Language of document : ECLI:EU:C:2010:341

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 15 de Junho de 2010 1(1)

Processo C‑108/09

Ker‑Optika Bt.

contra

ÀNTSZ Dél‑dunántúli Regionális Intézete

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Baranya Megyei Bíróság (Hungria)]

«Livre circulação de mercadorias – Medidas de efeito equivalente – Modalidades de venda – Comercialização de lentes de contacto através da Internet – Legislação nacional que reserva exclusivamente às lojas especializadas em dispositivos médicos a venda de lentes de contacto»





I –    Introdução

1.        No presente processo, o Tribunal de Justiça é convidado a precisar o âmbito de aplicação da Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade da informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno (a seguir «Directiva sobre o comércio electrónico») (2), e em seguida a aplicar novamente a sua jurisprudência Keck e Mithouard (3), pronunciando‑se sobre a questão de saber se a proibição de venda de lentes de contacto através da Internet é compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias.

II – Quadro jurídico

A –    Direito primário da União

2.        O artigo 28.° CE dispõe que «[s]ão proibidas, entre os Estados‑Membros, as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente».

3.        O artigo 30.° CE prevê que «[a]s disposições dos artigos 28.° [CE] e 29.° [CE] são aplicáveis sem prejuízo das proibições ou restrições à importação, exportação ou trânsito justificadas por razões de moralidade pública, ordem pública e segurança pública, de protecção da saúde e da vida das pessoas e animais ou de preservação das plantas, de protecção do património nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico, ou de protecção da propriedade industrial e comercial. Todavia, tais proibições ou restrições não devem constituir nem um meio de discriminação arbitrária nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados‑Membros».

B –    Direito derivado da União

4.        O artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas (4), conforme alterada pela Directiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Julho de 1998 (5) (a seguir «Directiva 98/34»), define os serviços da sociedade da informação, na acepção da referida directiva, nos seguintes termos:

«‘serviço’: qualquer serviço da sociedade da informação, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via electrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços.

–        Para efeitos da presente definição, entende‑se por: ‘à distância’: um serviço prestado sem que as partes estejam simultaneamente presentes, ‘por via electrónica’: um serviço enviado desde a origem e recebido no destino através de instrumentos electrónicos de processamento (incluindo a compressão digital) e de armazenamento de dados, que é inteiramente transmitido, encaminhado e recebido por cabo, rádio, meios ópticos ou outros meios electromagnéticos, ‘mediante pedido individual de um destinatário de serviços’: um serviço fornecido por transmissão de dados mediante pedido individual.

No anexo V figura uma lista indicativa dos serviços não incluídos nesta definição.

[…]».

5.        O décimo oitavo considerando da Directiva sobre o comércio electrónico especifica designadamente que «[a]s actividades que, pela sua própria natureza, não podem ser exercidas à distância e por meios electrónicos, tais como a revisão oficial de contas de sociedades, ou o aconselhamento médico, que exija o exame físico do doente, não são serviços da sociedade da informação».

6.        O vigésimo primeiro considerando refere que «[o] domínio coordenado abrange exclusivamente exigências respeitantes a actividades em linha, tais como a informação em linha, a publicidade em linha, as compras em linha e os contratos em linha, e não diz respeito aos requisitos legais exigidos pelos Estados‑Membros em relação às mercadorias, tais como as normas de segurança, as obrigações de rotulagem ou a responsabilização pelos produtos, ou as exigências dos Estados‑Membros respeitantes à entrega ou transporte de mercadorias, incluindo a distribuição de produtos medicinais».

7.        O artigo 1.°, n.° 3, da Directiva sobre o comércio electrónico dispõe que «[a] presente directiva é complementar da legislação comunitária aplicável aos serviços da sociedade da informação, sem prejuízo do nível de protecção, designadamente da saúde pública e dos interesses dos consumidores, tal como consta dos actos comunitários e da legislação nacional de aplicação destes, na medida em que não restrinjam a liberdade de prestação de serviços da sociedade da informação».

8.        O artigo 2.°, alínea a), da Directiva sobre o comércio electrónico define os serviços da sociedade da informação como «os serviços da sociedade da informação na acepção do n.° 2 do artigo 1.° da Directiva 83/34/CEE, alterada pela Directiva 98/48/CE».

9.        O artigo 2.°, alínea h), da Directiva sobre o comércio electrónico define o domínio coordenado como «as exigências fixadas na legislação dos Estados‑Membros, aplicáveis aos prestadores de serviços da sociedade da informação e aos serviços da sociedade da informação, independentemente de serem de natureza geral ou especificamente concebidos para esses prestadores e serviços».

10.      O artigo 2.°, alínea h), i), da referida directiva dispõe:

«O domínio coordenado diz respeito às exigências que o prestador de serviços tem de observar, no que se refere:

–        ao exercício de actividades de um serviço da sociedade da informação, tal como os requisitos respeitantes às habilitações, autorizações e notificações,

–        à prossecução de actividade de um serviço da sociedade da informação, tal como os requisitos respeitantes ao comportamento do prestador de serviços, à qualidade ou conteúdo do serviço, incluindo as aplicáveis à publicidade e aos contratos, ou as respeitantes à responsabilidade do prestador de serviços».

11.      O artigo 2.°, alínea h), ii), desta mesma directiva prossegue:

«O domínio coordenado não abrange exigências tais como as aplicáveis:

–        às mercadorias, enquanto tais,

–        à entrega de mercadorias,

–        aos serviços não prestados por meios electrónicos».

12.      O artigo 4.° da Directiva sobre o comércio electrónico prevê, no seu n.° 1, que «[o]s Estados‑Membros assegurarão que o exercício e a prossecução da actividade de prestador de serviços da sociedade da informação não podem estar sujeit[o]s a autorização prévia ou a qualquer outro requisito de efeito equivalente», antes de especificar, no seu n.° 2, que «[o] n.° 1 não afecta os regimes de autorização que não visem especial e exclusivamente os serviços da sociedade da informação».

C –    Legislação e regulamentação húngaras

13.      O artigo 1.°, n.° 3, da Lei CVIII de 2001, relativa aos serviços de comércio electrónico e aos serviços da sociedade da informação (Az elektronikus kereskedelmi szolgáltatások, valamint az információs társadalommal összefüggő szolgáltatásokról szóló 2001. évi CVIII. Törvény, a seguir «Lei CVIII de 2001») dispõe que «[a] presente lei não abrange os serviços da sociedade da informação prestados e utilizados em processos judiciais ou administrativos nem afecta a aplicação das disposições em matéria de protecção de dados pessoais». O n.° 4 prossegue: «[a] presente lei não abrange as comunicações efectuadas através de serviços da sociedade da informação com fins alheios ao exercício de uma actividade económica ou profissional ou de uma missão de serviço público, incluindo as manifestações de vontade contratuais realizadas do mesmo modo».

