Language of document : ECLI:EU:C:2011:784

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 29 de novembro de 2011 (1)

Processo C‑307/10

The Chartered Institute of Patent Attorneys

contra

Registrar of Trade Marks

[pedido de decisão prejudicial apresentado por The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of the Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks através da High Court of Justice (England & Wales) (Reino Unido)]

«Marcas — Diretiva 2008/95/CE — Regulamento (CE) n.° 207/2009 — Extensão da proteção da marca — Identificação dos produtos ou dos serviços para os quais é pedida a proteção da marca — Exigências de clareza e de precisão — Utilização dos títulos das classes da classificação de Nice — Comunicação n.° 4/03 do presidente do IHMI»





1.        As duas componentes fundamentais do registo de uma marca são, por um lado, o sinal e, por outro, os produtos e os serviços que esse sinal deve designar. Cada uma dessas componentes permite definir o objeto exato da proteção que a marca registada confere ao seu titular.

2.        No acórdão Sieckmann (2), o Tribunal de Justiça definiu os requisitos que um sinal deve satisfazer para poder ser considerado uma marca. O presente processo dá, agora, ao Tribunal de Justiça a oportunidade de definir as normas que regulam a identificação dos produtos ou dos serviços para os quais é solicitada a proteção da marca e, indiretamente, de apreciar o âmbito das regras até agora aplicadas pelo Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (IHMI). Esta questão reveste‑se de especial importância num momento em que os institutos nacionais de marcas e o IHMI desenvolvem práticas divergentes que conduzem a condições variáveis de registo, contrárias aos objetivos prosseguidos pelo legislador da União.

I —    Quadro jurídico

A —    O Acordo de Nice

3.        O Acordo de Nice relativo à Classificação Internacional dos Produtos e dos Serviços para o registo de marcas, de 15 de junho de 1957, conforme revisto e alterado (3), foi adotado ao abrigo do artigo 19.° da Convenção para a proteção da propriedade industrial (4), que regula o direito das marcas no plano internacional. Nos termos do seu artigo 1.°, o Acordo de Nice tem por objetivo facilitar o registo das marcas graças à classificação de Nice.

4.        O artigo 2.° do Acordo de Nice define o âmbito jurídico da classificação de Nice e a sua aplicação. Tem a seguinte redação:

«1.      Sob reserva das obrigações impostas pelo presente Acordo, o âmbito da classificação será o que lhe for atribuído por cada país da União Particular. Nomeadamente, a classificação não obriga os países da União Particular nem quanto à apreciação da extensão da proteção da marca, nem quanto ao reconhecimento das marcas de serviço.

2.      Cada um dos países da União Particular reserva‑se a faculdade de aplicar a classificação a título de sistema principal ou de sistema auxiliar.

3.      As administrações competentes dos países da União Particular farão figurar nos títulos e publicações oficiais dos registos das marcas os números das classes da classificação a que pertencerem os produtos ou os serviços para os quais a marca estiver registada.

[…]»

5.        A classificação de Nice é gerida pela Secretaria Internacional da OMPI. Compreende uma lista das classes, acompanhada, eventualmente, de notas explicativas e de uma lista alfabética dos produtos e dos serviços pertencentes a cada uma das classes. Atualmente, é constituída por uma lista de títulos que inclui 34 classes de produtos e 11 classes de serviços. As indicações de produtos ou serviços constantes do título das classes constituem indicações gerais relativas aos domínios a que, em princípio, pertencem os produtos e os serviços referidos (5). A nona edição da classificação de Nice, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2007, compreende uma lista alfabética de 11 600 posições.

6.        Esta classificação é vinculativa para os pedidos e o registo das marcas comunitárias.

B —    A Diretiva 2008/95/CE

7.        A Diretiva 2008/95/CE (6) foi adotada com vista a eliminar as disparidades entre as legislações dos Estados‑Membros suscetíveis de entravar a livre circulação dos produtos e a livre prestação de serviços e de distorcer as condições de concorrência no mercado comum. A diretiva limita a aproximação às disposições nacionais que tenham uma incidência mais direta no funcionamento do mercado interno. Entre essas disposições estão as que definem as condições a que está subordinado o registo das marcas e as que determinam a proteção de que gozam as marcas regularmente registadas. Tendo em consideração os compromissos internacionais assumidos, as referidas disposições devem estar em total harmonia com as da Convenção de Paris e não devem afetar as obrigações que para os Estados‑Membros decorrem dessa Convenção.

