Language of document : ECLI:EU:C:2017:878

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 21 de novembro de 2017 (1)

Processo C191/16

Romano Pisciotti

contra

Bundesrepublik Deutschland

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigos 18.o e 21.o TFUE — Acordo UE‑USA sobre a extradição — Disposição constitucional de um Estado‑Membro que proíbe a extradição dos seus próprios nacionais para Estados terceiros — Tratamento diferente dos nacionais de outros Estados‑Membros — Ação que tem por objeto a declaração de que uma extradição para os Estados Unidos de um nacional de outro Estado‑Membro constitui uma violação manifesta do direito da União que implica a responsabilidade do Estado‑Membro em questão»






1.        O presente pedido de decisão prejudicial convida o Tribunal de Justiça a interpretar os artigos 18.o e 21.o TFUE no âmbito da extradição e oferece‑lhe a ocasião para precisar o alcance do seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (2).

2.        O Tribunal de Justiça deverá, assim, declarar se, em circunstâncias como as do litígio no processo principal, os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que um Estado‑Membro ao qual um Estado terceiro, no âmbito de um acordo de extradição entre a União Europeia, e este último Estado, submeteu um pedido de extradição relativo a um cidadão da União nacional de outro Estado‑Membro, que se deslocou para o Estado‑Membro requerido, dê seguimento a esse pedido. Nos desenvolvimentos que se seguem, proporei ao Tribunal de Justiça, com base nas orientações que decorrem do acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (3), que responda a esta questão em sentido negativo.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

3.        O Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre extradição, de 25 de junho de 2003 (4), prevê, no seu artigo 10.o, intitulado «Pedidos de extradição ou entrega apresentados por vários Estados»:

«1.      Se o Estado requerido receber pedidos do Estado requerente e de qualquer outro Estado ou Estados para a extradição da mesma pessoa, pela mesma infração ou por infrações diferentes, a autoridade de execução do Estado requerido deve determinar qual o Estado, se for o caso, a que irá entregar a pessoa.

2.      Se um Estado‑Membro requerido receber um pedido de extradição dos Estados Unidos da América e um pedido de entrega ao abrigo do mandato de detenção europeu, para a mesma pessoa, para a mesma infração ou para infrações distintas, a autoridade competente do Estado‑Membro requerido deve determinar a que Estado entregará a pessoa. Para o efeito, a autoridade competente deve ser a autoridade executiva do Estado‑Membro requerido, se, ao abrigo do tratado bilateral de extradição em vigor entre os Estados Unidos e os Estados‑Membros, as decisões sobre pedidos concorrentes forem por ela tomados; salvo disposição do tratado bilateral de extradição, a autoridade competente deve ser designada pelo Estado‑Membro em causa, nos termos do artigo 19.o

3.      Ao tomar a sua decisão, nos termos dos n.os 1 e 2, o Estado requerido deve atender a todos os elementos relevantes, incluindo, ainda que não exclusivamente, os elementos já previstos no tratado de extradição aplicável, e, quando não se encontrem previstos, os seguintes:

a)      O facto de os pedidos serem apresentados ao abrigo de um tratado;

b)      O lugar em que foi cometida cada uma das infrações;

c)      Os interesses respetivos dos Estados requerentes;

d)      A gravidade das infrações;

e)      A nacionalidade da vítima;

f)      A possibilidade de uma eventual extradição subsequente entre os Estados requerentes; e

g)      A ordem cronológica de receção dos pedidos dos Estados requerentes.»

4.        O artigo 17.o deste acordo, intitulado «Não derrogação», dispõe:

«1.      O presente acordo não obsta a que o Estado requerido invoque motivos de recusa, relacionados com matérias não reguladas pelo presente acordo, que se encontrem previstos ao abrigo de um tratado bilateral de extradição entre um Estado‑Membro e os Estados Unidos da América.

2.      Quando os princípios constitucionais ou as decisões judiciais transitadas em julgado do Estado requerido possam obstar ao cumprimento da sua obrigação de extraditar e a resolução dessa questão não esteja prevista no presente acordo nem no tratado bilateral aplicável, realizar‑se‑ão consultas entre o Estado requerido e o Estado requerente.»