14.      O artigo 3.°, n.° 1, da mesma lei refere que «[p]ara iniciar ou exercer uma actividade de prestação de serviços da sociedade da informação não se exige qualquer autorização prévia nem qualquer decisão administrativa de efeitos jurídicos equivalentes».

15.      O artigo 1.° do Decreto 7/2004 (XI.23) do Ministro da Saúde Pública, que aprova as exigências profissionais para a comercialização, reparação e aluguer de dispositivos médicos (A gyógyászati segédeszközök forgalmazásának, javításának, kölcsönzésének szakmai követelményeiről szóló 7/2004 (XI. 23.) egészségügyi miniszteri rendelet, a seguir «Decreto 7/2004») dispõe que «sem prejuízo do disposto no anexo I quanto aos dispositivos médicos, o presente decreto é aplicável às actividades de comercialização, reparação e aluguer de dispositivos médicos, bem como à distribuição dos mesmos, e ao fabrico de dispositivos médicos adaptados para medidas individuais. […] A comercialização, reparação e o aluguer de dispositivos médicos objecto do presente regulamento são considerados serviços de saúde».

16.      O artigo 2.° do mesmo decreto prevê:

«Para efeitos da aplicação do presente decreto, entende‑se por:

a)      dispositivo médico, um dispositivo técnico médico ou de tratamento na posse de uma pessoa que, de forma temporária ou permanente, é afectada por uma deterioração do estado de saúde, de uma deficiência ou de uma invalidez,

[…]»

17.      Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, do Decreto 7/2004, «[a] comercialização, a reparação e o aluguer de dispositivos médicos […] podem realizar‑se em estabelecimentos especializados, desde que estes tenham a licença comercial exigida pela regulamentação específica e reúnam os requisitos previstos nos pontos I.1. e I.2 do anexo 2 do presente decreto».

18.      O artigo 4.°, n.° 5, do Decreto 7/2004 regula do seguinte modo a entrega ao domicílio:

«É permitida a entrega ao domicílio de:

a)      um dispositivo médico de série e reparado,

b)      um dispositivo médico utilizado para efeitos de teste e/ou de adaptação, ou realizado em função de medidas individuais para permitir exclusivamente um teste e uma familiarização, para efeitos de consumo final.»

19.      O anexo 1 do referido decreto especifica nomeadamente:

«Estão excluídos do âmbito de aplicação do presente decreto os seguintes dispositivos médicos:

[…]

–        os artigos ópticos produzidos em série, com excepção das lentes de contacto;

[…]»

20.      Além disso, o anexo 2 do Decreto 7/2004 enuncia dois dos requisitos específicos referidos no artigo 3.°, n.° 1, do referido decreto. O ponto I.1, alínea d), deste anexo prevê, entre as condições materiais que devem ser preenchidas, que «a comercialização de lentes de contacto e de óculos graduados por medida só é permitida em lojas que tenham uma área mínima de 18 m2 ou que disponham de um local separado do atelier de montagem». Por sua vez, o ponto I.2, alínea c), do referido anexo enuncia, por seu lado, uma das condições pessoais, porquanto impõe que a comercialização de lentes de contacto seja efectuada por alguém no «exercício da actividade profissional de optometrista ou de médico oftalmologista habilitado em matéria de lentes de contacto».

III – Litígio no processo principal e questões prejudiciais

21.      A Ker‑Optika Bt (a seguir «Ker‑Optika» ou «recorrente no processo principal») é uma sociedade em comandita simples de direito húngaro, que, entre outras actividades, comercializa lentes de contacto através da sua página de Internet.

22.      Em 29 de Agosto de 2008, por meio de uma decisão administrativa da ÁNTSZ Pécsi, Sellyei, Siklósi Kistérségi Intézete, que é a delegação local do ÁNTSZ, ou seja, do Serviço Nacional de Saúde Pública e da Assistência Sanitária, a Ker‑Optika foi proibida de comercializar lentes de contacto através da Internet.

23.      A Ker‑Optika apresentou uma reclamação no ÁNTSZ Dél‑dunántúli Regionális Intézete, a Direcção Regional do Serviço acima referido, que, por decisão de 14 de Novembro de 2008, indeferiu a reclamação e confirmou a decisão de proibição adoptada pela delegação local, contra a Ker‑Optika, baseando a sua decisão no artigo 3.°, n.° 1, do Decreto 7/2004. O Decreto 7/2004 opõe‑se à comercialização de lentes de contacto por via electrónica, pois exige, pelo contrário, que as lentes de contacto sejam comercializadas em lojas especializadas que preencham os requisitos tanto materiais como pessoais previstos no artigo 3.°, n.° 1, do referido decreto.

24.      Contestando esta interpretação, que proíbe uma parte da sua actividade, a Ker‑Optika interpôs no Baranya Megyei Bíróság (Tribunal da Província de Baranya) (Hungria) um recurso de anulação da decisão da Direcção Regional do Serviço Nacional de Saúde Pública e da Assistência Sanitária.

25.      Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a recorrente no processo principal alegou, por um lado, que a comercialização de lentes de contacto constitui um serviço da sociedade da informação, e que, nesta perspectiva, a decisão controvertida contraria portanto o artigo 3.°, n.° 1, da Lei CVIII de 2001, nos termos do qual, para desenvolver ou exercer uma actividade de prestação de serviços da sociedade da informação não se exige nenhuma autorização prévia nem nenhuma decisão administrativa que produza efeitos jurídicos equivalentes. Por outro, uma vez que o Decreto 7/2004 autoriza a entrega ao domicílio de dispositivos médicos, deve ser permitida a comercialização de lentes de contacto através da Internet.

26.      Por seu lado, a recorrida no processo principal invocou a Directiva sobre o comércio electrónico, designadamente o décimo oitavo considerando. Em sua opinião, a comercialização de lentes de contacto é uma actividade que não pode ser exercida à distância porque é equiparável a um aconselhamento médico que exige o exame físico do doente, não recaindo assim no âmbito de aplicação da referida directiva. Por este motivo, as disposições da Lei CVIII de 2001, que transpõe a Directiva sobre o comércio electrónico para o ordenamento jurídico húngaro, não são aplicáveis à actividade em causa no processo principal.

