Language of document : ECLI:EU:C:2003:270

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

13 de Maio de 2003 (1)

«Livre prestação de serviços - Artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) e 60.° do Tratado CE (actual artigo 50.° CE) - Seguro de doença - Sistema de prestações em espécie - Sistema convencionado - Despesas médicas efectuadas noutro Estado-Membro - Autorização prévia - Critérios - Justificações»

No processo C-385/99,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pelo Centrale Raad van Beroep (Países Baixos), destinado a obter, nos litígios pendentes neste órgão jurisdicional entre

V. G. Müller-Fauré

e

Onderlinge Waarborgmaatschappij OZ Zorgverzekeringen UA,

e entre

E. E. M. van Riet

e

Onderlinge Waarborgmaatschappij ZAO Zorgverzekeringen,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) e 60.° do Tratado CE (actual artigo 50.° CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, M. Wathelet (relator), R. Schintgen e C. W. A. Timmermans, presidentes de secção, D. A. O. Edward, A. La Pergola, P. Jann, F. Macken, N. Colneric, S. von Bahr e J. N. Cunha Rodrigues, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,


secretário: H. A. Rühl, administrador principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação de V. G. Müller-Fauré, por J. Blom, advocaat,

-    em representação da Onderlinge Waarborgmaatschappij OZ Zorgverzekeringen UA, por J. K. de Pree, advocaat,

-    em representação do Governo neerlandês, por M. A. Fierstra, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo belga, por P. Rietjens, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo dinamarquês, por J. Molde, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo alemão, por W.-D. Plessing e B. Muttelsee-Schön, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo espanhol, por N. Díaz Abad, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo irlandês, por M. A. Buckley, na qualidade de agente, assistido por N. Hyland, BL,

-    em representação do Governo italiano, por U. Leanza, na qualidade de agente, assistido por I. M. Braguglia, avvocato dello Stato,

-    em representação do Governo sueco, por A. Kruse, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo do Reino Unido, por R. Magrill, na qualidade de agente, assistida por S. Moore, barrister,

-    em representação do Governo islandês, por E. Gunnarsson e H. S. Kristjánsson, bem como por V. Hauksdóttir, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo norueguês, por H. Seland, na qualidade de agente,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por P. Hillenkamp e H. M. H. Speyart, na qualidade de agentes,

vistas as observações escritas complementares apresentadas a pedido do Tribunal,

-    em representação de E. E. M. van Riet, por A. A. J. van Riet,

-    em representação da Onderlinge Waarborgmaatschappij OZ Zorgverzekeringen UA, por J. K. de Pree,

-    em representação da Onderlinge Waarborgmaatschappij ZAO Zorgverzekeringen, por H. H. B. Limberger, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo espanhol, por N. Díaz Abad,

-    em representação do Governo irlandês, por D. J. O'Hagan, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo sueco, por A. Kruse,

-    em representação do Governo do Reino Unido, por D. Wyatt, na qualidade de agente, assistido por S. Moore,

-    em representação do Governo norueguês, por H. Seland,

-    em representação da Comissão, por H. M. H. Speyart,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Onderlinge Waarborgmaatschappij OZ Zorgverzekeringen UA, representada por J. K. de Pree, da Onderlinge Waarborgmaatschappij ZAO Zorgverzekeringen, representada por R. Out, na qualidade de agente, do Governo neerlandês, representado por H. G. Sevenster, do Governo dinamarquês, representado por J. Molde, do Governo espanhol, representado por N. Díaz Abad, do Governo irlandês, representado por A. Collins, BL, do Governo finlandês, representado por T. Pynnä, na qualidade de agente, do Governo do Reino Unido, representado por D. Lloyd-Jones, QC, e da Comissão, representada por H. Michard, na qualidade de agente, e H. M. H. Speyart, na audiência de 10 de Setembro de 2002,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 22 de Outubro de 2002,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por despacho de 6 de Outubro de 1999, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de Outubro seguinte, o Centrale Raad van Beroep submeteu, nos termos do artigo 234.° CE, três questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) e 60.° do Tratado CE (actual artigo 50.° CE).

2.
    Estas questões foram suscitadas no quadro de dois litígios que opõem, por um lado, V. G. Müller-Fauré à Onderlinge Waarborgmaatschappij OZ Zorgverzekeringen UA (Caixa Mútua de Seguro de Doença, a seguir «Caixa de Zwijndrecht»), estabelecida em Zwijndrecht (Países Baixos), e, por outro, E. E. M. van Riet à Onderlinge Waarborgmaatschappij ZAO Zorgverzekeringen (a seguir «Caixa de Amsterdão»), estabelecida em Amsterdão (Países Baixos), a propósito do reembolso de despesas médicas efectuadas, respectivamente, na Alemanha e na Bélgica.

Enquadramento jurídico nacional

3.
    Nos Países Baixos, o regime do seguro de doença assenta, nomeadamente, na Ziekenfondswet (lei relativa às caixas de seguro de doença), de 15 de Outubro de 1964 (Staatsblad 1964, n.° 392), ulteriormente modificada (a seguir «ZFW»), e na Algemene Wet Bijzondere Ziektekosten (lei relativa ao seguro geral das despesas de doença especiais), de 14 de Dezembro de 1967 (Staatsblad 1967, n.° 617), também ulteriormente modificada (a seguir «AWBZ»). Tanto a ZFW como a AWBZ instituem um regime de prestações em espécie, por força do qual os segurados têm direito não ao reembolso das despesas efectuadas com cuidados médicos mas aos próprios cuidados médicos, dispensados gratuitamente. Estas duas legislações assentam num sistema convencionado entre as caixas de seguro de doença e os prestadores de cuidados de saúde.

4.
    Resulta dos artigos 2.° a 4.° da ZFW que estão obrigatoriamente e de pleno direito seguros, ao abrigo desta lei, os trabalhadores cujo rendimento anual não exceda um limite estabelecido pela mesma, as pessoas que lhes são equiparadas e os beneficiários de prestações sociais, bem como os membros da sua família que se encontrem a seu cargo e que façam parte do seu agregado familiar.

5.
    Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da ZFW, qualquer pessoa a quem esse diploma seja aplicável e que pretenda exercer um direito ao abrigo dessa legislação deve estar inscrita numa caixa de seguro de doença activa na sua área de residência.

6.
    O artigo 8.° da ZFW prevê:

«1.    Os segurados têm direito a prestações que lhes garantam os cuidados médicos necessários quando não tenham qualquer direito a essa assistência ao abrigo da Algemene Wet Bijzondere Ziektekosten [...]. As caixas de seguro de doença actuarão de modo a que este direito possa ser exercido pelos segurados nelas inscritos.

2.    A natureza, o conteúdo e o alcance das prestações serão definidos por força ou ao abrigo de um decreto real, incluindo sempre tais prestações a assistência médica, cujo alcance será estabelecido, bem como os cuidados e o tratamento garantidos nas categorias de instituições a indicar. A este respeito, a dispensa de uma prestação pode ser subordinada a uma comparticipação financeira por parte do segurado; a referida comparticipação não tem de ser igual para todos os segurados.

[...]»

7.
    O Verstrekkingenbesluit Ziekenfondsverzekering (decreto relativo às prestações em espécie ao abrigo do seguro de doença), de 4 de Janeiro de 1966 (Staatsblad 1966, n.° 3), ulteriormente modificado (a seguir «Verstrekkingenbesluit»), dá execução ao artigo 8.°, n.° 2, da ZFW.

8.
    O Verstrekkingenbesluit determina, assim, os direitos a prestações e o âmbito destas no que respeita a diversas categorias de cuidados, entre as quais figuram, designadamente, as categorias intituladas «assistência médica e cirúrgica» e «hospitalização e internamento em estabelecimentos hospitalares».

9.
    O sistema convencionado instaurado pela ZFW apresenta as seguintes características principais.

10.
    O artigo 44.°, n.° 1, da ZFW prevê que as caixas de seguro de doença «celebrarão convénios com pessoas e instituições que dispensem uma ou várias formas de cuidados médicos, como os referidos no decreto real adoptado em execução do artigo 8.°».

11.
    De acordo com o artigo 44.°, n.° 3, da ZFW, esses convénios devem, no mínimo, incluir disposições relativas à natureza e ao âmbito das obrigações e dos direitos que as partes têm uma para com a outra, aos tipos de cuidados a ministrar, à qualidade e à eficácia dos cuidados dispensados, ao controlo do respeito do convénio, designadamente das prestações a fornecer ou fornecidas e da exactidão dos montantes contabilizados por essas prestações, bem como a obrigação de comunicar os dados necessários a esse controlo.

