Language of document : ECLI:EU:C:2010:319

TOMADA DE POSIÇÃO DO ADVOGADO‑GERAL

JÁN MAZÁK

apresentada em 7 de Junho de 2010 1(1)

Processos apensos C‑188/10 e C‑189/10

Aziz Melki e Sélim S. Abdeli

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Cour de cassation (França)]

«Princípios gerais do direito da União – Recurso prévio obrigatório para o Conseil constitutionnel quando a pretensa não‑conformidade de uma disposição de direito interno com a Constituição resulta da sua incompatibilidade com as disposições do direito da União – Irrelevância para a faculdade ou a obrigação de reenvio ao Tribunal de Justiça em aplicação do artigo 267.° TFUE – Primado do direito da União sobre o direito nacional – Livre circulação de pessoas – Ausência de controlo das pessoas nas fronteiras internas – Artigos 67.° TFUE e 72.° TFUE – Regulamento (CE) n.° 562/2006 – Artigos 20.° e 21.°»





I –    Introdução

1.        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação dos artigos 67.° TFUE e 267.° TFUE. A primeira questão submetida pela Cour de cassation (França) diz respeito à conformidade, com o artigo 267.° TFUE, da Lei Orgânica francesa n.° 2009‑1523, de 10 de Dezembro de 2009, relativa à aplicação do artigo 61‑1 da Constituição da República Francesa, que institui a «questão prioritária de constitucionalidade» em aplicação do referido artigo 61‑1. Este novo mecanismo é fruto de uma reforma constitucional, que entrou em vigor em 1 de Março de 2010, que instaura a fiscalização da constitucionalidade das disposições legislativas a posteriori. A Cour de cassation pede ao Tribunal de Justiça que precise se o artigo 267.° TFUE se opõe aos artigos 23‑2 e 23‑5 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, de 7 de Novembro de 1958, sobre a Lei Orgânica do Conseil constitutionnel, conforme alterada pela Lei Orgânica francesa n.° 2009‑1523 (a seguir «Decreto‑Lei n.° 58‑1067»), que impõem aos órgãos jurisdicionais nacionais que se pronunciem com prioridade sobre a transmissão, ao Conseil constitutionnel, da questão de constitucionalidade que lhes é submetida, na medida em que essa questão invoca a não-conformidade de um diploma de direito interno com a Constituição da República Francesa, devido ao facto de aquele ser contrário às disposições do direito da União.

2.        A segunda questão submetida é relativa à conformidade do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês, que autoriza o controlo da identidade de qualquer pessoa pelas autoridades policiais indicadas na zona compreendida entre a fronteira terrestre da França com os Estados Partes na Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em Schengen (Luxemburgo), em 19 de Junho de 1990 (a seguir «Convenção assinada em Schengen em 19 Junho de 1990»), e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira, em território francês, com o artigo 67.° TFUE, que prevê a ausência de controlos das pessoas nas fronteiras internas.

II – Quadro jurídico

A –    Direito da União

3.        Nos termos do artigo 20.° do Regulamento (CE) n.º 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO L 105, p. 1):

«As fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local sem que se proceda ao controlo das pessoas, independentemente da sua nacionalidade.»

4.        O artigo 21.° deste regulamento, intitulado «Controlos no interior do território», prevê:

«A supressão do controlo nas fronteiras internas não prejudica:

a)      O exercício das competências de polícia pelas autoridades competentes dos Estados‑Membros, ao abrigo do direito nacional, na medida em que o exercício dessas competências não tenha efeito equivalente a um controlo de fronteira, o mesmo se aplicando nas zonas fronteiriças. Na acepção do primeiro período, o exercício das competências de polícia não pode considerar‑se equivalente ao exercício de controlos de fronteira, nomeadamente nos casos em que essas medidas policiais:

i)      não tiverem como objectivo o controlo fronteiriço,

ii)      se basearem em informações policiais de carácter geral e na experiência em matéria de possíveis ameaças à ordem pública e se destinarem particularmente a combater o crime transfronteiras,

iii)      forem concebidas e executadas de forma claramente distinta dos controlos sistemáticos de pessoas nas fronteiras externas,

iv)      forem aplicadas com base em controlos por amostragem;

b)      Os controlos de segurança sobre as pessoas efectuados nos portos ou aeroportos pelas autoridades competentes, por força do direito de cada Estado‑Membro, pelos responsáveis portuários ou aeroportuários ou pelos transportadores, desde que estes controlos sejam igualmente efectuados sobre as pessoas que realizam viagens no interior de um Estado‑Membro;

c)      A possibilidade de um Estado‑Membro prever por lei a obrigação de posse ou porte de títulos e documentos;

d)      A obrigação imposta aos nacionais de países terceiros de assinalarem a sua presença no território de um Estado‑Membro, em conformidade com o artigo 22.° da Convenção de Schengen.»

5.        O artigo 37.° deste regulamento, intitulado «Comunicação de informações pelos Estados‑Membros», prevê:

«Até 26 de Outubro de 2006, os Estados‑Membros notificam a Comissão das respectivas disposições nacionais relativas às alíneas c) e d) do artigo 21.° […].

As informações comunicadas pelos Estados‑Membros serão publicadas na série C do Jornal Oficial da União Europeia

6.        Em aplicação do artigo 37.° do Regulamento n.° 562/2006, a República Francesa notificou o seguinte texto, relativo à obrigação de posse e de porte de títulos e de documentos por força do artigo 21.°, alínea c), deste regulamento:

«A legislação francesa prevê esta obrigação no artigo L. 611‑1 do Código da Entrada e Permanência dos Estrangeiros e do Direito de Asilo (Ceseda), que enuncia que, independentemente de qualquer controlo de identidade, as pessoas de nacionalidade estrangeira devem poder apresentar papéis ou documentos, ao abrigo dos quais estão autorizadas a circular ou a permanecer em França, a pedido dos oficiais da polícia judiciária e, sob as ordens e responsabilidade destes, dos agentes da polícia judiciária e dos agentes adjuntos da polícia judiciária» (2).

B –    Direito nacional

7.        O artigo 61‑1 da Constituição da República Francesa dispõe:

«Quando, num processo pendente num tribunal, for alegado que uma disposição legislativa atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição, pode essa questão ser submetida ao Conseil constitutionnel, através de reenvio do Conseil d’État ou da Cour de cassation, que se pronuncia dentro de um determinado prazo.

Uma lei orgânica determina as condições de aplicação do presente artigo.»

8.        O artigo 62 da Constituição da República Francesa dispõe:

«Uma disposição que seja declarada inconstitucional com fundamento no artigo 61 não pode ser promulgada nem aplicada.

Uma disposição que seja declarada inconstitucional com fundamento no artigo 61‑1 é revogada a contar da publicação da decisão do Conseil constitutionnel ou de data posterior fixada nessa decisão. O Conseil constitutionnel determina as condições e os limites dentro dos quais os efeitos produzidos pela disposição podem ser postos em causa.

As decisões do Conseil constitutionnel não são passíveis de recurso. São vinculativas para os poderes públicos e para todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.»

9.        O artigo 88‑1 da Constituição da República Francesa enuncia:

«A República participa na União Europeia, constituída por Estados que escolheram livremente exercer em comum algumas das suas competências, ao abrigo do Tratado sobre a União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, conforme resultam do Tratado assinado em Lisboa, em 1 de Dezembro 2007.»

10.      O artigo 1.° da Lei Orgânica n.° 2009‑1523 prevê:

«A seguir ao capítulo II do título II do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, de 7 de Novembro de 1958, sobre a Lei Orgânica do Conseil constitutionnel, é inserido um capítulo II bis, com a seguinte redacção:

Capítulo II bis

Da questão prioritária de constitucionalidade

Secção 1

Disposições aplicáveis nos tribunais cujos órgãos superiores são o Conseil d’État ou a Cour de cassation

Artigo 23‑1. − Nos tribunais cujos órgãos superiores são o Conseil d’État ou a Cour de cassation, o fundamento de que uma disposição legislativa atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição deve ser apresentado, sob pena de inadmissibilidade, em documento escrito separado e fundamentado. Tal fundamento pode ser suscitado, pela primeira vez, em instância de recurso. Não pode ser suscitado oficiosamente. […]

Artigo 23‑2. − O tribunal pronuncia‑se sem demora, através de decisão fundamentada, sobre a transmissão da questão prioritária de constitucionalidade ao Conseil d’État ou à Cour de cassation. Procede‑se a essa transmissão desde que estejam preenchidos os seguintes requisitos:

1°      A disposição controvertida seja aplicável ao litígio ou ao processo, ou constitua o fundamento do procedimento criminal;

2°      Não tenha já sido declarada conforme com a Constituição, nos fundamentos e no dispositivo de uma decisão do Conseil constitutionnel, salvo alteração das circunstâncias;

3°      A questão não seja desprovida de carácter sério.

Em qualquer caso, o tribunal, quando lhe sejam submetidos fundamentos contestando a conformidade de uma disposição legislativa, por um lado, com os direitos e liberdades garantidos pela Constituição e, por outro, com os compromissos internacionais da França, deve pronunciar‑se com prioridade sobre a transmissão da questão de constitucionalidade ao Conseil d’État ou à Cour de cassation.

A decisão de transmitir a questão sobe ao Conseil d’État ou à Cour de cassation no prazo de oito dias a contar do dia em que foi proferida, acompanhada dos articulados e pedidos das partes. A decisão não é susceptível de recurso. A recusa de transmissão da questão só pode ser impugnada por ocasião de um recurso interposto da decisão que regule a totalidade ou parte do litígio.