27.      Confrontado com uma dificuldade de interpretação do direito da União, o Baranya Megyei Bíróság decidiu suspender a instância e, por decisão de reenvio de 10 de Fevereiro de 2009, submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, as três seguintes questões prejudiciais:

«1)      A comercialização de lentes de contacto enquadra‑se no aconselhamento médico que exige o exame físico do doente, sendo excluída do âmbito de aplicação da Directiva [sobre o comércio electrónico]?

2)      No caso de a comercialização de lentes de contacto não se enquadrar no aconselhamento médico que exige o exame físico do doente, deve o artigo 30.° CE ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê que as lentes de contacto só podem ser comercializadas em estabelecimentos especializados em dispositivos médicos?

3)      A regulamentação húngara que permite a comercialização de lentes de contacto exclusivamente em estabelecimentos especializados em dispositivos médicos é contrária ao princípio da livre circulação de mercadorias consagrado no artigo 28.° CE?»

28.      Em substância, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta acima de tudo se a actividade em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação da Directiva sobre o comércio electrónico e, só no caso de a resposta do Tribunal de Justiça ser negativa, é que se suscita uma questão de interpretação do direito primário da União. É precisamente nesta última situação que se pode vir a colocar o problema da aplicação da acima referida jurisprudência Keck e Mithouard.

IV – Processo no Tribunal de Justiça

29.      Apresentaram observações escritas os Governos checo, grego, espanhol, húngaro e neerlandês, bem como a Comissão Europeia.

30.      Na audiência, realizada em 15 de Abril de 2010, apresentaram observações os Governos grego, espanhol, húngaro e neerlandês, bem como a Comissão.

V –    Quanto à primeira questão prejudicial

31.      Ao pedir ao Tribunal de Justiça que esclareça se a comercialização de lentes de contacto se enquadra no aconselhamento médico que exige o exame físico do doente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende acima de tudo saber se a actividade em causa é abrangida pela Directiva sobre o comércio electrónico, e se, por conseguinte, a compatibilidade do Decreto 7/2004 com o direito da União deve ser apreciada à luz da referida directiva.

32.      O Decreto 7/2004 em causa no processo principal reserva a possibilidade de comercializar lentes de contacto – qualificadas no direito húngaro como dispositivo médico – às lojas especializadas que possuam uma área mínima de 18 m2 ou que disponham de um local separado do atelier de montagem, e a pessoas que exerçam a profissão de optometrista ou de médico oftalmologista. Por conseguinte, é proibida a comercialização deste tipo de produtos através da Internet. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que a entrega ao domicílio, para efeitos de consumo final de dispositivos médicos abrangidos pelo referido regulamento, estando assim incluídas as lentes de contacto, é permitida, sob reserva de estarem preenchidos os requisitos impostos por este decreto (6).

33.      Antes mesmo de analisar mais aprofundadamente a questão de saber se a comercialização de lentes de contacto é equiparável a um aconselhamento médico que exige o exame físico do doente, parece‑me que a primeira questão, que deve ser lida em conjunto com a segunda e a terceira questões, tem por objectivo determinar se a compatibilidade, com o direito da União, de uma legislação nacional que exclui da venda através da Internet uma categoria específica de mercadorias deve ser analisada unicamente à luz da Directiva sobre o comércio electrónico.

34.      A Directiva sobre o comércio electrónico pretende contribuir para o bom funcionamento do mercado interno, e cria, nesta matéria, um quadro jurídico destinado a assegurar a livre circulação dos serviços da sociedade da informação entre os Estados‑Membros. Como a sua denominação indica, esta directiva abrange apenas «certos» aspectos legais dos serviços da sociedade da informação e, como especifica o artigo 1.°, n.° 2, da referida directiva, visa apenas aproximar «certas disposições nacionais aplicáveis aos serviços da sociedade da informação que dizem respeito ao mercado interno, ao estabelecimento dos prestadores de serviços, às comunicações comerciais, aos contratos celebrados por via electrónica, à responsabilidade dos intermediários, aos códigos de conduta, à resolução extrajudicial de litígios, às acções judiciais e à cooperação entre Estados‑Membros».

35.      Assim, ainda que, no imaginário colectivo, seja graças à Directiva sobre o comércio electrónico que o comércio electrónico intracomunitário teve a possibilidade de se desenvolver, a directiva em si mesma mais não faz do que regular determinadas etapas daquele comércio, através das quais este se realiza, criando um quadro jurídico relativo àquelas etapas, não regulando as condições relativas à circulação de mercadorias que eventualmente decorrem daquele comércio. Aliás, nesta directiva, é dada ênfase ao conceito de «serviço» e não ao de «mercadoria».

36.      Por outras palavras, é errado considerar que a Directiva sobre o comércio electrónico tem por objecto uma liberalização geral do comércio electrónico de mercadorias. Com efeito, não se pode deduzir de nenhuma das suas disposições uma qualquer obrigação de os Estados‑Membros autorizarem, de forma geral e sistemática, para todo o tipo de mercadorias, a venda através da Internet. Parece‑me aliás que a minha convicção é confirmada pela análise do domínio coordenado pela referida directiva.

37.      Com efeito, caso o Tribunal de Justiça decidisse ainda assim aprofundar a análise da Directiva sobre o comércio electrónico, haveria ainda, em minha opinião, pelo menos, duas razões susceptíveis de justificar o facto de a compatibilidade do Decreto 7/2004 com o direito da União poder ser avaliada à luz da Directiva sobre o comércio electrónico. Por um lado, tal pode deduzir‑se da definição de domínio coordenado constante desta directiva. Por outro, não me parece que a comercialização de lentes de contacto possa ser qualificada, em todos os seus aspectos, de «serviço da sociedade da informação» na acepção da Directiva sobre o comércio electrónico.

38.      Em primeiro lugar, relativamente ao domínio coordenado, o objectivo prosseguido por esta directiva, referido no n.° 34 das presentes conclusões, não permite afirmar que uma proibição de venda através da Internet possa ser analisada à luz da Directiva sobre o comércio electrónico.

39.      Além disso, ao definir nomeadamente as condições em que podem ser comercializadas e distribuídas aos consumidores finais lentes de contacto, e ao proibir de forma acessória a venda através da Internet e, consequentemente, a entrega ao domicílio que em princípio caracteriza este método de colocação no mercado, quando a entrega ao domicílio não é efectuada de acordo com as condições previstas no Decreto 7/2004 (isto é, exclusivamente para permitir a realização de um teste, de uma adaptação ou de uma familiarização), o referido decreto estabelece efectivamente as modalidades da entrega de lentes de contacto em sentido amplo. Não me parece pois que, seja como for, a comercialização de lentes de contacto, nos termos em que foi regulada por este decreto, faça parte do domínio abrangido pela Directiva sobre o comércio electrónico.