B.      Direito alemão

1.      Lei Fundamental

5.        O artigo 16.o, n.o 2, da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha), de 23 de maio de 1949 (5), com a última alteração introduzida através do artigo 1.o da Lei de 23 de dezembro de 2014 (6), dispõe:

«Nenhum alemão pode ser extraditado para o estrangeiro. A lei pode prever uma regra derrogatória em caso de extradição para um Estado‑Membro da União Europeia ou para um tribunal internacional, desde que os princípios do Estado de Direito sejam garantidos.»

2.      IRG

6.        A Gesetz über internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei sobre a cooperação judiciária internacional em matéria penal), de 23 de dezembro de 1982 (7), prevê, no seu § 12, intitulado «Autorização da extradição»:

«A extradição só pode ser autorizada após ter sido declarada admissível pelo tribunal.»

7.        O § 13, n.o 1, da IRG, intitulado «Competência material», dispõe:

«1.      Cabe […] ao Oberlandsgericht [(Tribunal Regional Superior)] emitir as decisões judiciais. Das decisões do Oberlandsgericht [(Tribunal Regional Superior)] não cabe recurso […]»

8.        Nos termos do § 23 da IRG, intitulado «Decisões sobre as objeções formuladas pelo suspeito»:

«Cabe ao Oberlandsgericht [(Tribunal Regional Superior)] decidir sobre as objeções formuladas pelo suspeito contra o mandado de detenção para efeitos de extradição ou contra a execução do mandado.»

9.        O § 74, n.o 1, da IRG prevê:

«O Ministério federal da Justiça e da Proteção dos Consumidores pronuncia‑se sobre os pedidos de cooperação judiciária estrangeiros e sobre a apresentação de pedidos de cooperação judiciária a Estados estrangeiros em concertação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e com outros ministérios federais cuja área de atividade esteja relacionada com a cooperação judiciária.»

II.    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10.      Sendo suspeito, desde 2007, de ter participado num acordo anticoncorrencial nos Estados Unidos, Romano Pisciotti, nacional italiano, foi objeto de um pedido de extradição, para efeitos de exercício da ação penal por parte das autoridades americanas.

11.      Em 26 de agosto de 2010, foi emitido contra o mesmo um mandado de detenção do US District Court for the Southern District of Florida in Fort Lauderdale (Tribunal Federal dos Estados Unidos da América da circunscrição sul do Estado da Florida, em Fort Lauderdale) bem como uma acusação do grande júri deste mesmo órgão jurisdicional. R. Pisciotti era acusado de fazer parte de um grupo de trabalho constituído por representantes comerciais de empresas produtoras de mangueiras marinhas que tinham falseado a concorrência repartindo entre si o mercado da venda dessas mangueiras, na Florida (Estados Unidos) e noutros lugares, entre 1999 e o final de 2006.

12.      Em 17 de junho de 2013, R. Pisciotti foi detido por agentes da polícia federal alemã quando o seu voo, proveniente da Nigéria e com destino a Itália, fez escala no aeroporto de Frankfurt am Main (Francoforte do Meno, Alemanha).

13.      Em 18 de junho de 2013, R. Pisciotti foi presente ao Amstgericht Frankfurt am Main (Tribunal de Primeira Instância de Francoforte do Meno, Alemanha) para efeitos da tramitação do pedido de extradição americano. Declarou que se opunha a uma extradição informal e simplificada.

14.      Com base no despacho proferido pelo Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Francoforte do Meno, Alemanha) em 24 de junho de 2013, R. Pisciotti foi colocado em detenção provisória com vista à sua extradição. Em 7 de agosto de 2013, os Estados Unidos da América à República Federal da Alemanha apresentaram um pedido formal de extradição.

15.      Em 16 de agosto de 2013, o Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Francoforte do Meno) ordenou a manutenção da detenção provisória para efeitos de extradição como detenção formal para efeitos de extradição.