12.
    As caixas de seguro de doença podem celebrar convénios com qualquer prestador de cuidados de saúde, desde que respeitem uma dupla condição. Por um lado, resulta do artigo 47.° da ZFW que as caixas de seguro de doença «são obrigadas a celebrar convénios [...] com os estabelecimentos situados na região onde desenvolvem as suas actividades ou aos quais a população dessa região normalmente recorre». Por outro lado, os convénios só podem ser celebrados com estabelecimentos devidamente autorizados a dispensar os cuidados em causa ou com pessoas legalmente habilitadas a fazê-lo.

13.
    De acordo com o artigo 8.°a da ZFW:

«1.    Um estabelecimento que forneça prestações como as referidas no artigo 8.° deve dispor de uma autorização para o efeito.

2.    Pode prever-se, por decreto real, que um estabelecimento pertencente a uma categoria a definir por decreto real está autorizado para efeitos desta lei. [...]»

14.
    Resulta do artigo 8.°c, alínea a), da ZFW que deve ser recusada a aprovação de um estabelecimento que gere instalações hospitalares caso esse estabelecimento não satisfaça as disposições da Wet ziekenhuisvoorzieningen (lei sobre os equipamentos hospitalares) em matéria de repartição e de necessidades. Esta lei, as suas directivas de execução (designadamente, a directiva baseada no artigo 3.° da referida lei, Nederlandse Staatscourant 1987, n.° 248), bem como os planos provinciais determinam, de forma mais detalhada, as necessidades nacionais no que respeita a diversas categorias de estabelecimentos hospitalares, do mesmo modo que a sua repartição entre as diversas regiões definidas, no território neerlandês, em matéria de saúde.

15.
    Relativamente ao exercício concreto do direito à prestação, o artigo 9.° da ZFW prevê:

«1.    O segurado que pretenda exercer o seu direito à prestação dirigir-se-á, salvo nos casos indicados pelo decreto real referido no artigo 8.°, n.° 2, a uma pessoa ou a um estabelecimento com a qual ou com o qual a caixa de seguro de doença onde está inscrito tenha celebrado um convénio para esse fim, sem prejuízo do disposto no n.° 4.

2.    O segurado pode escolher entre as pessoas e os estabelecimentos indicados no n.° 1, sem prejuízo do disposto no n.° 5 e das disposições relativas ao transporte em ambulância, na acepção da Wet ambulancevervoer [(lei sobre o transporte em ambulância), Staatsblad 1967, n.° 369].

3.    [revogado]

4.    Uma caixa de seguro de doença pode, em derrogação às disposições dos n.os 1 e 2, autorizar um segurado a dirigir-se, para exercer o seu direito à prestação, a outra pessoa ou a outro estabelecimento nos Países Baixos, se o tratamento médico o exigir. O ministro poderá estabelecer em que casos e condições um segurado pode ser autorizado a dirigir-se, para exercer o seu direito à prestação, a uma pessoa ou a um estabelecimento fora dos Países Baixos.

[...]»

16.
    O ministro fez uso da competência que o artigo 9.°, n.° 4, último período, da ZFW lhe confere, tendo adoptado a Regeling hulp in het buitenland ziekenfondsverzekering (regulamento sobre os cuidados médicos no estrangeiro no quadro do seguro de doença), de 30 de Junho de 1988 (Nederlandse Staatscourant 1988, n.° 123, a seguir «Rhbz»). O artigo 1.° do Rhbz prevê:

«Deve entender-se por casos em que uma caixa de seguro de doença pode autorizar um segurado a dirigir-se, para exercer o seu direito à prestação, a uma pessoa ou a um estabelecimento fora dos Países Baixos aqueles casos em que a caixa de seguro de doença tenha verificado que o tratamento médico assim o exige.»

17.
    Na hipótese de o segurado ser autorizado a dirigir-se a um prestador estabelecido no estrangeiro, o custo dos cuidados médicos é integralmente suportado pela caixa de seguro de doença em que esse segurado está inscrito.

18.
    O Centrale Raad van Beroep indica que, segundo a sua jurisprudência constante, os pedidos de autorização para receber tratamentos médicos no estrangeiro a expensas da caixa de seguro de doença, ao abrigo da ZFW, devem ser submetidos à caixa de seguro de doença onde o segurado está inscrito e esta deve ter dado o seu acordo antes da dispensa dos cuidados, salvo em circunstâncias especiais, como a urgência, sob pena de não se poder obter o reembolso do respectivo custo.

19.
    Além disso, no que respeita à condição prevista nos artigos 9.°, n.° 4, da ZFW e 1.° do Rhbz, segundo a qual o tratamento do segurado no estrangeiro deve ser medicamente necessário, resulta dos autos que, na prática, a caixa tem em conta os métodos de tratamento disponíveis nos Países Baixos e verifica se é possível dispensar, oportunamente, um tratamento adequado no território deste Estado-Membro.

Os litígios nos processos principais

O processo Müller-Fauré

20.
    Durante as suas férias na Alemanha, V. G. Müller-Fauré recebeu um tratamento dentário que consistiu na colocação de seis coroas e de uma prótese fixa no maxilar superior. Os cuidados foram dispensados entre 20 de Outubro e 18 de Novembro de 1994, fora de qualquer infra-estrutura hospitalar.

21.
    Quando regressou de férias, V. G. Müller-Fauré solicitou à Caixa de Zwijndrecht o reembolso do tratamento, no montante global de 7 444,59 DEM. Por ofício de 12 de Maio de 1995, a referida caixa indeferiu este pedido com base no parecer do seu dentista assessor.

22.
    V. G. Müller-Fauré solicitou o parecer do Ziekenfondsraad, encarregado de vigiar a gestão e a administração das caixas de seguro de doença, que, em 16 de Fevereiro de 1996, confirmou a decisão da Caixa de Zwijndrecht, com o fundamento de que os segurados só podem exigir os próprios cuidados e não o reembolso das despesas a eles respeitantes, salvo numa situação excepcional, que não se verificara no caso vertente.

23.
    V. G. Müller-Fauré recorreu então para o Arrondissementsrechtbank te Rotterdam (Países Baixos). Por decisão de 21 de Agosto de 1997, este confirmou a posição da referida caixa, após ter verificado a inexistência, no caso vertente, de qualquer circunstância excepcional que justificasse o reembolso das despesas, atendendo, em especial, ao facto de o tratamento se ter prolongado por várias semanas e ao avultado custo do mesmo.

24.
    O Centrale Raad van Beroep indica que, de qualquer modo, apenas uma parte limitada dos cuidados dispensados a V. G. Müller-Fauré está coberta pelo Verstrekkingenbesluit e é, portanto, susceptível de dar lugar a reembolso. Por outro lado, refere que a interessada foi, por sua iniciativa, tratada por um dentista estabelecido na Alemanha, durante as suas férias nesse país, por não ter confiança nos dentistas neerlandeses. Circunstâncias desta natureza não podem, segundo a jurisprudência do referido órgão jurisdicional, justificar, à luz da legislação nacional, o reembolso de um tratamento médico recebido no estrangeiro sem autorização da caixa a que pertence o segurado.

O processo Van Riet

25.
    E. E. M. van Riet sofria, desde 1985, de dores no pulso direito. Em 5 de Abril de 1993, o seu médico assistente pediu, ao médico assessor da Caixa de Amsterdão, autorização para a sua paciente ser submetida a uma arteroscopia no Hospital de Deurne (Bélgica), onde esse exame podia ser efectuado num prazo muito mais curto do que nos Países Baixos. A caixa indeferiu este pedido, por ofícios de 24 de Junho e 5 de Julho de 1993, com o fundamento de que a intervenção também podia ser realizada neste Estado-Membro.

