Language of document : ECLI:EU:C:2012:630

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

16 de outubro de 2012 (*)

«Incumprimento de Estado ― Artigo 259.° TFUE ― Cidadania da União ― Artigo 21.° TFUE ― Diretiva 2004/38/CE ― Direito de circular no território dos Estados‑Membros ― Presidente da Hungria ― Proibição de entrar no território da República Eslovaca ― Relações diplomáticas entre Estados‑Membros»

No processo C‑364/10,

que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 259.° TFUE, entrada em 8 de julho de 2010,

Hungria, representada por M. Z. Fehér e E. Orgován, na qualidade de agentes,

demandante,

contra

República Eslovaca, representada por B. Ricziová, na qualidade de agente,

demandada,

apoiada por:

Comissão Europeia, representada por A. Tokár, D. Maidani e S. Boelaert, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, A. Tizzano (relator), M. Ilešič, J. Malenovský, presidentes de secção, A. Borg Barthet, U. Lõhmus, J.‑C. Bonichot, C. Toader, J.‑J. Kasel e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 1 de fevereiro de 2012,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de março de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        Na sua petição, a Hungria pede ao Tribunal de Justiça que:

¾        declare que a República Eslovaca não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO L 158, p. 77), e do artigo 21.°, n.° 1, TFUE pelo facto de, em 21 de agosto de 2009, ter recusado o acesso ao seu território ao presidente da Hungria, László Sólyom, baseando‑se na referida diretiva, mas sem respeitar as suas disposições;

¾        declare que é contrário ao direito da União, e, em especial, aos artigos 3.°, n.° 2, TUE e 21.°, n.° 1, TFUE, a posição que a República Eslovaca defendeu até ter sido intentada a presente ação, que consiste em considerar conforme com a Diretiva 2004/38 o facto de proibir o acesso ao território eslovaco a uma pessoa que representa a Hungria, como o presidente deste Estado, mantendo desta forma a possibilidade de uma repetição desta atitude ilegal;

¾        declare que a República Eslovaca fez uma aplicação abusiva do direito da União pelo facto de as suas autoridades terem proibido o acesso ao seu território ao presidente Sólyom, em 21 de agosto de 2009; e

¾        admitindo que o âmbito de aplicação pessoal da Diretiva 2004/38 possa ser limitado por uma norma particular de direito internacional, indique o alcance e o efeito dessas exceções.

 Quadro jurídico

2        O artigo 5.° da Diretiva 2004/38 enuncia, no seu n.° 1:

«Sem prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, os Estados‑Membros devem admitir no seu território os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido.

Não pode ser exigido ao cidadão da União um visto de entrada ou formalidade equivalente.»

3        O capítulo VI desta diretiva, intitulado «Restrições ao direito de entrada e ao direito de residência por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública», contém o artigo 27.°, cujos dois primeiros números dispõem:

«1.      Sob reserva do disposto no presente capítulo, os Estados‑Membros podem restringir a livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Tais razões não podem ser invocadas para fins económicos.

2.      As medidas tomadas por razões de ordem pública ou de segurança pública devem ser conformes com o princípio da proporcionalidade e devem basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em questão. A existência de condenações penais anteriores não pode, por si só, servir de fundamento para tais medidas.

O comportamento da pessoa em questão deve constituir uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade. Não podem ser utilizadas justificações não relacionadas com o caso individual ou baseadas em motivos de prevenção geral.»

4        Por último, o artigo 30.° da referida diretiva prevê:

«1.      Qualquer decisão nos termos do n.° 1 do artigo 27.° deve ser notificada por escrito às pessoas em questão, de uma forma que lhe permita compreender o conteúdo e os efeitos que têm para si.

2.      As pessoas em questão são informadas, de forma clara e completa, das razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública em que se baseia a decisão, a menos que isso seja contrário aos interesses de segurança do Estado.

3.      A notificação deve especificar o tribunal ou autoridade administrativa perante o qual a pessoa em questão pode impugnar a decisão, o prazo de que dispõe para o efeito e, se for caso disso, o prazo concedido para abandonar o território do Estado‑Membro. Salvo motivo de urgência devidamente justificado, o prazo para abandonar o território não pode ser inferior a um mês a contar da data da notificação.»