16.      Por despacho de 22 de janeiro de 2014, o Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Francoforte do Meno) declarou admissível a extradição de R. Pisciotti.

17.      Em 6 de fevereiro de 2014, R. Pisciotti apresentou ao Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal, Alemanha) um pedido de medidas provisórias destinado a impedir a execução do despacho do Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Francoforte do Meno) de 22 de janeiro de 2014. O Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal) indeferiu este pedido por despacho de 17 de fevereiro de 2014.

18.      Por carta de 26 de fevereiro de 2014, R. Pisciotti indicou ao Bundesministerium der Justiz (Ministério Federal da Justiça, Alemanha) que a sua extradição era contrária ao direito da União, na medida em que uma aplicação literal do artigo 16.o, n.o 2, primeiro período, da Lei Fundamental e limitada apenas aos nacionais alemães violaria o princípio geral da não‑discriminação.

19.      Em 17 de março de 2014, o Governo alemão autorizou a extradição de R. Pisciotti, que foi executada em 3 de abril de 2014.

20.      Nesse mesmo dia 17 de março, R. Pisciotti intentou no Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha), o órgão jurisdicional de reenvio, uma ação em que pedia que fosse declarada a responsabilidade da República Federal da Alemanha por ter autorizado a sua extradição para os Estados Unidos da América e que a mesma fosse condenada no pagamento de uma indemnização.

21.      R. Pisciotti declarou‑se culpado no processo penal contra ele intentado nos Estados Unidos e foi condenado numa pena de prisão de dois anos, à qual foi deduzido o período de nove meses e dezasseis dias de detenção na Alemanha, bem como numa multa de 50 000 dólares (USD) (cerca de 42 671 euros). R. Pisciotti cumpriu a sua pena de prisão nos Estados Unidos até à sua libertação, em 14 de abril de 2015.

22.      O órgão jurisdicional de reenvio precisa que, por força da jurisprudência do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal), a República Federal da Alemanha está sujeita à obrigação que decorre do artigo 1.o, n.o 3, e do artigo 20.o, n.o 3, da Lei Fundamental de proceder à sua própria fiscalização da legalidade de uma autorização de extradição bem como de respeitar os eventuais compromissos de direito internacional. O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal) declarou, nomeadamente no caso de R. Pisciotti, que a proibição da discriminação em razão da nacionalidade prevista no artigo 18.o TFUE não é aplicável à extradição para Estados terceiros com fundamento em que esta matéria não é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

23.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, ao contrário do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal), lhe parece que o direito da União é aplicável ao caso em apreço. Salienta que R. Pisciotti exerceu o direito de circulação conferido pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, ao fazer escala em Francoforte do Meno, na sua viagem de avião da Nigéria para Itália. Acresce que a extradição para os Estados Unidos poderia igualmente, na sua opinião, ser abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União em razão do Acordo UE‑USA.

24.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o artigo 17.o, n.o 2, deste acordo poderia, contudo, ser entendido no sentido de que introduziu uma exceção à aplicação do direito da União e de poder, como tal, justificar uma discriminação baseada na nacionalidade. Inclina‑se, todavia, no sentido de que tal justificação não é aplicável, atendendo ao direito primário.

25.      Em caso de violação do direito da União, este órgão jurisdicional pretende saber se tal violação é «suficientemente caracterizada» para conferir um direito a indemnização. Indica, baseando‑se no acórdão de 4 de julho de 2000, Haim (8), que se inclina no sentido de uma resposta afirmativa, salientando que, na sua opinião, o Estado dispunha apenas de uma margem de apreciação extremamente reduzida, ou mesmo inexistente. Tem, contudo, uma dúvida a este respeito, na medida em que a decisão de extradição é tomada por um Estado na sequência de um exame jurisdicional da admissibilidade da extradição. Ora, em matéria de responsabilidade do Estado por um erro cometido por um órgão jurisdicional, resulta do acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (9), que é exigida uma violação «manifesta». Acresce que não existia jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a questão quando a República Federal da Alemanha adotou a sua decisão, tendo‑se baseado nas sentenças do Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Francoforte do Meno) e do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal), segundo as quais a questão da extradição de R. Pisciotti não era abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