26.
    Entretanto E. E. M. van Riet já tinha sido submetida à arteroscopia, em Maio de 1993, no Hospital de Deurne, e, na sequência deste exame, foi decidido proceder à ressecção do cúbito a fim de aliviar a dor da paciente. A preparação, a execução e o acompanhamento das intervenções tiveram lugar na Bélgica, em parte, no hospital e, em parte, fora deste. A Caixa de Amsterdão recusou o reembolso destas intervenções, no montante global de 93 782 BEF, decisão que foi confirmada pelo Ziekenfondsraad, com o fundamento de que não havia urgência nem necessidade médica que justificassem que E. E. M. van Riet fosse tratada na Bélgica, uma vez que, nos Países Baixos, eram disponibilizados tratamentos adequados num prazo razoável. O Arrondissementsrechtbank competente negou provimento ao recurso interposto da referida decisão por E. E. M. van Riet, por motivos idênticos aos da referida caixa.

27.
    O Centrale Raad van Beroep, para o qual a recorrente no processo principal recorreu, refere que, embora não seja contestado que estão efectivamente cobertos pelo Verstrekkingenbesluit, a maioria dos tratamentos prestados a E. E. M. van Riet foram dispensados na Bélgica, sem autorização prévia e sem que esteja provado que a interessada não podia razoavelmente aguardar, por razões médicas ou outras, que a Caixa de Amsterdão se pronunciasse sobre o seu pedido. Além disso, segundo o referido órgão jurisdicional, o prazo de espera imposto a E. E. M. van Riet, nos Países Baixos, para proceder à arteroscopia não era excessivo. Resulta dos autos que este prazo era de aproximadamente seis meses.

28.
    O órgão jurisdicional de reenvio entende que, no caso vertente, não estavam reunidas as condições para se justificar a aplicação do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão modificada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1, a seguir «Regulamento n.° 1408/71»), pois o estado de saúde quer de V. G. Müller-Fauré quer de E. E. M. van Riet não obrigava à dispensa imediata de cuidados durante uma estadia no território de outro Estado-Membro. Além disso, também não está provado, nos termos do artigo 22.°, n.os 1, alínea c), e 2, segundo parágrafo, do mesmo regulamento, que, tendo em conta o estado de saúde das recorrentes nos processos principais, os cuidados em causa não podiam ser dispensados nos Países Baixos no prazo «normalmente necessário», circunstância esta que, a verificar-se, teria obrigado as caixas de seguro de doença a emitir autorizações de cuidados noutro Estado-Membro.

29.
    O referido órgão jurisdicional interroga-se, porém, acerca da compatibilidade das decisões de recusa de reembolso com os artigos 59.° e 60.° do Tratado, à luz do acórdão de 28 de Abril de 1998, Kohll (C-158/96, Colect., p. I-1931). Refere que as disposições nacionais em causa não impedem, por si só, os segurados de se dirigirem a um prestador de serviços estabelecido noutro Estado-Membro, mas exigem, como condição prévia, que a caixa de seguro de doença em que esses segurados estão inscritos tenha celebrado um convénio com o prestador, o que não é normalmente o caso. Não existindo esse convénio, o reembolso das despesas efectuadas noutro Estado-Membro está subordinado a uma autorização prévia, que só é concedida se «o tratamento o exigir», circunstância que geralmente só se verifica quando os prestadores dos cuidados convencionados não podem oferecer a totalidade dos cuidados adequados. Esta obrigação de se obter uma autorização prévia joga, portanto, a favor dos prestadores de cuidados médicos convencionados - quase sempre neerlandeses - em detrimento dos prestadores de cuidados de outros Estados-Membros. O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que as competências administrativas das autoridades neerlandesas não abrangem os prestadores de cuidados médicos estabelecidos nos outros Estados-Membros, o que pode dificultar a celebração de convénios com esses prestadores.

30.
    No caso de se reconhecer que a autorização exigida pelo artigo 9.°, n.° 4, da ZFW constitui um entrave à livre circulação de serviços, o Centrale Raad van Beroep pergunta se essa exigência é justificada.

31.
    A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta as características do regime de seguro de doença neerlandês. Este regime garante essencialmente prestações em espécie, por oposição ao regime designado «de restituição». Segundo as recorridas nos processos principais, o equilíbrio financeiro do regime poderia ficar ameaçado se fosse possível aos segurados obter, sem autorização prévia, o reembolso de cuidados dispensados noutro Estado-Membro. O mencionado órgão jurisdicional refere, a este respeito, as medidas nacionais adoptadas para controlar os custos dos cuidados hospitalares, em especial as prescrições da Wet Ziekenhuisvoorzieningen, em matéria de planificação e de duração dos cuidados, e as da ZFW que limitam o reembolso aos cuidados dispensados por estabelecimentos hospitalares autorizados.

As questões prejudiciais

32.
    Nestas condições, o Centrale Raad van Beroep decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)    Devem os artigos 59.° e 60.° do Tratado CE ser interpretados no sentido de que é, em princípio, com eles incompatível uma disposição como a do artigo 9.°, n.° 4, da Ziekenfondswet, em conjugação com o disposto no artigo 1.° do Regeling hulp in het buitenland ziekenfondsverzekering, na medida em que estabelece que um segurado numa caixa de seguro de doença necessita da autorização prévia desta para se dirigir a uma pessoa ou instituição fora dos Países Baixos, com a qual a caixa de seguro de doença não tenha celebrado qualquer acordo para invocar o seu direito a prestações?

2)    Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, os objectivos do sistema neerlandês de prestações em espécie, anteriormente referidos [...], constituem razões imperativas de interesse geral susceptíveis de justificar um obstáculo ao princípio fundamental da livre prestação de serviços?

3)    Reveste importância para a resposta a estas questões saber se o tratamento está relacionado, em todo ou em parte, com a assistência médica interna?»

33.
    Por ofício de 12 de Julho de 2001, a Secretaria do Tribunal de Justiça perguntou ao órgão jurisdicional de reenvio se desejava manter o seu pedido prejudicial, tendo em conta o acórdão proferido no mesmo dia no processo Smits Geraets e Peerbooms (C-157/99, Colect., p. I-5473).

34.
    Por ofício de 25 de Outubro de 2001, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que mantinha as suas questões, na medida em que o acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, não respeita especificamente às características do regime neerlandês de seguro de doença, que é um regime de prestações em espécie de carácter convencional. Além disso, convidou o Tribunal de Justiça a precisar o alcance do n.° 103 do referido acórdão, nos termos do qual:

«[...] a condição relativa ao carácter necessário do tratamento prevista pela regulamentação em causa no processo principal pode justificar-se na perspectiva do artigo 59.° do Tratado, desde que seja interpretada no sentido de que a autorização de efectuar um tratamento noutro Estado-Membro só pode ser recusada por esse motivo quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser oportunamente dispensado num estabelecimento com o qual a caixa de seguro de doença do segurado celebrou um convénio».

35.
    Mais precisamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça o que se deve entender pela expressão «oportunamente» e, em particular, se a apreciação dessa condição deve ser feita num plano estritamente médico, independentemente do tempo de espera necessário para se beneficiar do tratamento solicitado.

36.
    Por ofício de 6 de Março de 2002, a Secretaria do Tribunal de Justiça convidou as partes nos processos principais, os Estados-Membros e a Comissão a apresentarem as suas eventuais observações acerca das consequências a retirar do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, à luz das questões submetidas pelo Centrale Raad van Beroep.

Quanto à primeira questão

37.
    Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 59.° e 60.° do Tratado devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa nos processos principais, que subordina a tomada a cargo de cuidados de saúde dispensados noutro Estado-Membro, por uma pessoa ou um estabelecimento com o qual a caixa de seguro de doença a que pertence o segurado não celebrou qualquer convénio, à obtenção de uma autorização prévia junto desta última.

38.
    Importa recordar, a título liminar, que, segundo jurisprudência constante, as actividades médicas estão abrangidas pelo âmbito do artigo 60.° do Tratado, sem que haja que distinguir, a este propósito, consoante os cuidados sejam ministrados num quadro hospitalar ou fora desse quadro (v., em último lugar, acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 53).

39.
    O Tribunal de Justiça declarou igualmente, nos n.os 54 e 55 do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, que a circunstância de a regulamentação aplicável fazer parte do domínio da segurança social e, mais particularmente, prever, em matéria de seguro de doença, um sistema de prestação em espécie, e não de reembolso, não é susceptível de subtrair os tratamentos médicos em causa do campo de aplicação da livre prestação de serviços garantida pelo Tratado CE. A este respeito, impõe-se referir que, nos litígios nos processos principais, os tratamentos dispensados num Estado-Membro que não o de inscrição deram lugar a uma retribuição directa, pelo paciente, ao médico prestador ou ao estabelecimento onde os cuidados foram dispensados.

