência especial numa situação de seca poderá tornar‑se activo («nascer») apenas durante uma seca. É claro que, para os efeitos da directiva, o facto de o gene «exercer a sua função» na acepção do artigo 9.° não significa que o mesmo esteja «activo». Na acepção da directiva, uma informação genética «exerce a sua função» quando: i) está contida numa matéria viva da qual faz parte, ii) é transmitida quando a matéria viva se reproduz e iii) desempenha, de forma contínua ou após ocorrerem determinadas circunstâncias, a função para a qual foi patenteada.

38.      Por outro lado, deve acrescentar‑se que a explicação apresentada no número anterior é, de qualquer modo, irrelevante no caso em apreço, porquanto é pacífico que, nas plantas de soja RR, a sequência genética em questão está sempre «activa».

C –    Quanto à natureza residual do ADN contido na farinha

39.      Uma solução alternativa à que expus nos números anteriores consiste em considerar que, na farinha de soja importada, o ADN objecto de patente constitui um mero resíduo, presente sob a forma de vestígios, e que, por conseguinte, não necessita de protecção. Nessa perspectiva, o pedido da Monsanto teria na realidade por objecto a farinha e não a sequência genética. A protecção «clássica» da sequência considerada enquanto tal, reivindicada pela Monsanto, seria apenas um pretexto.

40.      No entanto, tal solução não me parece viável. Não há na directiva nenhuma disposição de minimis que limite ou exclua a protecção relativamente a sequências genéticas presentes apenas em quantidades variáveis (e/ou extremamente reduzidas) num produto derivado de material biológico (10). Por outras palavras, enveredar por essa interpretação teria por efeito introduzir um elemento de avaliação quantitativa (qual seria o limiar de referência?) que não existe na directiva e que, em última análise, pode aumentar a incerteza. Em minha opinião, limitar a protecção das sequências genéticas à função para a qual foram patenteadas constitui, de todos os pontos de vista, a solução pela qual se deve optar.

D –    Conclusão quanto à primeira questão

41.      Concluindo assim a minha análise da primeira questão prejudicial, proponho que o Tribunal de Justiça responda declarando que, no sistema da directiva, a protecção conferida por uma patente relativa a uma sequência genética limita‑se às situações nas quais a informação genética exerce actualmente as funções descritas na patente. Este entendimento é válido tanto para a protecção da sequência enquanto tal como para a protecção das matérias nas quais essa sequência esteja contida.

V –    Quanto à segunda questão prejudicial

42.      Com a segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a directiva se opõe a uma legislação nacional que confere às invenções biotecnológicas uma protecção de patente mais ampla do que a prevista na própria directiva.

43.      Por outras palavras, há que determinar se a directiva contém uma regulamentação exaustiva ou mínima das patentes no domínio da biotecnologia. Com efeito, no primeiro caso, uma legislação nacional que reconheça uma protecção mais ampla do que a prevista na directiva é ilegal, ao passo que, no segundo caso, essa legislação pode ser aceitável.

44.      Naturalmente que na base desta questão se encontra o pressuposto de que a regulamentação nacional confere efectivamente ao titular da patente uma protecção mais ampla do que a prevista na directiva. É um aspecto que tem de ser determinado pelo órgão jurisdicional nacional. Assim sendo, no presente caso, apesar de parecer que a legislação dos Países Baixos e a directiva são quase idênticas, inclusivamente do ponto de vista das formulações linguísticas adoptadas, sendo por conseguinte difícil vislumbrar uma protecção mais ampla, temos que aceitar esse pressuposto.

45.      Também no que se refere à segunda questão a Monsanto aparece isolada em relação a todos as outras partes que apresentaram observações. De facto, enquanto a Monsanto sustenta que a directiva não pode, em caso nenhum, limitar a liberdade dos legisladores nacionais no ponto específico que nos ocupa, as outras partes tendem todas a reconhecer que a directiva tem um carácter exaustivo.

46.      Uma primeira observação que considero necessária prende‑se com o facto de, como é manifesto, a regulamentação relativa às patentes em matéria biotecnológica, constante da directiva, não ser completa. Vários aspectos da matéria foram deixados para o legislador nacional. De resto, também o considerando 8 da directiva é claro neste sentido, ao reiterar o papel (e, com efeito, a posição principal) do direito nacional.

