Language of document : ECLI:EU:C:2018:45

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 30 de janeiro de 2018(1)

Processos apensos C660/16 e C661/16

Finanzamt Dachau

contra

Achim Kollroß (C660/16)

e

Finanzamt Göppingen

contra

Erich Wirtl (C‑661/16)

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Bundesfinanzhof (Alemanha)]

«Fiscalidade — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 65.o — Pagamento por conta — Dedução — Incerteza relativamente ao facto gerador do imposto — Artigos 184.o a 186.o — Regularização das deduções — Reembolso do IVA indevidamente pago — Procedimentos nacionais»






1.        Nas famosas palavras de Benjamin Franklin numa carta dirigida a Jean‑Baptiste Leroy em 1789, «nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos».

2.        No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio — duas secções diferentes do Bundesfinanzhof (Tribunal Tributário Federal, Alemanha) — pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que clarifique as circunstâncias em que uma futura entrega de bens ou prestação de serviços deverá, para efeitos das regras em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») previstas na Diretiva 2006/112/CE (2), ser considerada suficientemente certa para permitir a dedução do IVA pago pelo destinatário, mesmo quando a entrega ou prestação acaba por não ser efetuada devido a fraude por parte do fornecedor. O órgão jurisdicional de reenvio pede igualmente ao Tribunal de Justiça para esclarecer as consequências jurídicas daí decorrentes, em termos de regularização da dedução e de reembolso pelas autoridades fiscais.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

3.        Em conformidade com o artigo 63.o da Diretiva IVA, «[o] facto gerador do imposto ocorre e o imposto torna‑se exigível no momento em que é efetuada a entrega de bens ou a prestação de serviços».

4.        Nos termos do artigo 65.o da Diretiva IVA, em caso de pagamentos por conta antes da entrega de bens ou da prestação de serviços, o imposto torna‑se exigível no momento da cobrança e incide sobre o montante recebido.

5.        Em conformidade com o artigo 167.o da Diretiva IVA, o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.

6.        Nos termos do artigo 184.o da Diretiva IVA, «[a] dedução inicialmente efetuada é objeto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito».

7.        O artigo 185.o da Diretiva IVA dispõe:

«1.      A regularização é efetuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, por exemplo no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços.

2.      Em derrogação do disposto no n.o 1, não é efetuada qualquer regularização no caso de operações total ou parcialmente por pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente comprovados ou justificados, bem como no caso das afetações de bens a ofertas de pequeno valor e a amostras referidas no artigo 16.o

No caso de operações total ou parcialmente por pagar e nos casos de roubo, os Estados‑Membros podem, todavia, exigir a regularização.»

8.        O artigo 186.o da Diretiva IVA exige que os Estados‑Membros determinem as normas de aplicação dos artigos 184.o e 185.o desta diretiva.

B.      Direito nacional

9.        Nos termos do § 15 da Umsatzsteuergesetz (Lei do imposto sobre o volume de negócios, a seguir «UStG»):

«(1)      O empresário pode deduzir como imposto pago a montante:

1.      o imposto legalmente devido por entregas e outras prestações realizadas à sua empresa por outros empresários. O exercício do direito a dedução pressupõe que o empresário possua uma fatura emitida em conformidade com os §§ 14 e 14a. Se o montante do imposto especificamente mencionado se referir a um pagamento realizado antes da execução das referidas operações, é dedutível a partir do momento em que se disponha da fatura e o pagamento seja efetuado;

[…]»

10.      Em conformidade com o § 13, n.o 1, ponto 1, alínea a), da UStG, no caso de entregas de bens e prestações de serviços, a dívida de imposto constitui‑se «com a liquidação do imposto sobre o preço acordado (§ 16, n.o 1, primeiro período), no prazo de declaração das operações realizadas. O mesmo se aplica a prestações parciais. […] Se o preço ou uma parte do preço for recebido antes de a prestação ou parte da prestação ter sido realizada, a dívida de imposto constitui‑se no prazo de declaração correspondente ao período em que o preço ou parte do preço foi recebido».

11.      O § 17 da UStG prevê:

«(1)      Se o valor tributário de uma operação sujeita a imposto na aceção do § 1, n.o 1, ponto 1, for alterado, o empresário que declarou essa operação deve regularizar o montante do imposto devido. Do mesmo modo, a dedução do imposto pago a montante feita pelo empresário destinatário dessa operação deve ser regularizada.

(2)      O n.o 1 aplica‑se, mutatis mutandis, quando:

1.      se tornar impossível a cobrança do preço acordado para uma entrega sujeita a imposto, outras prestações ou uma aquisição intracomunitária sujeita a imposto. Se o preço for cobrado a posteriori, o montante do imposto e a dedução devem ser novamente regularizados.

2.      for pago o preço de uma entrega ou prestação de serviços acordada, mas a entrega ou prestação não se realizar;

[…]»

II.    Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

A.      Processo C660/16

12.      Em 10 de abril de 2010, Achim Kollroß encomendou um módulo de cogeração à empresa G. Esta empresa confirmou a encomenda em 12 de abril de 2010 e emitiu uma fatura provisória no montante de 30 000 EUR, acrescido de IVA no montante de 5 700 EUR. A. Kollroß efetuou o pagamento antecipado exigido à G em 19 de abril de 2010. A data de entrega do módulo não tinha sido fixada.

