Language of document : ECLI:EU:C:2018:157

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

6 de março de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas — Regulamentação nacional que reserva futuramente a possibilidade de adquirir esse tipo de direitos apenas aos familiares próximos do proprietário dos terrenos e que suprime, sem prever indemnização, os direitos anteriormente adquiridos por pessoas coletivas ou por pessoas singulares que não possam provar uma relação familiar próxima com o referido proprietário»

Nos processos apensos C‑52/16 e C‑113/16,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Szombathelyi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Szombathely, Hungria), por decisões de 25 de janeiro e 8 de fevereiro de 2016, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 29 de janeiro e 26 de fevereiro de 2016, nos processos

«SEGRO» Kft.

contra

Vas Megyei Kormányhivatal Sárvári Járási Földhivatala (C‑52/16),

e

Günther Horváth

contra

Vas Megyei Kormányhivatal (C‑113/16),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, E. Levits, C. G. Fernlund e C. Vajda, presidentes de secção, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, C. Toader, A. Prechal (relatora), S. Rodin e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 7 de março de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér, G. Koós e M. M. Tátrai, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo e M. J. Castello‑Branco, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Havas, L. Malferrari e E. Montaguti, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 31 de maio de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação dos artigos 49.o e 63.o TFUE, bem como dos artigos 17.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem, por um lado, a «SEGRO» Kft. ao Vas Megyei Kormányhivatal Sárvári Járási Földhivatala [Serviços Administrativos do Departamento de Vas (Gabinete da Propriedade Fundiária do Distrito de Sárvár), Hungria] e, por outro, Günter Horváth ao Vas Megyei Kormányhivatal (Governo Local do Departamento de Vas), a respeito de decisões de cancelamento do registo predial de direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas de que eram respetivamente titulares a SEGRO e G. Horváth.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O anexo X do Ato relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33, a seguir «Ato de Adesão de 2003») intitula‑se «Lista a que se refere o artigo 24.o do Ato de Adesão: Hungria». O capítulo 3 deste anexo, intitulado «Livre circulação de capitais», dispõe, no seu n.o 2:

«Sem prejuízo das obrigações resultantes dos Tratados em que se funda a União Europeia, a Hungria pode manter em vigor, durante sete anos a contar da data da adesão, as proibições previstas na legislação em vigor à data da assinatura do presente Ato, em matéria de aquisição de prédios rústicos por pessoas singulares não residentes na Hungria ou que não sejam nacionais húngaros e por pessoas coletivas. No que se refere à aquisição de prédios rústicos, os nacionais dos Estados‑Membros ou as pessoas coletivas constituídas nos termos da legislação de outro Estado‑Membro não podem, em caso algum, receber um tratamento menos favorável do que à data da assinatura do Tratado de Adesão. […]

Os nacionais de outro Estado‑Membro que desejem estabelecer‑se como agricultores por conta própria e que tenham residido legalmente e exercido uma atividade agrícola na Hungria durante pelo menos três anos consecutivos não ficam sujeitos ao disposto no parágrafo anterior nem a quaisquer outras regras e procedimentos diferentes dos que se aplicam aos nacionais húngaros.

[…]

Se existirem provas suficientes de que, no termo do período transitório, se verificarão perturbações ou ameaça de perturbações graves no mercado fundiário da Hungria, a Comissão, a pedido daquele país, decidirá da prorrogação do período transitório por um máximo de três anos.»

4        Pela Decisão 2010/792/UE da Comissão, de 20 de dezembro de 2010, que prorroga o período transitório respeitante à aquisição de prédios rústicos na Hungria (JO 2010, L 336, p. 60), o período transitório instituído no anexo X, capítulo 3, n.o 2, do Ato de Adesão de 2003 foi prorrogado até 30 de abril de 2014.

 Direito húngaro

5        A földről szóló 1987. évi I. törvény (Lei n.o I, de 1987, relativa à terra) previa que as pessoas singulares ou coletivas estrangeiras só podiam adquirir a propriedade ou o usufruto de terrenos agrícolas mediante autorização prévia do ministro das Finanças.

6        O 171/1991 Korm. rendelet (Decreto governamental n.o 171), de 27 de dezembro de 1991, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1992, e posteriormente a termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény (Lei n.o LV, de 1994, sobre as terras de cultivo, a seguir «Lei de 1994») excluíram a possibilidade de as pessoas singulares que não têm a nacionalidade húngara adquirirem terrenos deste tipo. Além disso, a Lei de 1994 excluiu a aquisição desses terrenos por pessoas coletivas. Em contrapartida, qualquer pessoa continuava a poder adquirir contratualmente um direito de usufruto sobre os referidos terrenos.

7        A Lei de 1994 foi alterada, com efeitos a 1 de janeiro de 2002, para excluir também a possibilidade de se constituir contratualmente um direito de usufruto sobre os terrenos agrícolas em benefício de pessoas singulares que não tivessem a nacionalidade húngara ou de pessoas coletivas.

8        Na sequência de alterações subsequentes desta lei que produziram efeitos em 1 de janeiro de 2013, a constituição por contrato de um direito de usufruto sobre os terrenos agrícolas passou a só ser autorizada, sob pena de nulidade, na condição de o direito assim constituído ser a favor de um «familiar próximo». Por outro lado, foi nesta altura inserido na Lei de 1994 um novo artigo 91.o, n.o 1, que prevê que «[e]m 1 de janeiro de 2033 extinguem‑se ex lege os direitos de usufruto vigentes em 1 de janeiro de 2013 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não tenham uma relação familiar próxima, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado que ultrapasse a data de 30 de dezembro de 2032».

9        A mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvény (Lei n.o CXXII, de 2013, relativa a atos jurídicos sobre terrenos agrícolas e florestais, a seguir «Lei de 2013 sobre os terrenos agrícolas») foi adotada em 21 de junho de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013.

10      O artigo 5.o, n.o 13, da referida lei contém a seguinte definição:

«“Familiares próximos”: cônjuges, ascendentes em linha direta, filhos adotivos, filhos próprios e filhos do cônjuge, pais adotivos, sogros e irmãos.»

11      O artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 sobre os terrenos agrícolas mantém a regra segundo a qual a constituição por contrato de direitos de usufruto sobre este tipo de terrenos só é autorizada, sob pena de nulidade, se tiver lugar entre familiares próximos.

12      A mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvénnyel összefüggő egyes rendelkezésekről és átmeneti szabályokról szóló 2013. évi CCXII. törvény (Lei n.o CCXII, de 2013, que estabelece algumas disposições e medidas transitórias relacionadas com a Lei n.o CXXII, de 2013, relativa a atos jurídicos sobre terrenos agrícolas e florestais, a seguir «Lei de 2013 relativa às medidas transitórias») foi adotada em 12 de dezembro de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013.

13      O artigo 108.o, n.o 1, da referida lei, que revogou o artigo 91.o, n.o 1, da Lei de 1994, prevê:

«Em 1 de maio de 2014 extinguem‑se ex lege os direitos de usufruto e de uso vigentes em 30 de abril de 2014 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não sejam familiares próximos, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado que ultrapasse a data de 30 de abril de 2014.»

14      O artigo 94.o da ingatlan‑nyilvántartásról szóló 1997. évi CXLI. törvény (Lei n.o CXLI, de 1997, relativa ao registo predial, a seguir «Lei do registo predial») dispõe:

«1.      A fim de se proceder ao cancelamento, do registo predial, da inscrição dos direitos de usufruto e de uso que se extingam por força do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 relativa às medidas transitórias] (a seguir, para efeitos deste artigo, conjuntamente “direitos de usufruto”), até 31 de outubro de 2014, a autoridade responsável pelo registo predial notifica a pessoa singular titular do direito de usufruto para declarar, no prazo de 15 dias a partir da receção da notificação em formulário aprovado por decisão ministerial, que tem com a pessoa que figura como proprietário do imóvel identificado nos documentos com base nos quais foi feito o registo uma relação de familiar próximo. Após 31 de dezembro de 2014 não serão admitidos quaisquer pedidos de justificação de extemporaneidade.