47.      Porém, o facto de a regulamentação não ser completa não significa que não seja exaustiva. De facto, é perfeitamente possível que uma regulamentação da União não abarque todos os aspectos de um determinado sector, mas que, nos domínios por si abrangidos, estabeleça uma regulamentação exaustiva. Nesse caso, a liberdade dos legisladores nacionais restringe‑se exclusivamente aos aspectos nos quais o legislador comunitário não interveio (11).

48.      Em minha opinião, a situação das patentes em matéria biotecnológica corresponde exactamente à descrição constante do número anterior. A regulamentação constante da directiva não é completa, mas deve considerar‑se que é exaustiva nas questões por si abrangidas: daqui resulta que, nessas questões, uma legislação nacional não pode prever um nível de protecção das patentes mais amplo do que o previsto na directiva.

49.      São múltiplas as razões em apoio desta interpretação.

50.      Em primeiro lugar, a directiva tem por objectivo principal favorecer o mercado e a concorrência, embora respeitando e salvaguardando os investimentos efectuados pelos titulares das patentes. É o que resulta tanto da base jurídica da directiva (à época, artigo 100.°‑A do Tratado, actual artigo 114.° TFUE) como da leitura da mesma (v., por exemplo, o considerando 5). Parece‑me inquestionável que o reconhecimento de direitos particularmente amplos aos titulares de patentes é potencialmente contrário ao objectivo da directiva, uma vez que, por definição, uma patente constitui um limite à liberdade económica (12).

51.      De resto, da leitura de alguns considerandos da directiva (refiro‑me, em particular, aos considerandos 3, 5, 6 e 7) resulta claramente que a principal preocupação do legislador não consistiu tanto em ampliar a protecção das invenções biotecnológicas, como, pelo contrário, em evitar que as diferenças normativas existentes neste domínio pudessem ter consequências negativas no comércio no interior da União. Ora, é evidente que considerar que a directiva constitui um instrumento de harmonização mínima, com a consequente possibilidade de existirem amplas divergências normativas entre os Estados‑Membros, contraria aquele objectivo fundamental. A existência, no âmbito da União, de diferentes níveis de protecção para as mesmas patentes é, em última análise, um inconveniente e uma fonte de incerteza para os próprios titulares das patentes.

52.      Observe‑se também que a directiva não contém nenhuma indicação explícita da qual se possa inferir que os Estados têm a faculdade de reconhecer uma protecção mais ampla do a que prevista na directiva. Como o Governo do Reino Unido, em particular, lembrou, com razão, nas suas observações escritas, a inserção de uma cláusula deste tipo nas normas de harmonização mínima é frequente (13).

53.      Quanto ao demais, as directivas que impõem uma harmonização mínima têm habitualmente por objectivo garantir uma protecção anteriormente inexistente. No presente caso, pelo contrário, o legislador procurou resolver, ou, pelo menos, atenuar, um problema resultante das divergências existentes nesta matéria entre os ordenamentos jurídicos nacionais (14).

54.      Para concluir, gostaria ainda de chamar a atenção para um aspecto importante. Em geral, em matéria de patentes, a ideia em si mesma de uma harmonização mínima é pouco viável. Com efeito, as disposições de harmonização mínima são normalmente adoptadas em contextos nos quais determinados sujeitos estão, claramente, numa posição de fraqueza ou de inferioridade em relação a outros. Pode‑se pensar, como exemplos típicos, nos já mencionados casos de consumidores que celebraram contratos fora de estabelecimentos comerciais ou de trabalhadores afectados por despedimentos colectivos (15). Nessas situações, não restam dúvidas de qual a direcção que a eventual protecção mais ampla deve seguir: esta apenas pode favorecer as partes mais fracas.

55.      Pelo contrário, no domínio das patentes essa univocidade não existe. Por a «troca» ser uma característica da patente, enquanto direito conferido a título de contrapartida pela divulgação de informações e de conhecimentos por parte do inventor, fica excluída a existência de uma parte «mais fraca» ou «mais merecedora de protecção». A patente é, por definição, um título jurídico que visa alcançar um equilíbrio entre dois interesses opostos, por um lado, o direito à divulgação e ao progresso dos conhecimentos, por outro, o direito de promoção dos investimentos e da criatividade. Por conseguinte, subsistem dúvidas, caso se entendesse que a directiva confere uma protecção mínima, sobre se a legislação nacional «mais protectora» deveria proteger os titulares das patentes ou a livre circulação das ideias (e das mercadorias).