26.      Nestas condições, o Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1). a)      A extradição de um Estado‑Membro para um país terceiro constitui matéria que, independentemente do caso concreto, nunca está abrangida pelo âmbito de aplicação material dos Tratados, pelo que não é de ter em conta o princípio da não discriminação de direito da União consagrado no artigo 18.o, [primeiro parágrafo], TFUE na aplicação (literal) de uma norma constitucional (em concreto: o artigo 16.o, n.o 2, primeiro período, da [Lei Fundamental]), que apenas proíbe a extradição de cidadãos nacionais para países terceiros?

b)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: a resposta à primeira questão será diferente se a extradição de um Estado‑Membro para os Estados Unidos da América se basear no Acordo [EU‑USA] sobre extradição?

2)      Se a aplicabilidade dos Tratados à extradição entre os Estados‑Membros e os Estados Unidos da América não estiver excluída, à partida:

Devem o artigo 18.o, [primeiro parágrafo], TFUE e a jurisprudência do Tribunal de Justiça a ele relativa ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro viola injustificadamente o princípio da não discriminação consagrado no artigo 18.o, [primeiro parágrafo], TFUE se, com base numa norma constitucional (em concreto: o artigo 16.o, n.o 2, primeiro período, da [Lei Fundamental]), em pedidos de extradição de países terceiros, tratar de forma desigual os seus nacionais e os nacionais de outros Estados‑Membros, ao extraditar apenas estes últimos?

3)      Se nos casos anteriormente referidos se considerar que há uma violação do princípio geral da não discriminação consagrado no artigo 18.o, [primeiro parágrafo], TFUE:

Deve a jurisprudência do Tribunal de Justiça ser entendida no sentido de que, numa situação como a presente, em que a autorização da extradição por parte da autoridade competente está obrigatoriamente sujeita a fiscalização da legalidade no âmbito de um processo judicial, cujo resultado, contudo, só vincula essa autoridade se a extradição for declarada ilegal, ocorre uma violação suficientemente caracterizada no caso de uma violação simples do princípio da não discriminação consagrado no artigo 18.o, [primeiro parágrafo], TFUE ou é necessária uma violação manifesta?

4)      Caso não seja necessária uma violação manifesta:

Deve a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia ser interpretada no sentido de que não deve ser reconhecida uma violação suficientemente caracterizada num caso como o presente desde logo se, na falta de jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a este tipo de casos (em concreto: o âmbito de aplicação material do princípio geral da não discriminação consagrado no artigo 18.o, [primeiro parágrafo], TFUE no quadro da extradição entre os Estados‑Membros e os Estados Unidos da América), a cúpula da Administração nacional puder, para fundamentar a sua decisão, fazer referência a decisões anteriores dos tribunais nacionais relativas à mesma questão?»

III. Análise

27.      Importa salientar que a extradição de R. Pisciotti pela República Federal da Alemanha para os Estados Unidos da América já foi executada, pelo que, no âmbito do litígio no processo principal, o que R. Pisciotti invoca é a responsabilidade desse Estado‑Membro pela violação do direito da União.

28.      Segundo jurisprudência constante, o princípio da responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados aos particulares por violações do direito da União que lhe sejam imputáveis é inerente à ordem jurídica da União. O Tribunal de Justiça declarou que os particulares lesados têm direito a reparação, a título dessa responsabilidade, desde que estejam preenchidos três requisitos, a saber, que a regra do direito da União violada tenha por objeto conferir‑lhes direitos, que a violação dessa regra seja suficientemente caracterizada e que haja um nexo de causalidade direto entre essa violação e o dano sofrido pelos particulares (10).

29.      O pressuposto necessário à imputação da responsabilidade a um Estado‑Membro é, evidentemente, a existência de uma violação do direito da União por parte desse Estado‑Membro. No caso em apreço, há que determinar, portanto, se a extradição de R. Pisciotti pela República Federal da Alemanha para os Estados Unidos da América constitui uma violação do direito da União.