 Factos na origem do litígio, procedimento pré‑contencioso e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

5        A convite de uma associação estabelecida na Eslováquia, o presidente da Hungria, László Sólyom, devia deslocar‑se, em 21 de agosto de 2009, à cidade eslovaca de Komárno para participar na cerimónia de inauguração de uma estátua de Santo Estêvão.

6        Resulta dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça, por um lado, que 20 de agosto é um dia de festa nacional na Hungria, comemorativo de Santo Estêvão, fundador e primeiro rei do Estado húngaro. Por outro lado, 21 de agosto é uma data considerada sensível na Eslováquia, uma vez que, em 21 de agosto de 1968, as forças armadas de cinco países do Pacto de Varsóvia, entre as quais as tropas húngaras, invadiram a República Socialista da Checoslováquia.

7        Após diversos contactos diplomáticos entre as embaixadas dos dois Estados‑Membros a respeito da visita programada do presidente da Hungria, em 21 de agosto de 2009, o Ministério dos Negócios Estrangeiros eslovaco transmitiu, finalmente, uma nota verbal ao embaixador da Hungria na República Eslovaca, em que proibia o presidente da Hungria de entrar no território eslovaco. Para justificar a referida proibição, essa nota invocava a Diretiva 2004/38 e as disposições de direito interno relativas, por um lado, à permanência dos estrangeiros e, por outro, às forças de polícia.

8        Tendo sido informado dos termos da referida nota quando estava a caminho da República Eslovaca, o presidente Sólyom acusou a receção da mesma na fronteira e renunciou a entrar no território desse Estado‑Membro.

9        Por nota de 24 de agosto de 2009, as autoridades húngaras contestaram, nomeadamente, que a Diretiva 2004/38 possa constituir uma base jurídica válida para justificar a recusa da República Eslovaca em conceder ao presidente da Hungria o acesso ao seu território. Declararam, também, que essa decisão de recusa não estava suficientemente fundamentada. Por estas razões, a República Eslovaca tinha adotado aquela medida em violação do direito da União.

10      Num encontro ocorrido em 10 de setembro de 2009, em Szécsény (Hungria), os primeiros‑ministros húngaro e eslovaco adotaram uma declaração conjunta, na qual mantiveram as respetivas posições relativamente aos aspetos legais da decisão controvertida, lamentando as circunstâncias da deslocação do presidente Sólyom. Nessa mesma ocasião, foi adotado um «memorando» com vista a clarificar, para futuro, determinadas modalidades práticas das visitas oficiais e não oficiais nos dois Estados em causa.

11      Por nota de 17 de setembro de 2009, as autoridades eslovacas responderam à nota de 24 de agosto de 2009 que, considerando as circunstâncias do incidente, a aplicação da Diretiva 2004/38 era a «derradeira possibilidade» de impedir a entrada do presidente da Hungria no território da República Eslovaca e que não tinham agido, de modo algum, em violação do direito da União.

12      Entretanto, em 3 de setembro de 2009, o ministro dos Negócios Estrangeiros húngaro enviou uma carta ao vice‑presidente da Comissão das Comunidades Europeias, na qual pediu o parecer desta sobre a eventual violação do direito da União pela República Eslovaca.

13      Na sua resposta de 10 de setembro de 2009, o vice‑presidente da Comissão reconheceu que, em conformidade com a Diretiva 2004/38, qualquer restrição ao direito de livre circulação deve respeitar o princípio da proporcionalidade, basear‑se, por força do artigo 27.°, n.° 2, desta diretiva, no comportamento pessoal do indivíduo em questão e ser notificada ao interessado nas formas previstas no artigo 30.°, explicando os motivos de forma clara e completa. Considerou, também, que o respeito pela aplicação das normas da referida diretiva incumbe, em primeiro lugar, aos órgãos jurisdicionais nacionais. Sublinhou que era necessário fazer tudo para evitar a repetição de situações deste tipo e declarou‑se confiante em que um diálogo bilateral construtivo entre os dois Estados‑Membros poderia permitir resolver o diferendo.