56.      À luz de todos os fundamentos apresentados, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão prejudicial declarando que, nos domínios a que diz respeito, a directiva regulamenta exaustivamente a protecção conferida no território da União a uma invenção biotecnológica. Por conseguinte, opõe‑se a uma legislação nacional que confere às invenções biotecnológicas uma protecção mais ampla do que a prevista na directiva.

VI – Quanto à terceira questão prejudicial

57.      Com a terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal de Justiça sobre o tratamento a dar, após a entrada em vigor da directiva, a uma patente anteriormente conferida que se caracteriza por uma protecção mais ampla do que a prevista na directiva.

58.      A Monsanto, também neste caso, é a única parte que considera que a data de concessão da patente pode ser relevante para efeitos da definição do âmbito de protecção. Porém, esta posição é defendida no quadro de uma argumentação desenvolvida a título subsidiário, na eventualidade de o Tribunal não acolher a posição defendida pela Monsanto no que respeita às questões precedentes.

59.      Em meu entender, a resposta a esta questão baseia‑se em duas premissas.

60.      Em primeiro lugar, à semelhança do que sucedeu com a segunda questão, há que partir do pressuposto, ainda que este não seja demonstrado com clareza, de que, no momento em que foi concedida, a patente tinha efectivamente um âmbito mais vasto do que aquele que resulta da interpretação da directiva.

61.      Em segundo lugar, embora a questão seja formulada em termos bastante gerais, esta tem sempre de ser entendida no contexto do processo nacional específico que corre no órgão jurisdicional de reenvio. Por outras palavras, a questão deve ser entendida no sentido de que se refere a um caso que reveste as características bem definidas do diferendo que opõe a sociedade Monsanto, titular da patente europeia relativa à sequência genética da soja RR, a determinadas sociedades que importam para os Países Baixos de farinha de soja proveniente da Argentina.

62.      Desta segunda premissa que acabo de enunciar resulta um elemento da maior importância. Aquilo que a Monsanto requer não é apenas a protecção conferida pela patente que corresponde às reivindicações descritas no pedido de patente para a sequência genética que caracteriza a soja RR. Com efeito, os seus pedidos têm por objecto a sequência genética destinada a conferir resistência ao glifosato. Ora, não há nenhuma dúvida de que, na medida em que a sequência garante essa resistência (exercendo, portanto, a sua função), merece ser protegida nos termos da directiva.

63.      No entanto, no presente caso, a Monsanto reivindica igualmente uma protecção para a sequência que não exerce a sua função, mas que é incorporada, como resíduo, numa matéria morta (a farinha). Por conseguinte, caso o Tribunal de Justiça declarasse que a data de concessão da patente é irrelevante para determinar a protecção que conferida nos termos na directiva, não haveria, em qualquer caso, uma redução da protecção do objecto das reivindicações (a sequência que produz um determinado efeito). Seria apenas necessário alterar o âmbito da protecção «adicional» conferida pela patente.

64.      Em minha opinião, no presente caso, a data de concessão da patente deve ser considerada irrelevante. Também aqui, como de resto sucedeu para as questões prejudiciais precedentes, não é possível encontrar na directiva uma resposta explícita e unívoca. Todavia, vários elementos sugerem que se siga naquele sentido.

65.      Em primeiro lugar, a directiva não contém nenhuma disposição transitória. Se o legislador tivesse querido salvaguardar a situação de eventuais patentes pré‑existentes, teria provavelmente introduzido disposições específicas no texto legislativo .

66.      Em segundo lugar, recorde‑se a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual a obrigação de interpretação conforme com o direito comunitário diz respeito a todas as disposições de direito nacional anteriores às disposições relevantes da União (16). Não estamos, de resto, num âmbito no qual a eventual interpretação conforme de disposições anteriores pudesse ter consequências em matéria de responsabilidade penal: nesse caso, com efeito, tal operação hermenêutica seria provavelmente inaceitável (17).