[…]

Secção 2

Disposições aplicáveis no Conseil d’État e na Cour de cassation

Artigo 23‑4. − No prazo de três meses a contar da recepção da transmissão prevista no artigo 23‑2 ou no último parágrafo do artigo 23‑1, o Conseil d’État ou a Cour de cassation pronuncia‑se sobre o reenvio da questão prioritária de constitucionalidade ao Conseil constitutionnel. Procede‑se a esse reenvio quando estiverem preenchidos os requisitos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 23‑2 e a questão for nova ou tiver carácter sério.

Artigo 23‑5. − O fundamento de que uma disposição legislativa atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição pode ser suscitado, incluindo pela primeira vez em cassação, por ocasião de uma instância no Conseil d’État ou na Cour de cassation. O fundamento deve ser apresentado, sob pena de inadmissibilidade, em articulado separado e fundamentado. Não pode ser suscitado oficiosamente.

Em qualquer caso, o Conseil d’État ou a Cour de cassation, quando lhe sejam submetidos fundamentos contestando a conformidade de uma disposição legislativa, por um lado, com os direitos e liberdades garantidos pela Constituição e, por outro, com os compromissos internacionais da França, deve pronunciar‑se com prioridade sobre o reenvio da questão de constitucionalidade ao Conseil constitutionnel.

O Conseil d’État ou a Cour de cassation dispõe do prazo de três meses a contar da apresentação do fundamento para proferir a sua decisão. A questão prioritária de constitucionalidade é submetida ao Conseil constitutionnel, quando estiverem preenchidos os requisitos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 23‑2 e a questão for nova ou tiver carácter sério.

Quando seja o Conseil constitutionnel a apreciar a questão, o Conseil d’État ou a Cour de cassation suspende a instância até que ele se tenha pronunciado.

[…]»

11.      O artigo L. 611‑1 do Ceseda prevê:

«Independentemente de qualquer controlo de identidade, as pessoas de nacionalidade estrangeira devem poder apresentar papéis ou documentos ao abrigo dos quais estão autorizadas a circular ou a permanecer em França, a pedido dos oficiais da polícia judiciária e, sob as ordens e responsabilidade destes, dos agentes da polícia judiciária e dos agentes adjuntos da polícia judiciária referidos nos artigos 20 e 21‑1 do Código de Processo Penal.

Na sequência de um controlo de identidade efectuado em aplicação dos artigos 78‑1, 78‑2 e 78‑2‑1 do Código de Processo Penal, as pessoas de nacionalidade estrangeira podem ser igualmente obrigadas a apresentar os papéis e documentos referidos no parágrafo anterior.»

12.      Nos termos do artigo 78‑1 do Código de Processo Penal francês:

«A aplicação das regras previstas no presente capítulo está sujeita ao controlo das autoridades judiciárias referidas nos artigos 12 e 13.

Qualquer pessoa que se encontre no território nacional deve aceitar submeter‑se a um controlo de identidade efectuado nas condições e pelas autoridades policiais referidas nos artigos seguintes.»

13.      O artigo 78‑2, primeiro a terceiro parágrafos, do Código de Processo Penal francês dispõe:

«Os oficiais da polícia judiciária e, sob as ordens e responsabilidade destes, os agentes da polícia judiciária e os agentes adjuntos da polícia judiciária referidos nos artigos 20 e 21‑1 podem pedir a comprovação da sua identidade, por quaisquer meios, a qualquer pessoa de quem haja razões plausíveis para suspeitar:

–        que cometeu ou tentou cometer uma infracção;

–        ou que se prepara para cometer um crime ou um delito;

–        ou que pode fornecer informações úteis para o inquérito, em caso de crime ou de delito;

–        ou que é objecto de investigações ordenadas por uma autoridade judiciária.

Mediante requisições escritas do Procurador da República, para efeitos de investigação e procedimento contra as infracções por ele indicadas, pode ser igualmente controlada a identidade de qualquer pessoa, segundo as mesmas modalidades, nos locais e pelo período de tempo determinados por este magistrado. Não constitui causa de nulidade dos procedimentos incidentais o facto de o controlo de identidade revelar infracções diferentes das referidas nas requisições do Procurador da República.

Pode ser igualmente controlada a identidade de qualquer pessoa, independentemente do seu comportamento, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, a fim de prevenir qualquer infracção à ordem pública, designadamente à segurança das pessoas ou dos bens.»

14.      O artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês dispõe:

«Numa zona compreendida entre a fronteira terrestre da França com os Estados Partes na Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira, em território francês, bem como nas zonas, acessíveis ao público, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias abertos ao tráfego internacional e designados por portaria, a identidade de qualquer pessoa pode também ser objecto de controlo, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, tendo em vista verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei. Quando este controlo seja feito num comboio que efectue uma ligação internacional, pode ter lugar durante a parte do trajecto entre a fronteira e a primeira paragem situada para além dos 20 quilómetros da fronteira. No entanto, no caso de linhas ferroviárias que efectuem uma ligação internacional e apresentem características especiais de serviço, o controlo pode igualmente ter lugar entre essa paragem e uma outra situada dentro dos 50 quilómetros seguintes. Estas linhas e paragens são designadas por portaria ministerial. Quando haja um troço de auto‑estrada com início na zona referida no primeiro período do presente parágrafo e a primeira portagem se situe para além da linha de 20 quilómetros, o controlo pode ainda ter lugar, até esta primeira portagem, nas áreas de estacionamento, bem como na própria portagem e nas áreas de estacionamento contíguas a esta. As portagens abrangidas por esta disposição são designadas por portaria. Não constitui causa de nulidade dos procedimentos incidentais o facto de o controlo de identidade revelar uma infracção diferente do não respeito das obrigações acima referidas.»

III – Quadro factual

15.      A. Melki e S. Abdeli, ambos de nacionalidade argelina, em situação irregular em França, foram controlados pela polícia, em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês, na zona situada entre a fronteira terrestre de França com a Bélgica e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira, em território francês. Em 23 de Março de 2010, o prefeito do Norte da República Francesa notificou a A. Melki e S. Abdeli, respectivamente, um despacho de condução à fronteira e uma decisão de manutenção em detenção em locais não sujeitos à Administração Penitenciária.

16.      A. Melki e S. Abdeli submeteram ao juiz competente em matéria de liberdades e de detenção, ao qual o prefeito apresentou um pedido de prorrogação dessa detenção, um articulado suscitando uma questão prioritária de constitucionalidade. Ambos sustentaram que o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição da República Francesa. Através de dois despachos de 25 de Março de 2010, o juiz competente em matéria de liberdades e de detenção ordenou a transmissão da seguinte questão à Cour de cassation:

«O artigo 78‑2, [quarto] parágrafo, do Código de Processo Penal atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição da República Francesa?»

17.      O juiz competente em matéria de liberdades e de detenção ordenou igualmente a prorrogação da detenção de A. Melki e S. Abdeli, por um período de quinze dias.

18.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, A. Melki e S. Abdeli, para sustentar que o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês é contrário à Constituição da República Francesa, invocam o artigo 88‑1 desta. Sustentam que os compromissos resultantes do Tratado de Lisboa, entre os quais o da liberdade de circulação das pessoas, têm valor constitucional, tendo em conta o artigo 88‑1 da Constituição, e que o artigo 78‑2 do Código de Processo Penal francês, que autoriza controlos nas fronteiras com os outros Estados‑Membros, é contrário ao princípio da livre circulação das pessoas enunciado no artigo 67.° TFUE, que prevê que a União Europeia assegura a ausência de controlos das pessoas nas fronteiras internas.

IV – Reenvio prejudicial

19.      Nos seus pedidos de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio refere, primeiramente, que resulta do artigo 23‑2 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067 que os juízes que conhecem de mérito não se podem pronunciar sobre a convencionalidade (3) de uma disposição legal, antes de submeter a questão de constitucionalidade. Além disso, em aplicação do artigo 62 da Constituição da República Francesa, as decisões do Conseil constitutionnel não são passíveis de recurso. São vinculativas para os poderes públicos e para todas as autoridades administrativas e jurisdicionais. Daí resulta, segundo a Cour de cassation, que os tribunais que conhecem de mérito estão privados, por efeito da Lei Orgânica n.° 2009‑1523, da possibilidade de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, antes de submeter a questão de constitucionalidade. Além disso, se o Conseil constitutionnel considerar que a disposição legislativa impugnada é conforme com o direito da União, deixam de poder, posteriormente a essa decisão, submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial. A Cour de cassation refere igualmente que, nos termos do artigo 23‑5 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, a Cour de cassation, nessa hipótese, também o não poderia fazer, apesar das disposições imperativas do artigo 267.° TFUE, nem se poderia pronunciar sobre a conformidade do texto com o direito da União.

20.      Em segundo lugar, a Cour de cassation interroga‑se sobre a conformidade das disposições do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês com o artigo 67.° TFUE. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 67.° TFUE não retoma a derrogação ao princípio da livre circulação, resultante da reserva da ordem pública ou da segurança nacional contida na convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990.

21.      Nestas circunstâncias, a Cour de cassation submeteu, através de dois pedidos de 16 de Abril de 2010, as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

«1)      O artigo 267.° [TFUE] opõe‑se a uma legislação como a resultante dos artigos 23‑2, segundo parágrafo, e 23‑5, segundo parágrafo, do [Decreto‑Lei] n.° 58‑1067 [...], [uma vez] que nessa questão é alegado que um diploma legal interno não está em conformidade com a Constituição, pelo facto de ser contrário a disposições de direito da União?