14      Em 12 de outubro de 2009, o ministro dos Negócios Estrangeiros húngaro apresentou, em nome do Governo húngaro, uma queixa ao presidente da Comissão, e pediu que fosse examinada a possibilidade de dar início a um processo por incumprimento, ao abrigo do artigo 258.° TFUE, contra a República Eslovaca, por violação do artigo 21.° TFUE e da Diretiva 2004/38.

15      Por carta de 11 de dezembro de 2009, a Comissão considerou que os «cidadãos da União têm o direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, por força do artigo [21.° TFUE] e da Diretiva 2004/38». Contudo, precisou que, «com base no direito internacional, os Estados‑Membros reservam‑se o direito de controlar o acesso de um chefe de Estado estrangeiro ao seu território, seja ou não cidadão da União».

16      Os Estados‑Membros continuariam a organizar as visitas oficiais pelos canais políticos bilaterais, de modo que esta matéria escaparia à aplicação do direito da União. Segundo a Comissão, um chefe de Estado pode, na verdade, decidir visitar outro Estado‑Membro a título privado, nos termos do artigo 21.° TFUE e da Diretiva 2004/38; no entanto, resulta dos documentos juntos à queixa do ministro dos Negócios Estrangeiros húngaro que a Hungria e a República Eslovaca estão em desacordo quanto à natureza privada ou oficial da visita prevista.

17      A Comissão considerou, por isso, que não podia concluir pela existência de um incumprimento por parte da República Eslovaca das disposições de direito da União relativas à livre circulação dos cidadãos da União, ainda que, na sua nota verbal de 21 de agosto de 2009, esse Estado‑Membro tenha invocado erradamente a Diretiva 2004/38 e os atos adotados para a sua aplicação no direito nacional.

18      Em 30 de março de 2010, a Hungria submeteu este assunto à apreciação da Comissão, em conformidade com o artigo 259.° TFUE. Em 30 de abril de 2010, a República Eslovaca apresentou as suas observações. Por último, em 12 de maio de 2010, os dois Estados‑Membros apresentaram observações orais numa audiência organizada pela Comissão.

19      No seu parecer fundamentado de 24 de junho de 2010, a Comissão considerou que as disposições do artigo 21.°, n.° 1, TFUE e da Diretiva 2004/38 não são aplicáveis às visitas efetuadas pelo chefe de um Estado‑Membro ao território de outro Estado‑Membro e que, nestas condições, o alegado incumprimento não tinha fundamento.

20      Em 8 de julho de 2010, a Hungria intentou a presente ação. A República Eslovaca conclui pedindo que a ação seja julgada improcedente e que a Hungria seja condenada nas despesas.

21      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 28 de janeiro de 2011, foi admitida a intervenção da Comissão em apoio dos pedidos da República Eslovaca.

 Quanto à ação

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

 Argumentos das partes

22      A República Eslovaca sustenta que o Tribunal de Justiça não tem competência para conhecer do presente litígio, devido à inaplicabilidade do direito da União a uma situação como a do caso em apreço.

23      Pelo contrário, a Hungria, apoiada neste único ponto pela Comissão, considera que, estando os Estados‑Membros obrigados, nos termos do artigo 344.° TFUE, a não submeter qualquer diferendo relativo à interpretação ou à aplicação dos Tratados a um processo de resolução diferente dos que neles estão previstos, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem competência exclusiva para conhecer de um litígio que opõe dois Estados‑Membros quanto à interpretação do direito da União. Em especial, um Estado‑Membro que considere que outro Estado‑Membro violou o direito da União pode pedir à Comissão que intente uma ação por incumprimento, em conformidade com o disposto no artigo 258.° TFUE, ou intentar, diretamente, no Tribunal de Justiça uma ação por incumprimento, nos termos do artigo 259.° TFUE.

 Apreciação do Tribunal

24      Para decidir sobre a exceção de incompetência suscitada pela República Eslovaca, basta declarar que, no âmbito da presente ação, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre o alcance do direito da União e, designadamente, do artigo 21.° TFUE e da Diretiva 2004/38, a fim de apreciar a existência de um alegado incumprimento por parte da República Eslovaca das obrigações que lhe incumbem por força do referido direito.

25      Ora, a questão de saber se o direito da União é aplicável ao caso em apreço enquadra‑se plenamente nas competências do Tribunal de Justiça, em especial em conformidade com o artigo 259.° TFUE, para se pronunciar sobre a existência de um eventual incumprimento do referido direito.