8.        O artigo 2.° da diretiva define os sinais suscetíveis de constituir uma marca da seguinte forma:

«Podem constituir marcas todos os sinais suscetíveis de uma representação gráfica, nomeadamente as palavras, incluindo os nomes de pessoas, desenhos, letras, números, a forma do produto ou da respetiva embalagem, na condição de que de tais sinais sejam adequados a distinguir os produtos e os serviços de uma empresa dos de outras empresas.»

9.        O artigo 3.° da diretiva enumera os motivos de recusa ou de nulidade oponíveis ao registo de uma marca. Por exemplo, será recusado o registo ou poderá ser declarado nulo, uma vez efetuado, o registo de marcas desprovidas de caráter distintivo ou constituídas exclusivamente por sinais que possam servir, no comércio, para designar o destino do produto.

10.      O artigo 4.° da diretiva enumera outros motivos de recusa ou de nulidade em caso de conflito com uma marca anterior.

11.      Por último, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da diretiva, «[a] marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo» e permite‑lhe, por exemplo, proibir que terceiros façam uso, na vida comercial, de qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada.

C —    Os Regulamentos (CE) n.° 207/2009 e (CE) n.°  2868/95

12.      Com o fim de realizar o mercado interno, o Regulamento (CE) n.° 207/2009 (7) visa instituir, ao lado das marcas nacionais, uma marca comunitária que seja adquirida segundo um procedimento único, que goze de proteção uniforme na União e que produza efeitos em todos os Estados‑Membros. A marca comunitária não se substitui aos sistemas nacionais de proteção que permanecem. O registo e a administração desta marca são da competência do IHMI.

13.      O regulamento compreende, nos seus artigos 4.° e 7.° a 9.°, disposições análogas às dos artigos 2.° a 5.° da diretiva.

14.      Em contrapartida, o artigo 26.°, n.° 1, alínea c), do regulamento estabelece que o pedido de marca comunitária deve conter a lista dos produtos ou dos serviços para os quais é pedido o registo. Em conformidade com a regra 2, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 2868/95 (8), «[essa] lista […] deve ser redigida de forma a fazer ressaltar claramente [a] natureza [dos produtos ou dos serviços] e a permitir a classificação de cada produto e de cada serviço numa só classe da classificação de Nice».

15.      Além disso, em conformidade com o artigo 28.° do regulamento, conjugado com a regra 2, n.° 1, do regulamento de execução, os produtos e serviços para os quais sejam depositadas marcas comunitárias são classificados de acordo com a classificação de Nice. Por último, a regra 2, n.° 4, do regulamento de execução estabelece que:

«A classificação dos produtos e dos serviços é efetuada com finalidades meramente administrativas. Consequentemente, produtos e serviços não podem ser considerados semelhantes pelo facto de constarem da mesma classe da classificação de Nice e não podem ser considerados diferentes pelo facto de constarem de classes diferentes desta classificação.»

D —    A Comunicação n.° 4/03 do presidente do IHMI

16.      A Comunicação n.° 4/03 do presidente do IHMI (9) tem por objetivo, nos termos do seu ponto I, explicar e clarificar a prática do IHMI «no que respeita à utilização dos títulos das classes e às suas consequências quando os pedidos ou os registos de marca comunitária são objeto de uma limitação ou renúncia parcial ou quando estão implicados em processos de oposição ou de anulação».

17.      Resulta do ponto III, n.° 2, da Comunicação n.° 4/03 que o facto de se utilizarem as indicações gerais ou os títulos de classe integrais, previstos na classificação de Nice, constitui uma especificação, uma classificação e um agrupamento corretos dos produtos e dos serviços num pedido de marca comunitária.

18.      Em especial, é indicado no referido ponto que o «[IHMI] não se opõe à utilização de indicações gerais e de títulos de classe pelo facto de serem demasiado vagos ou indefinidos, contrariamente à prática de alguns institutos nacionais da União Europeia e de países terceiros, tendo em atenção determinados títulos de classe e determinadas indicações gerais».