13.      O módulo encomendado nunca chegou a ser entregue. Foi aberto um processo de insolvência da G nos termos do Insolvenzordnung (Lei da insolvência), seguidamente encerrado por insuficiência de ativos. Os gerentes da sociedade G foram condenados por 88 crimes de burla comercial em associação criminosa e por insolvência fraudulenta em prejuízo dos adquirentes de módulos de cogeração, mas não por fraude fiscal.

14.      A. Kollroß exerceu, relativamente ao ano de 2010, o seu direito à dedução do imposto pago a montante sobre o seu pagamento antecipado à sociedade G. O Finanzamt Dachau (Serviço de Finanças de Dachau) emitiu um aviso de liquidação de zero euros de IVA, contra o qual A. Kollroß apresentou uma reclamação, que foi indeferida.

15.      Seguidamente, A. Kollroß recorreu desse aviso de liquidação para o Finanzgericht (Tribunal tributário de primeira instância), que deu provimento ao recurso. O Finanzgericht entendeu, em primeiro lugar, que A. Kollroß tinha o direito de deduzir o imposto pago a montante sobre o pagamento antecipado, em conformidade com o disposto no § 15, n.o 1, ponto 1, terceira frase, da UStG. Em segundo lugar, considerou que A. Kollroß não estava obrigado a regularizar a dedução do imposto a montante, em conformidade com o § 17, n.o 1, segunda frase, e n.o 2, ponto 2, da UStG.

16.      O Finanzamt Dachau recorreu dessa decisão para o Bundesfinanzhof. Tendo dúvidas quanto à correta interpretação do direito da União, o referido órgão jurisdicional decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões ao Tribunal de Justiça para decisão a título prejudicial:

«1.      A certeza de uma prestação de serviço enquanto pressuposto do direito à dedução do imposto pago a montante sobre um pagamento antecipado, no sentido do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia “FIRIN” (C‑107/13), é estritamente objetiva ou deve ser determinada a partir do ponto de vista de quem efetua o pagamento antecipado, tendo em conta as circunstâncias que podem por ele ser conhecidas?

2.      Podem os Estados‑Membros — tendo em consideração a constituição simultânea da dívida de imposto e do direito à dedução do imposto pago a montante nos termos do artigo 167.o da [Diretiva IVA], e os poderes de regulamentação que lhes são conferidos pelos artigos 185.o, n.o 2, segundo parágrafo, e 186.o da [mesma diretiva] — fazer depender, em iguais condições, a regularização do imposto e a regularização da dedução do imposto pago a montante do reembolso do pagamento efetuado?

3.      O Serviço de Finanças competente deve restituir o imposto sobre o valor acrescentado ao sujeito passivo que efetuou o pagamento antecipado, se este não conseguir obter o reembolso desse pagamento do beneficiário do pagamento? Em caso de resposta afirmativa, tal restituição deve ser feita no processo de liquidação tributária ou pode ser feita num processo especial de equidade?»

B.      Processo C661/16

17.      Em 3 de agosto de 2010, E. Wirtl encomendou um módulo de cogeração à empresa G pelo preço de 30 000 EUR, acrescido de IVA no montante de 5 700 EUR. A unidade deveria ser fornecida no prazo de 14 semanas a contar da receção do pagamento. E. Wirtl pagou adiantadamente o preço de compra.

18.      A unidade, contudo, nunca foi entregue. Foi aberto um processo de insolvência da sociedade G nos termos da Lei da insolvência, que foi seguidamente encerrado por insuficiência de ativos. Os gerentes da sociedade G foram condenados por 88 crimes de burla comercial em associação criminosa e por insolvência fraudulenta em prejuízo dos adquirentes de módulos de cogeração, mas não por fraude fiscal.

19.      E. Wirtl exerceu, relativamente ao ano de 2010, o seu direito à dedução do imposto pago a montante sobre o seu pagamento à G. Porém, o Finanzamt Göppingen (Serviço de Finanças de Göppingen) não aceitou essa dedução. E. Wirtl apresentou uma reclamação contra essa decisão, a qual foi indeferida.

20.      Seguidamente, recorreu dessa decisão para o Finanzgericht, que deu provimento ao recurso. O Finanzgericht entendeu, em primeiro lugar, que E. Wirtl tinha o direito de deduzir o imposto pago a montante sobre o pagamento antecipado, em conformidade com o disposto no § 15, n.o 1, terceira frase, da UStG. Em segundo lugar, considerou que E. Wirtl não estava obrigado a regularizar a dedução do imposto a montante, em conformidade com o § 17, n.o 1, segunda frase, e n.o 2, ponto 2, da UStG.

21.      O Finanzamt Göppingen recorreu dessa decisão para o Bundesfinanzhof. Tendo dúvidas quanto à correta interpretação do direito da União, o referido órgão jurisdicional decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões ao Tribunal de Justiça para decisão a título prejudicial:

«1.      Segundo o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 13 de março de 2014, FIRIN, C‑107/13 (EU:C:2014:151, n.o 39, primeiro período) não existe o direito à dedução do imposto pago a montante sobre um pagamento antecipado, se a ocorrência do facto gerador for incerta no momento em que é feito o pagamento. Esta circunstância deve ser avaliada segundo a situação objetiva, ou a partir do ponto de vista objetivado de quem faz o pagamento?

2.      Deve o acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de março de 2014, FIRIN, C‑107/13 (EU:C:2014:151, dispositivo e n.o 58) ser entendido no sentido de que, segundo o Direito da União, a regularização da dedução do imposto pago a montante — dedução feita pelo pagador relativamente a uma fatura para pagamento antecipado referente a uma entrega de bens — não pressupõe o reembolso do pagamento antecipado efetuado no caso de a entrega acabar por não ser realizada?