26      Consequentemente, o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre a ação intentada pela Hungria e a exceção de incompetência suscitada pela República Eslovaca deve ser julgada improcedente.

 Quanto à primeira alegação

 Argumentos das partes

27      Com a sua primeira alegação, a Hungria sustenta que, ao proibir o presidente da Hungria de entrar no seu território, a República Eslovaca violou o artigo 21.°, n.° 1, TFUE e a Diretiva 2004/38.

28      Em primeiro lugar, para determinar a aplicabilidade do direito da União ao caso em apreço, o Governo húngaro alega, nomeadamente, que a Diretiva 2004/38 se aplica a todos os cidadãos da União, incluindo chefes de Estado, e a todos os tipos de visitas, isto é, tanto oficiais como privadas.

29      Acrescenta que, se o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia tivessem querido submeter o exercício do direito à liberdade de circulação a normas de direito internacional, tê‑lo‑iam previsto, como fizeram, por exemplo, no artigo 3.°, n.° 2, alínea f), da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25 de novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração (JO 2004, L 16, p. 44). Por outro lado, essas normas de direito internacional não existem. Com efeito, tendo em consideração a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual o legislador da União deve respeitar o direito internacional, se essas normas existissem, a Diretiva 2004/38 devia tê‑las tido em conta. Em qualquer caso, mesmo admitindo que essas normas existam, a Hungria considera que a sua aplicação não pode comprometer a eficácia de uma regulamentação da União, como a Diretiva 2004/38, introduzindo uma exceção no âmbito da sua aplicação pessoal.

30      Em seguida, a Hungria alega que o alcance do direito de qualquer cidadão da União de circular livremente no interior da União Europeia não pode ser objeto de uma interpretação restritiva, pelo que este direito só pode estar sujeito às limitações excecionalmente previstas na Diretiva 2004/38. Todavia, a aplicação dessas limitações só é possível se estiverem preenchidas as condições substanciais e processuais previstas na referida diretiva.

31      Ora, no que respeita às condições substanciais, o artigo 27.°, n.° 2, da Diretiva 2004/38 admite a possibilidade de os Estados‑Membros adotarem medidas restritivas de ordem pública ou de segurança pública se tais medidas se basearem, exclusivamente, na conduta pessoal do indivíduo em questão e respeitarem o princípio da proporcionalidade. Além disso, essas restrições só podem ser aplicadas se o comportamento da pessoa em causa representar uma ameaça real, atual e suficientemente grave para um interesse fundamental da sociedade. Quanto às condições processuais, o artigo 30.° da mesma diretiva enuncia as garantias de que deve gozar qualquer cidadão da União, cujo direito à livre circulação esteja limitado, no que se refere, nomeadamente, à comunicação dos fundamentos da medida restritiva e das vias de recurso de que dispõe.

32      Segundo a Hungria, a demandada não respeitou as condições substanciais nem as condições processuais previstas na Diretiva 2004/38 ao proibir ao presidente da Hungria a entrada no território eslovaco. Com efeito, por um lado, L. Sólyom não representava nenhuma ameaça para nenhum interesse fundamental da sociedade e, em qualquer caso, uma proibição de acesso constituía uma medida desproporcionada. Por outro lado, L. Sólyom não foi informado dos fundamentos da decisão em causa e das vias de recurso de que dispunha.

33      A República Eslovaca, apoiada neste ponto pela Comissão, precisa, antes de mais, que a visita programada do presidente da Hungria não era uma visita privada de um cidadão da União, mas uma visita de um chefe de Estado ao território de outro Estado‑Membro. Por conseguinte, a questão que se coloca é a de saber se o direito da União e, em especial, o artigo 21.° TFUE e a Diretiva 2004/38 são aplicáveis aos chefes de Estado dos Estados‑Membros.