19.      Além disso, o ponto IV desta Comunicação prevê:

«As 34 classes de produtos e as 11 classes de serviços compreendem a totalidade dos produtos e serviços pelo que a utilização de todas as indicações gerais do título de classe de uma classe específica constitui uma reivindicação em relação a todos os produtos ou serviços que se incluem nessa classe específica.

Da mesma forma, a utilização de uma determinada indicação geral que se encontra no título de classe abrange todos os produtos ou serviços que se enquadrem nessa indicação geral e estejam corretamente classificados na mesma classe. […]»

20.      Por último, o ponto V da referida comunicação enuncia:

«No que respeita aos processos de oposição e de anulação, a regra segundo a qual a utilização de todo o título de uma classe para uma determinada classe significa que todos os produtos que integram essa classe estão incluídos, implica que, quando o pedido ou o registo posterior incluir produtos ou serviços corretamente classificados na mesma classe, os produtos ou serviços são idênticos aos da marca anterior. Se a especificação não incluir todas as indicações gerais de um título de classe específico, mas apenas uma ou algumas delas, só há identidade quando o elemento particular estiver abrangido pela indicação geral. […]»

E —    Direito nacional

21.      A Lei relativa às marcas de 1994 (Trade Marks Act 1994, a seguir «Lei de 1994»), que transpôs a diretiva para o direito interno do Reino Unido, estabelece, no seu artigo 32.°, n.° 2, alínea c), que o pedido de registo de uma marca deve conter a indicação dos produtos ou dos serviços para os quais o registo é pedido.

22.      Em conformidade com o artigo 34, n.° 1, da Lei de 1994, os produtos e os serviços são classificados segundo a classificação prevista.

23.      Esta lei foi completada com o Regulamento de 2008 sobre as marcas (Trade Marks Rules 2008) que trata da prática e do procedimento no UK Intellectual Property Office. Em conformidade com a regra 8, n.° 2, alínea b), deste regulamento, o requerente deve especificar os produtos e os serviços para os quais a marca nacional é pedida, de forma a fazer ressaltar claramente a sua natureza.

II — Litígio no processo principal e questões prejudiciais

24.      O Chartered Institute of Patent Attorneys (a seguir «CIPA») solicitou ao Registrar of Trade Marks (a seguir «Registrar»), em 16 de outubro de 2009, o registo da denominação «IP TRANSLATOR» para os produtos que se enquadram na classe 41 da classificação de Nice, sob a epígrafe «Educação; formação; divertimento; atividades desportivas e culturais».

25.      O Registrar examinou este pedido com base na Comunicação n.° 4/03 e indeferiu‑o. Com efeito, como o referido pedido se referia ao título da classe 41 da classificação de Nice, o Registrar analisou a existência de motivos absolutos de recusa de registo na perspetiva do conjunto dos serviços que se enquadram nesta classe, entre os quais serviços de tradução. Ora, o Registrar entendeu que a marca IP TRANSLATOR era descritiva em relação àqueles serviços e, por isso, recusou o seu registo.

26.      O CIPA recorreu dessa decisão, sustentando que o seu pedido de registo não indicava e não pretendia cobrir os serviços de tradução da classe 41 da classificação de Nice. De acordo com The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of the Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks (pessoa designada pelo Lord Chancellor nos termos da Section 76 do Trade Marks Act 1994, para decidir em recurso das decisões do Registrar of Trade Marks, Reino Unido), estes serviços não são normalmente considerados uma subcategoria dos serviços de «educação», de «formação», de «divertimento», de «atividades desportivas» ou de «atividades culturais».

27.      Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, para além da lista alfabética, que contém 167 entradas que especificam os serviços que se enquadram na classe 41 da classificação de Nice, a base de dados gerida pelo Registrar, para efeitos da lei de 1994, contém mais de 2 000 entradas para a especificação dos serviços que se enquadram na referida classe 41 e a base de dados Euroace, organizada pelo IHMI, para efeitos do regulamento, contém mais de 3 000 dessas entradas.

28.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que, se a abordagem do Registrar estivesse correta, todas estas especificações, incluindo os serviços de tradução, estariam abrangidas pelo pedido de registo do CIPA. Nesse caso, o pedido abrangeria serviços que não são aí mencionados nem em registo dele resultante. Em seu entender, essa interpretação seria incompatível com as exigências de clareza e de precisão através das quais os diversos produtos ou serviços abrangidos por um pedido de marca devem ser identificados.