30.      R. Pisciotti alega, a este respeito, que a regra nacional contida no artigo 16.o, n.o 2, da Lei Fundamental, por força da qual a República Federal da Alemanha não extradita os seus próprios nacionais, se opunha a que este Estado‑Membro procedesse à sua extradição com base no princípio da não‑discriminação em razão da nacionalidade.

31.      Importa, assim, examinar se os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que os nacionais de um Estado‑Membro, que não seja o Estado‑Membro requerido, devem beneficiar igualmente da regra que proíbe a extradição por esse Estado‑Membro dos seus próprios nacionais.

32.      Parece‑nos que o Tribunal de Justiça respondeu em grande parte a esta questão, no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (11), no contexto da aplicação de um acordo de extradição celebrado entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro.

33.      Desta vez, o pedido de decisão prejudicial inscreve‑se no contexto da aplicação de um acordo de extradição celebrado entre a União e um Estado terceiro, a saber, os Estados Unidos da América.

34.      Observamos que o Acordo UE‑USA não contém qualquer regra que preveja ou, pelo contrário, que proíba uma recusa de extraditar pelo facto de o pedido de extradição dizer respeito a um nacional do Estado requerido. Em termos mais amplos, como a Comissão Europeia, acertadamente, salienta nas suas observações, este acordo não contém qualquer regra relativa à extradição dos nacionais do próprio Estado ou dos nacionais de outros Estados‑Membros a partir do Estado‑Membro requerido para o Estado terceiro requerente. O artigo 17.o do Acordo UE‑USA deixa aos Estados que são partes no mesmo a possibilidade de invocarem fundamentos de recusa decorrentes, nomeadamente, de um tratado bilateral de extradição ou dos princípios constitucionais do Estado requerido. A existência do Acordo UE‑USA não tem, portanto, como consequência a total supressão da competência dos Estados‑Membros nesta matéria.

35.      Assim, é efetivamente no exercício da sua competência que um Estado‑Membro, como a República Federal da Alemanha, prevê, no seu direito constitucional, a regra segundo a qual não extradita os seus próprios nacionais. Tal regra consta igualmente do artigo 7.o do Auslieferungsvertrag zwischen der Bundesrepublik Deutschland und den Vereinigten Staaten von Amerika (Tratado de Extradição entre a República Federal da Alemanha e os Estados Unidos da América), de 20 de junho de 1978 (12).

36.      Ora, como o Tribunal de Justiça recordou no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (13), em situações abrangidas pelo direito da União, as regras nacionais em causa devam respeitar este último (14).

37.      Em particular, ao proibir «toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade», o artigo 18.o TFUE impõe a igualdade de tratamento das pessoas que se encontrem numa situação abrangida pelo âmbito de aplicação dos Tratados (15).

38.      A situação em questão no litígio no processo principal é, sem qualquer dúvida, abrangida pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, por duas razões.

39.      Em primeiro lugar, o pedido de extradição de R. Pisciotti foi feito pelos Estados Unidos da América à República Federal da Alemanha no âmbito da aplicação do Acordo de extradição UE‑USA, posteriormente à sua entrada em vigor. Este pedido insere‑se efetivamente, portanto, no âmbito de aplicação de um ato abrangido pelo direito da União.

40.      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça recordou, no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (16), que, numa situação em que as regras em matéria de extradição são da competência dos Estados‑Membros, para apreciar o âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, importa ler este artigo em conjugação com as disposições do Tratado FUE sobre a cidadania da União. As situações abrangidas por este âmbito de aplicação incluem, assim, nomeadamente, as que se enquadram no exercício da liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros, tal como conferida pelo artigo 21.o TFUE (17).

41.      No processo principal, R. Pisciotti, nacional italiano, exerceu, na sua qualidade de cidadão da União, o seu direito de se circular livremente na União ao se deslocar para a Alemanha, pelo que a situação em questão no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, que contém o princípio da não‑discriminação em razão da nacionalidade (18).