[…]

3.      Quando da declaração resultar que não existe relação de familiar próximo ou o titular não apresentar a declaração dentro do prazo, a autoridade responsável pelo registo predial cancela oficiosamente, dentro dos seis meses seguintes ao termo do prazo indicado para apresentar a declaração e o mais tardar até 31 de julho de 2015, a inscrição do direito de usufruto no registo predial.

[…]

5.      A administração dos processos fundiários cancela oficiosamente do registo predial, o mais tardar em 31 de dezembro de 2014, os direitos de usufruto inscritos em benefício de pessoas coletivas ou de entidades sem personalidade jurídica, mas com capacidade para adquirir direitos suscetíveis de ser inscritos no registo, e que foram suprimidos por aplicação do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 relativa às medidas transitórias].»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

 Processo C52/16

15      A SEGRO é uma sociedade comercial com sede social na Hungria e cujos acionistas são pessoas singulares nacionais de outros Estados‑Membros, que residem na Alemanha.

16      A SEGRO adquiriu direitos de usufruto sobre dois terrenos agrícolas situados na Hungria. Estes direitos foram inscritos no registo predial. Resulta mais precisamente das observações escritas do Governo húngaro que os referidos direitos foram constituídos antes de 1 de janeiro de 2002 e inscritos no referido registo em 8 de janeiro do mesmo ano.

17      Por duas decisões de 10 e 11 de setembro de 2014, respetivamente, os Serviços Administrativos do Departamento de Vas (Gabinete da Propriedade Fundiária do Distrito de Sárvár) procedeu ao cancelamento desses direitos de usufruto do referido registo, com base no artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias e no artigo 94.o, n.o 5, da Lei do registo predial.

18      Em apoio do recurso interposto no Szombathelyi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Szombathely, Hungria), a SEGRO alegou nomeadamente que as referidas disposições violavam tanto a Lei Fundamental húngara como o direito da União.

19      Esse órgão jurisdicional submeteu ao Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional, Hungria) pedidos que tinham por objeto, por um lado, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias e do artigo 94.o, n.o 5, da Lei do registo predial, na medida em que essas disposições punham fim a direitos de usufruto anteriormente constituídos e exigiam o seu cancelamento do registo predial, e, por outro, a proibição da aplicação das referidas disposições ao caso em apreço.

20      No seu Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) respondeu negativamente a estes pedidos.

21      O órgão jurisdicional de reenvio explica que, nesse acórdão, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) declarou, contudo, que a Lei Fundamental húngara tinha sido infringida, no que diz respeito aos direitos de usufruto e aos direitos de uso perdidos por força do artigo 108.o da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, pelo facto de o legislador não ter adotado disposições excecionais que permitam uma indemnização, a qual, mesmo reportando‑se a um contrato válido, não teria podido ser reclamada no âmbito de um acordo entre as partes no referido contrato. Além disso, nesse acórdão, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) convidou o legislador a colmatar essa lacuna o mais tardar até 1 de dezembro de 2015. Este prazo terminou sem que tivesse sido adotada nenhuma medida para esse efeito.

22      Nas suas observações escritas, o Governo húngaro precisou, a este respeito, que o convite a legislar formulado nesses termos pelo Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) só dizia respeito à indemnização pelos prejuízos eventualmente sofridos pelos nus‑proprietários e apenas na medida em que esses prejuízos não fossem indemnizáveis no âmbito de um acordo entre as partes, segundo as regras do direito civil. No que se refere aos titulares do usufruto, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) considerou que as regras do direito civil bastavam para assegurar a sua eventual indemnização.

23      O Szombathelyi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Szombathely) é de opinião de que as disposições nacionais em causa constituem uma restrição aos direitos dos nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais, uma vez que são suscetíveis de dissuadir esses nacionais de exercerem esses direitos através da aquisição de direitos de usufruto sobre propriedades agrícolas, tendo em conta o risco em que incorrem de serem prematuramente privados desses direitos, mesmo quando decorram de contratos válidos.

24      No que respeita aos objetivos prosseguidos pela Lei de 2013 sobre os terrenos agrícolas, o órgão jurisdicional de reenvio reproduz excertos do Acórdão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) n.o 25, de 21 de julho de 2015, do qual resulta nomeadamente que a referida lei «realiza o objetivo estratégico nacional, geralmente reconhecido e aceite depois da mudança de regime, e constitucionalmente garantido pelo artigo P da Lei Fundamental, segundo o qual, em substância, as terras de cultivo só podem ser propriedade de pessoas singulares que os trabalhem». Esse acórdão acrescenta que, «[d]e igual modo, foi em nome desse objetivo que esta lei prevê que a propriedade de um terreno não possa ser adquirida para efeitos de investimento para o futuro, ou seja, com vista a obter uma mais‑valia resultante do aumento do preço dos terrenos», e que, «como resulta do preâmbulo da referida lei, outros objetivos de política jurídica que levaram à redação da lei visavam, designadamente, que a venda de terrenos agrícolas e florestais e a constituição de hipotecas sobre esses terrenos para garantir créditos possam efetivamente facilitar a sua exploração por novas empresas em formação, que possam constituir‑se propriedades de um tamanho que permita uma produção agrícola viável e competitiva, que a organização da agricultura baseada na propriedade não seja ameaçada pelos efeitos negativos da fragmentação dos terrenos e que qualquer operador possa exercer a sua atividade da produção agrícola pacificamente».

25      No que diz respeito às disposições mais especificamente causa no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que resulta desse acórdão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) que «[a] necessidade e a utilidade do artigo 108.o, n.o 1, da Lei relativa às medidas transitórias foram especificamente motivadas pela consideração segundo a qual, no que respeita à propriedade das terras de cultivo, a referida lei devia, para realizar plenamente o objetivo estratégico nacional pretendido pelo novo regime, eliminar os efeitos jurídicos de uma prática de aquisição de terras de cultivo que se tinha desenvolvido durante perto de duas décadas e em razão da qual o direito de usufruto tinha sido aplicado de forma disfuncional». O referido acórdão precisa que, «com efeito, no que respeita à propriedade, ao usufruto e ao uso das terras de cultivo, o funcionamento do novo regime não pode furtar‑se à exigência segundo a qual as situações indicadas no registo predial devem refletir relações jurídicas que estejam em conformidade com a Lei Fundamental». Por conseguinte, nos termos do mesmo acórdão, «era necessário adotar disposições que obstem à aplicação de construções jurídicas conhecidas, na linguagem comum, sob o nome de “contratos encapotados” e, portanto, prever que não se possa continuar a implementar direitos ou obrigações, ou quaisquer instrumentos jurídicos, com base em relações jurídicas existentes, para se subtrair às proibições e restrições anteriores em matéria de aquisição da propriedade».

26      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o legislador húngaro não demonstrou contudo, de maneira suficiente, a necessidade e a proporcionalidade das regras em causa, uma vez que a fundamentação da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias não permite, nomeadamente, identificar, na referida lei ou na sua fundamentação, um fim legítimo de interesse geral suficientemente comprovado, nem detetar argumentos que justifiquem a supressão indiferenciada dos direitos de usufruto, sem indemnização e sem um período transitório adequado, nem tão‑pouco a necessidade, a este respeito, de reduzir a alguns meses o período, anteriormente de 20 anos, durante o qual os direitos de usufruto em causa podiam continuar a existir até à sua supressão.

27      Em especial, a presunção legal que se encontra na sua base, ainda que não expressamente formulada na regulamentação em causa, segundo a qual todos os contratos privados que constituíram direitos de usufruto e de uso foram celebrados para escapar às proibições anteriores relativas à aquisição da propriedade, visa fazer cessar alegadas infrações antigas à lei. Assim, o legislador húngaro fixou, através de medidas legislativas, os efeitos da alegada invalidade dos referidos contratos, sem todavia justificar o caráter de interesse geral dessa regulamentação, e privou os interessados da possibilidade de provar a validade dos seus contratos no âmbito de um procedimento administrativo, além de ter violado o seu direito de aceder a um tribunal imparcial, previsto no artigo 47.o da Carta.

28      Por outro lado, segundo o referido órgão jurisdicional, as disposições nacionais em causa no processo principal violam igualmente o direito de propriedade consagrado no artigo 17.o da Carta, designadamente ao não garantirem aos titulares de direitos de usufruto que perdem a posse uma compensação adequada e ao violarem o princípio da proteção da confiança legítima, tendo em conta o facto de que um investimento num usufruto constitui, em princípio, um negócio jurídico a longo prazo.