3.      Caso a resposta à questão anterior seja afirmativa: o artigo 186.o da [Diretiva IVA], que autoriza os Estados‑Membros a regulamentar as condições da regularização prevista no artigo 185.o da Diretiva IVA, habilita a República Federal da Alemanha a prever no seu direito nacional que só com o reembolso do pagamento antecipado é que ocorre a redução da base tributável e, em conformidade, devem ser regularizados simultaneamente e em condições iguais a dívida de IVA e a dedução do imposto pago a montante?»

C.      Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

22.      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de janeiro de 2017, os processos C‑660/16 e C‑661/16 foram apensados para efeitos da fase escrita e do acórdão.

23.      Foram apresentadas observações escritas por A. Kollroß, pelo Governo alemão e pela Comissão.

III. Análise

A.      Primeira questão prejudicial nos processos C660/16 e C661/16

24.      Com a primeira questão prejudicial em ambos os processos, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça como se deve determinar, para efeitos do artigo 65.o da Diretiva IVA, se uma entrega de bens relativamente à qual foi efetuado um pagamento por conta é incerta, em caso de fraude por parte do fornecedor. Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, nos casos em que os bens acabam por não ser entregues em resultado dessa fraude, o sujeito passivo tem o direito de deduzir o montante de IVA pago.

25.      Antes de analisar as questões específicas aqui suscitadas, afigura‑se útil recordar as principais disposições aplicáveis, conforme interpretadas sistematicamente pelo Tribunal de Justiça.

26.      Segundo jurisprudência constante, o regime de deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O princípio da neutralidade fiscal subjacente ao sistema comum do IVA garante que todas as atividades económicas, independentemente da sua finalidade ou resultado, desde que estejam, elas mesmas, sujeitas a IVA, são tributadas de forma totalmente neutra (3).

27.      Nos termos do artigo 167.o da Diretiva IVA, o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível. A regra geral é a de que o IVA se torna exigível no momento em que é efetuada a entrega de bens ou a prestação de serviços (artigo 63.o da Diretiva IVA). Porém, em caso de pagamentos por conta, o artigo 65.o da Diretiva IVA estabelece que o IVA se torna exigível no momento da cobrança e incide sobre o montante recebido.

28.      O Tribunal de Justiça tem sistematicamente sustentado que, para que o IVA seja exigível (e, consequentemente, dedutível) em casos de pagamentos por conta, é necessário que todos os elementos pertinentes do facto gerador já sejam conhecidos (4). O Tribunal de Justiça entendeu igualmente que o artigo 65.o da Diretiva IVA não pode ser aplicável se se verificar que é incerto que o facto gerador ocorra (5).

29.      Nessa matéria, o presente processo suscita duas questões distintas mas conexas. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em primeiro lugar, como deve ser apreciada essa incerteza e, em segundo lugar, se, nesse contexto, é relevante que a data de entrega dos bens adquiridos não tenha sido indicada no contrato celebrado entre o destinatário e o fornecedor.

30.      Quanto à primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, em situações como as que estão em causa nos processos principais, essa incerteza deve ser apreciada com base nas informações ao dispor do destinatário ou com base nas informações ao dispor do fornecedor. Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre a relevância da intenção do fornecedor de cometer uma fraude (da qual o destinatário não tinha conhecimento) para determinar a certeza (ou, em rigor, a incerteza) da ocorrência do facto gerador do imposto.

31.      No meu entender, a intenção fraudulenta do fornecedor não deveria ter qualquer influência sobre o direito do destinatário de deduzir o IVA pago por conta, salvo se este tivesse ou devesse ter conhecimento dessa intenção fraudulenta.

32.      Essa conclusão parece decorrer da jurisprudência do Tribunal de Justiça, especialmente dos acórdãos Bonik (6)e FIRIN (7). Nesses processos, o Tribunal de Justiça salientou que os sujeitos passivos não podem fraudulenta ou abusivamente invocar as normas do direito daUnião, e que a luta contra a fraude, a evasão fiscal e os eventuais abusos é um objetivo expressamente reconhecido e incentivado pela Diretiva IVA. Consequentemente, o Tribunal de Justiça concluiu que as autoridades nacionais devem recusar o direito à dedução quando esse direito é invocado fraudulenta ou abusivamente (8). É o que acontece, designadamente, quando o próprio sujeito passivo comete uma fraude fiscal (9). Em contrapartida, não é compatível com as disposições da Diretiva IVA recusar esse direito a um sujeito passivo que não sabia, nem poderia saber, que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou por outro operador interveniente a montante ou a jusante na cadeia de fornecimento (10).

33.      Aplicando esses princípios aos casos em apreço, o facto de os fornecedores nunca terem tido a intenção de entregar os bens adquiridos pelos destinatários não pode, per se, justificar a recusa das autoridades nacionais em aceitar as deduções efetuadas pelos destinatários. Essas autoridades só podem recusar deduções se fizerem prova bastante de que os destinatários sabiam ou deviam saber que o fornecedor nunca tinha tido a intenção de respeitar os contratos celebrados (11).