42.      Resulta do que precede que, na medida em que a situação de R. Pisciotti é abrangida pelo direito da União, o Estado‑Membro requerido era obrigado, no âmbito do tratamento do pedido de extradição formulado pelos Estados Unidos da América contra essa pessoa, a respeitar o princípio da não‑discriminação em razão da nacionalidade previsto no artigo 18.o TFUE.

43.      A este respeito, por analogia com o que o Tribunal de Justiça declarou no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (19), regras nacionais de extradição como as que estão em causa no processo principal introduzem uma diferença de tratamento consoante a pessoa em questão seja um nacional desse Estado ou um nacional de outro Estado‑Membro, na medida em que levam a não conceder aos nacionais de outros Estados‑Membros, como R. Pisciotti, a proteção contra a extradição de que gozam os nacionais desse Estado. Ao fazê‑lo, tais regras são suscetíveis de afetar a liberdade de circulação dos primeiros na União (20).

44.      Daqui resulta, segundo o Tribunal de Justiça, que, numa situação como a que está em causa no processo principal, a desigualdade de tratamento consistente em permitir a extradição de um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, como R. Pisciotti, traduz‑se numa restrição à liberdade de circulação, na aceção do artigo 21.o TFUE (21). Tal restrição só pode ser justificada se se basear em considerações objetivas e se for proporcionada ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional (22).

45.      No seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (23), o Tribunal de Justiça teve em conta a justificação que consiste em evitar o risco de impunidade (24). A este respeito, recordou que, nos termos do artigo 3.o, n.o 2, TUE, a União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, bem como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno (25). Segundo o Tribunal de Justiça, o objetivo de evitar o risco de impunidade das pessoas que cometeram uma infração insere‑se neste contexto e deve ser considerado legítimo em direito da União (26).

46.      Contudo, como o Tribunal de Justiça recordou no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (27), medidas restritivas de uma liberdade fundamental como a prevista no artigo 21.o TFUE só podem, todavia, ser justificadas por considerações objetivas se forem necessárias à proteção dos interesses que visam garantir e apenas se esses objetivos não puderem ser alcançados através de medidas menos restritivas (28).

47.      Em circunstâncias como as do litígio no processo principal e atendendo aos elementos submetidos ao Tribunal de Justiça, considero que não existiam medidas alternativas à extradição menos lesivas do exercício dos direitos conferidos pelo artigo 21.o TFUE que tivessem permitido alcançar de modo igualmente eficaz o objetivo que consistia em evitar o risco de impunidade de uma pessoa, como R. Pisciotti, suspeita de ter cometido um crime no momento em que foi submetido à República Federal da Alemanha o pedido de extradição dessa pessoa, emitido pelos Estados Unidos da América.

48.      Com efeito, por um lado, resulta das explicações que o Governo alemão apresentou ao Tribunal de Justiça na audiência que, ao contrário do que o representante de R. Pisciotti sustentou nas suas observações, o artigo 7.o, n.o 2, do Strafgesetzbuch (Código Penal) (29) não permitia que fosse intentado um procedimento penal na República Federal da Alemanha contra R. Pisciotti relativamente a infrações pretensamente cometidas num Estado terceiro. Efetivamente, não estava preenchido um dos requisitos impostos por este artigo para que tal competência penal subsidiária pudesse ser exercida, a saber, o facto de a extradição requerida não poder ser executada. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a interpretação do referido artigo avançada pelo Governo alemão no âmbito do presente processo é correta.

49.      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (30), que os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que, quando um Estado‑Membro para o qual se deslocou um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, recebe um pedido de extradição de um Estado terceiro com o qual o primeiro Estado‑Membro celebrou um acordo de extradição, deve informar o Estado‑Membro da nacionalidade do cidadão e, sendo caso disso, a pedido deste último Estado‑Membro, entregar‑lhe esse cidadão, em conformidade com as disposições da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (31), desde que esse Estado‑Membro seja competente, à luz do seu direito nacional, para proceder criminalmente contra essa pessoa por atos praticados fora do seu território nacional (32).