29      Nestas circunstâncias, o Szombathelyi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Szombathely) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem os artigos 49.o e 63.o [TFUE] e os artigos 17.o e 47.o da [Carta] ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro como a que está em causa no processo principal, que — sem ponderar outros critérios — estabelece a obrigação de cancelamento da inscrição predial dos direitos de usufruto e de uso que onerem bens imóveis agrícolas e que tenham sido registados em nome de sociedades comerciais ou de pessoas singulares que não sejam familiares próximos do proprietário, sem determinar simultaneamente, a favor dos titulares dos direito de usufruto e de uso extintos, uma compensação pelos danos patrimoniais que, ainda que não seja exigível no âmbito da liquidação entre as partes contratantes, tenha origem em contratos válidos?

2)      Devem os artigos 49.o e 63.o [TFUE] e os artigos 17.o e 47.o da [Carta] ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro que — sem ponderar outros critérios — estabelece a obrigação de cancelamento da inscrição predial dos direitos de usufruto e de uso que onerem bens imóveis agrícolas e que tenham sido registados, de acordo com contratos celebrados antes de 30 de abril de 2014, em nome de sociedades comerciais ou de pessoas singulares que não sejam familiares próximos do proprietário, e determine simultaneamente, a favor dos titulares dos direito de usufruto e de uso extintos, uma compensação pelos danos patrimoniais que, ainda que não seja exigível no âmbito da liquidação entre as partes contratantes, tenha origem em contratos válidos?»

 Processo C113/16

30      G. Horváth é um nacional austríaco residente na Áustria que adquiriu, antes de 30 de abril de 2014, direitos de usufruto sobre dois terrenos agrícolas situados na Hungria. Estes direitos foram inscritos no registo predial. Na audiência no Tribunal de Justiça, o Governo húngaro esclareceu que essas inscrições tiveram lugar em 2 de novembro de 1999.

31      Por decisão de 12 de outubro de 2015, o Governo Local do Departamento de Vas procedeu ao cancelamento destes direitos de usufruto do registo predial, com base no artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias e no artigo 94.o, n.os 1 e 3, da Lei do registo predial.

32      G. Horváth interpôs recurso no Szombathelyi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Szombathely).

33      Esse órgão jurisdicional interroga‑se, em primeiro lugar, quanto à questão de saber se, na medida em que fazem depender a manutenção dos direitos de usufruto da prova, pelo seu titular, de que a pessoa que concedeu esses direitos, e que será, na maior parte dos casos, um nacional húngaro, é seu familiar próximo, as disposições nacionais em causa conduzem a uma discriminação dissimulada contra os nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria. Poderia ser esse o caso pelo facto de as regulamentações anteriormente em vigor proibirem expressamente às pessoas singulares e coletivas estrangeiras que pretendessem explorar terrenos agrícolas na Hungria a aquisição da propriedade desses terrenos, e de a proporção dos titulares de direitos de usufruto ou de direitos de uso ser, por conseguinte, bastante mais elevada entre os nacionais de outros Estados‑Membros do que entre os nacionais húngaros.

34      Em segundo lugar, no que diz respeito à apreciação da necessidade das medidas em causa à luz dos objetivos prosseguidos pelo legislador nacional, o órgão jurisdicional de reenvio completa a análise que efetuou na sua decisão de reenvio no processo C‑52/16. Salienta, assim, que, ao adotar a Lei de 2013 sobre os terrenos agrícolas e a Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, o legislador húngaro presumiu que os direitos de usufruto sobre terras agrícolas constituídos entre pessoas que não são familiares próximos deviam ser considerados investimentos com vista à obtenção de um benefício pessoal. No entanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a relação familiar próxima não permite excluir automaticamente a existência de um motivo relacionado com a obtenção de um benefício pessoal.

35      Nestas circunstâncias, o Szombathelyi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Szombathely) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A restrição decorrente da legislação de um Estado‑Membro como a que está em causa no processo principal, que faz depender a manutenção dos direitos de usufruto e de uso constituídos sobre terrenos agrícolas da prova da existência de uma relação [familiar próxima] com a pessoa que constituiu esses direitos, pelo que, se o titular do direito de usufruto ou de uso não conseguir fazer prova dessa relação [familiar próxima], o seu direito se extingue ex lege sem qualquer compensação patrimonial, é contrária aos artigos 49.o e 63.o [TFUE]?

2)      Tendo em conta os artigos 49.o e 63.o [TFUE], a legislação de um Estado‑Membro como a que está em causa no processo principal, que faz depender a manutenção dos direitos de usufruto e de uso constituídos sobre terrenos agrícolas da prova da existência de uma relação [familiar próxima] com a pessoa que constituiu esses direitos, pelo que, se o titular do direito de usufruto ou de uso não conseguir fazer prova da existência dessa relação [familiar próxima], o seu direito se extingue ex lege sem qualquer compensação patrimonial, abrange efetivamente de igual forma os nacionais do Estado‑Membro em causa e os nacionais dos outros Estados‑Membros?»

36      Os processos C‑52/16 e C‑113/16 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão, por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 10 de março de 2016.

 Quanto às questões prejudiciais

37      Com as suas questões, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 49.o e 63.o TFUE, bem como os artigos 17.o e 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, por força da qual os direitos de usufruto anteriormente constituídos sobre terrenos agrícolas e cujos titulares não têm a qualidade de familiar próximo do proprietário dessas terras se extinguem ex lege e, por conseguinte, são cancelados do registo predial.

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça e à admissibilidade das questões prejudiciais

38      Em primeiro lugar, o Governo húngaro alega que, uma vez que os contratos de usufruto em causa nos processos principais foram celebrados antes da entrada em vigor do Tratado de Adesão de 2003, a sua validade depende exclusivamente das regras de direito nacional em vigor no momento da sua celebração. Consequentemente, o Tribunal de Justiça não é competente para apreciar as referidas regras à luz do direito da União nem, portanto, para se pronunciar sobre a supressão ulterior, pelas regras em causa nos processos principais, de direitos de usufruto que, no caso vertente, foram ilegalmente constituídos à luz do direito nacional anterior à adesão do Estado‑Membro em causa à União.

39      No entanto, resulta de jurisprudência constante que o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o direito da União no que se refere à sua aplicação num novo Estado‑Membro a partir da data da adesão deste último à União (v., neste sentido, Acórdão de 10 de janeiro de 2006, Ynos, C‑302/04, EU:C:2006:9, n.o 36 e jurisprudência aí referida).

40      Ora, há que observar que, no caso vertente, e como resulta dos despachos de reenvio, os direitos de usufruto em causa nos processos principais existiam ainda em 30 de abril de 2014 e que a sua supressão, bem como o seu cancelamento do registo predial, não ocorreram pela aplicação de regulamentações que tenham estado em vigor e produzido todos os seus efeitos a seu respeito antes da data de adesão da Hungria à União, mas exclusivamente por força das disposições em causa nos processos principais, que foram adotadas cerca de dez anos após essa adesão.

41      Em segundo lugar, o Governo húngaro alega que as questões submetidas são inadmissíveis, na medida em que se referem ao artigo 108.o da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, uma vez que, nos processos principais, só foi aplicado o artigo 94.o da Lei do registo predial. O referido artigo 108.o já tinha produzido todos os seus efeitos e o órgão jurisdicional de reenvio não pode pronunciar‑se sobre o restabelecimento ou a manutenção dos direitos de usufruto em causa nos processos principais.

42      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, é da competência exclusiva do juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 24 de abril de 2012, Kamberaj, C‑571/10, EU:C:2012:233, n.o 40 e jurisprudência aí referida).

43      O indeferimento de um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional nacional só é possível se resultar de forma manifesta que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, ou ainda quando o problema é de natureza hipotética ou o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 24 de abril de 2012, Kamberaj, C‑571/10, EU:C:2012:233, n.o 42 e jurisprudência aí referida).