40.      Com efeito, ainda que, num primeiro momento, o décimo oitavo considerando disponha que «[o]s serviços da sociedade da informação abrangem uma grande diversidade de actividades económicas [realizadas em linha]» e que «[t]ais actividades podem, nomeadamente, consistir na venda de mercadorias em linha», o mesmo especifica de imediato que «[n]ão são abrangidas actividades como a entrega de mercadorias enquanto tal ou a prestação de serviços fora de linha». Relativamente ao vigésimo primeiro considerando, este dispõe claramente que «[o] domínio coordenado abrange exclusivamente exigências respeitantes a actividades em linha, tais como a informação em linha, a publicidade em linha, as compras em linha e os contratos em linha, e não diz respeito aos requisitos legais exigidos pelos Estados‑Membros em relação às mercadorias, tais como as normas de segurança, as obrigações de rotulagem ou a responsabilização pelos produtos, ou as exigências dos Estados‑Membros respeitantes à entrega ou transporte de mercadorias, incluindo a distribuição de produtos medicinais».

41.      Como sublinhado pelos Governos checo e neerlandês nas respectivas observações escritas, a definição do domínio coordenado, constante do artigo 2.°, alínea h), ii), da Directiva sobre o comércio electrónico, reitera esta exclusão de princípio do âmbito de aplicação da directiva das exigências aplicáveis aos bens enquanto tais e à sua entrega. Deste modo, pretende também reiterar que, se a referida directiva «abrange exclusivamente exigências respeitantes a actividades em linha, tais como a informação em linha, as compras em linha e os contratos em linha», é porque se destina a regular certos aspectos do comércio que eventualmente é realizado em linha, mas não para se pronunciar sobre o facto de saber se uma determinada actividade ou transacção deve ser aberta ao comércio realizado através da Internet. A directiva não estabelece assim as condições em que pode ser validamente proibida a venda através da Internet de uma categoria de mercadorias.

42.      Em segundo lugar, e para além da análise das disposições relativas ao domínio coordenado, o recurso ao conceito de «serviço da sociedade da informação» é outro elemento que me permite concluir que não é relevante para o litígio do processo principal invocar a Directiva sobre o comércio electrónico.

43.      A referida directiva é aplicável não a todos os serviços, mas apenas à categoria específica constituída pelos serviços da sociedade da informação. Embora, segundo a legislação húngara, a comercialização de lentes de contacto constitua um serviço de saúde – o que, de qualquer modo, constitui apenas uma qualificação puramente nacional –, a definição, dada pela legislação da União, do serviço da sociedade da informação não parece efectivamente transponível para esta actividade específica.

44.      Com efeito, deve entender‑se por «serviço da sociedade da informação», na acepção da Directiva 98/34, «qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via electrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços» (7). Da definição dada decorre ainda que deve entender‑se «‘por via electrónica’ […] um serviço enviado desde a origem e recebido no destino através de instrumentos electrónicos de processamento (incluindo a compressão digital) e de armazenamento de dados, que é inteiramente transmitido, encaminhado e recebido por cabo, rádio, meios ópticos ou outros meios electromagnéticos».

45.      Ao contrário do que o Governo húngaro alega, penso que a comercialização de lentes de contacto, considerada em si mesma, pode perfeitamente ser realizada à distância ou através da Internet. Esta observação impõe obviamente que se aceite a dissociação entre a fase do aconselhamento médico, eventualmente exigido antes da entrega das lentes de contacto, e a venda considerada em si mesma destas lentes.

46.      No entanto, ainda que distinga o aconselhamento médico e a venda de lentes de contacto, não me parece possível considerar, ao contrário do que a Comissão alega, que a comercialização de lentes de contacto constitui, em si mesma e para cada uma das suas etapas, um serviço «inteiramente transmitido, encaminhado e recebido» conforme previsto na Directiva sobre o comércio electrónico. Embora a encomenda de lentes, a respectiva aceitação e formação do contrato de compra possam eventualmente ser realizadas por via electrónica, o encaminhamento de lentes de contacto para o consumidor final constitui não uma operação electrónica, mas uma operação física. É nesta fase do raciocínio que a distinção efectuada no décimo oitavo considerando da referida directiva entre os serviços da sociedade da informação e as actividades por estes prestadas faz todo o sentido.

47.      Finalmente, recordo que, por ocasião do processo que deu origem ao acórdão Dynamic Medien (8), a propósito da proibição, na Alemanha, da venda através da Internet de suportes vídeo que não tinham sido submetidos, como exigia a legislação alemã, por parte da autoridade nacional competente a controlo e a classificação, para efeitos da protecção de menores, invoquei uma jurisprudência assente do Tribunal de Justiça segundo a qual quando estejam em causa medidas nacionais adoptadas num domínio que foi objecto de uma harmonização exaustiva a nível da União Europeia, aquelas medidas nacionais devem ser apreciadas à luz das disposições dessa medida de harmonização e não das do direito primário (9). Daí deduzi que, ainda que se admitisse que a venda de suportes vídeo pode, em determinados aspectos, ser abrangida pelo âmbito de aplicação da Directiva sobre o comércio electrónico, se podia ainda assim questionar quais as normas específicas constantes da directiva que se destinavam a proceder à harmonização exaustiva das disposições nacionais relativas à protecção de menores, situação que permite excluir a verificação da compatibilidade da proibição acima referida com as disposições pertinentes do Tratado (10). Aliás, o Tribunal de Justiça seguiu esta abordagem (11).

48.      O que me permitiu concluir neste sentido, ou seja, que certos aspectos da actividade em causa podiam ser abrangidos pelo âmbito de aplicação da Directiva sobre o comércio electrónico, foi o facto de, a montante, a legislação nacional admitir o princípio da venda dos suportes vídeo através da Internet. A situação no presente processo é totalmente distinta.

49.      Assim, para admitir que certos aspectos da comercialização de lentes de contacto estão abrangidos pela Directiva sobre o comércio electrónico é necessário que a venda de lentes de contacto através da Internet seja previamente autorizada. Ora, como tentei demonstrar, é muito difícil identificar, à luz da referida directiva, normas destinadas a harmonizar a legislação nacional que nos permitiriam basear apenas nas suas disposições a fiscalização por parte do Tribunal de Justiça da compatibilidade, à luz do direito da União, da legislação nacional em causa no processo principal, que, recorde‑se, proíbe a venda de lentes de contacto através da Internet.