34      A este respeito, a República Eslovaca considera que, tendo em conta o papel dos chefes de Estado, as suas deslocações no interior da União integram‑se no domínio das relações diplomáticas entre os Estados‑Membros, conforme reguladas pelo direito internacional consuetudinário e por convenções internacionais. Com efeito, o princípio da atribuição de competências resultante dos artigos 3.° TUE, 4.°, n.° 1, TUE e 5.° TUE exclui as relações diplomáticas bilaterais entre os Estados‑Membros do âmbito de aplicação do direito da União. Isto é confirmado, em primeiro lugar, pelo acórdão de 22 de março de 2007, Comissão/Bélgica (C‑437/04, Colet., p. I‑2513), segundo o qual os Estados‑Membros mantêm a possibilidade de regulamentar as suas relações diplomáticas mesmo após a adesão à União. Além disso, nenhuma disposição dos Tratados atribui, expressamente, à União competência para regulamentar as relações diplomáticas entre os Estados‑Membros.

35      Em seguida, alega que o chefe de Estado, enquanto titular da soberania do Estado que representa, só pode deslocar‑se a outro Estado soberano com o conhecimento e o acordo deste último. A este respeito, a República Eslovaca recorda que o artigo 4.°, n.° 2, TUE dispõe que a «União respeita a igualdade dos Estados‑Membros perante os tratados, bem como a respetiva identidade nacional» e que o princípio da livre circulação não pode, em caso algum, implicar uma alteração do âmbito de aplicação do TUE ou das disposições de direito derivado.

36      No que respeita aos argumentos aduzidos pela Hungria relativamente à aplicabilidade do direito da União ao caso em apreço, a República Eslovaca alega, em primeiro lugar, que o facto de a Diretiva 2004/38 não prever exceções relativas à circulação dos chefes de Estado não significa que a mesma lhes seja aplicável, sendo a aplicação do direito da União aos chefes de Estado excluída pelos próprios tratados. Em segundo lugar, a República Eslovaca, tal como a Comissão, contesta a comparação feita entre a Diretiva 2004/38 e a Diretiva 2003/109, na medida em que estes dois textos têm objetos diferentes, visando o segundo a melhoria da integração dos imigrantes em situação regular. Em terceiro lugar, os acórdãos de 24 de novembro de 1992, Poulsen e Diva Navigation (C‑286/90, Colet., p. I‑6019), e de 16 de junho de 1998, Racke (C‑162/96, Colet., p. I‑3655), não fazem impender sobre o legislador da União nenhuma obrigação de indicar, para qualquer ato de direito derivado, o âmbito de aplicação material e pessoal dos Tratados no contexto do direito internacional. Por último, em quarto lugar, os acórdãos de 6 de abril de 1995, RTE e ITP/Comissão (C‑241/91 P e C‑242/91 P, Colet., p. I‑743), e de 22 de outubro de 2009, Bogiatzi (C‑301/08, Colet., p. I‑10185), só são pertinentes quando a competência da União não é contestada, o que não se verifica precisamente no caso em apreço.

37      Aliás, se se admitisse a aplicação do direito da União em circunstâncias como as do caso em apreço, o chefe de Estado de um Estado‑Membro beneficiaria, noutro Estado‑Membro, de privilégios assentes no direito da União, estando, ao mesmo tempo, protegido pelas imunidades previstas no direito internacional contra a aplicabilidade das decisões administrativas tomadas por esse Estado nos termos do direito da União. Isto levaria a que um Estado‑Membro não pudesse recusar a entrada dessa pessoa no seu território nem, tendo em conta as suas imunidades, expulsá‑la posteriormente.

38      Em qualquer caso, mesmo que se admitisse a aplicabilidade do direito da União ao caso em apreço, a República Eslovaca nega ter aplicado este direito e, em especial, a Diretiva 2004/38. A este respeito, considera que a nota verbal de 21 de agosto de 2009, que faz referência à Diretiva 2004/38, se inscreve no âmbito dos contactos diplomáticos tendo em vista a organização da visita programada do presidente da Hungria e não constitui, portanto, uma «decisão» na aceção desta diretiva. De resto, essa nota foi redigida, não por um agente de polícia dos serviços de controlo de fronteiras, mas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou seja, por um órgão manifestamente incompetente para adotar uma decisão de primeira instância nos termos da Diretiva 2004/38 e das normas nacionais pertinentes. Além disso, longe de ser dirigida a L. Sólyom, a referida nota foi comunicada à Hungria por via diplomática.

39      A República Eslovaca alega também que a formulação infeliz da mesma nota e a menção à Diretiva 2004/38 não determinam a aplicação material da referida diretiva ao presente caso.