44      No caso em apreço, o artigo 108.o da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias teve como consequência a extinção ex lege dos direitos de usufruto em causa nos processos principais. Assim, à semelhança do artigo 94.o da Lei do registo predial, este artigo está na origem das decisões de cancelamento em causa nos processos principais. Daqui resulta, por um lado, que a interpretação do direito da União que é solicitada no caso em apreço e que visa permitir ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a conformidade destas disposições nacionais com o referido direito tem uma relação certa com o objeto do litígio nos processos principais e, por outro, que as questões submetidas não têm um caráter hipotético.

45      A este respeito, no que se refere à afirmação do Governo húngaro segundo a qual o órgão jurisdicional de reenvio não pode decidir da manutenção dos direitos de usufruto suprimidos pelo artigo 108.o da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias e cancelados por força do artigo 94.o da Lei do registo predial, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, disposições como os artigos 49.o e 63.o TFUE, que são diretamente aplicáveis, podem ser invocadas perante o juiz nacional e conduzir à inaplicabilidade das regras nacionais que lhes são contrárias (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de novembro de 2002, Überseering, C‑208/00, EU:C:2002:632, n.o 60, e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 49 e jurisprudência aí referida).

46      Assim, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário, pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (Acórdão de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54 e jurisprudência aí referida).

47      Em terceiro lugar, o Governo húngaro alega que o órgão jurisdicional de reenvio questiona certos ensinamentos do Acórdão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) n.o 25, de 21 de julho de 2015, quando, por força do direito constitucional húngaro, as decisões do referido tribunal são vinculativas para os órgãos jurisdicionais de nível inferior.

48      A este respeito, importa recordar que, nos termos de uma jurisprudência constante, os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem de uma faculdade ilimitada de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão de interpretação das disposições pertinentes do direito da União e que uma regra de direito nacional não pode impedir um órgão jurisdicional nacional de fazer uso da referida faculdade. Esta faculdade é, com efeito, inerente ao sistema de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, e às funções de juiz responsável pela aplicação do direito da União confiadas por esta disposição aos órgãos jurisdicionais nacionais (v., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, EU:C:2016:199, n.os 32, 33 e jurisprudência aí referida). Assim, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que a existência de uma norma de direito interno que vincula os órgãos jurisdicionais que não decidem em última instância à apreciação jurídica feita por um órgão jurisdicional de grau superior não pode, por esse simples facto, privá‑los da referida faculdade (Acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.o 42).

49      Decorre de todo o exposto que os argumentos apresentados pelo Governo húngaro e que visam contestar a competência do Tribunal de Justiça para conhecer das questões prejudiciais ou a admissibilidade das mesmas devem ser afastados.

 Quanto ao mérito

 Quanto à aplicabilidade do artigo 49.o TFUE (liberdade de estabelecimento) e/ou do artigo 63.o TFUE (livre circulação de capitais)

50      As disposições nacionais em causa nos processos principais têm por objeto, em substância, suprimir ex lege os direitos de usufruto anteriormente adquiridos sobre terrenos agrícolas, quando os titulares desses direitos não satisfazem os requisitos a que a legislação nacional subordina doravante a aquisição dos referidos direitos de usufruto e, por conseguinte, organizar o cancelamento desses direitos anteriormente adquiridos do registo predial.

51      A título preliminar, há que recordar que, embora o artigo 345.o TFUE, a que se referiu o Governo húngaro nas suas observações, consagre o princípio da neutralidade dos Tratados no que toca ao regime de propriedade nos Estados‑Membros, este artigo não tem, todavia, por efeito subtrair os regimes de propriedade existentes nos Estados‑Membros às regras fundamentais do Tratado FUE [Acórdão de 22 de outubro de 2013, Essent e o., C‑105/12 a C‑107/12, EU:C:2013:677, n.os 29, 36 e jurisprudência aí referida, e Parecer 2/15 (Acordo de comércio livre com Singapura), de 16 de maio de 2017, EU:C:2017:376, n.o 107]. Assim, embora o referido artigo não ponha em causa a faculdade de os Estados‑Membros instituírem um regime de aquisição da propriedade fundiária, prevendo medidas específicas aplicáveis às transações que incidem sobre terrenos agrícolas e florestais, esse regime não escapa, designadamente, à regra da não discriminação, nem às regras relativas à liberdade de estabelecimento e à liberdade de movimentos de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 23 de setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg, C‑452/01, EU:C:2003:493, n.o 24 e jurisprudência aí referida).

52      Por outro lado, uma vez que as questões prejudiciais se referem simultaneamente às disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais, há que determinar a liberdade em causa nos litígios nos processos principais (v., neste sentido, Acórdão de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport‑ és Divatkereskedelmi, C‑385/12, EU:C:2014:47, n.o 20).

53      Para fazê‑lo, há que ter em consideração o objeto da regulamentação nacional em causa (Acórdão de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport‑ és Divatkereskedelmi, C‑385/12, EU:C:2014:47, n.o 21 e jurisprudência aí referida).

54      Tratando‑se de uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais, cujo objeto foi precisado no n.o 50 do presente acórdão, importa recordar que, quando o direito de adquirir, explorar e alienar bens imóveis no território de outro Estado‑Membro é exercido, enquanto complemento da liberdade de estabelecimento, gera movimentos de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 22 e jurisprudência aí referida).

55      Assim, embora esta regulamentação seja, a priori, suscetível de dizer respeito às duas liberdades fundamentais evocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é menos verdade que, no contexto que caracteriza os processos principais, as eventuais restrições à liberdade de estabelecimento decorrentes da referida regulamentação constituem uma consequência inelutável da restrição à liberdade de circulação de capitais e não justificam, assim, uma apreciação autónoma da mesma regulamentação à luz do artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2009, Glaxo Wellcome, C‑182/08, EU:C:2009:559, n.o 51 e jurisprudência aí referida).

56      Com efeito, os movimentos de capitais compreendem as operações pelas quais os não residentes efetuam investimentos imobiliários no território de um Estado‑Membro, como resulta da nomenclatura dos movimentos de capitais que consta do anexo I da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado CE [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO 1988, L 178, p. 5), conservando essa nomenclatura o valor indicativo que já detinha para definir o conceito de movimentos de capitais (Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 23 e jurisprudência aí referida).

57      Ora, inserem‑se neste conceito, designadamente, os investimentos imobiliários que têm por objeto a aquisição de um usufruto sobre terrenos agrícolas, como comprova, em especial, a precisão, contida nas notas explicativas que figuram no anexo I da Diretiva 88/361, segundo a qual a categoria dos investimentos imobiliários abrangidos por esta última inclui a aquisição de direitos de usufruto sobre propriedades construídas e não construídas.

58      No caso em apreço, relativamente ao processo C‑113/16, é facto assente que o litígio no processo principal diz respeito a um nacional austríaco, não residente na Hungria, que adquiriu contratualmente direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas situados neste Estado‑Membro, dos quais se viu em seguida privado devido à adoção das disposições nacionais em causa no processo principal. Esta situação diz, por conseguinte, respeito à livre circulação de capitais.

59      O mesmo se aplica à situação que caracteriza o processo C‑52/16. Com efeito, embora seja efetivamente facto assente que os direitos de usufruto em causa no referido processo foram adquiridos por uma sociedade comercial constituída na Hungria, resulta também do exposto na decisão de reenvio que esta sociedade foi constituída por pessoas singulares residentes noutro Estado‑Membro. Ora, como recordou o advogado‑geral no n.o 55 das suas conclusões, mesmo quando é levada a cabo através de uma pessoa coletiva constituída no Estado‑Membro em que se situam os bens em causa, uma aquisição imobiliária efetuada por não residentes é suscetível de estar abrangida pela livre circulação de capitais (v., neste sentido, Acórdãos de 11 de dezembro de 2003, Barbier, C‑364/01, EU:C:2003:665, n.os 58 e 59, e de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, C‑567/07, EU:C:2009:593, n.os 12, 13, 19, 20 e 39).

60      Daqui decorre que a regulamentação em causa nos processos principais deve ser analisada exclusivamente à luz da livre circulação de capitais.

 Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

61      Segundo jurisprudência constante, o artigo 63.o, n.o 1, TFUE proíbe, em termos gerais, os entraves aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros (Acórdão de 22 de outubro de 2013, Essent e o., C‑105/12 a C‑107/12, EU:C:2013:677, n.o 39 e jurisprudência aí referida).