34.      Com efeito, quando, como no processo FIRIN (12), tanto o fornecedor como o destinatário sabem (ou deviam saber) que não será efetuada nenhuma entrega, é lícito questionar a própria existência de um verdadeiro contrato de fornecimento, pelo menos para efeitos das regras do IVA. Em termos mais gerais, o artigo 65.o da Diretiva IVA não é aplicável nos casos em que, tendo sido efetuados pagamentos por conta, existam dúvidas concretas sobre se, no quadro da normal tramitação da operação, a prestação tributável seria efetivamente cumprida (13).

35.      Em contrapartida, quando o destinatário não tinha nem podia ter conhecimento das intenções fraudulentas ou abusivas do fornecedor — e sobretudo quando, como acontece nas situações em causa nos processos principais, se afigura que o fornecedor tenha pago regularmente o IVA recebido pelo Estado — não existe nenhuma razão objetiva para lhe recusar o exercício do direito inicial de dedução. Por um lado, essa recusa ultrapassaria aquilo que é necessário para preservar os direitos da Fazenda Pública (14) e, por outro, imporia um encargo excessivo aos compradores. Na prática comercial habitual, os fornecedores exigem muitas vezes que os clientes efetuem um pagamento por conta antes da entrega dos bens ou das prestações dos serviços. Como observa o órgão jurisdicional de reenvio no seu despacho no processo C‑660/16, seria excessivo que todos os riscos associados ao potencial incumprimento da obrigação de entregar os bens ou de prestar os serviços adquiridos fossem suportados por destinatários que, mesmo tendo agido com a maior diligência possível, não poderiam, de modo algum, conhecer as más intenções dos seus fornecedores.

36.      Seguidamente, é necessário determinar se o facto de um contrato de fornecimento não indicar a data de entrega dos bens adquiridos significa que nem todos os elementos pertinentes do facto gerador são conhecidos e que, consequentemente, essa dedução deve ser recusada.

37.      Nessa matéria, entendo que o mero facto de não existir uma data de entrega não pode ser considerada suficiente para criar incerteza quanto à ocorrência do facto gerador do imposto. Mais uma vez, não é raro, nos negócios, que as partes cheguem a acordo quanto a uma entrega de bens ou a uma prestação de serviços sem poderem determinar a data exata da entrega ou prestação. Desde que o comprador não disponha de motivos que permitam questionar a capacidade e a vontade do fornecedor de cumprir as suas obrigações, não há motivo para considerar que, à data do pagamento por conta, a entrega ou prestação é incerta.

38.      Obviamente, tal como foi salientado na introdução das presentes conclusões, todos os acontecimentos futuros são, em certa medida, incertos. Contudo, essa lógica não pode ser aplicada neste contexto, uma vez que privaria o artigo 65.o da Diretiva IVA de qualquer sentido útil. Além disso, não vejo por que razão a mera indicação de uma data específica num contrato tornaria mais certa a entrega ou prestação futura (ou, inversamente, menos incerta).

39.      No acórdão BUPA Hospitals, o Tribunal de Justiça sustentou que o artigo 65.o da Diretiva IVA não era aplicável a uma situação em que as partes podiam rescindir unilateralmente o contrato em qualquer momento, e em que tinham sido efetuados pagamentos por conta de bens cuja identidade e quantidade estavam ainda por determinar (15). No entanto, importa distinguir essa situação das circunstâncias em causa nos processos principais: no processo BUPA Hospitals, no momento em que o pagamento foi efetuado, não era certo se a operação seria realizada. Em contrapartida, nos casos em apreço, pelo menos do ponto de vista dos destinatários, faltava apenas determinar o momento da entrega.

40.      À luz do exposto, a resposta à primeira questão nos processos C‑660/16 e C‑661/16 deve ser a de que o artigo 65.o da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que não pode ser recusada a dedução a um sujeito passivo que efetuou um pagamento por conta de bens ou serviços que acabaram por não ser fornecidos se este não tinha, nem poderia ter, conhecimento da intenção do fornecedor de não cumprir o contrato. O simples facto de a data de entrega não estar indicada no contrato não torna incerto o cumprimento do mesmo contrato para os efeitos da referida disposição.

B.      Segunda questão prejudicial no processo C660/16 e segunda e terceira questões prejudiciais no processo C661/16

41.      Com a sua segunda questão prejudicial no processo C‑660/16 e a segunda e terceira questões prejudiciais no processo C‑661/16, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, os artigos 184.o a 186.o da Diretiva IVA se opõem a uma legislação nacional que exige a regularização das deduções, mas que faz depender essa regularização do reembolso do pagamento antecipado.

42.      Importa recordar, a título preliminar, que o regime das deduções estabelecido pela Diretiva IVA visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA pretende garantir a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os seus fins ou os seus resultados, na condição de as referidas atividades estarem, em princípio, elas próprias, sujeitas ao IVA (16).

43.      Daqui decorre que o critério determinante para a dedutibilidade do IVA pago a montante é a utilização que é dada aos bens ou serviços em causa, ou a que lhes é destinada. Esta utilização determina o montante da dedução inicial a que o sujeito passivo tem direito e o âmbito de eventuais regularizações que devem ser efetuadas nas condições previstas nos artigos 185.o a 187.o da Diretiva IVA (17).

44.      O mecanismo de regularização previsto pelas referidas disposições faz parte integrante do regime de dedução do IVA estabelecido pela mesma diretiva. Essas regras têm por objetivo aumentar a precisão das deduções de modo a assegurar a neutralidade do IVA. Através das referidas regras, a Diretiva IVA visa estabelecer uma relação estreita e direta entre o direito à dedução do IVA pago a montante e a utilização dos bens e serviços em causa para operações tributáveis (18).