67.      Por último, em terceiro lugar, importa ter presente que, como acima se viu, a directiva foi elaborada com o objectivo principal de favorecer o mercado e a concorrência no território da União. Nesse contexto, seria problemática uma interpretação da directiva segundo a qual a interpretação das patentes varia em função da data da concessão. Com efeito, semelhante leitura da disposição acabaria por criar sérios problemas à livre circulação de mercadorias e à realização de um mercado único, eficiente no sector. Em especial, a segurança jurídica seria fortemente reduzida se o âmbito concreto da patente devesse ser definido não em função das reivindicações para as quais foi concedida, mas em função da data da sua concessão. Para não referir que, na medida em que essas possíveis leituras «extensivas» constituem, para mais, uma especificidade de apenas alguns ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros, reconhecer a sua legitimidade ao abrigo da directiva acabaria por permitir a subsistência ainda durante muitos anos ou, pelo menos, até expirarem as patentes válidas no momento em que a directiva entrou em vigor, de diferenças entre os níveis de protecção nos vários Estados‑Membros.

68.      Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça responda à terceira questão declarando que o facto de uma patente ter sido concedida antes da entrada em vigor da directiva não tem incidência na resposta a dar às precedentes questões prejudiciais.

VII – Quanto à quarta questão prejudicial

69.      Com a quarta questão prejudicial, solicita‑se ao Tribunal de Justiça que indique se, para efeitos da resposta a dar às três questões precedentes, deve ser tomado em consideração o Acordo TRIP, em especial os seus artigos 27.° e 30.°

70.      Declaro desde já que partilho da opinião que, a este respeito, todas as partes assumiram, com excepção da Monsanto, segundo a qual o Acordo TRIP não pode de modo nenhum alterar a resposta dada às três primeiras questões. Em especial, em meu entender, a interpretação da directiva que sugiro não colide de modo nenhum com o conteúdo das referidas disposições do Acordo TRIP.

71.      No entanto, há que recordar, em todo o caso, a título preliminar, que o artigo 1.° da directiva ressalva explicitamente as obrigações que decorrem para os Estados‑Membros do Acordo TRIP. Por conseguinte, o legislador considerou que a directiva não apresenta elementos de incompatibilidade com esse Tratado internacional: seja como for, a cláusula de salvaguarda constante do artigo 1.º impede que se possa imputar a um Estado‑Membro uma violação da directiva sempre que o comportamento deste último se destine a respeitar as obrigações assumidas no âmbito do Acordo TRIP.

72.      É claro que, nesse contexto, o instrumento interpretativo mais eficaz, para evitar possíveis contradições entre a directiva e o Acordo TRIP, consiste em dar à primeira, na medida do possível, uma interpretação conforme com as disposições do segundo. De resto, de modo mais genérico, recorde‑se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por um lado, exclui a possibilidade de fiscalizar a legitimidade de uma disposição da União à luz dos Acordos OMC (18), mas, por outro, afirma a necessidade de evitar eventuais conflitos, precisamente através do recurso a uma interpretação conforme (19).

73.      Há assim que determinar se a interpretação da directiva que propus nos números anteriores pode colidir com as disposições do Acordo TRIP: a meu ver, não existe nenhuma incompatibilidade.

74.      Nada, no âmbito das disposições do Acordo TRIP, se opõe a uma protecção que se baseie na finalidade das patentes relativas a sequências genéticas.

75.      O artigo 27.° do Acordo TRIP, em especial, versa exclusivamente sobre a patenteabilidade. No caso em apreço, não se coloca nenhum problema de patenteabilidade, visto ser pacífico que a Monsanto tem o direito, que de facto exerceu, de patentear a sequência genética que confere à soja resistência ao glifosato. Pelo contrário, a divergência das partes diz exclusivamente respeito à questão do âmbito da protecção que deve ser reconhecida à invenção.

76.      Também não se vislumbra nenhum problema de compatibilidade com o artigo 30.°, relativo às possíveis excepções aos direitos conferidos ao titular de uma patente. De facto, antes de mais, reconhecer uma protecção baseada na finalidade não significa prever excepções ao âmbito de protecção de uma patente: pelo contrário, aquilo que deve ser definido restritivamente é o alcance do próprio direito, que não é reconhecido relativamente a usos diferentes dos previstos no pedido de patente. Nada, no âmbito do Acordo TRIP, impõe que se reconheça às sequências genéticas uma protecção «absoluta», ou seja, relativa a todos os usos possíveis, incluindo os imprevistos e futuros.