40.
    Uma vez que as prestações médicas estão abrangidas pelo âmbito do princípio da livre prestação de serviços na acepção dos artigos 59.° e 60.° do Tratado, há que examinar se a regulamentação em causa nos processos principais impõe restrições a esta liberdade, ao subordinar a tomada a cargo de cuidados prestados num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença onde o segurado está inscrito, por uma pessoa ou um estabelecimento que não celebrou qualquer convénio com a referida caixa, à obtenção de uma autorização prévia junto desta última.

41.
    A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou, no n.° 62 do seu acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, que, se é certo que a ZFW não priva os segurados da possibilidade de recorrerem a um prestador de serviços estabelecido num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertence o segurado, não é menos certo que essa legislação faz depender o reembolso das despesas assim efectuadas de uma autorização prévia, a qual só pode ser concedida, como refere o órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que a prestação de cuidados em causa, sejam eles de carácter hospitalar ou não, satisfaça uma necessidade médica.

42.
    Ora, uma vez que só será satisfeita, na prática, se um tratamento adequado não puder ser oportunamente obtido junto de um médico ou de um estabelecimento hospitalar convencionados do Estado-Membro de inscrição, esta última exigência é, pela sua própria natureza, susceptível de limitar muito as hipóteses de obtenção de autorização (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 64).

43.
    É desejável, certamente, que as caixas de seguro de doença neerlandesas celebrem convénios com estabelecimentos hospitalares situados fora dos Países Baixos. Nestes casos, não é necessária qualquer autorização prévia para efeitos da tomada a cargo, ao abrigo da ZFW, dos cuidados dispensados nesses estabelecimentos. Todavia, com excepção dos estabelecimentos hospitalares sitos nas regiões fronteiriças dos Países Baixos, parece ilusório imaginar que se venha a verificar que um número importante de estabelecimentos hospitalares situados noutros Estados-Membros venha a celebrar convénios com as referidas caixas de seguro de doença, uma vez que as suas perspectivas de acolher pacientes inscritos nessas caixas continuam aleatórias e limitadas (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.os 65 e 66).

44.
    O Tribunal de Justiça já declarou, portanto, que uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais desencoraja, ou mesmo impede, os segurados de se dirigirem aos prestadores de serviços médicos estabelecidos noutros Estados-Membros que não o Estado-Membro de inscrição e constitui, tanto para os segurados como para os prestadores, um obstáculo à livre prestação de serviços (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 69).

45.
    Contudo, antes de apreciar a questão de saber se os artigos 59.° e 60.° do Tratado se opõem a uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais, importa examinar se esta regulamentação pode ser objectivamente justificada, o que constitui o objecto da segunda questão.

Quanto às segunda e terceira questões

46.
    Pelas suas segunda e terceira questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma regulamentação como a que está em causa nos processos principais, que tem efeitos restritivos sobre a livre prestação de serviços, pode ser justificada pelas próprias particularidades do regime nacional de seguro de doença, que garante não o reembolso das despesas efectuadas mas, essencialmente, prestações em espécie e assenta num sistema convencionado destinado, simultaneamente, a garantir a qualidade e a controlar os custos dos cuidados médicos. Deseja também saber se a circunstância de os cuidados em causa serem dispensados, no todo ou em parte, num meio hospitalar tem qualquer relevância a esse respeito.

A argumentação apresentada ao Tribunal de Justiça

47.
    Segundo o Governo neerlandês e a Caixa de Zwijndrecht, a autorização exigida pelo artigo 9.°, n.° 4, da ZFW é inerente ao regime de seguro de doença neerlandês. Com efeito, a cobertura em espécie dos riscos de doença, tal como está prevista por este regime, requer a celebração prévia, entre aquela caixa e os prestadores de cuidados, de convénios respeitantes ao volume, à qualidade, à eficácia e aos custos dos cuidados de saúde, a fim de, por um lado, permitir a planificação das necessidades e o controlo das despesas e, por outro, garantir um serviço médico de qualidade, a equivalência das prestações e, por conseguinte, a igualdade de tratamento dos segurados. Um sistema convencionado desta natureza beneficia essencialmente estes últimos.

48.
    Nestas condições, os segurados são obrigados a dirigir-se apenas aos prestadores de cuidados convencionados ou, se, não obstante, desejarem ser tratados por um médico ou um estabelecimento não convencionado estabelecido nos Países Baixos ou no estrangeiro, a obter uma autorização prévia junto da caixa de seguro de doença onde estão inscritos.

49.
    O Governo neerlandês e a Caixa de Zwijndrecht acrescentam que, se não fosse exigida qualquer autorização prévia, os prestadores de cuidados nunca teriam interesse em dar o seu contributo para o sistema convencionado, vinculando-se mediante cláusulas contratuais respeitantes à disponibilidade, ao volume, à qualidade, à eficácia e aos preços das prestações, de modo que as autoridades gestoras do seguro de doença ver-se-iam impossibilitadas de planificar as necessidades, ajustando-as às despesas, e de garantir um serviço médico de qualidade e acessível a todos. O sistema convencionado perderia, então, a sua razão de ser como instrumento de gestão dos cuidados de saúde, o que violaria a competência soberana dos Estados-Membros, reconhecida pelo Tribunal de Justiça, para organizar os seus sistemas de segurança social. A este respeito, o Governo neerlandês justifica a existência de listas de espera pelo carácter limitado dos recursos financeiros disponíveis, em matéria de cobertura dos cuidados de saúde, e pela necessidade que daí decorre de quantificar as intervenções a praticar e de as submeter a prioridades, que devem ser estritamente respeitadas.

50.
    Além disso, as caixas de seguro de doença neerlandesas não podem ser obrigadas a celebrar convénios com um número de prestadores de cuidados superior ao que é necessário para responder às necessidades da população estabelecida nos Países Baixos. O Governo neerlandês refere que é precisamente para responder a estas necessidades que a maioria dos convénios são celebrados com prestadores de cuidados estabelecidos nos Países Baixos, pois a procura de cuidados de saúde pelos segurados é, obviamente, maior no território nacional.

51.
    Por último, no que toca à questão de saber de que forma importa apreciar se «um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser oportunamente dispensado», de acordo com os termos do n.° 103 do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, a Caixa de Zwijndrecht entende que o simples facto de se estar inscrito numa lista de espera não pode significar que esse tratamento não se encontra disponível. Ao adoptar uma interpretação contrária, o Tribunal de Justiça alargaria significativamente as condições que dão direito às prestações, as quais são do domínio das competências nacionais. Além disso, faria pairar a incerteza sobre todos os esforços de planificação e de racionalização operados no sector dos cuidados de saúde para evitar fenómenos de sobrecapacidade, de desequilíbrios na oferta e de desperdício.

52.
    O Governo neerlandês alega, a este respeito, que resulta claramente do n.° 103 do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, que é com base na situação médica e nos antecedentes do paciente que deve ser determinado o prazo no qual o tratamento médico é necessário. Compete ao juiz nacional verificar se este tratamento estava disponível dentro desse prazo, o que constitui uma apreciação de facto.

53.
    Os Governos dinamarquês, alemão, espanhol, irlandês, italiano, sueco e do Reino Unido, bem como os Governos islandês e norueguês, subscrevem as considerações precedentes, na íntegra.

54.
    Em particular, o Governo espanhol alega que, num regime de seguro de doença que prevê apenas prestações em espécie, não tem cabimento distinguir os cuidados dispensados por um médico dos que são fornecidos num hospital. Acrescenta que, se um segurado beneficiar de cuidados de saúde ou adquirir um produto médico num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença onde está inscrito, as taxas e os impostos pagos pelos prestadores ou fornecedores não revertem para o orçamento do Estado-Membro de inscrição, o que atentaria contra uma das fontes de financiamento da segurança social deste último Estado.