62      No caso vertente, há que constatar que, pelo seu próprio objeto, uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais, que prevê a extinção dos direitos de usufruto adquiridos contratualmente sobre terrenos agrícolas, entre os quais figuram os que são detidos em virtude do exercício do direito à livre circulação de capitais, restringe, devido a esse simples facto, a referida liberdade. A eventual adoção, referida pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua segunda questão no processo C‑52/16, de uma medida de indemnização das pessoas que, após terem adquirido tais direitos, foram deste modo privadas deles por esta regulamentação não seria suscetível de afetar esta constatação.

63      Com efeito, a referida regulamentação priva o interessado tanto da possibilidade de continuar a gozar do direito que adquiriu, impedindo‑o, designadamente, de explorar os terrenos agrícolas em causa para os fins em vista dos quais adquiriu esse direito, como da possibilidade de o alienar.

64      Ora, ao privar, desta forma, os nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria, beneficiários da livre circulação de capitais, do gozo dos bens em que investiram capital, a regulamentação nacional em causa nos processos principais constitui um entrave a essa livre circulação.

65      Além disso, conforme decorre da jurisprudência constante, as medidas proibidas pelo artigo 63.o, n.o 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, compreendem nomeadamente as que são de molde a dissuadir os não residentes de fazerem investimentos num Estado‑Membro (Acórdãos de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 24 e jurisprudência aí referida, e de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, C‑567/07, EU:C:2009:593, n.o 21).

66      Daqui decorre que uma regulamentação nacional como a que está em causa nos processos principais constitui uma restrição à liberdade fundamental garantida no artigo 63.o TFUE.

67      Quanto à questão de saber se a referida regulamentação deve, além disso, ser considerada discriminatória, ponto sobre a qual incide a segunda questão submetida no processo C‑113/16, importa salientar, à semelhança do advogado‑geral no n.o 72 das suas conclusões, que uma exigência que tem por objeto a existência de uma relação familiar próxima entre o titular do usufruto e o proprietário da terra de cultivo, como sucede no presente caso, recorre a um critério aparentemente independente da nacionalidade do usufrutuário e da origem dos capitais, que, por conseguinte, não apresenta um caráter diretamente discriminatório.

68      Não obstante, há que salientar, em primeiro lugar, que a probabilidade de que este critério seja preenchido relativamente a nacionais de outros Estados‑Membros que adquiriram esse usufruto é relativamente baixa.

69      Com efeito, o contexto regulamentar nacional descrito nos n.os 5 e 6 do presente acórdão, bem como as medidas transitórias previstas no Ato de Adesão e recordadas nos n.os 3 e 4 deste mesmo acórdão, dos quais resulta que a aquisição, por pessoas que não possuam a nacionalidade húngara, da propriedade de terrenos agrícolas ficou sujeita, durante muitos anos, sucessivamente, a um regime de autorização prévia e em seguida a um regime de proibição, são suscetíveis de ter reduzido a possibilidade de essas terras se tornarem propriedade de estrangeiros e, por conseguinte, a probabilidade de que o titular estrangeiro de um direito de usufruto sobre esses terrenos satisfaça a exigência relativa à existência de uma relação familiar próxima com o proprietário da terra.

70      Em segundo lugar, a circunstância de, para as pessoas que não possuem a nacionalidade húngara, a única possibilidade de adquirir direitos reais imobiliários sobre terrenos agrícolas na Hungria, entre 1992 e 2002, ter consistido precisamente em adquirir direitos de usufruto sobre esses terrenos provocou um aumento do número de nacionais de outros Estados‑Membros titulares de um direito de usufruto sobre esses terrenos.

71      É certo que, nas suas observações escritas, o Governo húngaro alegou, a este respeito, que, dos mais de 100 000 titulares que foram afetados pela supressão dos seus direitos de usufruto e de uso resultante do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, apenas 5 058 eram nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria ou de países terceiros.

72      Todavia, admitindo que o órgão jurisdicional de reenvio, a quem compete esta apreciação, constate que estes dados numéricos são verdadeiros, esta circunstância não é, por si só, suscetível de pôr em causa o facto de que a regulamentação em causa nos processos principais prejudica especialmente os nacionais de outros Estados‑Membros em relação aos nacionais húngaros.

73      Com efeito, a existência eventual desta desvantagem deve ser medida comparando o grupo constituído pelos nacionais dos Estados‑Membros diferentes Hungria direta ou indiretamente titulares de direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas e o constituído pelos nacionais húngaros direta ou indiretamente titulares de tais direitos, e determinando a proporção em que cada um destes grupos se encontra afetado pela medida de extinção dos direitos ocorrida. Ora, tendo em conta os elementos mencionados nos n.os 68 a 70 do presente acórdão, parece provável que o primeiro destes grupos tenha sido afetado pela referida medida numa proporção claramente mais elevada do que o segundo (v., neste sentido, Acórdão de 9 de fevereiro de 1999, Seymour‑Smith e Perez, C‑167/97, EU:C:1999:60, n.o 59).

74      Nestas condições, sem prejuízo das verificações que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, afigura‑se que a regulamentação em causa nos processos principais pode funcionar mais em detrimento dos nacionais de outros Estados‑Membros do que dos nacionais húngaros, e que é assim suscetível de conter uma discriminação indireta fundada na nacionalidade do usufrutuário ou na origem dos capitais.

75      No entanto, mesmo sendo indiretamente discriminatório, não está excluído que o entrave à livre circulação de capitais resultante da referida regulamentação e identificado nos n.os 62 a 66 do presente acórdão, sendo caso disso, possa ser justificado.

 Quanto à justificação da restrição à livre circulação de capitais

76      Como decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, medidas como as que estão em causa nos processos principais, que restringem a liberdade de circulação de capitais ao terem, com toda a probabilidade, um efeito discriminatório indireto, só podem ser admitidas se forem justificadas, com base em considerações objetivas independentes da origem dos capitais em causa, por razões imperiosas de interesse geral, e se respeitarem o princípio da proporcionalidade, o que exige que sejam adequadas para garantir a realização do objetivo legitimamente prosseguido e que não ultrapassem o que é necessário para que este seja atingido (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de outubro de 2007, Geurts e Vogten, C‑464/05, EU:C:2007:631, n.o 24, e de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport‑ és Divatkereskedelmi, C‑385/12, EU:C:2014:47, n.os 41 e 42).

77      Da mesma maneira, estas medidas podem ser justificadas pelas razões mencionadas no artigo 65.o TFUE, desde que respeitem o referido princípio da proporcionalidade (Acórdão de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, C‑567/07, EU:C:2009:593, n.o 25 e jurisprudência aí referida).

78      Além disso, há que recordar, neste contexto, que uma regulamentação nacional só é apta a garantir a realização do objetivo invocado se corresponder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática (Acórdão de 26 de maio de 2016, Comissão/Grécia, C‑244/15, EU:C:2016:359, n.o 35 e jurisprudência aí referida).

79      Embora caiba, em última análise, ao juiz nacional, que tem competência exclusiva para apreciar os factos e para interpretar a legislação nacional, determinar se a mesma satisfaz essas exigências, o Tribunal de Justiça, chamado a dar respostas úteis àquele no âmbito de um reenvio prejudicial, tem competência para fornecer indicações, com base nos autos do processo principal e das observações escritas e orais que lhe foram apresentadas, suscetíveis de permitir ao órgão jurisdicional nacional decidir (v., neste sentido, Acórdão de 17 de julho de 2014, Leone, C‑173/13, EU:C:2014:2090, n.o 56 e jurisprudência aí referida).

80      No caso em apreço, a Hungria alegou que a regulamentação em causa nos processos principais é justificada, respetivamente, por razões imperiosas de interesse geral reconhecidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, a saber, em concreto, um objetivo de interesse geral relacionado com a exploração dos terrenos agrícolas, e por motivos referidos no artigo 65.o TFUE. No que se refere a este artigo, o referido governo invoca, mais precisamente, por um lado, a vontade de sancionar violações da regulamentação nacional em matéria de controlo das trocas e, por outro, a de, em nome da ordem pública, lutar contra práticas de aquisição abusivas.