50.      Por outro lado, impõe‑se a mesma constatação quanto à Directiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos (12), que classifica as lentes de contacto como dispositivo médico, uma vez que esta directiva não prevê nenhuma condição sobre o modo de colocação no mercado, de comercialização ou de distribuição de lentes de contacto.

51.      Proponho assim ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, conforme reinterpretada no n.° 33 das presentes conclusões, que a compatibilidade, com o direito da União, de uma legislação nacional que proíbe a venda de lentes de contacto através da Internet não pode ser analisada à luz das disposições da Directiva sobre o comércio electrónico. A questão de saber se a comercialização de lentes de contacto constitui um aconselhamento médico que exige a presença física do doente, na acepção do décimo oitavo considerando da referida directiva é, assim, desprovida de pertinência.

52.      Por conseguinte, não existindo nenhuma medida de harmonização pertinente para a resolução do litígio do processo principal, há que analisar o Decreto 7/2004 à luz do direito primário da União (13), análise essa que é precisamente objecto das duas questões prejudiciais seguintes.

VI – Quanto à segunda e à terceira questões prejudiciais

A –    Observação inicial

53.      A título preliminar, se tomarmos em consideração a ordem lógica das questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que analisar antes de mais se a compatibilidade da legislação nacional com o direito da União deve ser avaliada à luz do artigo 28.° CE, havendo que verificar, em seguida, se a referida legislação nacional pode eventualmente ser justificada nos termos do artigo 30.° CE.

B –    Análise jurídica

1.      Observações preliminares

54.      Quando uma medida nacional diz simultaneamente respeito à livre de circulação de mercadorias e à livre prestação de serviços, o Tribunal de Justiça aprecia‑a, em princípio, à luz de apenas uma destas duas liberdades fundamentais se se revelar que uma destas é tomada em consideração de forma totalmente secundária em relação à outra e que lhe pode estar subordinada (14).

55.      O Governo húngaro alega que a comercialização de lentes de contacto, como o Tribunal de Justiça sublinhou no acórdão LPO (15), não constitui uma actividade comercial semelhante às demais e não pode ser separada dos serviços de saúde que são prestados quando é efectuada. O Governo húngaro deduz aliás do acórdão Dollond & Aitchison (16) que o Tribunal de Justiça já admitiu que os serviços relativos às lentes de contacto e a respectiva comercialização são indissociáveis.

56.      No entanto, continuo convencido de que as duas acções, isto é, a venda de lentes de contacto, por um lado, e os aconselhamentos que eventualmente se seguirão, por outro, são inteiramente dissociáveis.

57.      O facto de o acórdão Dollond & Aitchison, já referido, ter sido invocado não me parece de modo nenhum pertinente devido à natureza profundamente diferente entre a questão que o Tribunal de Justiça teve de analisar naquele processo e a que é objecto do presente processo. Com efeito, no referido acórdão, o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar‑se sobre a forma de calcular o imposto sobre o valor acrescentado relativo a uma prestação efectuada por uma empresa comunitária que consiste no fornecimento de lentes de contacto e de serviços compostos nomeadamente por exames oculares. Não se pedia ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse sobre a necessidade de considerar em conjunto, de forma sistemática, as duas actividades. Por conseguinte, ao contrário do que o Governo húngaro alega, o Tribunal de Justiça, por meio daquele acórdão, não ficou vinculado para o futuro no que respeita ao facto de as referidas actividades não serem dissociáveis.

58.      Além disso, na audiência, o Governo húngaro foi convidado a especificar quais as condições em que, em princípio, o serviço de saúde – que o referido Governo considera que a comercialização de lentes de contacto consubstancia – é prestado. Ora, se é facto assente que tem de ser obtida uma receita médica antes da venda, as outras prestações de saúde não são necessariamente concomitantes à venda, sendo que o protocolo médico que eventualmente a acompanha varia muito em função das fases da venda em causa.

59.      Depois de admitida a dissociação destas operações, torna‑se muito claro que a compatibilidade do Decreto 7/2004 com o direito da União deve ser apreciada à luz das disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias. O Governo húngaro não parece aliás contestar a existência de restrições à venda de lentes de contacto aos doentes (17). Por outro lado, sublinhe‑se que o Tribunal de Justiça, quando foi chamado a apreciar a compatibilidade de uma medida que proíbe a venda por correspondência de suportes vídeo (18), ou, numa situação que apresenta ainda mais semelhanças com o presente processo, a venda de medicamentos através da Internet (19), se baseou na livre circulação de mercadorias.

2.      Quanto à existência de uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação

60.      Coloca‑se então a questão de saber se a proibição da venda de lentes de contacto prevista na legislação em causa no processo principal é contrária ao artigo 28.° CE.

61.      O Decreto 7/2004 não estabelece nenhuma condição a que as lentes de contacto devam obedecer (20), indicando apenas que a venda deve ser efectuada numa loja especializada, que deve observar as exigências relativas à área mínima e ao pessoal qualificado, ou que deve eventualmente ser feita através de entregas ao domicílio para efeitos de teste ou de adaptação, mas nunca através da Internet. Estabelece portanto as modalidades específicas de venda deste tipo de mercadorias.

62.      Ora, segundo a fórmula consagrada no acórdão Keck e Mithouard (21), «a aplicação de disposições nacionais que limitam ou proíbem determinadas modalidades de venda a produtos provenientes de outros Estados‑Membros não é susceptível de entravar directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intracomunitário […], desde que se apliquem a todos os operadores interessados que exerçam a sua actividade no território nacional e desde que afectem da mesma forma, tanto juridicamente como de facto, a comercialização dos produtos nacionais e dos provenientes de outros Estados‑Membros». Só no caso de estas condições estarem reunidas é que a medida nacional poderá não ser abrangida pela proibição do artigo 28.° CE.

63.      No que respeita à primeira condição, é incontestável que a medida nacional em causa se aplica efectivamente indistintamente a todos os operadores em causa que exerçam a sua actividade no território húngaro, uma vez que cada operador que pretenda actuar no mercado húngaro das lentes de contacto tem de respeitar as exigências constantes do Decreto 7/2004.

64.      Em contrapartida, parece‑me que as condições impostas pelo direito húngaro para a comercialização de lentes de contacto afectam mais fortemente a comercialização de produtos oriundos de outros Estados‑Membros.