45.      No que se refere ao momento em que se constitui a obrigação de proceder à regularização do IVA pago a montante, o artigo 185.o, n.o 1, da Diretiva IVA estabelece o princípio de que essa regularização deve ser efetuada, nomeadamente, quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para determinar o montante das deduções (19).

46.      Assim, a primeira questão a abordar neste contexto é a de saber se circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais se incluem, em princípio, entre as reguladas pelo artigo 185.o da Diretiva IVA. Creio ser esse efetivamente o caso.

47.      No acórdão PIGI, o Tribunal de Justiça concluiu que um sujeito passivo vítima de furto de bens relativamente aos quais tinha deduzido o IVA pago a montante estava, em princípio, obrigado a regularizar a sua dedução, nos termos do artigo 185.o, n.o 1, da Diretiva IVA. No entanto, o Tribunal de Justiça salientou que, a título de derrogação, o artigo 185.o, n.o 2, primeiro parágrafo, dispõe que não é efetuada qualquer regularização, nomeadamente, no caso de «roubo devidamente comprovad[o]» e que, nos termos do segundo parágrafo dessa disposição, tal derrogação tem caráter facultativo. Consequentemente, o Tribunal de Justiça declarou que os Estados‑Membros podem prever a regularização da dedução do IVA pago a montante em todos os casos de furto de bens que confiram direito a dedução deste imposto (20).

48.      No mesmo sentido, no acórdão FIRIN, o Tribunal de Justiça decidiu que, nos casos em que seja evidente que não se realizará a entrega dos bens relativamente aos quais o sujeito passivo procedeu a um pagamento por conta, a administração tributária pode exigir a regularização do IVA deduzido por esse sujeito passivo, independentemente de o IVA devido pelo fornecedor ser ele próprio regularizado (21).

49.      Os mesmos princípios devem, assim, aplicar‑se no presente processo. O facto de os bens adquiridos e relativamente aos quais foi efetuado um pagamento antecipado não terem sido entregues constitui, para efeitos dos artigos 184.o a 186.o da Diretiva IVA, uma alteração dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções que ocorreu após a declaração do IVA. Os bens adquiridos nunca poderiam ser utilizados pelo sujeito passivo para as operações tributadas a jusante (22). Por conseguinte, é necessária, em princípio, uma regularização da dedução, em conformidade com a regra estabelecida no artigo 185.o, n.o 1, da Diretiva IVA.

50.      Seguidamente, importa determinar se a derrogação ao referido princípio, prevista no artigo 185.o, n.o 2, da Diretiva IVA, é aplicável a circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais. Nessa matéria, entendo que, quando os bens adquiridos não são entregues devido a fraude cometida pelo fornecedor em detrimento do destinatário, essa derrogação é aplicável.

51.      Com efeito, considero que tal fraude deve ser considerada um «roubo», uma situação relativamente à qual essa disposição determina o caráter facultativo da regularização. Para ser mais preciso, não é necessária uma regularização, salvo decisão em contrário de um Estado‑Membro, sobretudo por duas razões. Primeiro, a ratio do artigo 185.o, n.o 2, da Diretiva IVA parece apoiar essa posição e, segundo, o Tribunal de Justiça já rejeitou, no acórdão PIGI, uma interpretação formalista do conceito de «furto».

52.      Em primeiro lugar, o artigo 185.o, n.o 2, da Diretiva IVA diz respeito a situações relativamente às quais o legislador da União considerou que, não obstante o facto de que deveriam, em princípio, ter resultado numa regularização das deduções, essa regularização não deve ou não pode, de facto, ser exigida. Em especial, a exceção respeitante à «destruição, perda ou roubo» parece abranger as situações em que um sujeito passivo pagou IVA a montante relativamente a bens adquiridos para serem utilizados para operações tributáveis em IVA a jusante, mas que, por motivos alheios à sua vontade, não podem, em última análise, ser utilizados para esse efeito.

53.      Nessas situações, as despesas do sujeito passivo relativamente aos bens destruídos, perdidos ou roubados estão, de um modo geral, relacionadas com a sua atividade económica. O facto de esses bens não terem sido utilizados para operações tributáveis é puramente fortuito. É, portanto, justo que o sujeito passivo que pagou IVA a montante sobre esses bens continue a beneficiar de uma dedução. Se o sujeito passivo fosse obrigado a abdicar da dedução, sofreria um prejuízo adicional. O objetivo de proteção do sujeito passivo contra um prejuízo injusto deve ser confrontado com os exemplos dados no artigo 185.o, n.o 1, da Diretiva IVA de situações em que se deveria proceder a uma regularização, isto é, «no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços». Essas são situações em que, na falta de regularização, o sujeito passivo obteria uma vantagem indevida.

54.      Em segundo lugar, no acórdão PIGI, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «furto» para efeitos do artigo 185.o, n.o 2, da Diretiva IVA deve ser interpretado numa aceção não técnica e abranger, por exemplo, atividades criminosas que conduzem à falta de bens que não podem ser utilizados para operações tributáveis a jusante (23).