55.
    Os Governos irlandês e do Reino Unido referem que a faculdade concedida aos segurados de se deslocarem a um Estado-Membro que não o de inscrição, para aí receberem cuidados, tem consequências prejudiciais relativamente ao estabelecimento das prioridades de tratamento médico e à gestão das listas de espera, que constituem elementos importantes da organização do seguro de doença. A este respeito, o Governo do Reino Unido alega que os recursos financeiros limitados atribuídos ao National Health Service (Serviço Nacional de Saúde, a seguir «NHS») são geridos por autoridades sanitárias locais, que estabelecem calendários com base em avaliações clínicas e prioridades definidas no plano médico para diferentes tratamentos. Os pacientes não têm o direito de exigir que o seu tratamento hospitalar lhes seja dispensado num determinado prazo. Daí resulta que, se estes pudessem encurtar o seu prazo de espera, recorrendo, sem autorização prévia, aos tratamentos médicos dispensados noutros Estados-Membros, e se a caixa competente fosse, não obstante, obrigada a suportar os custos desses tratamentos, o equilíbrio financeiro do sistema ficaria ameaçado e os recursos disponíveis para os tratamentos mais urgentes seriam seriamente reduzidos, comprometendo, dessa forma, a sua capacidade de fornecer cuidados de saúde de nível apropriado.

56.
    O Governo do Reino Unido acrescenta que, em caso de liberalização das prestações hospitalares, os seus próprios hospitais seriam incapazes de prever a redução dos pedidos resultante do recurso aos tratamentos hospitalares noutros Estados-Membros, bem como o aumento dos pedidos devido ao facto de os segurados desses Estados-Membros poderem recorrer aos tratamentos hospitalares dispensados no Reino Unido. Tais efeitos da liberalização não são necessariamente compensáveis entre si e a sua incidência seria diferente para cada hospital do Reino Unido.

57.
    Quanto à questão de saber quais são os critérios para se determinar se um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente poderia ser oportunamente dispensado no Estado-Membro de inscrição, o Governo do Reino Unido, tal como o Governo sueco, refere o artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 1408/71, conjugado com o n.° 1, alínea c), dessa mesma disposição, de onde resulta que a autorização exigida para se deslocar ao território de outro Estado-Membro, a fim de aí receber cuidados médicos, não pode ser recusada ao interessado se, tendo em conta o seu estado actual de saúde e a evolução provável da doença, os cuidados não lhe puderem ser dispensados, no prazo normalmente necessário, no Estado-Membro de residência. Remete-se igualmente para a interpretação destas disposições que consta do n.° 10 do acórdão de 31 de Maio de 1979, Pierik (182/78, Recueil, p. 1977).

58.
    A este respeito, o Governo do Reino Unido sublinha que, na prática, uma autorização para cuidados dispensados no território de outro Estado-Membro é geralmente concedida no Reino Unido quando o prazo para o tratamento ultrapassa os prazos máximos de espera. As listas de espera nacionais têm em conta as necessidades distintas das diferentes categorias de pacientes e permitem a melhor repartição possível dos recursos hospitalares. Tais listas são flexíveis, de forma que um paciente cujo estado de saúde se deteriore subitamente poderá subir na lista de espera e ser tratado no mais curto prazo possível. O facto de se obrigar as autoridades competentes a autorizar cuidados no estrangeiro fora dos casos de ultrapassagem do prazo normal de espera, e isso a expensas do NHS, teria consequências nefastas para a gestão e a viabilidade financeira deste último.

59.
    Em qualquer dos casos, o Governo do Reino Unido sublinha as particularidades do NHS, convidando o Tribunal de Justiça a seguir o princípio segundo o qual os cuidados de saúde dispensados ao abrigo de um sistema nacional de seguro de doença dessa natureza não estão abrangidos pelo âmbito do artigo 60.° do Tratado, e o NHS, que é um organismo sem fim lucrativo, não constitui um prestador de serviços na acepção do Tratado.

60.
    O Governo dinamarquês invoca o risco de excesso de consumo médico no caso de os pacientes terem livre acesso, a título gratuito, a cuidados médicos dispensados nos Estados-Membros que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertence o segurado, bem como o risco de, em caso de deslocações maciças ao estrangeiro, para fins médicos, a competência, em matéria de doenças raras e complexas, dos médicos estabelecidos no território nacional não poder ser mantida a um nível apropriado.

61.
    O Governo belga, por sua vez, entende que a especificidade do regime neerlandês, ao garantir não o reembolso das despesas efectuadas mas prestações em espécie, não constitui, por si só, uma razão de interesse geral que permita justificar um entrave à livre prestação de serviços. Sustenta que se deve distinguir consoante as prestações são fornecidas fora ou dentro de uma estrutura hospitalar.

62.
    Na primeira hipótese, nenhum entrave à livre prestação de serviços pode ser justificado, de acordo com o acórdão Kohll, já referido. Ao invés, na segunda hipótese, motivos sérios ligados à salvaguarda do equilíbrio financeiro do sistema de segurança social e à manutenção de um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos justificam a exigência de uma autorização prévia, quando se trate de prestações dispensadas no meio hospitalar num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertence o segurado. Além disso, se não se exigisse autorização prévia, os Estados-Membros onde existem listas de espera para efeitos de hospitalização poderiam ter tendência para encaminhar os seus nacionais para fora do território nacional, para aí serem tratados, em vez de investirem nas suas próprias infra-estruturas, o que poria em causa os esforços de planificação hospitalar dos outros Estados-Membros.

63.
    A Comissão distingue entre os cuidados dispensados num consultório médico, que equipara aos cuidados ambulatórios dispensados numa infra-estrutura hospitalar, e os cuidados hospitalares propriamente ditos. No que respeita à primeira categoria, deve seguir-se a análise contida nos acórdãos de 28 de Abril de 1998, Decker (C-120/95, Colect., p. I-1831), e Kohll, já referido, e considerar que a exigência de uma autorização prévia é incompatível com o direito comunitário, salvo para certas prestações, nomeadamente odontológicas, extremamente onerosas e especializadas. No que respeita à segunda categoria de cuidados, dispensados no meio hospitalar, deve referir-se a análise do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, e admitir que a exigência da autorização prévia é justificada pelas necessidades de planificação, devendo, porém, a recusa de autorização ser sujeita aos limites fixados pelo Tribunal de Justiça neste último acórdão.

64.
    Quanto à interpretação do termo «oportunamente», que figura no n.° 103 do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, a Comissão entende que importa ter exclusivamente em atenção a situação médica do interessado, como resulta do n.° 104 do mesmo acórdão.

65.
    Por último, o Governo norueguês alega que cabe apenas à legislação nacional fixar as condições que dão direito às prestações e os prazos nos quais as mesmas podem ser executadas. O direito comunitário não pode conferir aos pacientes o direito de beneficiarem, num Estado-Membro que não o de inscrição, de cuidados de saúde que não podem exigir no seu próprio Estado-Membro nem o direito de beneficiarem de um tratamento num prazo mais curto do que o previsto pela legislação nacional. Se o fizesse, violaria a competência dos Estados-Membros de organizarem o seu sistema de segurança social e excederia o campo de aplicação das disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços.

Apreciação do Tribunal de Justiça

66.
    Resulta dos autos que as razões invocadas para justificar a exigência de uma autorização prévia com vista a beneficiar do seguro de doença para prestações fornecidas num Estado-Membro que não o de inscrição, quer seja em meio hospitalar ou fora dele, estão ligadas, em primeiro lugar, à protecção da saúde pública, na medida em que o sistema convencionado se destina a garantir um serviço médico e hospitalar de qualidade, equilibrado e acessível a todos, seguidamente, ao equilíbrio financeiro da segurança social, na medida em que um sistema dessa natureza permite igualmente às autoridades responsáveis pela gestão controlar as despesas, ajustando-as às necessidades planificadas, segundo prioridades preestabecelecidas, e, por fim, às características essenciais do regime de seguro de doença nos Países Baixos, que garante prestações em espécie.

Quanto ao risco de prejudicar a protecção da saúde pública

67.
    Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o objectivo de manutenção de um serviço médico e hospitalar de qualidade, equilibrado e acessível a todos, pode igualmente ser abrangido por uma das derrogações previstas no artigo 56.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 46.° CE), na medida em que contribua para a realização de um nível elevado de protecção da saúde (acórdãos, já referidos, Kohll, n.° 50, e Smits Geraets e Peerbooms, n.° 73). Aquela disposição do Tratado permite, em especial, aos Estados-Membros restringir a livre prestação de serviços médicos e hospitalares, na medida em que a manutenção da capacidade de tratamento ou de uma especialidade médica no território nacional seja essencial para a saúde pública, ou mesmo para a sobrevivência da sua população (acórdãos, já referidos, Kohll, n.° 51, e Smits Geraets e Peerbooms, n.° 74).