77.      De resto, ainda que, por absurdo, se quisesse considerar que uma protecção baseada na finalidade das patentes relativas a sequências genéticas constitui uma limitação do âmbito de uma patente, na acepção do artigo 30.° do Acordo TRIP, penso que a mesma seria perfeitamente admissível. Com efeito, o referido artigo 30.° prevê que as excepções devem ser «limitadas» e não devem colidir com «a exploração normal» da invenção. Ora, limitar a protecção de uma sequência genética aos usos para os quais foi patenteada não impede seguramente a exploração normal da invenção, que é aquela que foi descrita no pedido de patente. Com efeito, por definição, só são excluídos da protecção os possíveis usos futuros e imprevisíveis (os quais, no entanto, poderiam por sua vez ser patenteados pelo titular da primeira patente, caso a descoberta fosse sua) ou, como no presente caso, as actividades relativas à transformação do produto originário, no âmbito das quais a sequência genética já não exerce nenhuma função.

78.      Por conseguinte, proponho que se responda à quarta questão prejudicial declarando que as disposições do Acordo TRIP não são contrárias à directiva, nos termos em que esta foi interpretada nas respostas às precedentes questões prejudiciais.

VIII – Conclusões

79.      Com base nas considerações expostas, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Rechtbank ’s‑Gravenhage declarando o seguinte.

«No sistema da Directiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998, relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas, a protecção conferida por uma patente relativa a uma sequência genética limita‑se às situações nas quais a informação genética exerce actualmente as funções descritas na patente. Este entendimento é válido tanto para a protecção da sequência enquanto tal como para a protecção das matérias nas quais essa sequência esteja contida.

Nos domínios a que diz respeito, a directiva regulamenta exaustivamente a protecção conferida no território da União a uma invenção biotecnológica. Por conseguinte, opõe‑se a uma legislação nacional que confere às invenções biotecnológicas uma protecção mais ampla do que a prevista na directiva.

O facto de uma patente ter sido concedida antes da entrada em vigor da directiva não tem incidência na resposta a dar às precedentes questões prejudiciais.

As disposições do Acordo TRIP não são contrárias à directiva, nos termos em que esta foi interpretada nas respostas às precedentes questões prejudiciais».


1 – Língua original: italiano.


2 – Aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO L 336, p. 1). O texto do Acordo TRIP está publicado no mesmo JO L 336, p. 214. Fazem fé as versões inglesa, francesa e espanhola dos acordos internacionais do Uruguay Round.


3 – Directiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998, relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas (JO L 213, p. 13).


4 – O princípio do esgotamento é consequência natural da proibição de restrições quantitativas e da proibição de medidas de efeito equivalente previstas nos Tratados (actualmente nos artigos 34.° TFUE e 35.° TFUE). Segundo este princípio, o titular de uma patente que tenha autorizado a colocação no mercado de um produto relativamente ao qual a sua patente lhe confere direitos não pode opor‑se às vicissitudes jurídicas subsequentes (cessão, etc.) respeitantes a esse mesmo produto. Com efeito, nas próprias palavras do Tribunal de Justiça, «a substância do direito de patente consiste essencialmente na atribuição de um direito exclusivo de primeira colocação em circulação do produto» [acórdão de 14 de Julho de 1981, Merck (C‑187/80, Recueil, p. 2063, n.° 9; o itálico é meu)]. A validade da jurisprudência sobre o princípio do esgotamento foi confirmada sucessivas vezes pelo Tribunal de Justiça: v., por exemplo, acórdão de 5 de Dezembro de 1996, Merck e Beecham (processos apensos C‑267/95 e C‑268/95, Colect., p. I‑6285). Quanto à distinção, para efeitos de aplicação do princípio do esgotamento, entre colocação em circulação no estrangeiro e no território da União, v., por analogia, acórdão de 15 de Junho de 1976, EMI Records (51/75, Colect., p. 357, n.os 6 a 11).


5 – Com efeito, o tempo verbal de todas as versões linguísticas da directiva é o presente.


6 – Seria válido o mesmo entendimento, por exemplo, para o vestuário confeccionado com fibras derivadas de plantas de algodão geneticamente modificadas.


7 – V. Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, de 14 de Julho de 2005, COM(2005) 312 final, «Evolução e implicações do direito das patentes no domínio da biotecnologia e da engenharia genética», n.° 2.1. O documento em questão salienta, por outro lado, que a directiva contém indicações não totalmente unívocas sobre este ponto.