65.      É certo que nada impede os operadores instalados no território de outro Estado‑Membro de abrirem uma loja especializada que respeite as condições impostas pelo Decreto 7/2004 para comercializarem lentes de contacto. No entanto, é manifesta a natureza mais restritiva e onerosa de tal negócio. O interesse da venda em linha consiste precisamente no facto de a Internet oferecer aos operadores uma montra dotada de uma visibilidade que ultrapassa as fronteiras, sem que o operador suporte os custos e as limitações associadas à posse de uma loja «real». A venda em linha é uma modalidade de venda alternativa ao comércio tal como é tradicionalmente entendido e constitui um meio adicional por meio do qual os operadores nacionais podem alcançar uma clientela que, de um ponto de vista geográfico, não se limita à população que circunda a loja, considerada em termos físicos.

66.      Assim, e a propósito da proibição alemã de venda de medicamentos através da Internet, o Tribunal de Justiça já declarou que «uma proibição como a que está em causa no processo principal prejudica mais as farmácias situadas fora da Alemanha do que as situadas em território alemão. [P]ara estas, é pouco contestável que a proibição as priva de um meio suplementar ou alternativo de atingir o mercado alemão dos consumidores finais de medicamentos, [mas] não é menos verdade que elas conservam a possibilidade de vender os medicamentos nos seus estabelecimentos. Em contrapartida, a Internet é, para as farmácias que não estão estabelecidas no território alemão, um meio mais importante para atingir directamente o referido mercado. Uma proibição que atinge mais as farmácias estabelecidas fora do território [nacional] pode ser susceptível de tornar mais difícil o acesso ao mercado dos produtos provenientes de outros Estados‑Membros do que o dos produtos nacionais» (22). O Tribunal de Justiça parece assim ter admitido claramente que a proibição de venda através da Internet de uma categoria de mercadorias penaliza mais os operadores económicos que não se encontram no território nacional. Sou da opinião que este raciocínio é inteiramente transponível para o presente processo, uma vez que a legislação húngara exige não só que a venda de lentes de contacto ocorra exclusivamente num espaço físico mas, além disso, que este último respeite critérios relativos à área e à qualificação do pessoal.

67.      Por outro lado, o Governo húngaro admitiu na audiência que a quantidade de produtos húngaros susceptíveis de serem comercializados nas lojas especializadas em dispositivos médicos, mais especificamente em lentes de contacto, é totalmente irrelevante, sem, no entanto, poder fornecer dados numéricos. É pois manifesto que a proibição afecta essencialmente os produtos provenientes de outros Estados‑Membros da União.

68.      Finalmente, no que respeita à segunda condição cumulativa prevista no Decreto 7/2004, ou seja, a condição pessoal, o Tribunal de Justiça já concluiu que uma legislação que reserva a venda de lentes de contacto a intermediários especializados é susceptível de ter incidência nas trocas intracomunitárias (23).

69.      Por conseguinte, uma proibição nacional de venda de lentes de contacto através da Internet, como a prevista no Decreto 7/2004, constitui na realidade uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, na acepção do artigo 28.° CE.

3.      Quanto à possibilidade de justificar a medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa com base no artigo 30.° CE

70.      A proibição das medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa constante do artigo 28.° CE não é no entanto absoluta, uma vez que tais medidas são susceptíveis de serem justificadas por serem necessárias para satisfazerem razões de interesse geral, enumeradas no artigo 30.° CE, ou exigências imperativas. O Governo húngaro alega que o Decreto 7/2004 prossegue um objectivo de interesse geral que é o da protecção da saúde pública.

71.      Efectivamente, é jurisprudência assente que uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa pode ser justificada pela protecção da saúde e da vida das pessoas. O Tribunal de Justiça tem recordado incessantemente que «a saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado» (24).

72.      Embora seja correcto afirmar que os Tratados não atribuíram à União uma competência plena e total na matéria, e que esta continua a ser amplamente partilhada entre a União e os seus Estados‑Membros, como decorre do artigo 152.° CE, cabe a estes últimos decidir o nível de protecção da saúde pública que pretendem assegurar e os meios que devem ser implementados para o atingir (25). É inteiramente admissível que os níveis possam variar de um Estado‑Membro para outro, o que implica reconhecer aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação. Assim, o Decreto 7/2004 não pode ser considerado não justificado, por ser desproporcionado, à luz do artigo 30.° CE, apenas pelo facto de, noutros Estados‑Membros, a comercialização de lentes de contacto não carecer de receita médica, de comércio especializado nem de pessoal qualificado (26). No entanto, no exercício desta competência, os Estados‑Membros devem respeitar as disposições do Tratado (27).

73.      Assim, há que analisar a proporcionalidade per se do regime implementado relativamente ao objectivo prosseguido de protecção da saúde pública.

74.      Segundo o Governo húngaro, o Decreto 7/2004 prossegue um objectivo legítimo de protecção da saúde pública, que consiste na preservação dos interesses dos doentes. Por as lentes de contacto serem dispositivos médicos particularmente invasivos, que estão em contacto directo com a membrana do olho, é imperativo evitar a banalização do acto da venda de lentes de contacto para melhor prevenir as alterações da visão e as doenças oftálmicas que podem ser causadas por uma incorrecta utilização das lentes de contacto e que podem acarretar prejuízos irreparáveis para a visão. É por esta razão que as condições de venda de lentes de contacto estão estritamente enquadradas e que a presença do doente é necessária em todas as fases desta venda. O doente tem de estar em contacto com um profissional que o possa aconselhar e acompanhar ao longo de toda a sua experiência com as lentes de contacto, ou seja, no momento da prescrição, em seguida da compra, e também dos testes e da adaptação. O acompanhamento efectuado em cada visita do doente impõe que o estabelecimento comercial tenha uma área mínima de 18 m2, ou que disponha de um local separado do atelier de montagem, sendo que a condição da área mínima, ainda segundo o Governo húngaro, garante que a loja disponha do material e do espaço necessários para efectuar os exames, mas também de espaço suficiente para a apresentação dos produtos e das instruções de utilização. Cada contacto do profissional com o doente deve servir, caso seja necessário, para verificar o estado da visão deste último através de exames e para lhe prestar conselhos e informações. Assim, por não ser possível prescindir da presença do doente, o Governo húngaro, nas observações escritas, exclui a possibilidade de os exames ou os testes serem efectuados à distância (28). Finalmente, o Governo húngaro considera que o Decreto 7/2004 é necessário e proporcionado. O objectivo de conservação da saúde dos olhos estabelecido pela República da Hungria só pode ser alcançado se se garantir a presença do doente em cada fase da prestação medicalizada das lentes de contacto, bem como o seu contacto sistemático com pessoal qualificado. As exigências do referido decreto têm um âmbito necessário para alcançar este objectivo, de acordo com o disposto no direito da União.