2)      O artigo 67.° [TFUE] opõe‑se a uma legislação como a resultante do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, que prevê que ‘[n]uma zona compreendida entre a fronteira terrestre de França com os Estados Parte na Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, e uma linha traçada a 20 quilómetros [dessa fronteira], em território francês, bem como nas zonas, acessíveis ao público, de portos, aeroportos, [estações] ferroviárias ou rodoviárias abertos ao tráfego internacional e designados por [portaria], a identidade de qualquer pessoa pode também ser objecto de controlo, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, tendo em vista verificar o respeito das obrigações de [posse, porte] e apresentação [dos títulos] e documentos previstos [na] lei. Quando este controlo seja feito num comboio que efectue uma ligação internacional, pode ter lugar durante a parte do trajecto entre a fronteira e a primeira paragem [situada para além dos] 20 quilómetros da fronteira. No entanto, no caso de linhas ferroviárias que efectuem uma ligação internacional e apresentem características especiais de serviço, o controlo pode igualmente ter lugar entre essa paragem e uma outra situada [dentro] dos 50 quilómetros seguintes. Estas linhas e paragens são designadas por [portaria] ministerial. Quando haja um troço de auto‑estrada com início na zona referida [no primeiro período] do presente parágrafo e a primeira portagem se situe [para] além da linha d[e] 20 quilómetros, o controlo pode ainda ter lugar, até esta primeira portagem, nas áreas de estacionamento, bem como na própria portagem e nas áreas de estacionamento contíguas a esta. As portagens abrangidas por esta disposição são designadas por [portaria]’?»

22.      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2010, os processos C‑188/10 e C‑189/10 foram apensados para efeitos da fase escrita, da fase oral e do acórdão.

23.      Nos seus pedidos de decisão prejudicial, a Cour de cassation pediu ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse com urgência.

24.      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2010, foi decidido que os presentes processos fossem submetidos a tramitação acelerada, em conformidade com o disposto no artigo 23.°‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça e no artigo 104.°‑A, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo deste último.

25.      Foram apresentadas observações escritas por A. Melki e S. Abdeli, pelos Governos francês, belga, checo, alemão, grego, neerlandês, polaco e eslovaco, bem como pela Comissão. Todos, com excepção do Governo eslovaco, apresentaram alegações na audiência de 2 de Junho de 2010.

V –    Quanto à segunda questão prejudicial

26.      Consideramos que a segunda questão submetida deve ser examinada em primeiro lugar, na medida em que entendemos que a resposta à primeira questão pode ser encontrada na jurisprudência constante do Tribunal de Justiça nesta matéria, ao passo que a segunda questão apresenta alguma novidade.

A –    Quanto à admissibilidade da segunda questão prejudicial

27.      O Governo francês contesta a admissibilidade da segunda questão prejudicial. A este respeito, sustenta que o litígio, no âmbito do qual o juiz competente em matéria de liberdades e de detenção se pronunciou sobre a compatibilidade do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês com o direito da União, está, quanto ao mérito, extinto (4). Assim, a única instância ainda pendente é a que resulta da transmissão à Cour de cassation de uma questão prioritária de constitucionalidade, a fim de que o órgão jurisdicional se pronuncie sobre uma eventual transmissão da questão ao Conseil constitutionnel. Ora, através da sua Decisão n.° 2010‑605 DC, de 12 de Maio de 2010, o Conseil constitutionnel confirmou a sua jurisprudência por força da qual o controlo do respeito do direito internacional ou do direito da União não faz parte da fiscalização de constitucionalidade e, por conseguinte, não está abrangido pela sua competência. Nestas condições, o Governo francês considera que a questão de saber se o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês é compatível com o artigo 67.° TFUE não tem pertinência alguma no âmbito do único processo ainda pendente, que é o que está pendente na Cour de cassation. Consequentemente, a resposta que o Tribunal de Justiça desse à segunda questão da Cour de cassation seria inútil. Por conseguinte, esta questão não é admissível.

28.      De notar que a objecção de admissibilidade formulada pelo Governo francês, relativa à segunda questão, é baseada na sua interpretação do direito nacional, segundo a qual o controlo do respeito do direito da União não faz parte da fiscalização de constitucionalidade (5) e não está, por isso, abrangido pela competência do Conseil constitutionnel. A este respeito, o Governo francês apoia‑se, designadamente, na Decisão n.° 2010‑605 DC, de 12 de Maio de 2010.

29.      Tendo em conta as referências, nas decisões de reenvio, aos artigos 23‑2 e 23‑5 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, que prevêem não só fundamentos que contestam a conformidade de uma disposição legislativa com os direitos e liberdades garantidos pela Constituição da República Francesa mas igualmente fundamentos que contestam a conformidade de uma disposição legislativa com os compromissos internacionais da República Francesa e, portanto, do direito da União, consideramos que não resulta claramente do processo perante o Tribunal de Justiça que a segunda questão prejudicial submetida pela Cour de cassation não tem pertinência no âmbito do processo pendente na referida jurisdição, relativo à admissibilidade da questão prioritária de constitucionalidade. Afigura‑se que a Decisão n.° 2010‑605 DC, de 12 de Maio de 2010, constitui um instrumento de interpretação relativo aos artigos 23‑2 e 23‑5 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, mas que a referida decisão não alterou a redacção das disposições em questão.

30.      Daqui resulta que consideramos que a segunda questão é admissível.

B –    Quanto ao mérito

31.      Os recorrentes no processo principal entendem que o Regulamento n.° 562/2006 não estabelece distinção nenhuma entre os nacionais dos Estados‑Membros e os nacionais dos Estados terceiros que gozam de liberdade para ir e vir no território da União. Observam que os artigos 67.° TFUE e 77.° TFUE não prevêem nenhuma atenuação nem nenhuma excepção ao exercício da referida liberdade e que prevêem a ausência pura e simples de controlos nas fronteiras internas, sem que nenhuma circunstância, seja de que natureza for, venha restabelecer a possibilidade de um controlo. Segundo os recorrentes no processo principal, o próprio quarto parágrafo do artigo 78‑2 do Código de Processo Penal francês atenta contra esta liberdade, na medida em que os controlos são feitos unicamente «tendo em vista verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei». Consideram que esta disposição permite o desenvolvimento de controlos de identidade sistemáticos nas zonas fronteiriças de França, portanto, nas fronteiras internas na acepção da União. Por outro lado, é igualmente nesta acepção que o artigo 78‑2 do Código de Processo Penal francês é aplicado pelos órgãos jurisdicionais franceses. Os recorrentes no processo principal consideram igualmente que a possibilidade de efectuar controlos nas fronteiras internas em hipóteses excepcionais claramente definidas pelos artigos 23.º a 25.º do Regulamento n.° 562/2006 são diferentes das previstas na disposição legislativa francesa.

32.      O Governo francês observa que as disposições em questão se justificam, antes de mais, pela existência de fluxos importantes de populações de passagem. Com vista a assegurar, designadamente, uma luta eficaz contra a imigração ilegal, as autoridades de polícia nacional devem poder proceder, na zona em questão, a controlos da posse dos documentos previstos na lei. Com efeito, por força do artigo L 611‑1 do Ceseda, as pessoas de nacionalidade estrangeira devem poder apresentar papéis ou documentos ao abrigo dos quais estão autorizadas a circular ou a permanecer em França. Por outro lado, as disposições em causa justificam‑se pela necessidade de lutar contra um tipo de delinquência específica nas zonas de passagem e nas imediações das fronteiras. Segundo o Governo francês, os controlos policiais feitos com base no artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês, numa zona a 20 quilómetros da fronteira, em território francês, distinguem‑se claramente dos controlos nas fronteiras. Em primeiro lugar, estes controlos têm por objectivo verificar a identidade de uma pessoa, a fim quer de evitar que sejam cometidas infracções ou causadas perturbações à ordem pública quer de procurar os autores de uma infracção. Em segundo lugar, baseiam‑se em informações de carácter geral e na experiência dos serviços da polícia, que demonstraram a especial utilidade dos controlos nestas zonas. Em terceiro lugar, são concebidos e executados de um modo claramente diferente dos controlos sistemáticos das pessoas, efectuados nas fronteiras externas. O Governo francês entende que estes controlos não apresentam, com efeito, nenhuma das características do controlo nas fronteiras, que, como indica o artigo 7.° do Regulamento n.° 562/2006, deve ser fixo, permanente e sistemático.

33.      O Governo alemão considera que continuam a ser possíveis controlos de polícia (não sistemáticos) na zona fronteiriça, no respeito das condições previstas no artigo 21.° do Regulamento n.° 562/2006. O Governo grego considera que as medidas policiais previstas no artigo 78‑2 do Código de Processo Penal francês não se destinam a controlar as fronteiras e não levam a uma recusa de entrada. Considera que estas medidas têm por único objectivo verificar que a pessoa controlada possui e pode apresentar, conforme está obrigada, as autorizações e os documentos previstos na lei, a fim de provar a sua identidade. Segundo o Governo grego, estes controlos não se realizam de modo sistemático, antes dependendo do poder discricionário das autoridades em questão, que os «podem» impor, mas a isso não estão obrigadas. Por esta razão, considera que estas medidas dizem respeito a controlos que são concebidos e executados de uma maneira claramente distinta dos controlos sistemáticos das pessoas efectuados nas fronteiras externas. Por fim, as referidas medidas policiais são justificadas por eventuais ameaças à segurança pública e visam, precisamente, lutar contra a criminalidade transfronteiriça.

34.      O Governo eslovaco considera que, por razões de ordem pública e de segurança interna, os Estados‑Membros têm o direito de proceder a controlos policiais no seu território, quando estes não têm por objectivo um controlo nas fronteiras internas, e isso, por exemplo, com o objectivo de lutar contra a criminalidade que ultrapassa o âmbito fronteiriço ou contra o terrorismo. Entende igualmente que o poder para proceder a controlos de identidade no âmbito das fronteiras internas do Estado‑Membro, e, assim, garantir o respeito da obrigação de trazer consigo um visto e um título ou de os possuir, é igualmente conforme com o artigo 21.°, alínea c), do Regulamento n.° 562/2006.