55.      Embora os limites exatos entre «roubo» e «fraude» possam variar entre os diferentes Estados‑Membros, creio que esses dois conceitos têm em comum muitas características importantes: ambos são crimes contra a propriedade que resultam numa vantagem indevida para o seu autor e num prejuízo indevido para a vítima. A principal diferença parece estar relacionada com o modo como os bens são ilicitamente subtraídos à vítima: sem o consentimento do proprietário no caso de «roubo», e através de artifício no caso de fraude. No entanto, não vejo de que essa diferença de comportamento do infrator é relevante para efeitos dos artigos 184.o a 186.o da Diretiva IVA.

56.      Além disso, creio que, pelo menos de uma perspetiva prática e económica, não existe grande diferença entre certos tipos de roubo e de fraude: por exemplo, entre bens adquiridos e pagos, mas que não são entregues porque são roubados durante o transporte, e os mesmos bens que não são entregues devido a fraude cometida pelo fornecedor. Em ambas as situações, considero que existem motivos de equidade e neutralidade para permitir que o sujeito passivo continue a beneficiar das deduções do IVA pago a montante.

57.      Por conseguinte, casos de fraude cometida pelos fornecedores em prejuízo dos seus clientes, como os que estão em causa nos processos principais, devem, no meu entender, ser considerados casos de «roubo» na aceção do artigo 185.o, n.o 2, da Diretiva IVA. No entanto, o segundo parágrafo dessa disposição atribui caráter facultativo a essa exceção: embora, em regra, a regularização não seja necessária, os Estados‑Membros podem, ainda assim, decidir em sentido contrário e, consequentemente, exigir a regularização em caso de roubo.

58.      Se bem entendo, de acordo com a legislação alemã pertinente, tal como interpretada pelos órgãos jurisdicionais nacionais, em caso de fraude, só é necessária a regularização quando o sujeito passivo que é a vítima tenha sido reembolsado pelo fornecedor.

59.      Se assim for, essa legislação nacional é, no meu entender, compatível com os artigos 184.o a 186.o da Diretiva IVA: as autoridades alemãs decidiram fazer uso da possibilidade, proporcionada pelo artigo 185.o, n.o 2, segundo parágrafo, da referida diretiva, de exigir a regularização das deduções em caso de roubo da propriedade em causa.

60.      O facto de terem decidido fazer um uso limitado dessa opção — estabelecendo que a regularização depende do reembolso pelo fornecedor ao destinatário dos montantes anteriormente pagos — está abrangido pela discricionariedade concedida pela Diretiva IVA aos Estados‑Membros pelos artigos 185.o, n.o 2, e 186.o Além disso, essa condição é, no meu entender, razoável. Evita uma situação em que os sujeitos passivos possam efetivamente beneficiar do enriquecimento sem causa que poderia advir de manter a dedução e, ao mesmo tempo, receber o reembolso dos montantes já pagos. Do mesmo modo, quando não exista reembolso, garante que um sujeito passivo que aceite efetuar um pagamento por conta não tenha de assumir riscos excessivos nos casos em que não tenha nem possa ter conhecimento da intenção fraudulenta do fornecedor (24).

61.      À luz do exposto, proponho que se responda à segunda questão prejudicial no processo C‑660/16 e à segunda e terceira questões prejudiciais no processo C‑661/16 que os artigos 184.o a 186.o da Diretiva IVA não se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, exige a regularização das deduções e faz depender essa regularização do reembolso do pagamento por conta.

C.      Terceira questão prejudicial no processo C660/16

62.      Com a sua terceira questão prejudicial no processo C‑660/16, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, em primeiro lugar, se as disposições da Diretiva IVA e o princípio da efetividade exigem que os Estados‑Membros autorizem os sujeitos passivos a intentar uma ação contra as autoridades fiscais para obter o reembolso do IVA indevidamente faturado sobre um pagamento por conta que o fornecedor efetuou ao erário público quando o reembolso do IVA pelo fornecedor seja impossível. Em caso afirmativo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em segundo lugar, se o sujeito passivo pode deduzir as suas reclamações no âmbito do processo comum de liquidação tributária, ou se está obrigado a recorrer a um processo especial de equidade.

63.      No meu entender, se o Tribunal de Justiça concordar com as respostas que proponho dar às outras questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é necessário responder a esta questão no âmbito do presente processo. Com efeito, se os sujeitos passivos não conseguirem obter junto dos seus fornecedores o reembolso dos pagamentos por conta (conjuntamente com o correspondente IVA), não estão obrigados a regularizar as deduções e podem, assim, continuar a beneficiar da dedução do IVA pago a esses fornecedores.

64.      No entanto, para o caso de o Tribunal de Justiça não concordar com a minha posição quanto às respostas a dar às outras questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, gostaria de tecer algumas considerações sobre o problema suscitado por esta questão.

65.      As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio são suscitadas pelo acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Reemtsma Cigarettenfabriken (25).

66.      Nesse processo, o órgão jurisdicional de reenvio tinha apresentado ao Tribunal de Justiça uma série de questões prejudiciais sobre a interpretação das disposições da Oitava Diretiva (26), à luz dos princípios da neutralidade, da efetividade e da não discriminação. No seu acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, designadamente, que essas disposições e princípios não se opunham a uma regulamentação nacional segundo a qual apenas o fornecedor pode requerer o reembolso de montantes indevidamente pagos a título de IVA às autoridades fiscais e o destinatário dos serviços pode intentar uma ação cível para repetição do indevido contra esse fornecedor.

67.      No entanto, o Tribunal de Justiça acrescentou ainda que, se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, os Estados‑Membros devem prever os instrumentos necessários para permitir ao referido destinatário recuperar o imposto indevidamente faturado, se necessário diretamente junto das autoridades fiscais, de modo a que o princípio da efetividade seja respeitado (27).