75.      Embora as preocupações do Governo húngaro relativas à saúde ocular sejam inteiramente louváveis, não posso deixar de considerar que a legislação nacional sobre a matéria é de certo modo incoerente, ou mesmo contraditória.

76.      A propósito da condição pessoal, o Tribunal de Justiça já declarou que é compatível com o direito da União uma legislação nacional que reserva o direito de venda de medicamentos a pessoal qualificado, justificando‑o designadamente com o facto de este tipo de pessoal poder verificar a autenticidade das receitas de uma maneira eficaz (29). Pode estabelecer‑se um certo paralelismo com o presente processo, na medida em que o Estado húngaro subordina a entrega das lentes de contacto à posse de uma receita médica. Contudo, não pode deixar de se assinalar que as duas categorias de mercadorias em causa têm uma natureza distinta, na medida em que as lentes de contacto são consideradas não como medicamentos sujeitos a receita médica, mas como dispositivos médicos. Seja como for, o Tribunal de Justiça já admitiu, pelo menos indirectamente, a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que impõe que em cada loja estejam presentes ópticos diplomados assalariados ou sócios (30).

77.      O direito de a República da Hungria manter em vigor uma legislação que subordina a venda de lentes de contacto a receita médica não pode ser contestado. No entanto, o facto de o presente processo ter por objecto dispositivos médicos – e não medicamentos – atenua a intensidade da obrigação de informação e de aconselhamento do profissional, devido à diferença em termos de risco. Com efeito, o Tribunal de Justiça já declarou que «diversamente dos produtos de óptica, os medicamentos prescritos ou utilizados por razões terapêuticas podem, apesar de tudo, ser gravemente prejudiciais à saúde se forem consumidos sem necessidade ou de modo incorrecto, sem que o paciente disso possa ter consciência no momento da sua administração» (31). Termina pois aqui o paralelismo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre medicamentos.

78.      A preocupação de proteger e preservar a saúde pública demonstrada pelo Governo húngaro é inteiramente legítima. Este último identifica consequências graves associadas a uma incorrecta utilização das lentes de contacto. No entanto, a condição material constante do Decreto 7/2004 fragiliza inquestionavelmente a afirmação do Governo húngaro.

79.      Em minha opinião, o carácter desproporcionado da medida consiste sobretudo nesta condição material que impede o pessoal qualificado que exerce no território de outro Estado‑Membro de aceder ao mercado húngaro e de nele escoar as suas mercadorias.

80.      Com efeito, a proibição absoluta de comercializar lentes de contacto através da Internet não toma em consideração a hipótese de esta comercialização ser feita por pessoal qualificado, eventualmente estabelecido no território de outro Estado‑Membro (32).

81.      Se a relação entre a área mínima de 18 m2 e a qualidade da informação ou do acompanhamento não parece ser evidente, como referiram correctamente os Governos checo e neerlandês e a Comissão, nas respectivas observações escritas, há que reconhecer que essa relação é ainda menos evidente por ser permitida a entrega ao domicílio de lentes de contacto. Com efeito, o Decreto 7/2004 tem subjacente uma contradição intrínseca. Ao mesmo tempo que exige uma loja com uma área mínima suficiente para possuir o material necessário e proceder aos exames, este decreto autoriza a entrega ao domicílio para efeitos da realização de testes e da adaptação às lentes de contacto. Parece‑me que esta situação constitui a prova de que as diversas operações, cuja natureza indissociável o Governo húngaro se esforça por demonstrar, podem ser consideradas de forma totalmente independente.

82.      Quanto à entrega ao domicílio, o Governo húngaro parece partir do postulado segundo o qual a comercialização através da Internet implica uma entrega de lentes de contacto que será efectuada exclusivamente por um paquete ou por um carteiro, e não por um profissional. Ora, na medida em que o Governo húngaro, na sua resposta à questão escrita colocada pelo juiz‑relator, parece indicar que na Hungria a entrega ao domicílio de lentes de contacto para fins de teste ou adaptação é efectuada por pessoal qualificado, nada impede que se conceba um esquema de venda através da Internet no qual a entrega, também ela, será assegurada por pessoal qualificado.

83.      Além do mais, e como consequência do que já foi sublinhado no n.° 77 das presentes conclusões, a legislação húngara pode ser legitimamente acusada de não prever nenhuma ressalva relativa à obrigação que impõe a presença simultânea do doente e do profissional na loja especializada. Se se pode admitir que a informação e o aconselhamento são de grande importância no momento da primeira prescrição e durante os primeiros tempos de utilização de lentes de contacto, as necessidades não são as mesmas para os compradores que utilizam estes dispositivos médicos há um algum tempo. É neste sentido que se pode conceber, por exemplo, no momento das renovações por exemplo, uma obrigação de informação e de aconselhamento menos intensa. Não é pois evidente que o operador que actua através da Internet seja incapaz de controlar a autenticidade das receitas, se tal vier a ser considerado necessário, ou de prestar informação ou aconselhamento suficientes através de meios adequados como, por exemplo, através de uma advertência na página de Internet que recorde eventualmente a necessidade de consultar um médico caso surjam problemas ou da inserção de informações explicativas nas embalagens.

84.      A inexistência de uma ressalva é igualmente confirmada pelo facto de o Governo húngaro não distinguir as lentes de contacto ditas «rígidas» das lentes de contacto ditas «moles», nem as lentes que corrigem uma deficiência visual daquelas que têm por único objecto colorir a íris. A intervenção do profissional para adaptar as lentes de contacto rígidas aos olhos do doente pode ser considerada uma operação delicada, uma vez que, como o Governo húngaro alegou na audiência, o profissional intervém sobre o produto. A entrega de lentes de contacto rígidas deve ter um acompanhamento especial que corresponde ao processo de adaptação e de verificação. Em contrapartida, este processo é muito menos profundo no caso de se tratar de lentes de contacto moles que foram receitadas. Além disso, algumas lentes podem ter apenas um objectivo estético e, embora devam ser facultadas instruções relativas à sua manutenção, o acompanhamento relativo à sua utilização será muito menos restritivo do que para as lentes de contacto com fins terapêuticos.

85.      Atendendo ao exposto, parece‑me que, por mais legítimo que o objectivo prosseguido pelo Decreto 7/2004 possa ser, o objectivo de protecção da saúde pública pode ser atingido através de medidas que restrinjam menos a livre circulação de mercadorias.