35.      O Governo neerlandês observa que o controlo francês na zona fronteiriça se distingue, pela sua finalidade e pelo seu conteúdo, do controlo nas fronteiras. O controlo nas fronteiras tem por finalidade assegurar‑se de que as pessoas, os meios de transporte e os objectos podem ser autorizados a entrar no território dos Estados‑Membros que pertencem ao espaço Schengen ou a abandoná‑lo. Este controlo está centralizado nas condições de entrada num Estado‑Membro que pertence ao espaço Schengen ou nas condições para o abandonar. O referido controlo comporta, em qualquer caso, a verificação da posse de um documento de viagem válido. No caso da entrada no território, o objectivo da permanência e os meios de subsistência podem igualmente ser controlados. O Governo neerlandês entende que também pode ser controlado se a entrada de uma pessoa, de um meio de transporte ou de um objecto no território pode representar um risco para a ordem pública e a segurança. Trata‑se, nesse caso, de um controlo diferente do controlo francês na zona fronteiriça. Este último tem por finalidade verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei, designadamente os documentos de identidade ou os títulos de permanência. O controlo da posse desses documentos é, quanto ao seu conteúdo, um controlo de natureza e finalidade diferentes do controlo nas fronteiras. Além disso, o controlo francês na zona fronteiriça difere igualmente do controlo nas fronteiras, tal como o Governo neerlandês o entende, na forma como é efectuado. Segundo o Governo neerlandês, o controlo nas fronteiras é efectuado de modo sistemático e contínuo, a qualquer pessoa que passe a fronteira. Segundo o Governo belga, o artigo 67.° TFUE deve ser lido à luz da Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, que faz parte integrante do direito da União e não proíbe as autoridades nacionais de efectuarem controlos de identidade. Por conseguinte, segundo o Governo belga, o direito da União não se opõe a uma legislação como a que resulta do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês.

36.      O Governo checo considera que as condições fixadas pelo Regulamento n.° 562/2006 excluem que os órgãos policiais de um Estado‑Membro se mostrem geralmente mais severos nos controlos de identidade na zona fronteiriça (no interior das fronteiras do espaço Schengen) do que no resto do território nacional, que essa atitude decorre de disposições legais ou regulamentares, de directrizes internas ou simplesmente da prática dos órgãos competentes. Segundo este governo, o estabelecimento de poderes ou de procedimentos policiais especiais com vista a um controlo ligado, de modo geral, a um território fronteiriço específico, sem um motivo concreto digno de ser tomado em consideração, é, por natureza, uma medida de controlo nas fronteiras internas. Esta conclusão em nada altera a possibilidade de o Estado‑Membro proceder a controlos policiais no seu território, com base numa norma geral, ou seja, sem ligação com as fronteiras internas e a sua travessia. A Comissão considera que, sem prejuízo de controlos que são da competência do juiz nacional, a única categoria de pessoas mais susceptíveis de ser detectadas em controlos de identidade efectuados nas imediações da fronteira é composta precisamente pelas pessoas que tenham atravessado a fronteira de modo ilícito. Portanto, segundo a Comissão, as disposições do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês não constituem uma simples verificação do respeito da obrigação de possuir documentos de identidade. Devem, em contrapartida, ser qualificadas de controlos dissimulados nas fronteiras, proibidos, à primeira vista, pelo artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006 (6).

37.      Nas decisões de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio invocou expressamente as disposições do artigo 67.°, n.° 2, TFUE, que prevê, designadamente, que a União assegura a ausência de controlos das pessoas nas fronteiras internas. Consequentemente, consideramos que a segunda questão prejudicial da Cour de cassation parte do princípio de que as disposições do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês podem constituir controlos das pessoas nas fronteiras internas.

38.      Dado que consideramos que a presente questão diz unicamente respeito à passagem das fronteiras internas pelas pessoas, não examinaremos as regras aplicáveis aos controlos nas fronteiras externas nem o vasto corpo de outras medidas instituídas na União para compensar a ausência, a que aspiram os Estados‑Membros, de controlos das pessoas nas fronteiras internas (7).

39.      Com a adopção do Regulamento n.° 562/2006 que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras, foram instituídas medidas que visam garantir a ausência de quaisquer controlos das pessoas na passagem das fronteiras internas e regras aplicáveis ao controlo nas fronteiras das pessoas que passam as fronteiras externas dos Estados‑Membros da União (8). Nos termos do seu considerando 20, o Regulamento n.° 562/2006 respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

40.      Resulta do artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006 que as fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local, sem que se proceda ao controlo das pessoas nas fronteiras, independentemente da sua nacionalidade. Ao assegurar a inexistência de controlos das pessoas nas fronteiras internas, o artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006 proíbe, em princípio, esses controlos (9). Nos termos do artigo 2.°, ponto 10, do Regulamento n.° 562/2006, os «controlos de fronteira» são «os controlos efectuados nos pontos de passagem de fronteira, a fim de assegurar que as pessoas, incluindo os seus meios de transporte e objectos na sua posse, podem ser autorizadas a entrar no território dos Estados‑Membros ou autorizadas a abandoná‑lo».

41.      Daqui resulta que os controlos nas fronteiras se orientam para o direito de entrar no território dos Estados‑Membros ou de o abandonar (10).

42.      Refira‑se que o artigo 21.° deste mesmo regulamento prevê que a supressão do controlo nas fronteiras internas não afecta certas prerrogativas dos Estados‑Membros. No entanto, consideramos que os termos empregues para designar essas prerrogativas são de interpretação restrita, dado que constituem derrogações ao princípio geral da supressão do controlo nas fronteiras internas. Essas prerrogativas devem ser aplicadas pelos Estados‑Membros, segundo o princípio da boa‑fé e em conformidade com a finalidade e o espírito do referido princípio geral.

43.      Consequentemente, consideramos que estas prerrogativas, que estão limitativamente enumeradas no artigo 21.° do Regulamento n.° 562/2006, não devem afectar a supressão do controlo nas fronteiras internas. Por outro lado, isso resulta claramente do artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006, que prevê que a supressão do controlo nas fronteiras internas não prejudica, designadamente, o exercício das competências de polícia pelas autoridades competentes do Estado, ao abrigo do direito nacional, incluindo nas zonas fronteiriças, na medida em que o exercício dessas competências não tenha efeito equivalente ao dos controlos de fronteira. Esta mesma disposição enuncia quatro circunstâncias em que o exercício das competências de polícia não pode ser considerado equivalente ao exercício de controlos de fronteira, ou seja, quando: em primeiro lugar, as medidas policiais não tiverem como objectivo o controlo fronteiriço; em segundo lugar, se basearem em informações de carácter geral e na experiência dos serviços da polícia em matéria de possíveis ameaças à ordem pública e se destinarem, designadamente, a combater a criminalidade transfronteiriça; em terceiro lugar, forem concebidas e executadas de forma claramente distinta dos controlos sistemáticos de pessoas nas fronteiras externas; e, em quarto lugar, forem aplicadas com base em controlos feitos por amostragem.

44.      Da redacção do artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006 não resulta claramente se as quatro circunstâncias em questão são ou não cumulativas. Além disso, consideramos que há uma certa sobreposição dessas circunstâncias, designadamente da terceira e da quarta. Em nosso entender, estas quatro circunstâncias são enunciadas unicamente a título de exemplo (11), uma vez que a questão fulcral consiste em saber se as medidas policiais têm efeito equivalente ao dos controlos de fronteira, questão que deve ser examinada caso a caso.

45.      As circunstâncias em questão constituem, portanto, factores ou indícios que podem ajudar a constatar que o exercício das competências de polícia não tem efeito equivalente ao dos controlos nas fronteiras, mas a existência de uma ou várias circunstâncias não é necessariamente um elemento decisivo a este respeito. Consequentemente, consideramos que resulta do artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006 que o exercício das competências de polícia exclui medidas que têm um efeito equivalente ao dos controlos nas fronteiras, mesmo que, num caso concreto, essas medidas preencham uma ou várias das circunstâncias enunciadas no artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006 (12).

46.      O artigo 21.°, alínea c), do Regulamento n.° 562/2006 prevê que a supressão do controlo nas fronteiras internas não prejudica a possibilidade de um Estado‑Membro prever no seu direito nacional a obrigação de posse ou de porte de títulos e de documentos (13). Todavia, consideramos que os eventuais controlos do respeito da obrigação de posse e de porte dos títulos e de documentos são susceptíveis de constituir, em função das circunstâncias, um entrave ao princípio geral da supressão do controlo nas fronteiras internas, designadamente, quando esses controlos são praticados de modo sistemático, arbitrário ou inutilmente vinculativo (14).

47.      Resulta das decisões de reenvio que o controlo policial efectuado aos recorrentes no processo principal, em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês, foi efectuado na zona compreendida entre a fronteira terrestre de França com a Bélgica e uma linha traçada a 20 quilómetros, em território francês. Afigura‑se, sem prejuízo de averiguação pelo órgão jurisdicional nacional, que os controlos em questão não se verificaram num ponto de passagem da fronteira, nem, de resto, na fronteira. Consideramos, como, de resto, a Comissão sustentou, que, a fim de garantir o efeito útil do artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006, e não obstante uma certa ambiguidade na redacção do artigo 2.°, ponto 10, deste regulamento (15), os controlos fronteiriços não têm necessariamente de ser efectuados num espaço geográfico que coincide com uma fronteira, para serem considerados controlos das pessoas nas fronteiras internas. Em nossa opinião, para averiguar se os controlos não violam o artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006, deve examinar‑se, designadamente, o seu objectivo e/ou as suas modalidades e/ou os seus efeitos, consoante as especificidades do caso em questão (16).

48.      Com efeito, a ausência de controlos das pessoas nas fronteiras internas ficaria comprometida se os Estados‑Membros pudessem instituir controlos fronteiriços dissimulados no interior dos seus territórios, longe das fronteiras.