68.      O presente processo suscita, assim, a questão de saber se os princípios desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça no acórdão Reemtsma Cigarettenfabriken devem ser igualmente aplicados em situações semelhantes às que estão em causa nos processos principais, que são reguladas pelas disposições da Diretiva IVA, e não pela Oitava Diretiva.

69.      Tenho dúvidas sobre se esses princípios podem ser automática e facilmente transpostos para os casos em apreço.

70.      Importa, desde logo, referir que a Diretiva IVA não prevê expressamente um mecanismo para que as autoridades fiscais possam reembolsar diretamente o IVA ao destinatário em caso de insolvência do fornecedor. O pagamento por conta do IVA ao fornecedor pelo destinatário e o pagamento desse IVA às autoridades fiscais pelo fornecedor são, em princípio, operações separadas. Assim, em circunstâncias normais, é o destinatário que deve pedir o reembolso ao fornecedor, que, por seu turno, pode pedir o reembolso ao Serviço de Finanças. A Diretiva IVA não exige, portanto, explícita ou implicitamente, que os Estados‑Membros prevejam um mecanismo de ação direta do destinatário contra o Serviço de Finanças.

71.      A esse respeito, importa ter presente que, não havendo regulamentação da União em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro prever as condições em que esses pedidos podem ser apresentados, devendo essas condições respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devendo ser menos favoráveis do que as relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a impossibilitar na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (28).

72.      Isto significa que não se exige que a legislação nacional preveja um mecanismo que, em geral, permita aos destinatários em situações como as que estão em causa nos processos principais intentar diretamente uma ação contra o Serviço de Finanças.

73.      Não obstante, a minha interpretação do acórdão Reemtsma Cigarettenfabriken é a de que o Tribunal de Justiça considerou que o procedimento nele discutido — sem dúvida, verdadeiramente excecional — era necessário apenas devido à natureza específica da situação em causa: a de um sujeito passivo que pagou indevidamente IVA (ou seja, pagou IVA numa operação isenta) e que está estabelecido num Estado‑Membro diferente daquele em que o IVA foi pago. O objetivo do referido acórdão era, manifestamente, evitar o enriquecimento sem causa do erário público numa situação em que houve um erro na faturação do IVA e em que, devido à natureza transfronteiriça da operação, os procedimentos habituais de reembolso podiam revelar‑se complexos e ineficazes.

74.      Não estou certo de que as situações em causa nos processos principais exijam tal solução de extrema ratio. Todavia, compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, numa dada situação, o direito interno não faculta meios adequados a sujeitos passivos que se encontrem em situações análogas às em causa nos processos principais para obterem junto do fornecedor o reembolso do IVA indevidamente pago e, nesse caso, se é necessário um mecanismo como o previsto no processo Reemtsma Cigarettenfabriken para respeitar o princípio da efetividade.

75.      O outro aspeto da terceira questão prejudicial submetida no processo C‑660/16 é o seguinte: se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que, para respeitar o princípio da efetividade, é necessário prever uma forma direta de ação pelo destinatário contra o Serviço de Finanças, um procedimento como o processo de equidade estabelecido no direito alemão é suficiente para assegurar o respeito desse princípio?

76.      Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o direito nacional deve conceder a sujeitos passivos como A. Kollroß e E. Wirtl a possibilidade de deduzirem as suas pretensões no âmbito do processo comum de liquidação tributária.

77.      Como já tive oportunidade de sublinhar nas minhas conclusões no processo Geissel e Butin (29), trata‑se de uma questão cuja decisão compete também ao órgão jurisdicional de reenvio. O Tribunal de Justiça não dispõe de informações suficientemente pormenorizadas sobre o processo especial de equidade (e sobre as diferenças entre esse processo e o processo comum de liquidação tributária) para se poder pronunciar sobre a compatibilidade de regras processuais nacionais,como as que estão em causa nos processos principais, com o princípio da efetividade.

78.      Nessa matéria, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a questão de saber se uma disposição processual nacional torna o exercício dos direitos decorrentes do direito da União impossível ou excessivamente difícil deve ser analisada tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades, perante as várias instâncias nacionais. Para esse efeito, há que tomar em consideração os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a correta tramitação do processo (30). Cabe, em princípio, ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a compatibilidade das medidas nacionais em questão com esses princípios, tendo em conta todas as circunstâncias do processo.

79.      Quando o direito nacional prevê um procedimento distinto ou especial (como, se bem entendi, o processo de equidade estabelecido pelo direito alemão), considero que os órgãos jurisdicionais de reenvio devem averiguar, em especial, se a duração, a complexidade e os custos associados a esse processo criam dificuldades desproporcionadas para o sujeito passivo (31). Porém, nos casos em apreço, o caráter excecional das pretensões dos recorrentes deve igualmente ser tido em conta. Assim, se o órgão jurisdicional de reenvio entender que é necessário um procedimento como o examinado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Reemtsma Cigarettenfabriken, não creio que o recurso a um processo nacional baseado na equidade não seja razoável.

IV.    Conclusão

80.      Em conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais apresentadas pelo Bundesfinanzhof (Alemanha) nos seguintes termos:

–        O artigo 65.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que não pode ser recusada a dedução a um sujeito passivo que efetuou um pagamento por conta de bens ou serviços que acabaram por não ser fornecidos se este não tinha, nem poderia ter, conhecimento da intenção do fornecedor de não cumprir o contrato de fornecimento. O simples facto de a data de entrega não estar indicada no contrato não torna incerto o cumprimento do mesmo contrato para os efeitos da referida disposição.