–       Quanto à existência de uma justificação baseada num objetivo de interesse geral relacionado com a exploração dos terrenos agrícolas

81      Referindo‑se às considerações que figuram no Acórdão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) n.o 25, de 21 de julho de 2015, reproduzidas no n.o 24 do presente acórdão, o Governo húngaro alega que, na medida em que sujeita a aquisição de direitos de usufruto sobre terras de cultivo e a manutenção dos direitos deste tipo existentes ao requisito de o usufrutuário ter a qualidade de familiar próximo do proprietário do bem em causa, a regulamentação em causa nos processos principais prossegue objetivos de interesse geral. Assim, esta regulamentação visa reservar a propriedade das terras de cultivo às pessoas que as trabalham e impedir a aquisição dessas terras para fins puramente especulativos, bem como permitir a sua exploração por novas empresas, facilitar a criação de propriedades de um tamanho que permita uma produção agrícola viável e competitiva e evitar a fragmentação dos terrenos agrícolas, o êxodo rural e o despovoamento dos campos.

82      A este respeito, o Tribunal de Justiça admitiu que regulamentações nacionais possam restringir a livre circulação de capitais em nome de objetivos como os de preservar a exploração direta dos terrenos agrícolas e procurar que as propriedades agrícolas sejam predominantemente habitadas e exploradas pelos seus proprietários, bem como manter uma população permanente no meio rural para efeitos de ordenamento do território e favorecer uma utilização racional dos terrenos disponíveis, lutando contra a pressão fundiária. Estes objetivos correspondem, aliás, aos da política agrícola comum, que, nos termos do artigo 39.o, n.o 1, alínea b), TFUE, visa «assegurar […] um nível de vida equitativo à população agrícola», e cuja elaboração deve ter em conta, segundo o artigo 39.o, n.o 2, alínea a), TFUE, «a natureza particular da atividade agrícola decorrente da estrutura social da agricultura e das disparidades estruturais e naturais entre as diversas regiões agrícolas» (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.os 27, 28 e jurisprudência aí referida).

83      O mesmo se aplica no que se refere aos objetivos que consistem em conservar uma repartição da propriedade fundiária que permita o desenvolvimento de explorações viáveis e a manutenção harmoniosa do espaço e das paisagens (Acórdão de 23 de setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg, C‑452/01, EU:C:2003:493, n.o 39).

84      No caso em apreço, importa, todavia, verificar, conforme recordado no n.o 76 do presente acórdão, se a regulamentação em causa nos processos principais é efetivamente justificada por considerações objetivas, independentes da origem dos capitais em causa, e se esta é adequada para garantir a realização dos objetivos legítimos de interesse geral e não ultrapassa o que é necessário para os atingir.

85      Neste contexto, cumpre também recordar que as razões justificativas suscetíveis de ser invocadas por um Estado‑Membro devem ser acompanhadas das provas apropriadas ou de uma análise da adequação e da proporcionalidade da medida restritiva adotada por esse Estado, bem como dos elementos precisos que permitam sustentar a sua argumentação (v., por analogia, Acórdão de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o., C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 54 e jurisprudência aí referida). Assim, se um Estado‑Membro tencionar invocar um objetivo adequado para legitimar o entrave à livre circulação de capitais resultante de uma medida nacional restritiva, cabe‑lhe apresentar ao tribunal que vai julgar essa questão todos os elementos suscetíveis de permitir a esse tribunal assegurar‑se de que a referida medida satisfaz efetivamente as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade (v., por analogia, Acórdão de 8 de setembro de 2010, Stoß e o., C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, EU:C:2010:504, n.o 71).

86      A este respeito, em primeiro lugar, importa observar que, como designadamente alegou a Comissão e como salientou o advogado‑geral nos n.os 111 a 113 das suas conclusões, uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais, que só permite a manutenção de direitos de usufruto existentes sobre terras de cultivo principal se o usufrutuário for um familiar próximo do respetivo proprietário, não se afigura adequada para prosseguir os objetivos invocados pelo Governo húngaro e com os quais não apresenta nenhuma relação direta.

87      Com efeito, a existência da relação familiar exigida não é suscetível garantir que o usufrutuário explore ele próprio o terreno em causa e que o mesmo não tenha adquirido o direito de usufruto em causa para fins puramente especulativos. Da mesma maneira, nada permite considerar, a priori, que um terceiro relativamente à família do proprietário que adquiriu um direito de usufruto sobre esse terreno não esteja em condições de o explorar ele próprio e que a aquisição tenha necessariamente sido realizada com fins puramente especulativos, sem qualquer intenção de cultivar o referido terreno.

88      Por outro lado, também não resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que este requisito relativo à existência de uma relação familiar próxima entre o proprietário e o usufrutuário, previsto pela regulamentação nacional em causa nos processos principais, possa contribuir para o apoio e desenvolvimento de uma agricultura viável e competitiva, nomeadamente evitando a fragmentação dos terrenos.

89      Além disso, deve observar‑se que o requisito relativo à existência da relação familiar próxima, por si só, também não se afigura suscetível de garantir a realização do objetivo alegado, com vista a evitar o êxodo rural e o despovoamento dos campos. Com efeito, o critério escolhido pelo legislador nacional no caso vertente não está ligado ao objetivo de prover à manutenção da população em meio rural, na medida em que a circunstância de o usufrutuário ter uma relação familiar próxima com o proprietário não implica necessariamente que o referido usufrutuário resida na proximidade dos terrenos agrícolas em causa.

90      Em segundo lugar, em todo o caso, a regulamentação em causa nos processos principais vai além do que é necessário para atingir os objetivos alegados pelo Governo húngaro.

91      Por um lado, no que diz respeito à inexistência de indemnização dos titulares do direito de usufruto, o Governo húngaro alegou, de facto, que os referidos titulares deviam poder obter uma indemnização no âmbito de um acordo a celebrar entre as partes, segundo as regras do direito civil húngaro. Todavia, e em todo o caso, essa remissão para as regras gerais do direito civil faz recair sobre esses titulares o ónus de ter de proceder à cobrança de eventuais indemnizações que lhes podem ser devidas pelo proprietário do terreno, mediante processos que se podem revelar longos e dispendiosos. Com efeito, estas regras do direito civil, a que a regulamentação em causa nos processos principais não faz, aliás, nenhuma referência, não permitem determinar com facilidade se podem efetivamente ser obtidas indemnizações através desses processos nem saber qual será a sua natureza. Além disso, os titulares de direitos de usufruto também não têm a certeza de poderem obter a plena indemnização pela perda que sofreram, nomeadamente em caso de insolvência do proprietário do terreno sobre o qual incide o direito de usufruto.

92      Por outro lado, afigura‑se que poderiam ter sido adotadas outras medidas, menos lesivas para a liberdade de movimento de capitais do que as previstas pela regulamentação em causa nos processos principais, para assegurar que a existência de um direito de usufruto sobre uma terra de cultivo não tenha como consequência a suspensão da sua exploração pela pessoa que a detém ou que a aquisição de um direito deste tipo não corresponda a fins puramente especulativos nem conduza a uma utilização ou a uma fragmentação que representem um risco de incompatibilidade com a afetação durável dos terrenos às necessidades da agricultura.

93      A este respeito, teria sido possível, por exemplo, como salientou o advogado‑geral no n.o 114 das suas conclusões, exigir ao usufrutuário que mantenha a afetação agrícola do terreno em causa, sendo caso disso, assegurando ele próprio e de maneira efetiva a exploração, em condições adequadas a garantir a respetiva viabilidade. De resto, parece resultar das explicações dadas pelo Governo húngaro que foi privilegiada uma exigência deste tipo no caso de aquisição da propriedade plena de um terreno agrícola ou do seu arrendamento a longo prazo. Ora, à luz dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, não se afigura que uma solução deste tipo não tivesse podido ser adotada no que respeita às aquisições de direitos de usufruto.

94      Dado que, à luz do que antecede, a regulamentação nacional em causa nos processos principais não se afigura adequada a garantir de maneira coerente a realização dos objetivos de interesse geral relacionados com a exploração dos terrenos agrícolas alegados, nem limitada às medidas necessárias para prosseguir esses objetivos, os entraves à livre circulação de capitais que esta acarreta não podem ser justificados pelos referidos objetivos.