49.      A fim de verificar qual o âmbito do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês e sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional nacional, deve comparar‑se esta disposição, designadamente, com as restantes disposições do referido artigo 78‑2, que prevê as condições em que as autoridades francesas de polícia podem proceder a controlos de identidade.

50.      Segundo o artigo 78‑2, primeiro parágrafo, do Código de Processo Penal francês, as autoridades francesas de polícia podem pedir a comprovação da identidade a qualquer pessoa de quem haja uma ou várias razões plausíveis para suspeitar que cometeu ou tentou cometer uma infracção, que se prepara para cometer um crime ou um delito, que pode fornecer informações úteis para o inquérito, em caso de crime ou de delito, ou que é objecto de investigações ordenadas por uma autoridade judiciária. Em aplicação do artigo 78‑2, segundo parágrafo, do Código de Processo Penal francês, pode ser controlada a identidade de qualquer pessoa, segundo as mesmas modalidades, mediante requisições escritas do Procurador da República Francesa, para fins de investigação e procedimento contra as infracções por ele determinadas. Em conformidade com o artigo 78‑2, terceiro parágrafo, do Código de Processo Penal francês, pode ser igualmente controlada a identidade de qualquer pessoa, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo do referido artigo 78‑2, a fim de prevenir qualquer infracção à ordem pública (17).

51.      O alcance do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês parece distinguir‑se nitidamente das restantes disposições atrás referidas deste artigo. Por um lado, o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês aplica‑se a uma zona geográfica específica do território nacional francês, previamente delimitada na lei, e, por outro, pode ser controlada a identidade de qualquer pessoa, segundo as modalidades previstas, a fim de verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e dos documentos previstos na lei. Consequentemente, esta disposição pode ser aplicada, sem nenhuma limitação, a cada pessoa que se encontre na zona visada (18).

52.      Daqui resulta que o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês elabora incontestavelmente um regime distinto e mais severo para os controlos de identidade nas zonas fronteiriças do que para o resto do território francês.

53.      O Governo francês explicou ao Tribunal de Justiça que os controlos efectuados em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês visavam verificar a identidade de uma pessoa, quer para evitar que fossem cometidas infracções ou causadas perturbações à ordem pública quer a fim de procurar os autores de uma infracção. No entanto, consideramos que esta observação não assenta nos documentos de que o Tribunal de Justiça dispõe. Sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, os três primeiros parágrafos do artigo 78‑2 do Código de Processo Penal francês visam especificamente os controlos de identidade para esses fins (19). Em contrapartida, os controlos de identidade efectuados em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês centram‑se unicamente na localização geográfica da pessoa em questão, ou seja, designadamente, uma zona até 20 quilómetros da fronteira, em território francês.

54.      Tendo em conta o âmbito de aplicação geográfico dos controlos de identidade em questão, o facto de que são aptos a ser aplicados a cada pessoa que se encontre na zona geográfica indicada e a falta de explicação sólida do objectivo que prosseguem, consideramos que os mesmos constituem controlos ligados à transposição da fronteira, que não estão abrangidos pelas prerrogativas dos Estados‑Membros em aplicação do artigo 21.° do Regulamento n.° 562/2006. Face ao exposto, consideramos que os controlos de identidade em questão constituem controlos nas fronteiras dissimulados, que são proibidos pelo artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006 e que não fazem parte das excepções limitadas previstas no artigo 21.° deste regulamento.

55.      Consequentemente, entendemos que o artigo 67.° TFUE e os artigos 20.° e 21.° do Regulamento n.° 562/2006 se opõem a uma legislação como a que resulta do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês, que prevê que «[n]uma zona compreendida entre a fronteira terrestre da França com os Estados Partes na Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira, em território francês, bem como nas zonas, acessíveis ao público, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias abertos ao tráfego internacional e designados por portaria, a identidade de qualquer pessoa pode também ser objecto de controlo, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, tendo em vista verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei. Quando este controlo seja feito num comboio que efectue uma ligação internacional, pode ter lugar durante a parte do trajecto entre a fronteira e a primeira paragem situada para além dos 20 quilómetros da fronteira. No entanto, no caso de linhas ferroviárias que efectuem uma ligação internacional e apresentem características especiais de serviço, o controlo pode igualmente ter lugar entre essa paragem e uma outra situada dentro dos 50 quilómetros seguintes. Estas linhas e paragens são designadas por portaria ministerial. Quando haja um troço de auto‑estrada com início na zona referida no primeiro período do presente parágrafo e a primeira portagem se situe para além da linha de 20 quilómetros, o controlo pode ainda ter lugar, até esta primeira portagem, nas áreas de estacionamento, bem como na própria portagem e nas áreas de estacionamento contíguas a esta. As portagens abrangidas por esta disposição são designadas por portaria».

VI – Quanto à primeira questão prejudicial

56.      Através da primeira questão, que respeita à interpretação do artigo 267.° TFUE, a Cour de cassation pede ao Tribunal de Justiça que precise se esta disposição se opõe a uma legislação nacional resultante de uma lei orgânica relativa à aplicação do artigo 61‑1 da Constituição da República Francesa, por essa legislação impor aos órgãos jurisdicionais que se pronunciem com prioridade sobre a transmissão ao Conseil constitutionnel da questão de constitucionalidade que lhes é submetida, na medida em que nessa questão se alega a não‑conformidade de um diploma de direito interno com a Constituição, pelo facto de aquele ser contrário às disposições do direito da União. Em especial, a Cour de cassation pergunta‑se se as regras processuais introduzidas, em primeiro lugar, pelo artigo 23‑2 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, e que exigem que, quando, num órgão jurisdicional, são apresentados fundamentos destinados a contestar a conformidade de uma disposição legislativa, por um lado, com os direitos e liberdades garantidos pela referida Constituição e, por outro, com os compromissos internacionais da República Francesa, esse órgão se pronuncie com prioridade sobre a transmissão da questão da constitucionalidade ao Conseil d’État ou à Cour de cassation, aos quais incumbe decidir submeter a questão ao Conseil constitutionnel, e, em segundo lugar, pelo artigo 23‑5 deste despacho, que exige que o Conseil d’État ou a Cour de cassation, quando lhe são submetidos esses fundamentos, se pronuncie com prioridade sobre o reenvio da questão de constitucionalidade ao Conseil constitutionnel, violam a liberdade dos órgãos jurisdicionais franceses de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, garantida pelo artigo 267.° TFUE. A este respeito, entendemos que o artigo 62 da Constituição da República Francesa, ao qual a Cour de cassation faz referência nos seus pedidos de decisão prejudicial e que prevê que as decisões do Conseil constitutionnel não são susceptíveis de recurso, deve igualmente ser examinado no âmbito da primeira questão prejudicial.

57.      Consideramos que, através da sua primeira questão, a Cour de cassation pretende, designadamente, saber se o direito nacional pode limitar a liberdade de um órgão jurisdicional nacional submeter ao Tribunal de Justiça um reenvio prejudicial em aplicação do artigo 267.° TFUE.

A –    Quanto à admissibilidade da primeira questão prejudicial

58.      O Governo francês contesta a admissibilidade da primeira questão prejudicial. A este respeito, sustenta que esta questão assenta numa interpretação manifestamente errada do direito nacional, pelo que reveste carácter puramente hipotético. A Comissão, embora não conteste a admissibilidade da primeira questão prejudicial, manifesta incertezas quanto ao quadro jurídico nacional apresentado nas decisões de reenvio. Em especial, considera que o âmbito da fiscalização da constitucionalidade efectuada pelo Conseil constitutionnel francês não resulta claramente das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

59.      Segundo jurisprudência assente, não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se, no âmbito de um reenvio prejudicial, sobre a interpretação das disposições nacionais nem decidir se a interpretação das mesmas, dada pelo órgão jurisdicional de reenvio, é correcta. Com efeito, incumbe ao Tribunal de Justiça ter em conta, no âmbito da repartição das competências entre os tribunais comunitários e nacionais, o contexto factual e regulamentar, tal como definido pela decisão de reenvio, no qual se inserem as questões prejudiciais (20).

60.      Ora, resulta dos pedidos de decisão prejudicial que estes assentam na premissa segundo a qual o direito francês, e designadamente os artigos 23‑2 e 23‑5 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067 assim como o artigo 62 da Constituição da República Francesa, limitam a liberdade dos órgãos jurisdicionais nacionais, incluindo a do órgão jurisdicional de reenvio, de recorrer ao Tribunal de Justiça em aplicação do artigo 267.° TFUE e de se pronunciar sobre a compatibilidade de uma disposição nacional com o direito da União. Em nossa opinião, dado que os litígios no processo principal estão centrados na compatibilidade do direito nacional com o direito da União (21), a primeira questão prejudicial não se afigura manifestamente destituída de pertinência para a solução dos litígios no processo principal.

61.      Tendo em conta o exposto, a primeira questão prejudicial deve ser declarada admissível.

B –    Quanto ao mérito

62.      A título preliminar, observemos que o Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar sobre litígios nos quais as disposições de direito nacional limitavam a possibilidade de um órgão jurisdicional nacional submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça em aplicação do artigo 267.° TFUE (22). Nos seus acórdãos na matéria, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sistematicamente no sentido da mais vasta possibilidade de os órgãos jurisdicionais nacionais submeterem questões ao Tribunal de Justiça sobre a validade e a interpretação do direito da União. Recordaremos, portanto, em resposta à primeira questão submetida, a jurisprudência firmada e uniforme do Tribunal de Justiça na matéria. Além disso, entendemos que a resposta à primeira questão não pode ser influenciada pelo facto de o objectivo da lei orgânica em questão parecer ser o de conceder, em aplicação do direito nacional, uma protecção processual suplementar aos particulares.

63.      Em aplicação do artigo 19.°, n.° 3, alínea b), TUE e do artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça tem competência para se pronunciar, a título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade de actos adoptados pelas instituições da União (23).