 Apreciação do Tribunal

40      Para decidir sobre a primeira alegação, importa, antes de mais, reafirmar que o estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros (v., designadamente, acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, Colet., p. I‑6193, n.° 31; de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, Colet., p. I‑1449, n.° 43; e de 15 de novembro de 2011, Dereci e o., C‑256/11, Colet., p. I‑11315, n.° 62).

41      Para o efeito, o artigo 20.° TFUE confere a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro o estatuto de cidadão da União (v., designadamente, acórdãos de 11 de julho de 2002, D’Hoop, C‑224/98, Colet., p. I‑6191, n.° 27; de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello, C‑148/02, Colet., p. I‑11613, n.° 21; e de 8 de março de 2011, Ruiz Zambrano, C‑34/09, Colet., p. I‑1177, n.° 40).

42      Daqui decorre que L. Sólyom, que tem nacionalidade húngara, beneficia incontestavelmente desse estatuto.

43      Ora, por um lado, é verdade que, em conformidade com o artigo 21.° TFUE, a cidadania da União confere a cada cidadão da União um direito fundamental e individual de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros, sujeito às limitações e restrições estabelecidas nos tratados e às medidas adotadas em sua execução (acórdãos de 7 de outubro de 2010, Lassal, C‑162/09, Colet., p. I‑9217, n.° 29, e de 5 de maio de 2011, McCarthy, C‑434/09, Colet., p. I‑3375, n.° 27).

44      Por outro lado, importa recordar que o direito da União deve ser interpretado à luz das regras pertinentes do direito internacional, o qual faz parte da ordem jurídica da União e vincula as suas instituições (v., neste sentido, acórdãos Racke, já referido, n.os 45 e 46, e de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colet., p. I‑6351, n.° 291).

45      Neste caso, cumpre verificar se, como alega a República Eslovaca, a circunstância de L. Sólyom, sendo cidadão da União, exercer, à data dos factos, as funções de chefe de Estado da Hungria é suscetível de constituir uma limitação, baseada no direito internacional, à aplicação do direito de circulação que o artigo 21.° TFUE lhe confere.

46      Para o efeito, há que recordar que, com base nas normas consuetudinárias de direito internacional geral e nas normas convencionais multilaterais, o chefe de Estado goza de um estatuto especial nas relações internacionais que implica, designadamente, privilégios e imunidades.

47      Em especial, o artigo 1.° da Convenção de Nova Iorque, de 14 de dezembro de 1973, sobre prevenção e repressão de crimes contra pessoas gozando de proteção internacional, incluindo os agentes diplomáticos, declara, designadamente, que qualquer chefe de Estado, quando se encontre no território de um Estado estrangeiro, goza dessa proteção.

48      Deste modo, a presença de um chefe de Estado no território de outro Estado impõe a este último a obrigação de garantir a proteção da pessoa que exerce essa função, independentemente do título a que se realiza a sua visita.

49      O estatuto do chefe de Estado reveste, por conseguinte, uma especificidade decorrente do facto de ser regulado pelo direito internacional, com a consequência de que os seus comportamentos no plano internacional, como a sua presença no estrangeiro, estão abrangidos por esse direito, e, designadamente, pelo direito das relações diplomáticas.

50      Esta especificidade distingue a pessoa que goza desse estatuto de todos os demais cidadãos da União, de modo que o acesso dessa pessoa ao território de outro Estado‑Membro não está abrangido pelas mesmas condições aplicáveis aos demais cidadãos.

51      Daqui decorre que a circunstância de um cidadão da União exercer funções de chefe de Estado é suscetível de justificar uma limitação, baseada no direito internacional, ao exercício do direito de circulação que o artigo 21.° TFUE lhe confere.

52      Em face do exposto, há que declarar que, nas circunstâncias do caso em apreço, nem o artigo 21.° TFUE nem, por maioria de razão, a Diretiva 2004/38 exigem que a República Eslovaca garanta o acesso ao seu território ao presidente da Hungria e, por conseguinte, a primeira alegação é julgada improcedente por infundada.