68.
    Todavia, segundo jurisprudência constante, importa garantir, no caso de justificações baseadas numa excepção prevista pelo Tratado, como, de resto, numa razão imperativa de interesse geral, que as medidas adoptadas a esse título não excedam o que é objectivamente necessário para esse fim e que esse resultado não possa ser obtido por regras menos gravosas (v. acórdãos de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, 205/84, Colect., p. 3755, n.os 27 e 29; de 26 de Fevereiro de 1991, Comissão/Itália, C-180/89, Colect., p. I-709, n.os 17 e 18; de 20 de Maio de 1992, Ramrath, C-106/91, Colect., p. I-3351, n.os 30 e 31; bem como Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 75).

69.
    No caso vertente, a argumentação invocada para justificar a exigência de uma autorização prévia pretende demonstrar que, se fosse lícito aos pacientes receberem tratamento num Estado-Membro que não o de inscrição, sem disporem de uma autorização prévia para o efeito, o Estado competente deixaria de poder garantir, no seu território, um serviço médico e hospitalar de qualidade, equilibrado e acessível a todos e, portanto, um nível elevado de protecção da saúde pública.

70.
    Quanto ao argumento invocado pelo Governo dinamarquês, segundo o qual a própria competência dos médicos, que trabalham em consultórios ou em meio hospitalar, seria prejudicada em razão de alegadas deslocações maciças ao estrangeiro, para fins médicos, impõe-se concluir que não foi apresentado qualquer elemento preciso para fundamentar este argumento.

71.
    Quanto ao objectivo de manter um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos, o mesmo encontra-se intrinsecamente ligado ao modo de financiamento do sistema de segurança social e ao controlo das despesas, que analisaremos a seguir.

Quanto ao risco de prejuízo grave do equilíbrio financeiro do sistema de segurança social

72.
    Importa recordar desde logo que, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, objectivos de natureza puramente económica não podem constituir um entrave ao princípio fundamental da livre prestação de serviços (v., neste sentido, acórdão de 5 de Junho de 1997, SETTG, C-398/95, Colect., p. I-3091, n.° 23, e Kohll, já referido, n.° 41).

73.
    Contudo, na medida em que, designadamente, possa ter consequências no nível global de protecção da saúde pública, um risco grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social pode igualmente constituir, em si mesmo, uma razão imperiosa de interesse geral susceptível de justificar esse entrave (acórdãos, já referidos, Kohll, n.° 41, e Smits Geraets e Peerbooms, n.° 72).

74.
    É óbvio que a tomada a cargo de um tratamento isolado, dispensado num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertence determinado segurado, nunca pode ter consequências significativas no financiamento do sistema de segurança social. Por conseguinte, há que adoptar necessariamente uma abordagem global das consequências da livre prestação de serviços em matéria de saúde.

75.
    A este respeito, a distinção entre prestações hospitalares e prestações não hospitalares pode, às vezes, ser difícil de estabelecer. Em particular, certas prestações dispensadas em meio hospitalar, mas susceptíveis de o serem igualmente por um médico, no seu consultório ou num centro médico, podem ser equiparadas, a esse título, a prestações não hospitalares. Contudo, nos litígios nos processos principais, o carácter ora hospitalar ora não hospitalar dos cuidados em causa não suscitou controvérsia entre as partes nos processos principais nem junto dos Estados que apresentaram observações em aplicação do artigo 20.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça ou ainda da Comissão.

Quanto às prestações hospitalares

76.
    No que toca às prestações hospitalares, como as que foram dispensadas a E. E. M. van Riet, no Hospital de Deurne, o Tribunal de Justiça já expôs, nos n.os 76 a 80 do seu acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, as seguintes considerações.

77.
    É notório que o número de infra-estruturas hospitalares, a sua repartição geográfica, a sua organização e os equipamentos de que dispõem, ou ainda a natureza dos serviços médicos que estão em condições de oferecer, devem poder ser objecto de uma planificação.

78.
    Como, designadamente, disso é testemunho o sistema convencionado em causa nos processos principais, esta planificação responde, em regra, a diversas preocupações.

79.
    Por um lado, prossegue o objectivo de garantir, no território do Estado em causa, uma acessibilidade suficiente e permanente a uma gama equilibrada de cuidados hospitalares de qualidade.

80.
    Participa, por outro lado, da vontade de garantir um controlo dos custos e de evitar, na medida do possível, qualquer desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos. Este desperdício é tanto mais prejudicial quanto é certo que o sector dos cuidados hospitalares gera custos consideráveis e deve responder a necessidades crescentes, e que os recursos financeiros que podem ser consagrados aos cuidados de saúde não são, independentemente do modo de financiamento utilizado, ilimitados.

81.
    Nestas condições, a exigência que consiste em submeter a uma autorização prévia a tomada a cargo financeira, pelo sistema nacional de segurança social, de cuidados hospitalares dispensados num Estado-Membro que não o de inscrição revela-se uma medida necessária e razoável.

82.
    No que respeita, precisamente, ao regime instituído pela ZFW, o Tribunal de Justiça reconheceu claramente que, se os segurados pudessem livremente e em quaisquer circunstâncias recorrer a estabelecimentos hospitalares com os quais as suas caixas de seguro de doença não tivessem celebrado qualquer convénio, quer se trate de estabelecimentos situados nos Países Baixos quer noutro Estado-Membro, todos os esforços de planificação operados através do sistema convencionado, com vista a contribuir para garantir uma oferta de cuidados hospitalares racionalizada, estável, equilibrada e acessível, ficariam ao mesmo tempo comprometidos (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 81).

83.
    Embora o direito comunitário não se oponha, em princípio, a um sistema de autorização prévia para essa categoria de prestações, é no entanto necessário que as condições estabelecidas para a concessão dessa autorização se justifiquem na perspectiva dos referidos imperativos e que satisfaçam a exigência de proporcionalidade recordada no n.° 68 do presente acórdão.

84.
    Também resulta de uma jurisprudência constante que um regime de autorização administrativa prévia não pode legitimar um comportamento discricionário por parte das autoridades nacionais, susceptível de privar as disposições comunitárias, nomeadamente as relativas a uma liberdade fundamental como a que está em causa nos processos principais, do seu efeito útil (v. acórdãos de 23 de Fevereiro de 1995, Bordessa e o., C-358/93 e C-416/93, Colect., p. I-361, n.° 25; de 14 de Dezembro de 1995, Sanz de Lera e o., C-163/94, C-165/94 e C-250/94, Colect., p. I-4821, n.os 23 a 28; e de 20 de Fevereiro de 2001, Analir e o., C-205/99, Colect., p. I-1271, n.° 37).

85.
    De igual modo, para que um regime de autorização administrativa prévia seja justificado mesmo que derrogue uma liberdade fundamental, deve ser fundamentado em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, de modo a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais, a fim de este não ser utilizado de modo arbitrário (acórdão Analir e o., já referido, n.° 38). Tal regime de autorização administrativa prévia deve, de igual modo, assentar num sistema processual facilmente acessível e adequado a garantir aos interessados que o seu pedido será tratado dentro de um prazo razoável e com objectividade e imparcialidade, devendo além disso as eventuais recusas de autorização poder ser impugnadas no quadro de um recurso jurisdicional (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 90).

86.
    Importa referir que, nos litígios nos processos principais, as contestações não respeitam à cobertura, em si mesma, pelo regime neerlandês de seguro de doença, dos tratamentos médicos e hospitalares dispensados a V. G. Müller-Fauré e E. E. M. van Riet. Nestes litígios, o que se contesta é a necessidade médica de estas últimas efectuarem os tratamentos em causa, respectivamente, na Alemanha e na Bélgica, e não nos Países Baixos. A este respeito, o Tribunal de Justiça pronunciou-se igualmente, nos n.os 99 a 107 do acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, acerca desta condição ligada ao carácter necessário do tratamento previsto, à qual está subordinada a concessão da autorização.

87.
    Como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, da letra dos artigos 9.°, n.° 4, da ZFW e 1.° do Rhbz resulta que esta condição se aplica, em princípio, indistintamente consoante o pedido de autorização diga respeito a um tratamento a efectuar num estabelecimento sito nos Países Baixos, com o qual a caixa de seguro de doença do segurado não celebrou qualquer convénio, ou num estabelecimento situado noutro Estado-Membro.