64.      O objectivo essencial da competência conferida ao Tribunal de Justiça em aplicação do artigo 267.° TFUE é assegurar que o direito da União seja aplicado de modo uniforme pelos órgãos jurisdicionais nacionais. Com efeito, este objectivo é prosseguido pelo Tribunal de Justiça e pelos órgãos jurisdicionais nacionais, num espírito de colaboração (24) e com base numa confiança mútua e num diálogo judiciário. O procedimento de reenvio prejudicial instituído pelo artigo 19.° TUE e pelo artigo 267.° TFUE é um instrumento processual que é vital para assegurar a aplicação coerente e o respeito do direito da União perante todos os órgãos jurisdicionais nacionais dos 27 Estados‑Membros.

65.      Resulta claramente da redacção do próprio artigo 267.° TFUE que a competência do Tribunal de Justiça é muito ampla e que este, actuando num espírito de cooperação, não costuma, em princípio, declarar inadmissíveis as questões remetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais sobre a interpretação dos Tratados ou sobre a validade e a interpretação dos actos das instituições da União.

66.      Com efeito, segundo jurisprudência assente, as questões relativas à interpretação do direito da União gozam de presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar a responder a uma questão submetida à sua apreciação por um órgão jurisdicional nacional, quando for manifesto que a interpretação do direito comunitário pedida não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objecto da causa principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (25). Além disso, resulta do artigo 267.° CE que os órgãos jurisdicionais nacionais só podem recorrer ao Tribunal de Justiça, se neles estiver pendente um litígio e se forem chamados a pronunciar‑se no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão de carácter jurisdicional (26). Compete exclusivamente aos órgãos jurisdicionais nacionais, que são chamados a conhecer do litígio e devem assumir a responsabilidade da decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, a fim de poderem julgar a causa, como a pertinência das questões que submetem ao Tribunal de Justiça (27). Por conseguinte, quando as questões submetidas tiverem por objecto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (28).

67.      Os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões sejam susceptíveis de recurso jurisdicional interno têm, por força do artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE, liberdade para apreciar a eventual necessidade de apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de interpretação a título prejudicial, sempre que neles seja suscitada uma questão de direito da União, ao passo que os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso jurisdicional de direito interno são obrigados, em aplicação do artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE, sempre que neles seja suscitada semelhante questão, a recorrer ao Tribunal de Justiça (29).

68.      A este respeito, resulta claramente do acórdão Cilfit e o. (30) que os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso jurisdicional de direito interno são obrigados a cumprir o seu dever de reenvio, sempre que uma questão de direito da União neles seja suscitada, a menos que concluam que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição comunitária em causa foi já objecto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça, ou que a correcta aplicação do direito da União se impõe com uma evidência tal que não há lugar a nenhuma dúvida razoável (31).

69.      O Tribunal de Justiça sublinhou, no seu acórdão Rheinmühlen‑Düsseldorf (32), que os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da mais ampla faculdade para recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas à interpretação ou à apreciação da validade de disposições do direito da União, que por eles tenham de ser decididas (33). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que a faculdade do juiz nacional de recorrer ao Tribunal de Justiça não pode, em princípio, ser eliminada por uma regra de direito nacional que vincula o juiz às apreciações de direito feitas pelo órgão jurisdicional superior (34). A este respeito, no seu acórdão ERG e o. (35), o Tribunal de Justiça declarou que o órgão jurisdicional que não se pronuncia em última instância deve ter a liberdade, designadamente se considerar que a apreciação de direito feita pelo órgão jurisdicional de grau superior o pode levar a proferir uma decisão contrária ao direito da União, de submeter ao Tribunal de Justiça questões que o preocupem.

70.      No acórdão Kücükdeveci (36), o Tribunal de Justiça sublinhou recentemente o carácter facultativo do segundo parágrafo do artigo 267.° TFUE e, em nossa opinião, o poder de apreciação de que dispõem os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros em aplicação desta disposição. No processo que deu origem a este acórdão, colocava‑se a questão de saber se um órgão jurisdicional nacional devia interrogar o Tribunal de Justiça a título prejudicial sobre a interpretação do direito da União, antes de afastar a aplicação de uma disposição nacional que considerasse contrária a este direito, sempre que, por força do direito nacional, o órgão jurisdicional de reenvio não pudesse deixar de aplicar a disposição nacional sem essa disposição ter sido previamente declarada inconstitucional pelo Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal, Alemanha). O Tribunal de Justiça declarou que incumbia ao órgão jurisdicional nacional, que deva conhecer de um litígio entre particulares, assegurar o respeito do direito da União, afastando, se for necessário, a aplicação de qualquer disposição contrária da legislação nacional, independentemente do exercício da faculdade de que dispõe, nos casos visados no artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE, de interrogar o Tribunal de Justiça a título prejudicial sobre a interpretação do direito da União (37).

71.      Por outro lado, no acórdão Mecanarte (38), o Tribunal de Justiça declarou que o efeito útil do sistema instituído pelo artigo 267.° TFUE exigia que os órgãos jurisdicionais nacionais dispusessem da mais ampla faculdade para recorrer ao Tribunal de Justiça. No acórdão proferido nesse processo, que consideramos, de resto, bastante semelhante ao presente processo, o Tribunal de Justiça declarou que um órgão jurisdicional nacional que deva conhecer de um litígio relativo ao direito da União e que verifique que uma disposição nacional é inconstitucional não é privado da faculdade ou dispensado da obrigação, previstas no artigo 267.° TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões sobre a interpretação ou a validade do direito da União, pelo facto de a declaração da inconstitucionalidade de uma regra de direito interno estar sujeita a recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (39). Além disso, quanto à questão de saber se um órgão jurisdicional nacional pode não proceder a um reenvio prejudicial, na medida em que a ordem jurídica nacional institui os meios para sanar os vícios de uma disposição nacional, o Tribunal de Justiça declarou que o poder de apreciação do juiz nacional, na acepção do artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE, se alargava igualmente à questão de saber em que fase do processo havia que submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Daqui resulta que o facto de uma violação do direito da União poder ser sanada no âmbito do sistema do direito nacional não derroga de modo nenhum o poder de apreciação concedido ao juiz nacional, na acepção do artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE.

72.      Consequentemente, consideramos que resulta claramente da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o efeito útil do direito da União seria posto em causa se o recurso obrigatório para um Tribunal Constitucional pudesse limitar ou deferir a competência autónoma, concedida a todos os órgãos jurisdicionais nacionais na acepção do artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE, para submeter ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação ou à validade do direito da União nos processos neles pendentes.

73.      Além disso, quando o direito nacional limite ou defira o poder de apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais para submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais em aplicação do artigo 267.° TFUE, consideramos que deveria ser aplicado o princípio do primado, que é a pedra angular do direito da União. Este princípio foi ainda recentemente recordado nas declarações anexadas à acta final da conferência intergovernamental que adoptou o Tratado de Lisboa, assinado em 13 de Dezembro de 2007 (40).

74.      Segundo jurisprudência assente, o juiz nacional incumbido de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário tem a obrigação de garantir a plena eficácia dessas normas, afastando, se for necessário, no exercício da sua própria autoridade, a aplicação de qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo posterior, sem ter de pedir ou esperar a sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (41).

75.      Consideramos que o artigo 267.° TFUE constitui parte integrante da ordem jurídica dos Estados‑Membros, onde prima sobre as regras de direito nacional na medida em que estas sejam incompatíveis com ele. Qualquer órgão jurisdicional pode e deve aplicar integralmente o artigo 267.° TFUE e, em caso de conflito entre este artigo e uma disposição de direito interno, deixar por aplicar, se necessário, a referida disposição, por sua própria autoridade, num processo nele pendente.

76.      Sublinhe‑se igualmente que, para além do facto de os órgãos jurisdicionais nacionais disporem, em aplicação do artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE, em processos neles pendentes, de poder de apreciação quanto à remessa ao Tribunal de Justiça de um reenvio prejudicial e de esse poder não pode ser limitado ou deferido por medidas nacionais, um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça vincula estas jurisdições quanto à solução do litígio no processo principal (42). No acórdão Simmenthal, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que o efeito útil do processo de reenvio ficaria reduzido se o juiz nacional fosse impedido de dar imediatamente ao direito da União uma aplicação conforme com a decisão ou com a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Consequentemente, consideramos que, em caso de conflito entre uma decisão do Tribunal de Justiça, na sequência de um reenvio prejudicial, e uma decisão de um órgão jurisdicional nacional, incluindo de um tribunal constitucional, o primado do direito da União impõe ao juiz nacional que aplique a decisão do Tribunal de Justiça e que afaste a aplicação da decisão contrária do órgão jurisdicional nacional (43).

77.      Tendo em conta a apresentação, feita pelo órgão jurisdicional de reenvio, do quadro jurídico nacional e, em especial, das regras relativas à questão prioritária de constitucionalidade, consideramos que o artigo 267.° TFUE se opõe a uma legislação como a resultante dos artigos 23‑2, segundo parágrafo, e 23‑5, segundo parágrafo, do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, uma vez que estes impõem aos órgãos jurisdicionais que se pronunciem com prioridade sobre a transmissão, ao Conseil constitutionnel, da questão de constitucionalidade que lhes é submetida, na medida em que nessa questão é alegado que um diploma de direito interno não está em conformidade com a Constituição, pelo facto de ser contrário a disposições de direito da União.