–       Quanto à existência de uma justificação relacionada com a violação da regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios

95      O artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE dispõe que o artigo 63.o TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública. Por força do artigo 65.o, n.o 3, TFUE, estas medidas e procedimentos não devem contudo constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.o TFUE.

96      A este respeito, há que recordar que, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, o artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE deve ser objeto de interpretação estrita (v., neste sentido, Acórdão de 14 de setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer, C‑386/04, EU:C:2006:568, n.o 31).

97      No caso em apreço, o Governo húngaro alega que, uma vez que aquisições de usufruto como as que estão em causa nos processos principais tiveram lugar antes de 1 de janeiro de 2002 e que foram realizadas por não residentes na aceção da regulamentação nacional aplicável em matéria de controlo de câmbios, deviam ter sido sujeitas, por força da referida regulamentação, a uma autorização emitida pela autoridade responsável pelos câmbios, a saber, o Banco Nacional da Hungria. Ora, decorre de uma indicação fornecida por esta última instituição que, no que diz respeito à aquisição de direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas, nunca foi solicitada nenhuma autorização de câmbio. Segundo o Governo húngaro, daqui decorre que as aquisições que tiveram por objeto os direitos de usufruto em causa nos processos principais eram inválidas.

98      Importa recordar que, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, que é baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos é da competência do juiz nacional (Acórdão de 8 de maio de 2008, Danske Svineproducenter, C‑491/06, EU:C:2008:263, n.o 23 e jurisprudência aí referida). Da mesma forma, compete exclusivamente aos órgãos jurisdicionais nacionais interpretar a legislação nacional (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2013, Križan e o., C‑416/10, EU:C:2013:8, n.o 58 e jurisprudência aí referida). Por último, cabe exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional definir o objeto das questões que, em seu entender, devem ser submetidas ao Tribunal de Justiça (Acórdão de 1 de outubro de 2009, Gaz de France — Berliner Investissement, C‑247/08, EU:C:2009:600, n.o 19 e jurisprudência aí referida).

99      Ora, cumpre observar que, no caso vertente, as decisões de reenvio não contêm nenhuma indicação quanto às circunstâncias factuais particulares que envolveram as aquisições dos direitos de usufruto em causa nos litígios nos processos principais nem qualquer menção de eventuais vícios que as possam ter afetado por força do direito nacional.

100    Por outro lado, resulta das referidas decisões que os litígios nos processos principais não versam sobre a legalidade das referidas aquisições originais, mas sobre a supressão dos direitos de usufruto em causa nos processos principais, por força de uma regulamentação nacional de aplicação geral que decide a supressão de todos os usufrutos que não são detidos por um familiar próximo do proprietário do terreno, independentemente das circunstâncias particulares que podem ter envolvido essas aquisições.

101    Por conseguinte, para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, importa apenas verificar se a regulamentação em causa nos processos principais é ou não suscetível de ser justificada por uma vontade de sancionar infrações à regulamentação húngara sobre o controlo de câmbios.

102    A este respeito, em primeiro lugar, deve salientar‑se que, à luz dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, não se afigura que a regulamentação relativa ao controlo de câmbios tenha efetivamente tido como consequência sujeitar as aquisições de usufrutos por não residentes a uma autorização de câmbio, sob pena de invalidade da referida aquisição, nem que a adoção da regulamentação em causa nos processos principais tenha sido guiada pela vontade de sancionar as violações dessa regulamentação.

103    Além disso, no que se refere ao primeiro destes dois aspetos, resulta das observações do Governo húngaro que nunca foi solicitada nenhuma autorização deste tipo para adquirir um usufruto sobre terras de cultivo e que, não obstante esta circunstância, muitos direitos de usufruto adquiridos por não residentes, sem essa autorização, deram lugar a inscrições nos registos prediais.

104    No que diz respeito ao segundo aspeto, há que recordar que a regulamentação em causa nos processos principais prevê a extinção sistemática dos direitos de usufruto detidos sobre terrenos agrícolas por pessoas que não podem justificar uma relação familiar próxima com o proprietário do imóvel em causa. Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 94 das suas conclusões, este critério de relação familiar não tem nenhuma relação com a regulamentação em matéria de controlo de câmbios. Além disso, por efeito do referido critério, a supressão dos direitos de usufruto aplica‑se não só aos não residentes mas também aos residentes, tendo, aliás, o próprio Governo húngaro afirmado nos seus articulados que, em cerca 100 000 titulares de direitos de usufruto ou de uso afetados por esta medida de supressão, aproximadamente 95 000 eram nacionais húngaros.

105    Em segundo lugar, e admitindo que a adoção da regulamentação em causa nos processos principais tenha, pelo menos em parte, sido guiada pela vontade de sancionar violações das regras aplicáveis em matéria de controlo de câmbios, o que caberá, sendo caso disso, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, continua a ser necessário garantir que a medida de supressão de direitos de usufruto que a referida regulamentação prevê não é desproporcionada em relação a esse objetivo.

106    A este respeito, como salientou o advogado‑geral nos n.os 95 e 98 das suas conclusões, é manifesto que podiam ter sido adotadas outras medidas, menos amplas nos seus efeitos do que a supressão dos direitos reais em causa, para sancionar ab initio eventuais infrações à regulamentação aplicável em matéria de controlo de câmbios, como por exemplo coimas (v., por analogia, Acórdão de 1 de dezembro de 2005, Burtscher, C‑213/04, EU:C:2005:731, n.o 60).

107    Tendo em conta todo o exposto, não se afigura que uma regulamentação nacional como a que está em causa nos processos principais, admitindo que tenha sido efetivamente guiada pela vontade de sancionar ou de corrigir violações à regulamentação relativa ao controlo de câmbios, possa ser considerada uma medida proporcionada para esse efeito nem, por conseguinte, justificada, a esse título, ao abrigo do artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE.

–       Quanto à existência de uma justificação baseada na luta contra as práticas que visam contornar a lei nacional, em nome da proteção da ordem pública

108    Conforme foi recordado no n.o 95 do presente acórdão, o artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE dispõe, designadamente, que o artigo 63.o TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

109    A título preliminar, há que salientar que, como foi precisado nos n.os 6 e 7 do presente acórdão e conforme resulta das explicações relativas ao direito nacional fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, depois das alterações legislativas introduzidas em 1991 e 1994, para proibir a aquisição de terrenos agrícolas às pessoas singulares que não possuam a nacionalidade húngara e às pessoas coletivas, qualquer pessoa continuava, contudo, a poder adquirir um direito de usufruto sobre esses terrenos. Segundo essas mesmas explicações, só a partir de 1 de janeiro de 2002 é que a Lei de 1994 foi alterada, de forma a excluir também a possibilidade de constituir contratualmente um direito de usufruto sobre os terrenos agrícolas em benefício dessas pessoas singulares ou coletivas.

110    Assim, como decorre aliás expressamente das indicações fornecidas pelo Governo húngaro e reproduzidas nos n.os 16 e 30 do presente acórdão, é facto assente que os direitos de usufruto em causa nos processos principais foram constituídos antes de 1 de janeiro de 2002, isto é, numa época em que a constituição desses usufrutos não era proibida pela legislação nacional em vigor. É também facto assente que os referidos usufrutos foram objeto de registo nos registos prediais pelas autoridades públicas competentes.

111    Contudo, o Governo húngaro alega que aquisições como as que têm por objeto os direitos de usufruto em causa nos processos principais foram celebradas em fraude à lei, para contornar a proibição legal das pessoas singulares que não possuem a nacionalidade húngara e das pessoas coletivas de adquirirem a propriedade de terrenos agrícolas.

112    Segundo o Governo húngaro, a manutenção deste tipo de situações era contrária à ordem pública, pelo que incumbia ao Estado solucioná‑la. A este respeito, o legislador húngaro, em vez de recorrer à solução mais clássica, que consiste em, na sequência de uma apreciação judicial feita casuisticamente, declarar que os contratos em causa eram nulos, decidiu solucionar ex lege as deficiências da norma anteriormente instituída, ou até a inexistência de norma pertinente. Esta solução teria sido privilegiada, nomeadamente por razões de ordem orçamental e de economia de meios da justiça, tendo em conta tanto o grande número de processos que poderiam dar origem a essa apreciação como a necessidade de reformar a legislação relativa à aquisição de terrenos agrícolas antes de 1 de maio de 2014, data em que o regime transitório decorrente do Ato de Adesão de 2003 devia terminar.