50.      Saliento que esta obrigação do Estado‑Membro requerido de informar o Estado‑Membro da nacionalidade do cidadão da União foi estabelecida pelo Tribunal de Justiça numa situação, expressamente destacada pelo Tribunal de Justiça (33), em que não existia uma convenção de extradição entre a União e Estado terceiro em questão nesse processo.

51.      Observo igualmente que vários Estados‑Membros que apresentaram observações no âmbito do presente processo salientaram as dificuldades de ordem tanto jurídica como prática que resultam da solução adotada pelo Tribunal de Justiça no n.o 50 do seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (34). Em particular, foi afirmado que o Estado‑Membro da nacionalidade de um cidadão da União objeto de um pedido de extradição não disporá provavelmente, na maioria dos casos, de elementos de informação que lhe permitam emitir um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal, e seguidamente exercer a ação penal contra a pessoa entregue. Ficaria, então, frustrado o objetivo de evitar o risco de impunidade seria. Por outro lado, tanto o artigo 16.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 como, no caso em apreço, o artigo 10.o, n.os 2 e 3, do Acordo UE‑USA, seriam contrários à ideia de que um mandado de detenção europeu deve sistematicamente gozar de prioridade sobre um pedido de extradição.

52.      Caso o Tribunal de Justiça pretenda confirmar tal obrigação do Estado‑Membro requerido de informar o Estado‑Membro da nacionalidade do cidadão da União no âmbito da aplicação de um acordo de extradição como o que existe entre a União e os Estados Unidos da América, saliento que, como o Governo alemão indicou nas suas observações escritas e na audiência, a República Italiana, da qual o autor é nacional, foi mantida informada pelas autoridades alemãs. Assim, a Direção da Polícia Federal do aeroporto de Francoforte do Meno informou o Consulado Geral de Itália que tinha detido e colocado R. Pisciotti sob prisão preventiva no posto de polícia local. O relatório transmitido continha, em particular, informações sobre o mandado de detenção internacional que tinha dado origem à detenção. Além disso, o consulado geral de Itália foi informado após a comparência de R. Pisciotti em tribunal em 18 de junho de 2013. Na sequência destas comunicações houve igualmente consultas entre o consulado geral de Itália em Francoforte do Meno e o Ministério da Justiça do Land de Hesse. O Ministério da Justiça do Land de Hesse informou, assim, o consulado geral de Itália que as objeções formuladas por R. Pisciotti tinham sido examinadas exaustivamente no despacho do Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Francoforte do Meno) de 22 de janeiro de 2014, e seguidamente indeferidas, e que o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal) tinha indeferido o pedido de medidas provisórias depois de ter examinado as objeções formuladas por R. Pisciotti.

53.      Resulta destes elementos que a República Italiana foi informada do pedido de extradição apresentado pelas autoridades americanas e que não emitiu nenhum mandando de detenção europeu entre o momento da detenção de R. Pisciotti e o momento da extradição deste último para os Estados Unidos da América (35).

54.      Admitindo, portanto, que a República Federal da Alemanha fosse obrigada a respeitar uma obrigação de informação como a estabelecida pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (36), há que constatar que não pode ser imputada a este Estado‑Membro qualquer violação do direito da União pela sua decisão de extraditar R. Pisciotti para os Estados Unidos da América. O referido Estado‑Membro não pode, portanto, ser responsabilizado em consequência de uma violação do direito da União, pelo que não há que examinar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio quanto à existência ou não de uma violação suficientemente caracterizada.

55.      Na sequência dos desenvolvimentos precedentes, proponho que se responda ao órgão jurisdicional de reenvio que, em circunstâncias como as do litígio no processo principal, os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado‑Membro, ao qual um Estado terceiro tenha apresentado, no âmbito de um acordo de extradição entre a União e este último Estado, um pedido de extradição relativo a um cidadão da União nacional de outro Estado‑Membro, que se deslocou para o Estado‑Membro requerido, dê seguimento a tal pedido.