VII – Conclusão

78.      À luz das considerações que precedem, propomos ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões prejudiciais submetidas pela Cour de cassation:

«1)      O artigo 67.° TFUE e os artigos 20.° e 21.° do Regulamento (CE) n.° 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen), opõem‑se a uma legislação como a resultante do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês, que prevê que ‘[n]uma zona compreendida entre a fronteira terrestre da França com os Estados Partes na Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira, em território francês, bem como nas zonas, acessíveis ao público, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias abertos ao tráfego internacional e designados por portaria, a identidade de qualquer pessoa pode também ser objecto de controlo, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, tendo em vista verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei. Quando este controlo seja feito num comboio que efectue uma ligação internacional, pode ter lugar durante a parte do trajecto entre a fronteira e a primeira paragem situada para além dos 20 quilómetros da fronteira. No entanto, no caso de linhas ferroviárias que efectuem uma ligação internacional e apresentem características especiais de serviço, o controlo pode igualmente ter lugar entre essa paragem e uma outra situada dentro dos 50 quilómetros seguintes. Estas linhas e paragens são designadas por portaria ministerial. Quando haja um troço de auto‑estrada com início na zona referida no primeiro período do presente parágrafo e a primeira portagem se situe para além da linha de 20 quilómetros, o controlo pode ainda ter lugar, até esta primeira portagem, nas áreas de estacionamento, bem como na própria portagem e nas áreas de estacionamento contíguas a esta. As portagens abrangidas por esta disposição são designadas por portaria’.

2)      Tendo em conta a apresentação, feita pelo órgão jurisdicional de reenvio, do quadro jurídico nacional e, em especial, das regras relativas à questão prioritária de constitucionalidade, consideramos que o artigo 267.° TFUE se opõe a uma legislação como a resultante dos artigos 23‑2, segundo parágrafo, e 23‑5, segundo parágrafo, do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, de 7 de Novembro de 1958, sobre a Lei Orgânica do Conseil constitutionnel, conforme alterada pela Lei Orgânica francesa n.° 2009‑1523, de 10 de Dezembro de 2009, uma vez que estes impõem aos órgãos jurisdicionais que se pronunciem com prioridade sobre a transmissão, ao Conseil constitutionnel, da questão de constitucionalidade que lhes é submetida, na medida em que nessa questão é alegado que um diploma de direito interno não está em conformidade com a Constituição da República Francesa, pelo facto de ser contrário a disposições de direito da União.»


1 – Língua original: francês.


2 –      Notificações exigidas pelo artigo 37.° do Regulamento n.° 562/2006 – Possibilidade de um Estado‑Membro prever no seu direito nacional a obrigação de posse e porte dos títulos e documentos por força do artigo 21.°, alínea c) (2008/C 18/03) (JO 2008, C 18, p. 15).


3 – Isto é, sobre a conformidade de uma disposição legislativa com uma convenção internacional.


4 – Segundo o Governo francês, o processo de reconhecimento dos interessados pelas autoridades argelinas, necessário para que seja aplicada a condução à fronteira, não pôde ser posto em prática antes de ter terminado o prazo de quinze dias de detenção administrativa. Consequentemente, em 9 de Abril de 2010, o prefeito da Região do Nord‑Pas‑de‑Calais, prefeito do Norte, decidiu libertar A. Melki e S. Abdeli. Daí resulta que, desde essa data, A. Melki e S. Abdeli deixaram de ser objecto de qualquer medida privativa de liberdade, e os dois despachos do juiz competente em matéria de liberdades e de detenção, não impugnados por estes últimos, deixaram de produzir efeitos e tornaram‑se definitivos.


5 – Segundo o Governo francês, incumbe às jurisdições comuns a fiscalização da convencionalidade, ou seja, a conformidade de uma lei com uma convenção internacional.


6 – O Governo polaco não apresentou observações sobre a segunda questão.


7 – V., neste sentido, designadamente, Decisão 2008/616/JAI do Conselho, de 23 de Junho de 2008, referente à execução da Decisão 2008/615/JAI, relativa ao aprofundamento da cooperação transfronteiras, em particular no domínio da luta contra o terrorismo e [a] criminalidade transfronteiras (JO L 210, p. 12), Regulamento (CE) n.° 2007/2004 do Conselho, de 26 de Outubro de 2004, que cria uma Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados‑Membros da União Europeia (JO L 341, p. 1), Decisão‑Quadro 2006/960/JAI do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006, relativa à simplificação do intercâmbio de dados e informações entre as autoridades de aplicação da lei dos Estados‑Membros da União Europeia (JO L 386, p. 89), Decisão do Conselho, de 6 de Abril de 2009, que cria o Serviço Europeu de Polícia (Europol) (JO L 121, p. 37), bem como Regulamento (CE) n.° 1987/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro de 2006, relativo ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação de Schengen de segunda geração (SIS II) (JO L 381, p. 4).


8 – O Tribunal de Justiça declarou, no seu acórdão de 22 de Outubro de 2009, Zurita García e Choque Cabrera (C‑261/08 e C‑348/08, Colect., p. I-0000, n.° 43), que o artigo 62.°, n.os 1 e 2, alínea a), CE [v. actualmente artigo 77.°, n.° 2, alínea e), TFUE] constitui a base jurídica da acção do Conselho para a adopção de medidas destinadas a assegurar a ausência de controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas, bem como de medidas relativas à passagem das fronteiras externas dos Estados‑Membros, não tendo, em si mesmo, por objecto ou por efeito atribuir direitos aos nacionais de países terceiros ou impor obrigações aos Estados‑Membros.


9 – Em caso de ameaça grave à sua ordem pública ou à sua segurança, os Estados‑Membros têm, excepcionalmente e sob reserva de respeitarem certas condições estritas, a possibilidade de reintroduzir temporariamente o controlo nas fronteiras nas suas fronteiras internas. O alcance e a duração do controlo nas fronteiras não devem exceder o necessário para responder a esta ameaça. V. artigos 23.° a 31.° do Regulamento n.° 562/2006.


10 – De notar que, segundo o considerando 6 do Regulamento n.° 562/2006, «[o] controlo fronteiriço não é feito exclusivamente no interesse do Estado‑Membro em cujas fronteiras externas se exerce, mas no interesse de todos os Estados‑Membros que suprimiram o controlo nas suas fronteiras internas. O controlo fronteiriço deverá contribuir para a luta contra a imigração clandestina e o tráfico de seres humanos, bem como para a prevenção de qualquer ameaça para a segurança interna, a ordem pública, a saúde pública e as relações internacionais dos Estados‑Membros».


11 – Consideramos que resulta do termo «particularmente» que a lista mencionada no artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006 é exemplificativa e não taxativa.


12 – Por exemplo, quanto à terceira e quarta circunstâncias em questão, a nosso ver, a intensidade efectiva dos controlos constitui somente um factor indicativo. Com efeito, é possível considerar que os controlos fronteiriços dissimulados sejam efectuados de modo menos intenso do que os autorizados pelo direito da União.


13 – V., por analogia, acórdão de 17 de Fevereiro de 2005, Oulane (C‑215/03, Colect., p. I‑1215, n.° 34). Neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que «o direito comunitário não se opõe a que um Estado‑Membro efectue controlos quanto ao respeito da obrigação de [poder apresentar sempre] um documento de identidade, desde que imponha a mesma obrigação aos seus próprios nacionais no que respeita ao seu bilhete de identidade».


14 – V., por analogia, acórdão de 27 de Abril de 1989, Comissão/Bélgica (321/87, Colect., p. 997, n.° 15).


15 – V., igualmente, artigo 2.°, n.° 9, do Regulamento n.° 562/2006, que define o «controlo fronteiriço» como «a actividade que é exercida numa fronteira, nos termos e para efeitos do presente regulamento, unicamente com base na intenção ou no acto de passar essa fronteira, independentemente de qualquer outro motivo, e que consiste nos controlos de fronteira e [na] vigilância de fronteiras».


16 – V., neste sentido, igualmente, artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006.


17 – Em nossa opinião, outras disposições do artigo 78‑2, quinto e sexto parágrafos, do Código de Processo Penal francês, relativas a Guadalupe, à Guiana, a Maiote, a Saint‑Martin e a Saint‑Barthélemy, não são pertinentes para o caso concreto, dado que os departamentos, colectividades e territórios ultramarinos franceses estão excluídos do espaço de livre circulação de Schengen.


18 – O Governo francês invocou igualmente o artigo L.611‑1 do Ceseda, nas suas observações. Sublinhe‑se que esta disposição não é pertinente para o caso concreto, dado que resulta claramente das decisões de reenvio que os recorrentes no processo principal foram objecto de controlos em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês. De qualquer modo, afigura‑se igualmente, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional nacional, que, normalmente, os controlos dos títulos de permanência ao abrigo do artigo L. 611‑1 do Ceseda são aplicados em todo o território francês e devem assentar em critérios muito estritos quanto à qualidade da pessoa visada, enquanto pessoa de nacionalidade estrangeira. No entanto, dado que o artigo L. 611‑1 do Ceseda prevê que as pessoas de nacionalidade estrangeira podem ser igualmente obrigadas a apresentar os papéis ou documentos ao abrigo dos quais estão autorizadas a circular ou a permanecer em França, na sequência de um controlo de identidade efectuado em aplicação dos artigos 78‑1, 78‑2 e 78‑2‑1 do Código de Processo Penal francês, o referido artigo L. 611‑1 afigura‑se, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional nacional, que poderia, de facto, ser aplicado, de modo mais rigoroso, na zona geográfica pertinente, tendo em conta a sua ligação com o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês. Acresce que o artigo 78‑2‑1 do Código de Processo Penal francês, que prevê que as autoridades policiais estão, mediante requisições do Procurador da República, habilitadas a entrar nas instalações profissionais, não é pertinente para o caso concreto. De qualquer modo, afigura‑se que esta disposição é aplicada em todo o território francês.


19 – Isso não significa que controlos de identidade realizados em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal francês não possam, em casos concretos, revelar ou prevenir infracções, mas afigura‑se, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional nacional, que o referido código dispõe de outras disposições que regulam especificamente essas situações.