113    A este respeito, cumpre todavia indicar que, tendo em conta a jurisprudência recordada no n.o 98 do presente acórdão e as considerações expostas nos n.os 99 e 100 deste mesmo acórdão, para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça não tem de analisar as circunstâncias particulares que envolveram a aquisição dos direitos de usufruto em causa nos processos principais. Para este efeito, incumbia‑lhe apenas verificar se a regulamentação em causa nos processos principais é ou não suscetível de ser justificada por uma vontade de lutar contra práticas cujo objeto era contornar a lei nacional e, por conseguinte, como defende o Governo húngaro, por razões de ordem pública na aceção do artigo 65.o TFUE.

114    No que se refere à luta contra práticas que têm por objeto contornar a lei nacional, o Tribunal de Justiça já admitiu que uma medida nacional que restrinja uma liberdade fundamental podia, sendo caso disso, ser justificada quando vise lutar contra os expedientes puramente artificiais cuja finalidade é fugir à alçada da legislação nacional em causa (Acórdão de 1 de abril de 2014, Felixstowe Dock and Railway Company e o., C‑80/12, EU:C:2014:200, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

115    Todavia, é também jurisprudência constante que uma medida nacional deste tipo só é admissível na medida em que visa especificamente os expedientes artificiais que prosseguem essa finalidade (v., neste sentido, Acórdãos de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, C‑196/04, EU:C:2006:544, n.os 51, 55 e jurisprudência aí referida, e de 13 de março de 2007, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, C‑524/04, EU:C:2007:161, n.os 72 e 74).

116    Isto exclui, designadamente, qualquer estabelecimento de uma presunção geral de práticas abusivas que baste para justificar uma restrição à livre circulação de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2009, Comissão/Itália, C‑540/07, EU:C:2009:717, n.o 58 e jurisprudência aí referida).

117    Para ser conforme ao princípio da proporcionalidade, uma medida que prossegue esse objetivo específico de luta contra os expedientes puramente artificiais deve, pelo contrário, permitir ao órgão jurisdicional nacional proceder a um exame casuístico, tomando em consideração as particularidades de cada situação concreta e baseando‑se em elementos objetivos, para ter em conta o comportamento abusivo ou fraudulento das pessoas em causa (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2009, Glaxo Wellcome, C‑182/08, EU:C:2009:559, n.o 99).

118    Ora, afigura‑se que uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais não satisfaz nenhuma das exigências assim recordadas nos n.os 115 a 117 do presente acórdão.

119    Em primeiro lugar, embora pareça decorrer dos excertos do Acórdão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) n.o 25, de 21 de julho de 2015, reproduzidos no n.o 25 do presente acórdão, que a regulamentação em causa nos processos principais tendia, pelo menos parcialmente, a eliminar os efeitos jurídicos de uma prática de aquisição dos terrenos agrícolas por força da qual o direito de usufruto era aplicado de maneira disfuncional, esses mesmos excertos revelam igualmente que essa eliminação foi sobretudo considerada necessária para realizar plenamente o objetivo estratégico nacional pretendido pelo novo dispositivo jurídico implementado, a saber, que as terras de cultivo deviam ser apenas propriedade das pessoas singulares que as trabalham.

120    Nestas condições, não se pode considerar que esta regulamentação prossegue o fim específico de lutar contra comportamentos que tenham consistido em criar expedientes artificiais cujo fim fosse escapar à alçada da legislação nacional relativa às aquisições de terrenos agrícolas. A este respeito, há, além disso, que recordar que esta regulamentação visa, de maneira geral, a supressão ex lege de todos os direitos de usufruto detidos por pessoas coletivas ou por pessoas singulares, na medida em que estas não possam provar uma relação familiar próxima com o proprietário do terreno agrícola, sem de forma alguma ligar essas supressões às razões que conduziram os interessados a proceder a essas aquisições (v., por analogia, Acórdão de 12 de dezembro de 2002, Lankhorst‑Hohorst, C‑324/00, EU:C:2002:749, n.o 37).

121    Em segundo lugar, e admitindo que se possa considerar que a regulamentação em causa nos processos principais foi adotada com esse objetivo específico de luta contra os expedientes artificiais, não pode razoavelmente inferir‑se da simples circunstância de o titular de um direito de usufruto sobre um terreno agrícola ser uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular que não tem a qualidade de familiar próximo do proprietário desta terra que essa pessoa tenha agido abusivamente no momento em que adquiriu esse direito de usufruto. Como recordado no n.o 116 do presente acórdão, o estabelecimento de uma presunção geral de práticas abusivas não pode ser admitido.

122    Assim, outras medidas, menos lesivas para a livre circulação de capitais, como sanções ou ações específicas de declaração da nulidade perante o juiz nacional para lutar contra eventuais situações em que se verifique o contorno da legislação nacional aplicável poderiam ser previstas para efeitos de lutar contra essas práticas abusivas, desde que respeitem as restantes exigências decorrentes do direito da União.

123    A este respeito, a argumentação do Governo húngaro relativa a considerações de ordem orçamental e de economia de meios da justiça não pode ser admitida. Além disso, é jurisprudência constante que motivos de natureza meramente económica não podem constituir razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de justificar uma restrição a uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado (Acórdão de 17 de março de 2005, Kranemann, C‑109/04, EU:C:2005:187, n.o 34 e jurisprudência aí referida). O mesmo se aplica às considerações de ordem meramente administrativa (v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 1999, Arblade e o., C‑369/96 e C‑376/96, EU:C:1999:575, n.o 37 e jurisprudência aí referida).

124    As considerações anteriores bastam para excluir que a restrição à livre circulação de capitais instituída por uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais possa ser justificada pela vontade de lutar contra expedientes puramente artificiais, cujo objetivo era escapar à alçada da legislação nacional aplicável em matéria de aquisição de propriedades agrícolas.

125    Por último, quanto ao artigo 65.o TFUE, basta salientar que, admitindo que a necessidade de um Estado‑Membro de lutar contra expedientes puramente artificiais que visam contornar uma proibição de aquisição da propriedade de terrenos agrícolas possa também estar incluída no conceito de razões de ordem pública na aceção desse artigo, resulta, em todo o caso, dos n.os 115 a 124 do presente acórdão que, se não satisfizer, designadamente, as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, a regulamentação em causa nos processos principais não pode tão‑pouco ser justificada ao abrigo do referido artigo.

126    Tendo em conta as considerações anteriores, há que declarar que, admitindo que seja efetivamente guiada por uma vontade de lutar contra práticas abusivas que visam contornar a legislação nacional aplicável em matéria de aquisições de propriedades agrícolas, uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais não pode ser considerada proporcionada a este fim.

–       Quanto aos artigos 17.o e 47.o da Carta

127    Como resulta das considerações feitas nos n.os 81 a 126 do presente acórdão, uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais que constitui um entrave à livre circulação de capitais não pode ser justificada, em conformidade com o princípio da proporcionalidade, nem por razões imperiosas de interesse geral admitidas pela jurisprudência nem com base no artigo 65.o TFUE, de modo que viola o artigo 63.o TFUE.

128    Nestas condições, para efeitos da resolução dos litígios nos processos principais, não é necessário analisar as referidas regulamentações nacionais à luz dos artigos 17.o e 47.o da Carta.

129    Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, por força da qual os direitos de usufruto anteriormente constituídos sobre terrenos agrícolas e cujos titulares não têm a qualidade de familiar próximo do proprietário dessas terras se extinguem ex lege e, por conseguinte, são cancelados do registo predial.

 Quanto às despesas

130    Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, por força da qual os direitos de usufruto anteriormente constituídos sobre terrenos agrícolas e cujos titulares não têm a qualidade de familiar próximo do proprietário dessas terras se extinguem ex lege e, por conseguinte, são cancelados do registo predial.

Assinaturas


*      Língua do processo: húngaro.