 Quanto à terceira alegação

 Argumentos das partes

53      Com a sua terceira alegação, que importa examinar em segundo lugar, a Hungria sustenta que a República Eslovaca, ao recusar ao presidente da Hungria o acesso ao seu território, violou a Diretiva 2004/38, e que o próprio facto de basear a nota verbal de 21 de agosto de 2009 nesta diretiva se enquadra no conceito de abuso de direito, conforme definido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., designadamente, acórdão de 14 de dezembro de 2000, Emsland‑Stärke, C‑110/99, Colet., p. I‑11569). Na realidade, a República Eslovaca teria invocado a referida diretiva para prosseguir fins políticos.

54      Ora, segundo a Hungria, o recurso ao direito da União para exprimir uma hostilidade no plano político através de medidas que restringem a liberdade de circulação dos cidadãos é contrário aos valores fundamentais da União. Do mesmo modo, a ordem pública ou a segurança pública mencionadas na Diretiva 2004/38 não podem ser invocadas para fins políticos. A Hungria acrescenta que, se um comportamento dessa natureza fosse considerado compatível com o direito da União, nada impediria, no futuro, os outros Estados‑Membros de «resolver» os seus diferendos bilaterais invocando o direito da União, o que é contrário aos objetivos deste direito.

55      A República Eslovaca responde que não se verificou nenhuma aplicação abusiva do direito da União, uma vez que este direito não se aplica ao caso em apreço, e que, de qualquer modo, no presente caso, não estão reunidas as condições previstas pela jurisprudência para declarar uma tal aplicação abusiva.

 Apreciação do Tribunal

56      Há que recordar que foi erradamente que, na sua nota verbal de 21 de agosto de 2009, a República Eslovaca fez referência à Diretiva 2004/38, o que, de resto, foi reconhecido por este Estado‑Membro.

57      No entanto, esta circunstância não é suficiente para determinar que a República Eslovaca cometeu um abuso.

58      Com efeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a prova de uma prática abusiva requer, por um lado, um conjunto de circunstâncias objetivas das quais resulte que, apesar do respeito formal das condições previstas na legislação da União, o objetivo pretendido por essa legislação não foi alcançado e, por outro, um elemento subjetivo que consiste na vontade de obter um benefício resultante da legislação da União, criando artificialmente as condições exigidas para a sua obtenção (acórdãos Emsland‑Stärke, já referido, n.os 52 e 53, e de 21 de julho de 2005, Eichsfelder Schlachtbetrieb, C‑515/03, Colet., p. I‑7355, n.° 39).

59      Ora, no caso em apreço, por um lado, as condições previstas para a aplicação da Diretiva 2004/38 não foram respeitadas formalmente. Com efeito, sendo a nota verbal de 21 de agosto de 2009 do Ministério dos Negócios Estrangeiros eslovaco dirigida ao embaixador da Hungria na República Eslovaca o único ato que fazia referência a esta diretiva, não foi adotada pelas autoridades nacionais competentes nem, por maioria de razão, comunicada a L. Sólyom, em conformidade com o artigo 30.° da referida diretiva, nenhuma decisão na aceção do artigo 27.° da mesma diretiva.

60      Por outro lado, por essas mesmas razões, resulta claramente dos autos que a República Eslovaca não criou artificialmente as condições requeridas para a aplicação da Diretiva 2004/38. Com efeito, a mera invocação desta diretiva na dita nota verbal não é, manifestamente, suscetível de tornar a referida diretiva aplicável a uma situação de facto a que não se aplica.

61      Nestas condições, a terceira alegação deve igualmente ser julgada improcedente por infundada.

 Quanto à segunda e quarta alegações

62      Importa analisar conjuntamente a segunda e quarta alegações.

 Argumentos das partes

63      Com a sua segunda alegação, a Hungria sustenta que existe um risco de que a República Eslovaca volte, no futuro, a violar os artigos 3.° TUE e 21.° TFUE, bem como a Diretiva 2004/38. Esse risco é confirmado, nomeadamente, por diversas declarações proferidas pelas autoridades eslovacas segundo as quais o seu comportamento em relação ao presidente da Hungria não teria infringido o direito da União.