20 – V., neste sentido, acórdão de 14 de Fevereiro de 2008, Dynamic Medien (C‑244/06, Colect., p. I‑505, n.° 19 e jurisprudência referida).


21 – V. n.° 18, supra.


22 – Antigo artigo 234.° do Tratado CE e o artigo 177.° do Tratado CEE.


23 – Dado que a validade de um acto das instituições da União não está em causa no caso concreto, concentraremos a nossa reflexão na presente tomada de posição sobre a questão de interpretação do direito da União em aplicação do artigo 267.° TFUE.


24 – V., por analogia, acórdão de 5 de Março de 2009, Kattner Stahlbau (C‑350/07, Colect., p. I‑1513, n.° 29 e jurisprudência referida).


25 – V., designadamente, acórdão de 22 de Dezembro de 2008, Régie Networks (C‑333/07, Colect., p. I‑10807, n.° 46 e jurisprudência referida).


26 – V. despachos de 18 de Junho de 1980, Borker (138/80, Recueil, p. 1975, n.° 4), e de 5 de Março de 1986, Greis Unterweger (318/85, Colect., p. 955, n.° 4); acórdãos de 19 de Outubro de 1995, Job Centre (C‑111/94, Colect., p. I‑3361, n.° 9), e de 14 de Junho de 2001, Salzmann (C‑178/99, Colect., p. I‑4421, n.° 14).


27 – Acórdão de 28 de Abril de 1983, Les Fils d’Henri Ramel (170/82, Recueil, p. 1319, n.° 8).


28 – V., neste sentido, designadamente, acórdãos de 13 de Março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, Colect., p. I‑2099, n.° 38), e de 26 de Janeiro de 2010, Transportes Urbanos y Servicios Generales (C‑118/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 25).


29 – V., designadamente, acórdão de 15 de Setembro de 2005, Intermodal Transports (C‑495/03, Colect., p. I‑8151, n.os 31 e 33).


30 – Acórdão de 6 de Outubro de 1982 (283/81, Recueil, p. 3415, n.° 21).


31 – Todavia, resulta igualmente do acórdão Cilfit e o., já referido, que a possibilidade, concedida a um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são susceptíveis de recurso jurisdicional de direito interno, de não submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais de interpretação do direito da União perante ele suscitadas deve ser apreciada com base, designadamente, nas diversas versões linguísticas das disposições do direito da União em questão. Dado que há actualmente vinte e três línguas de trabalho oficiais na União e que cada versão linguística é autêntica, afigura‑se pouco provável que um órgão jurisdicional nacional pudesse, de facto, recorrer a essa possibilidade (extremamente reduzida).


32 – Acórdão de 16 de Janeiro de 1974 (166/73, Colect., p. 17, n.° 3).


33 – V., igualmente, acórdão de 16 de Dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, Colect., p. I‑9641, n.° 88).


34 – O Tribunal de Justiça declarou igualmente, no seu acórdão Rheinmühlen‑Düsseldorf, já referido, que o mesmo não se verifica se as questões submetidas por um órgão jurisdicional forem idênticas a questões submetidas pelo órgão jurisdicional de última instância. Note‑se que, no acórdão de 12 de Fevereiro de 1974, Rheinmühlen‑Düsseldorf (146/73, Recueil, p. 139, n.° 3, Colect., p. 85), o Tribunal de Justiça declarou que, no que diz respeito a um órgão jurisdicional cujas decisões podem ser objecto de um recurso jurisdicional de direito interno, o artigo 267.° TFUE não se opõe a que as decisões desse órgão jurisdicional, através das quais se submetem questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, continuem sujeitas às vias de recurso normais previstas no direito nacional (v., igualmente, acórdão Cartesio, já referido, n.° 89). Daqui resulta que se coloca a questão de saber se e em que medida as vias de recurso nacionais podem limitar o poder de um órgão jurisdicional nacional recorrer ao Tribunal de Justiça em aplicação do artigo 267.° TFUE. O Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 12 de Fevereiro de 1974, Rheinmühlen‑Düsseldorf, já referido, sublinhou que, não obstante a existência de vias de recurso nacionais, se deve ater à decisão de reenvio, que deve produzir os seus efeitos enquanto não tiver sido anulada (v., igualmente, acórdão Cartesio, já referido, n.os 92 a 97). Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria que, embora reconheça a existência das vias de recurso em direito nacional, quando um processo está pendente num órgão jurisdicional nacional, o direito nacional não pode limitar a competência autónoma deste órgão jurisdicional de submeter ao Tribunal de Justiça um reenvio prejudicial. Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça deve ater‑se à decisão que ordenou o reenvio prejudicial, que deve produzir os seus efeitos enquanto não tiver sido anulada ou modificada pelo órgão jurisdicional que a proferiu, uma vez que só este último órgão jurisdicional pode decidir dessa anulação ou dessa modificação. V., no que respeita a um processo no qual o Tribunal de Justiça declinou a sua competência para decidir, pelo facto de o litígio já não estar pendente no órgão jurisdicional de reenvio, despacho de 24 de Março de 2009, Nationale Loterij (C‑525/06, Colect., p. I‑2197, n.os 8 a 11). Note‑se que, neste último processo, o órgão jurisdicional de reenvio não retirou o pedido de decisão prejudicial.


35 – Acórdão de 9 de Março de 2010 (C‑379/08 e C‑380/08, Colect., p. I-0000, n.° 26).


36 – Acórdão de 19 de Janeiro de 2010 (C‑555/07, Colect., p. I-0000).


37 – Com efeito, no n.° 55 do referido acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que «[o] carácter facultativo da apresentação desse pedido de decisão prejudicial não depende das condições que, no direito interno, o juiz nacional tenha de preencher para afastar uma disposição nacional que considere ser contrária à Constituição».


38 – Acórdão de 27 de Junho de 1991 (C‑348/89, Colect., p. I‑3277, n.° 44).


39 – V. n.os 45 a 49 do referido acórdão. No processo que deu origem a este acórdão, o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto (Portugal) pergunta‑se, em primeiro lugar, se tem competência para proceder ao reenvio prejudicial, na medida em que verifique que as disposições nacionais em causa são inconstitucionais, dado que a verificação da inconstitucionalidade de uma regra de direito interno está sujeita, segundo o artigo 280.°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa, ao recurso ao Tribunal Constitucional português e que, por conseguinte, só este último poderia ser competente para proceder ao reenvio prejudicial nesses processos, e, em segundo lugar, se o reenvio prejudicial não é supérfluo, na medida em que podem ser sanados, na ordem jurídica nacional, os vícios de uma disposição nacional. V., igualmente, acórdão de 10 de Julho de 1997, Palmisani (C‑261/95, Colect., p. I‑4025, n.os 16 a 21).


40 – A Declaração 17, relativa ao primado [...], dispõe:


«A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adoptado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados‑Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência.


Além disso, a Conferência decidiu anexar à presente Acta Final o parecer do Serviço Jurídico do Conselho sobre o primado [...] constante do documento 11197/07 (JUR 260):


‘Parecer do Serviço Jurídico do Conselho de 22 de Junho de 2007


Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito. Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza específica da Comunidade Europeia. Quando foi proferido o primeiro acórdão desta jurisprudência constante (acórdão de 15 de Julho de 1964 no processo 6/64, Costa contra ENEL (1), o Tratado não fazia referência ao primado. Assim continua a ser actualmente. O facto de o princípio do primado não ser inscrito no futuro Tratado em nada prejudica a existência do princípio nem a actual jurisprudência do Tribunal de Justiça.


(1) 'Resulta […] que ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, em virtude da sua natureza originária específica, não pode ser oposto em juízo um texto interno, qualquer que seja, sem que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comunidade.'’»


41 – V., neste sentido, acórdãos de 9 de Março de 1978, Simmenthal (106/77, Colect., p. 243, n.° 24); de 4 de Junho de 1992, Debus (C‑13/91 e C‑113/91, Colect., p. I‑3617, n.° 32); de 18 de Julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, Colect., p. I‑6199, n.° 61); e de 27 de Outubro de 2009, ČEZ (C‑115/08, Colect., p. I-0000, n.° 138). V., igualmente, acórdão de 19 de Novembro de 2009, Filipiak (C‑314/08, Colect., p. I-0000, n.° 84), no qual o Tribunal de Justiça declarou que o adiamento por um tribunal constitucional (no caso específico, o Trybunał Konstytucyjny – Tribunal Constitucional polaco) da data na qual as disposições controvertidas perderão a sua força obrigatória não obsta a que o órgão jurisdicional de reenvio, em conformidade com o princípio do primado do direito da União, não aplique estas disposições no âmbito do litígio que deve resolver, se as considerar contrárias ao direito da União.


42 – V., neste sentido, designadamente, acórdãos de 3 de Fevereiro de 1977, Benedetti (52/76, Colect., p. 67, n.° 26), e de 14 de Dezembro de 2000, Fazenda Pública (C‑446/98, Colect., p. I‑11435, n.° 49), bem como despacho de 5 de Março de 1986, Wünsche (69/85, Colect., p. 947, n.° 13). V., igualmente, n.° 64 das conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo que deu origem ao acórdão de 30 de Novembro de 2000, Österreichischer Gewerkschaftsbund (C‑195/98, Colect., p. I‑10497). Nas suas conclusões no processo que deu origem ao acórdão de 8 de Setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International (C‑42/07, Colect., p. I-0000), o advogado‑geral Y. Bot declarou que a interpretação uniforme do direito da União só pode ser assegurada se os acórdãos do Tribunal de Justiça tiverem carácter vinculativo para os órgãos jurisdicionais nacionais. Esse carácter vinculativo é também o corolário da obrigação que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais, de assegurarem a aplicação efectiva do direito da União (n.os 204 e 205).


43 – V., por analogia, acórdão Filipiak, já referido.