86.      Proponha assim ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão e à terceira questão, conforme reorganizadas, que o artigo 28.° CE deve ser interpretado no sentido de que uma legislação nacional que exige que a comercialização de lentes de contacto seja feita em lojas especializadas em dispositivos médicos que possuam uma área mínima de 18 m2 ou um local separado do atelier de montagem, bem como que esteja presente pessoal qualificado, e que proíbe a venda através da Internet, constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação. Os artigos 28.° e 30.° CE devem ser interpretados no sentido de que a referida legislação não é justificada por razões de protecção da saúde e da vida das pessoas, na medida em que o mesmo objectivo pode ser alcançado através de medidas menos restritivas.

VII – Conclusões

87.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais apresentadas pelo Baranya Megyei Bíróság:

«1)      A compatibilidade, à luz do direito da União, de uma legislação nacional que proíbe a venda, através da Internet, de lentes de contacto não pode ser analisada à luz das disposições da Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno. A questão de saber se a comercialização de lentes de contacto consubstancia um aconselhamento médico que exige a presença física do doente, na acepção do décimo oitavo considerando da referida directiva é, assim, desprovida de pertinência.

2)      O artigo 28.° CE deve ser interpretado no sentido de que uma legislação nacional que exige que a comercialização de lentes de contacto seja feita em lojas especializadas em dispositivos médicos que possuam uma área mínima de 18 m2 ou um local separado do atelier de montagem, bem como que esteja presente pessoal qualificado, e que proíbe a venda através da Internet, constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação.

3)      Os artigos 28.° e 30.° CE devem ser interpretados no sentido de que a referida legislação não é justificada por razões de protecção da saúde e da vida das pessoas, na medida em que o mesmo objectivo pode ser alcançado através de medidas menos restritivas».


1 Língua original: francês.


2 – JO L 178, p. 1.


3 – Acórdão de 24 de Novembro de 1993 (C‑267/91 e C‑268/91, Colect., p. I‑6097).


4 – JO L 204, p. 37.


5 – JO L 217, p. 18.


6 – Na resposta à questão escrita, o Governo húngaro veio especificar que «a entrega [de lentes de contacto] ao domicílio para efeitos de consumo final só é possível para possibilitar a realização de um teste e uma familiarização», o que deixa pressupor que a entrega só pode ser efectuada por pessoal qualificado (v. n.° 7 da resposta à questão colocada ao Governo húngaro).


7 – V. n.° 4 das presentes conclusões.


8 – Acórdão de 14 de Fevereiro de 2008 (C‑244/06, Colect., p. I‑505).


9 – V. n.° 21 das minhas conclusões apresentadas no processo que deu lugar ao acórdão Dynamic Medien, já referido, bem como acórdãos de 23 de Novembro de 1989, Parfümerie‑Fabrik 4711 (150/88, Colect., p. 3891, n.° 28); de 12 de Outubro de 1993, Vanacker e Lesage (C‑37/92, Colect., p. I‑4947, n.° 9); de 13 de Dezembro de 2001, DaimlerChrysler (C‑324/99, Colect., p. I‑9897, n.° 32); de 24 de Outubro de 2002, Linhart e Biffl (C‑99/01, Colect., p. I‑9375, n.° 18), e de 11 de Dezembro de 2003, Deutscher Apothekerverband (C‑322/01, Colect., p. I‑14887, n.° 64).


10 – V. n.° 24 das minhas conclusões no processo que deu lugar ao acórdão Dynamic Medien, já referido.


11 – V. acórdão Dynamic Medien, já referido (n.os 22 e 23).


12 – JO L 169, p. 1.


13 – Acórdão Dynamic Medien, já referido (n.° 23).


14 – Acórdãos de 24 de Março de 1994, Schindler (C‑275/92, Colect., p. I‑1039, n.° 22); de 25 de Março de 2004 (C‑71/02, Colect., p. I‑3025, n.° 46), bem como de 26 de Maio de 2005, Burmanjer e o. (C‑20/03, Colect., p. I‑4133, n.° 35).


15 – Acórdão de 25 de Maio de 1993 (C‑271/92, Colect., p. I‑2899, n.° 11).


16 – Acórdão de 23 de Fevereiro de 2006 (C‑491/04, Colect., p. I‑2129, n.° 35).


17 – V. n.° 34 das observações escritas apresentadas pelo Governo húngaro.


18 – V. acórdão Dynamic Medien, já referido (n.os 26 e segs.).


19 – Acórdão Deutscher Apothekerverband, já referido (n.os 64 e segs.).


20 – Nomeadamente na acepção da jurisprudência Cassis de Dijon (v. acórdãos de 20 de Fevereiro de 1979, Rewe Zentral, dito «Cassis de Dijon», 120/78, Colect., p. 327, e Keck e Mithouard, já referido, n.° 15).


21 – Acórdão já referido (n.° 16).


22 – Acórdão Deutscher Apothekerverband, já referido (n.° 74).


23 – Acórdão LPO, já referido (n.° 8).


24 – Acórdãos de 7 de Março de 1989, Schumacher (215/87, Colect., p. 617, n.° 17); de 16 de Abril de 1991, Eurim‑Pharm (C‑347/89, Colect., p. I‑1747, n.° 26); de 8 de Abril de 1992, Comissão/Alemanha (C‑62/90, Colect., p. I‑2575, n.° 10); de 10 de Novembro de 1994, Ortscheit (C‑320/93, Colect., p. I‑5243, n.° 16); Deutscher Apothekerverband, já referido (n.° 103); de 11 de Setembro de 2008, Comissão/Alemanha (C‑141/07, Colect., p. I‑6935, n.° 46), bem como de 19 de Maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o. (C‑171/07 e C‑72/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 19).


25 – Acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido (n.os 18 e 19).


26 – Acórdão de 11 de Setembro de 2008, Comissão/Alemanha, já referido (n.° 51).


27 – Acórdão de 1 de Fevereiro de 2001, Mac Quen e o. (C‑108/96, Colect., p. I‑837, n.° 24), bem como acórdão de 11 de Setembro de 2008, Comissão/Alemanha, já referido (n.° 23).


28 – V. n.° 46 das observações escritas apresentadas pelo Governo húngaro.


29 – Acórdão Deutscher Apothekerverband, já referido (n.° 119).


30 – Acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2005, Comissão/Grécia (C‑140/03, Colect., p. I‑3177, n.° 35).


31 – Acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido (n.° 60).


32 – Foi aliás este caso que foi apresentado ao Tribunal de Justiça no processo que deu lugar ao acórdão Deutscher Apothekerverband, já referido, que tinha por objecto os farmacêuticos.