8 – Resolução do Parlamento Europeu, de 26 de Outubro de 2005, sobre as patentes das invenções biotecnológicas (JO C 277 E, p. 440, n.° 5).


9 – Trata‑se de uma prática corrente sobretudo no sector dos produtos farmacêuticos. De facto, não sendo os métodos de tratamento são patenteáveis enquanto tais (v., por exemplo, o artigo 53.° da Convenção sobre a Concessão de Patentes Europeias, assinada em Munique em 5 de Outubro de 1973, na versão alterada no ano 2000), para proteger os interesses das sociedades activas no sector da investigação médica, foi admitida a patenteabilidade de um produto já conhecido, desde que destinado a um uso novo (v. decisões de 5 de Dezembro de 1984, G 1/83, G 5/83 e G 6/83, Bayer e o., da Grande Câmara de Recurso do Instituto Europeu de Patentes). Por outro lado, foi também adoptada a mesma abordagem fora do âmbito farmacêutico (v. decisão de 11 de Dezembro de 1989, G 2/88, Mobil, da Grande Câmara de Recurso do Instituto Europeu de Patentes).


10 – V., no mesmo sentido, a decisão de 10 de Outubro de 2007 da High Court do Reino Unido que, num processo idêntico ao que se encontra actualmente pendente no órgão jurisdicional de reenvio, negou à Monsanto a possibilidade de impedir a importação de farinha de soja da Argentina: Monsanto/Cargill (2007) EWHC 2257 (Pat) (n.° 89). Nesse processo, o pedido da Monsanto foi indeferido com base em considerações relativas ao âmbito das reivindicações da patente.


11 – V. acórdão de 25 de Abril de 2002, Comissão/França (C‑52/00, Colect., p. I‑3827, n.° 19).


12 – V., num caso semelhante, acórdão de 15 de Setembro de 2005, Cindu Chemicals e o. (processos apensos C‑281/03 e C‑282/03, Colect., p. I‑8069, n.os 39 a 44).


13 – V., por exemplo, artigo 8.° da Directiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais (JO L 372, p. 31; EE 15 F 6 p. 131), e o artigo 5.° da Directiva 98/59/CE do Conselho, de 20 de Julho de 1998, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos despedimentos colectivos (JO L 225, p. 16). V. igualmente acórdão Comissão/França, referido na nota 11, n.° 18.


14 – V. o acórdão de 9 de Outubro de 2001, Países Baixos/Parlamento e Conselho (C‑377/98, Colect., p. I‑7079, n.° 16). Veja‑se igualmente o n.° 25 do mesmo acórdão, no qual o Tribunal de Justiça observa que a directiva introduziu uma série de «precisões» e de «derrogações» ao direito nacional: também isto parece dificilmente compatível com a ideia de uma directiva de harmonização mínima, que regra geral apenas fixa um nível mínimo de protecção, deixando liberdade aos Estados‑Membros quanto ao resto.


15 – V. nota 13.


16 – V. acórdãos de 13 de Novembro de 1990, Marleasing (C‑106/89, Colect., p. I‑4135, n.° 8), de 4 de Julho de 2006, Adeneler e o. (C‑212/04, Colect., p. I‑6057, n.° 108), e de 24 de Junho de 2008, Commune de Mesquer (C‑188/07, Colect., p. I‑4501, n.° 84).


17 – V. acórdão de 16 de Junho de 2005, Pupino (C‑105/03, Colect., p. I‑5285, n.° 45).


18 – O Tribunal de Justiça afirmou que, para poder fiscalizar a legalidade de um acto da União com base num acordo OMC, é necessário que a União «[tenha] decidido cumprir uma obrigação determinada assumida no quadro da OMC ou [que] o acto [da União] remet[a], de modo expresso, para disposições precisas dos acordos OMC» [acórdão de 30 de Setembro de 2003, Biret & Cie/Conselho, (C‑94/02 P, Colect., p. I‑10565, n.os 55 e 56 e jurisprudência aí referida)].


19 – V. acórdãos de 14 de Dezembro de 2000, Dior e o. (processos apensos C‑300/98 e C‑392/98, Colect., p. I‑11307, n.° 47) e de 11 de Setembro de 2007, Merck Genéricos ‑ Produtos Farmacêuticos (C‑431/05, Colect., p. I‑7001, n.° 35).