88.
    Quanto a tratamentos hospitalares efectuados fora dos Países Baixos, aquele órgão jurisdicional indica que a condição relativa ao carácter necessário do tratamento é interpretada, na prática, no sentido de que a prestação só é autorizada se se revelar que não é possível realizar oportunamente um tratamento adequado nos Países Baixos. Por seu lado, o Governo neerlandês precisa que da leitura conjugada dos artigos 9.°, n.° 4, da ZFW e 1.° do Rhbz resulta que a autorização apenas deve ser recusada quando os cuidados exigidos pelo estado de saúde do segurado podem ser dispensados por prestadores de cuidados médicos convencionados.

89.
    A condição relativa ao carácter necessário do tratamento, prevista pela regulamentação em causa nos processos principais, pode justificar-se na perspectiva do artigo 59.° do Tratado, desde que seja interpretada no sentido de que a autorização de efectuar um tratamento noutro Estado-Membro só pode ser recusada por esse motivo quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser oportunamente dispensado num estabelecimento com o qual a caixa de seguro de doença do segurado celebrou um convénio (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, n.° 103).

90.
    Com o objectivo de determinar se um tratamento que apresenta o mesmo grau de eficácia para o paciente pode ser efectuado em tempo útil num estabelecimento que celebrou um convénio com a caixa de seguro de doença a que pertence o segurado, as autoridades nacionais são obrigadas a atender ao conjunto das circunstâncias que caracterizam cada caso concreto, tendo devidamente em conta não apenas a situação médica do paciente no momento em que a autorização é solicitada e, sendo caso disso, o grau de dor ou a natureza da deficiência deste último, que possa, por exemplo, tornar impossível ou excessivamente difícil o exercício de uma actividade profissional, mas igualmente os seus antecedentes (v., neste sentido, acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, n.° 104).

91.
    O Tribunal de Justiça indicou igualmente, nos n.os 105 e 106 do seu acórdão Smits Geraets e Peerbooms, já referido, que:

-    interpretada desta forma, a condição relativa ao carácter necessário do tratamento pode permitir a manutenção, no território nacional, de uma oferta suficiente, equilibrada e permanente de cuidados hospitalares de qualidade, bem como garantir a estabilidade financeira do sistema de seguro de doença;

-    se muitos segurados decidissem recorrer a cuidados médicos noutros Estados-Membros, quando os estabelecimentos hospitalares que celebraram convénios com as caixas de seguro de doença de que dependem oferecem tratamentos adequados, idênticos ou equivalentes, esses fluxos de pacientes poderiam pôr em causa tanto o próprio princípio do sistema convencionado como, consequentemente, todos os esforços de planificação e de racionalização efectuados nesse sector vital a fim de evitar os fenómenos de sobrecapacidade hospitalar, de desequilíbrios na oferta de cuidados médicos hospitalares e de desperdício, tanto logísticos como financeiros.

92.
    Contudo, uma recusa de autorização prévia fundamentada não no receio de desperdício, devido a uma sobrecapacidade hospitalar, mas exclusivamente em razões que se prendem com a existência de listas de espera, no território nacional, para se beneficiar dos cuidados hospitalares em causa, sem que sejam tidas em consideração as circunstâncias concretas que caracterizam a situação médica do paciente, não pode constituir um entrave validamente justificado à livre prestação de serviços. Com efeito, não resulta dos argumentos apresentados ao Tribunal de Justiça que, para além de considerações de natureza puramente económicas, que não podem, enquanto tais, justificar um entrave ao princípio fundamental da livre prestação de serviços, esse prazo de espera seja necessário para garantir a protecção da saúde pública. Pelo contrário, um prazo de espera demasiado longo ou anormal é susceptível de restringir o acesso a um conjunto equilibrado de cuidados hospitalares de qualidade.

Quanto às prestações não hospitalares

93.
    No que toca às prestações não hospitalares, como as que foram fornecidas a V. G. Müller-Fauré e, em parte, a E. E. M. van Riet, nenhum elemento preciso foi apresentado ao Tribunal de Justiça, nomeadamente pelas Caixas de Zwijndrecht e de Amsterdão ou pelo Governo neerlandês, como fundamento da afirmação segundo a qual a liberdade concedida aos segurados de se deslocarem, sem autorização prévia, a um Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertencem, para aí beneficiarem das referidas prestações junto de um prestador não convencionado, é susceptível de prejudicar gravemente o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social neerlandês.

94.
    Na verdade, a supressão da condição da existência de um convénio para as prestações fornecidas no estrangeiro afecta os meios de controlo das despesas de saúde do Estado-Membro de inscrição.

95.
    Todavia, não resulta dos autos no Tribunal de Justiça que a supressão da exigência da autorização prévia para esse tipo de cuidados provocaria, não obstante as barreiras linguísticas, a distância geográfica, as despesas de estadia no estrangeiro e a falta de informações sobre a natureza dos cuidados aí dispensados, deslocações transfronteiriças de pacientes de tal modo importantes que o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social neerlandês seria gravemente perturbado e que, por este motivo, o nível global de protecção da saúde pública ficaria ameaçado, o que poderia validamente justificar um entrave ao princípio fundamental da livre prestação de serviços.

96.
    Além disso, os cuidados são geralmente dispensados na proximidade do local de residência do paciente, num ambiente cultural que lhe é familiar e lhe permite estabelecer relações de confiança com o médico assistente. Abstraindo dos casos de urgência, as deslocações transfronteiriças de pacientes manifestam-se, sobretudo, nas regiões fronteiriças ou para o tratamento de patologias específicas. Além disso, é precisamente nestas regiões ou em virtude dessas patologias que as caixas de seguro de doença neerlandesas terão tendência para estabelecer um sistema convencionado com médicos estrangeiros, como resulta das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

97.
    Estas várias circunstâncias são susceptíveis de limitar o eventual impacto financeiro no sistema de segurança social neerlandês, resultante da supressão da exigência de autorização prévia no que respeita aos cuidados dispensados no consultório do médico estrangeiro.

98.
    Em qualquer dos casos, deve recordar-se que cabe exclusivamente aos Estados-Membros determinar o alcance da cobertura dos riscos de doença de que beneficiam os segurados, de forma que, quando estes se deslocam, sem autorização prévia, a um Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertencem, para aí receberem tratamento, só podem exigir a tomada a cargo dos custos dos tratamentos que lhes foram dispensados nos limites da cobertura garantida pelo regime de seguro de doença do Estado-Membro de inscrição.

Quanto ao argumento baseado nas características essenciais do regime neerlandês de seguro de doença

99.
    A Caixa de Zwijndrecht, bem como os Governos neerlandês, espanhol e norueguês salientaram a liberdade dos Estados-Membros de estabelecerem o sistema de segurança social que entenderem. Ora, no caso vertente, na falta de autorização prévia, os segurados podem dirigir-se livremente a prestadores de cuidados não convencionados, pelo que é o regime neerlandês de prestações em espécie, cujo funcionamento depende essencialmente do sistema convencionado, que fica ameaçado na sua existência. Além disso, as autoridades neerlandesas são obrigadas a introduzir mecanismos de reembolso na sua forma de organização do acesso aos cuidados de saúde, uma vez que, em vez de beneficiarem de prestações de doença gratuitas no território nacional, os segurados têm de adiantar os montantes necessários ao pagamento das prestações de que beneficiaram e esperar um certo tempo até obterem o respectivo reembolso. Desta forma, os Estados-Membros são obrigados a renunciar aos princípios e à economia do seu regime de seguro de doença.

100.
    A este respeito, decorre de jurisprudência constante que o direito comunitário não prejudica a competência dos Estados-Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social (v., nomeadamente, acórdãos de 7 de Fevereiro de 1984, Duphar e o., 238/82, Recueil, p. 523, n.° 16, e de 17 de Junho de 1997, Sodemare e o., C-70/95, Colect., p. I-3395, n.° 27). Por conseguinte, na falta de harmonização a nível comunitário, compete à legislação de cada Estado-Membro determinar as condições que dão direito a prestações em matéria de segurança social (v., nomeadamente, acórdãos de 24 de Abril de 1980, Coonan, 110/79, Recueil, p. 1445, n.° 12; de 4 de Outubro de 1991, Paraschi, C-349/87, Colect., p. I-4501, n.° 15; e de 30 de Janeiro de 1997, Stöber e Piosa Pereira, C-4/95 e C-5/95, Colect., p. I-511, n.° 36). Contudo, não deixa de ser verdade que os Estados-Membros devem, no exercício dessa competência, respeitar o direito comunitário (acórdãos, já referidos, Decker, n.° 23, e Kohll, n.° 19).