IV.    Conclusão

56.      Atendendo a todas as considerações precedentes, propomos que às questões prejudiciais submetidas pelo Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha) se responda do seguinte modo:

Em circunstâncias como as do litígio no processo principal, os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado‑Membro, ao qual um Estado terceiro tenha apresentado, no âmbito de um acordo de extradição entre a União Europeia e este último Estado, um pedido de extradição relativo a um cidadão da União Europeia nacional de outro Estado‑Membro, que se deslocou para o Estado‑Membro requerido, dê seguimento a tal pedido.


1      Língua original: francês.


2      C‑182/15, EU:C:2016:630.


3      C‑182/15, EU:C:2016:630.


4      JO 2003, L 181, p. 27, a seguir «Acordo UE‑USA».


5      BGB1. 1949, p. 1.


6      BGB1. 2014 I, p. 2438, a seguir «Lei Fundamental»


7      BGB1. 1982 I, p. 2071, a seguir «IRG».


8      C‑424/97, EU:C:2000:357.


9      C‑224/01, EU:C:2003:513.


10      V., nomeadamente acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten (C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 41 e jurisprudência referida).


11      C‑182/15, EU:C:2016:630.


12      BGBl. 1980 II, p. 646. O artigo 7.o, n.os 1 e 3, deste tratado prevê:


      «1. As Partes contratantes não têm a obrigação de extraditar os seus próprios nacionais […]


      […]


      3. Se o Estado requerido não extraditar um dos seus próprios nacionais, submeterá o processo, a pedido do Estado requerente, às suas autoridades competentes para que, sendo caso disso, possa ser instaurado um procedimento penal […]»


13      C‑182/15, EU:C:2016:630.


14      V. n.o 27 deste acórdão bem como jurisprudência referida.


15      V. n.o 29 do referido acórdão bem como jurisprudência referida.


16      C‑182/15, EU:C:2016:630.


17      V. n.o 30 deste acórdão bem como jurisprudência referida.


18      V., por analogia, acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 31 e jurisprudência referida). V., igualmente, despacho de 6 de setembro de 2017, Peter Schotthöfer & Florian Steiner (C‑473/15, EU:C:2017:633, n.o 19 e jurisprudência referida).


19      C‑182/15, EU:C:2016:630.


20      V. n.o 32 deste acórdão.


21      V. n.o 33 do referido acórdão.


22      V. n.o 34 do mesmo acórdão bem como jurisprudência referida.


23      C‑182/15, EU:C:2016:630.


24      V. n.o 35 deste acórdão.


25      V. n.o 36 do referido acórdão.


26      V. n.o 37 do mesmo acórdão bem como jurisprudência referida.


27      C‑182/15, EU:C:2016:630.


28      V. n.o 38 deste acórdão bem como jurisprudência referida.


29      BGB1. 1998 I, p. 3322. Resulta deste artigo que, no que respeita a uma infração cometida no estrangeiro, o direito penal alemão é aplicável quando o ato é punível no Estado em que foi cometido ou quando o lugar em que o ato foi cometido não é abrangido por qualquer jurisdição penal, e quando o seu autor, sendo estrangeiro no momento dos factos, tenha sido encontrado no território nacional e, embora a lei da extradição permitisse a sua extradição em função do tipo de infração, não tenha sido extraditado por não ter sido apresentado nenhum pedido de extradição dentro de um prazo razoável ou a mesma ter sido recusada ou por a própria extradição não poder ser executada.


30      C‑182/15, EU:C:2016:630.


31      JO 2002, L 190, p. 1.


32      V. n.o 50 deste acórdão.


33      V. n.os 46 e 47 do referido acórdão.


34      C‑182/15, EU:C:2016:630.


35      A explicação da inexistência de um mandado de detenção europeu emitido pela República Italiana, tendo em conta, nomeadamente, as declarações feitas a este respeito pelo representante da República Federal da Alemanha na audiência, poderia ser circunstância de a infração imputada a R. Pisciotti não ser punível penalmente em Itália e de, em qualquer caso, por se tratar de factos sem qualquer conexão com este Estado‑Membro, ser muito difícil o exercício da ação penal no referido Estado‑Membro.


36      C‑182/15, EU:C:2016:630.