–        Os artigos 184.o a 186.o da Diretiva 2006/112 não se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as em causa nos processos principais, exige a regularização das deduções e faz depender essa regularização do reembolso do pagamento por conta.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).


3      Acórdão de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman (268/83, EU:C:1985:74, n.o 19).


4      V., designadamente, acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, BUPA Hospitals e Goldsborough Developments (C‑419/02, EU:C:2006:122, n.o 48); de 16 de dezembro de 2010, MacDonald Resorts (C‑270/09, EU:C:2010:780, n.o 31); e de 3 de maio de 2012, Lebara (C‑520/10, EU:C:2012:264, n.o 26).


5      Acórdão de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.o 39).


6      Acórdão de 6 de dezembro de 2012,Bonik (C‑285/11, EU:C:2012:774).


7      Acórdão de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151).


8      Acórdãos de 6 de dezembro de 2012, Bonik (C‑285/11, EU:C:2012:774, n.os 35 a 37), e de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.o 40).


9      Acórdãos de 6 de dezembro de 2012, Bonik (C‑285/11, EU:C:2012:774, n.o 38), e de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.o 41).


10      Acórdãos de 6 de dezembro de 2012, Bonik (C‑285/11, EU:C:2012:774, n.o 41), e de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.o 42).


11      Acórdão de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.o 44).


12      V. acórdão de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, especialmente n.os 22 e segs.); e conclusões da advogada‑geral J. Kokott no mesmo processo (EU:C:2013:872, n.o 28).


13      Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo FIRIN (C‑107/13, EU:C:2013:872, n.o 26).


14      V. acórdão de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.o 43 e jurisprudência aí referida).


15      Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, BUPA Hospitals e Goldsborough Developments (C‑419/02, EU:C:2006:122).


16      V. acórdão de 18 de outubro de 2012, TETS Haskovo (C‑234/11, EU:C:2012:644, n.o 27 e jurisprudência aí referida).


17      V., nesse sentido, acórdãos de 18 de outubro de 2012, TETS Haskovo (C‑234/11, EU:C:2012:644, n.o 29), e de 4 de outubro de 2012, PIGI (C‑550/11, EU:C:2012:614, n.o 23).


18      V., nesse sentido, acórdãos de 18 de outubro de 2012, TETS Haskovo (C‑234/11, EU:C:2012:644, n.os 30 e 31), e de 4 de outubro de 2012, PIGI (C‑550/11, EU:C:2012:614, n.os 24 e 25).


19      V., nesse sentido, acórdãos de 18 de outubro de 2012, TETS Haskovo (C‑234/11, EU:C:2012:644, n.o 32), e de 4 de outubro de 2012, PIGI (C‑550/11, EU:C:2012:614, n.o 26).


20      Acórdão de 4 de outubro de 2012, PIGI (C‑550/11, EU:C:2012:614, n.os 27 a 29).


21      Acórdão de 13 de março de 2014, FIRIN (C‑107/13, EU:C:2014:151, n.os 52 e 53). A esse propósito, talvez seja útil referir que discordo da interpretação restritiva do acórdão FIRIN proposta pela Comissão, segundo a qual o Tribunal de Justiça tinha considerado necessária a regularização das deduções apenas porque esse processo dizia respeito a uma fraude em que tanto o fornecedor como o destinatário tinham participado. Esta leitura do acórdão FIRIN é manifestamente insustentável. Com efeito, como decorre claramente do n.o 47 do acórdão (e do n.o 30 das conclusões do advogado‑geral), o Tribunal de Justiça forneceu a interpretação do artigo 185.o da Diretiva IVA solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, sem referência aos factos em causa no processo principal. Efetivamente, uma vez que a fraude não permitia que o destinatário deduzisse o IVA pago a montante, teria sido inútil examinar se era necessário proceder a uma regularização das deduções. Esta leitura do acórdão FIRIN é também corroborada pelo acórdão de 18 de julho de 2013, Evita‑K (C‑78/12, EU:C:2013:486, n.os 59 e 60).


22      V., por analogia, acórdão de 4 de outubro de 2012, PIGI (C‑550/11, EU:C:2012:614, n.o 27).


23      Acórdão de 4 de outubro de 2012, PIGI (C‑550/11, EU:C:2012:614, n.os 29 a 37).


24      V. n.o 35, supra.


25      Acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167).


26      Oitava Diretiva 79/1072/CEE do Conselho, de 6 de dezembro de 1979, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Regras sobre o reembolso do imposto sobre o valor acrescentado aos sujeitos passivos não estabelecidos no território do país (JO 1979, L 331, p. 11; EE 09 F1 p. 116).


27      Acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167, n.os 34 a 41).


28      V., por exemplo, acórdão de 26 de abril de 2017, Farkas (C‑564/15, EU:C:2017:302, n.o 50).


29      V. as minhas conclusões nos processos apensos Geissel e Butin (C‑374/16 e C‑375/16, EU:C:2017:515, n.os 67 e segs.).


30      Acórdão de 12 de fevereiro de 2015, Surgicare (C‑662/13, EU:C:2015:89, n.o 28).


31      V. as minhas conclusões nos processos apensos Geissel e Butin (C‑374/16 e C‑375/16, EU:C:2017:515, n.o 73).