64      Dado que contesta qualquer incumprimento ao direito da União devido, essencialmente, à sua inaplicabilidade ao caso em apreço, a República Eslovaca considera que, consequentemente, não existe nenhum risco de repetição. Em qualquer caso, a segunda alegação baseia‑se apenas num comportamento eventual e futuro das autoridades eslovacas. Além disso, os elementos invocados pela Hungria em apoio desta alegação são declarações posteriores à nota de 21 de agosto de 2009, o que, a ser tido em conta no presente processo, violaria os direitos de defesa da República Eslovaca. Por último, esta, referindo‑se a uma clara melhoria das relações entre os dois Estados‑Membros no período posterior aos factos contestados ― comprovada, em especial, pelo encontro de 10 de setembro de 2009, recordado no n.° 10 do presente acórdão ― afasta a possibilidade de que, no futuro, se repita qualquer mal‑entendido semelhante.

65      Com a sua quarta alegação, a Hungria sustenta que, se o Tribunal de Justiça concluir que se aplicam ao caso em apreço as normas de direito internacional, e não o direito da União, então deve precisar o âmbito de aplicação pessoal dessas normas, a fim de clarificar os limites à aplicação do artigo 21.° TFUE e da Diretiva 2004/38, no que respeita às relações bilaterais entre os Estados‑Membros. Em especial, o Tribunal de Justiça deve precisar se esses limites dizem respeito apenas aos chefes de Estado ou também a outras categorias de cidadãos da União.

66      A República Eslovaca considera que a questão de saber que pessoas, além dos chefes de Estado, estão excluídas da aplicação do artigo 21.° TFUE e da Diretiva 2004/38 não é relevante para a resolução do litígio.

 Apreciação do Tribunal

67      Para decidir sobre estas duas alegações, há que recordar que o procedimento instituído pelo artigo 259.° TFUE tem por objetivo obter a declaração e a cessação do comportamento de um Estado‑Membro que viola o direito da União (v., neste sentido, acórdãos de 7 de fevereiro de 1979, França/Comissão, 15/76 e 16/76, Colet., p. 145, n.° 27; de 6 de dezembro de 2007, Comissão/Alemanha, C‑456/05, Colet., p. I‑10517, n.° 25; e de 21 de setembro de 2010, Suécia e o./API e Comissão, C‑514/07 P, C‑528/07 P e C‑532/07 P, Colet., p. I‑8533, n.° 119).

68      Assim, na medida em que o objetivo do Tratado é alcançar a eliminação efetiva dos incumprimentos dos Estados‑Membros e das suas consequências (acórdão de 12 de julho de 1973, Comissão/Alemanha, 70/72, Colet., p. 309, n.° 13), uma ação nos termos do artigo 259.° TFUE, que tem por objeto eventuais e futuros incumprimentos ou que se limita a pedir uma interpretação do direito da União, é inadmissível.

69      Ora, não se pode deixar de observar que, com a sua segunda alegação, a Hungria, por um lado, se limitou a invocar um risco de incumprimentos futuros dos artigos 3.° TUE e 21.° TFUE, bem como da Diretiva 2004/38, e, por outro lado, não alegou que esse risco, admitindo que estava demonstrado, constitui, por si só, um incumprimento do direito da União.

70      No que respeita à sua quarta alegação, a Hungria não pede ao Tribunal de Justiça que declare um incumprimento da República Eslovaca, mas pretende tão‑somente obter uma interpretação do direito da União. Por outro lado, esta interpretação é alegadamente necessária para a aplicação deste direito a uma situação de facto diferente da que está em causa no caso em apreço. Com efeito, as circunstâncias que envolvem o incidente ocorrido em 21 de agosto de 2009 entre a Hungria e a República Eslovaca dizem unicamente respeito ao presidente da Hungria e não a outras categorias de cidadãos.

71      Nestas condições, a segunda e quarta alegações devem ser julgadas improcedentes por inadmissíveis.

72      Na medida em que nenhuma das alegações aduzidas pela Hungria foi acolhida, a ação deve ser julgada improcedente na sua totalidade.

 Quanto às despesas

73      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Eslovaca pedido a condenação da Hungria e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

74      Em aplicação do n.° 4, primeiro parágrafo, do mesmo artigo, a Comissão, que interveio no presente processo, suporta as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      A ação é julgada improcedente.

2)      A Hungria é condenada nas despesas.

3)      A Comissão Europeia suporta as suas próprias despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: eslovaco.