101.
    Importa, a este respeito, formular previamente duas observações.

102.
    Por um lado, o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado obriga inevitavelmente os Estados-Membros a introduzirem algumas adaptações no seu sistema nacional de segurança social, sem que por isso se possa considerar que tal facto viola a sua competência soberana na matéria. A este respeito, basta referir as adaptações que foram obrigados a introduzir nas suas legislações em matéria de segurança social, para dar cumprimento ao Regulamento n.° 1408/71, nomeadamente às condições previstas no artigo 69.° deste, em matéria de pagamento de subsídios de desemprego a trabalhadores que residam no território de outros Estados-Membros, quando nenhum regime nacional garantia a concessão desses subsídios a desempregados inscritos numa agência de emprego noutro Estado-Membro.

103.
    Por outro lado, como resulta do n.° 39 do presente acórdão, uma prestação médica não perde a sua qualificação de prestação de serviços pelo facto de os respectivos custos serem suportados por um serviço nacional de saúde ou por um regime de prestações em espécie. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que uma prestação médica efectuada num Estado-Membro e paga pelo paciente não pode deixar de integrar o âmbito da livre prestação de serviços garantida pelo Tratado pelo simples facto de o reembolso dos cuidados de saúde em causa ser solicitado ao abrigo da legislação sobre o seguro de doença de outro Estado-Membro, que prevê, fundamentalmente, uma intervenção em espécie (acórdão Smits Geraets e Peerbooms, n.° 55). É precisamente a exigência de uma autorização prévia para se poder beneficiar posteriormente da tomada a cargo desses cuidados que constitui, como já foi referido no n.° 44 do presente acórdão, o obstáculo à livre prestação de serviços, isto é, à faculdade de um paciente recorrer ao prestador médico da sua escolha num Estado-Membro que não o de inscrição. Na perspectiva da livre prestação de serviços, não há, portanto, lugar a uma distinção consoante seja o paciente a pagar o montante das despesas efectuadas, solicitando posteriormente o respectivo reembolso, ou a caixa de seguro de doença ou o orçamento nacional a pagar directamente o prestador.

104.
    É à luz destas observações que se deve examinar se a supressão da exigência de autorização prévia, por parte das caixas de seguro de doença, para se beneficiar de cuidados de saúde não hospitalares, dispensados num Estado-Membro que não o de inscrição, é susceptível de pôr em causa as características essenciais do sistema de acesso aos cuidados de saúde nos Países Baixos.

105.
    Em primeiro lugar, no próprio quadro da aplicação do Regulamento n.° 1408/71, os Estados-Membros que tenham instituído um regime de prestações em espécie, ou mesmo um serviço nacional de saúde, devem prever mecanismos de reembolso, a posteriori, de cuidados dispensados noutro Estado-Membro que não o de inscrição. É o que acontece, por exemplo, no caso de as formalidades não terem podido ser cumpridas durante a estadia do interessado naquele Estado [v. artigo 34.° do Regulamento (CEE) n.° 574/72 do Conselho, de 21 de Março de 1972, que estabelece as modalidades de aplicação do Regulamento n.° 1408/71], ou quando o Estado-Membro de inscrição autorizou, nos termos do artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, o acesso aos cuidados no estrangeiro.

106.
    Em segundo lugar, como já foi referido no n.° 98 do presente acórdão, os segurados que se deslocam, sem autorização prévia, a um Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertencem, para aí receberem tratamento, só podem exigir a tomada a cargo dos custos dos tratamentos recebidos nos limites da cobertura garantida pelo regime de seguro de doença do Estado-Membro de inscrição. Assim, no caso vertente, resulta dos autos que, relativamente aos 3 806,35 euros pagos por V. G. Müller-Fauré a um prestador estabelecido na Alemanha, a Caixa de Zwijndrecht só pagaria, em qualquer dos casos, até ao montante de 221,03 euros, atendendo ao alcance da cobertura de seguro por ela garantida. De igual modo, as condições de concessão das prestações, na medida em que não sejam nem discriminatórias nem constitutivas de um entrave à livre circulação de pessoas, continuam a poder ser invocadas em caso de cuidados fornecidos num Estado-Membro que não o de inscrição. É assim, nomeadamente, no que respeita à exigência da consulta prévia de um médico generalista antes de consultar um médico especialista.

107.
    Em terceiro lugar, nada se opõe a que o Estado-Membro de inscrição onde exista um regime de prestações em espécie fixe os montantes de reembolso a que têm direito os pacientes que tenham recebido cuidados noutro Estado-Membro, desde que esses montantes assentem em critérios objectivos, não discriminatórios e transparentes.

108.
    Consequentemente, à luz dos elementos e argumentos apresentados ao Tribunal de Justiça, não se pode concluir que a supressão da exigência de uma autorização prévia emitida pelas caixas de seguro de doença a favor dos segurados nelas inscritos, com vista a permitir-lhes beneficiar dos cuidados de saúde, em especial não hospitalares, dispensados num Estado-Membro que não o de inscrição, seja susceptível de prejudicar as características essenciais do regime neerlandês de seguro de doença.

109.
    Tendo em conta o conjunto das considerações precedentes, deve responder-se às questões prejudiciais apresentadas que:

-    os artigos 59.° e 60.° do Tratado devem ser interpretados no sentido de que não se opõem à legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa nos processos principais, que, por um lado, subordina a tomada a cargo de cuidados de saúde hospitalares dispensados num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertence o segurado, por um prestador com o qual esta última não celebrou qualquer convénio, à obtenção de uma autorização prévia junto da mesma caixa e, por outro, submete a concessão dessa autorização à condição de que o tratamento médico do segurado o exija. Nesta medida, a autorização só pode ser recusada por esse motivo, quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser oportunamente dispensado num estabelecimento que tenha celebrado um convénio com a referida caixa;

-    inversamente, os artigos 59.° e 60.° do Tratado opõem-se a essa mesma legislação na medida em que subordine a tomada a cargo de cuidados não hospitalares dispensados noutro Estado-Membro, por uma pessoa ou um estabelecimento com os quais a caixa de seguro de doença onde o segurado está inscrito não celebrou qualquer convénio, à obtenção de uma autorização prévia junto desta última, quando a legislação em causa institua um regime de prestações em espécie por força do qual os segurados têm direito não ao reembolso das despesas efectuadas com cuidados médicos mas aos próprios cuidados médicos dispensados gratuitamente.

Quanto às despesas

110.
    As despesas efectuadas pelos Governos neerlandês, belga, dinamarquês, alemão, espanhol, irlandês, italiano, finlandês, sueco, do Reino Unido, islandês e norueguês, e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Centrale Raad van Beroep, por despacho de 9 de Outubro de 1999, declara:

-    os artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) e 60.° do Tratado CE (actual artigo 50.° CE) devem ser interpretados no sentido de que não se opõem à legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa nos processos principais, que, por um lado, subordina a tomada a cargo de cuidados de saúde hospitalares dispensados num Estado-Membro que não o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertence o segurado, por um prestador com o qual esta última não celebrou qualquer convénio, à obtenção de uma autorização prévia junto da mesma caixa e, por outro, submete a concessão dessa autorização à condição de que o tratamento médico do segurado o exija. Nesta medida, a autorização só pode ser recusada por esse motivo, quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser oportunamente dispensado num estabelecimento que tenha celebrado um convénio com a referida caixa;

-    inversamente, os artigos 59.° e 60.° do Tratado opõem-se a essa mesma legislação na medida em que subordine a tomada a cargo de cuidados não hospitalares dispensados noutro Estado-Membro, por uma pessoa ou um estabelecimento com os quais a caixa de seguro de doença onde o segurado está inscrito não celebrou qualquer convénio, à obtenção de uma autorização prévia junto desta última, quando a legislação em causa institua um regime de prestações em espécie por força do qual os segurados têm direito não ao reembolso das despesas efectuadas com cuidados médicos mas aos próprios cuidados médicos dispensados gratuitamente.

Rodríguez Iglesias
Wathelet
Schintgen

Timmermans

Edward
La Pergola

Jann

Macken
Colneric

von Bahr

Cunha Rodrigues

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 13 de Maio de 2003.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: neerlandês.