29.      O órgão jurisdicional de reenvio menciona também um inquérito conduzido em 2008 pela Association of European Trade Mark Owners (Marcas), que demonstrou que a prática varia consoante os Estados‑Membros, aplicando algumas autoridades competentes a abordagem interpretativa prevista na Comunicação n.° 4/03, enquanto outras se recusam a fazê‑lo.

30.      Com a finalidade de dissipar estas dúvidas, The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of the Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks, decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«No âmbito da diretiva […]:

1)      É necessário que os diversos produtos ou serviços abrangidos pelo pedido de marca sejam identificados com clareza e precisão? Caso assim seja, até que ponto exatamente?

2)      É permitida a utilização dos termos genéricos das classes da Classificação Internacional dos Produtos e dos Serviços para o registo de marcas, adotada nos termos do Acordo de Nice de 15 de junho de 1957 (conforme revisto e alterado periodicamente), para identificar os diversos produtos ou serviços abrangidos pelo pedido de marca?

3)      É necessário ou permitido que uma tal utilização dos termos genéricos das classes da referida Classificação Internacional dos Produtos e dos Serviços seja interpretada de acordo com a Comunicação n.° 4/03 […] ?»

31.      Foram apresentadas observações escritas pelas partes no litígio no processo principal, pelos Governos do Reino Unido, checo, dinamarquês, alemão, irlandês, francês, austríaco, polaco, português, eslovaco e finlandês, pelo IHMI e pela Comissão Europeia.

III — A nossa análise

32.      Com as suas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pede, no essencial, ao Tribunal de Justiça que defina as exigências ligadas à identificação dos produtos ou dos serviços para os quais o requerente de uma marca nacional solicita a proteção (10). A este respeito, interroga‑se sobre a pertinência das indicações gerais que constam nos títulos das classes da classificação de Nice e sobre o âmbito da interpretação feita pelo presidente do IHMI no âmbito da Comunicação n.° 4/03.

A —    Observações preliminares

33.      Em primeiro lugar, observo, desde logo, que a diretiva não contém nenhuma disposição relativa à identificação dos produtos ou dos serviços para os quais é pedido o registo de uma marca. Por essa razão, a realização dos objetivos a que a diretiva se refere nos seus considerandos exige que se proceda a uma harmonização das legislações nacionais quanto a este ponto.

34.      Com efeito, o quarto considerando da diretiva enuncia que a aproximação das legislações Estados‑Membros abranja as «disposições nacionais que tenham uma incidência mais direta sobre o funcionamento do mercado interno». De acordo com o Tribunal de Justiça, a diretiva visa, portanto, uma harmonização relativa a regras substantivas essenciais na matéria (11) entre as quais figuram, em minha opinião, as que permitem determinar o âmbito da proteção de uma marca.

35.      Além disso, no oitavo considerando da diretiva recorda‑se que a «realização dos objetivos prosseguidos pela aproximação [das legislações nacionais] pressupõe que a aquisição e a conservação do direito sobre a marca registada sejam, em princípio, subordinadas às mesmas condições». Ora, o Tribunal de Justiça declarou que as exigências relativas à determinação dos produtos e dos serviços constituem efetivamente um pressuposto material de aquisição do direito conferido pela marca (12).

36.      Por último, o décimo considerando da diretiva enuncia que «[é] fundamental, para facilitar a livre circulação de produtos e serviços, providenciar para que as marcas registadas passem a usufruir da mesma proteção de acordo com a legislação de todos os Estados‑Membros». Ora, a proteção da marca é essencialmente assegurada pelo seu registo (13). Por conseguinte, uma proteção uniforme da marca em todo o território da União exclui condições variáveis de registo e exige uma harmonização das legislações nacionais relativas à identificação dos produtos ou dos serviços.

37.      Em segundo lugar, é indispensável definir uma abordagem comum relativamente à identificação dos produtos ou dos serviços, consoante o pedido diga respeito ao registo de uma marca nacional ou de uma marca comunitária.

38.      Como recordou recentemente o Tribunal de Justiça, é verdade que o regime da marca comunitária é um sistema autónomo, constituído por um conjunto de regras e que prossegue objetivos específicos (14). Também é verdade que os regimes da marca nacional e da marca comunitária assentam em princípios de base comuns reveladores da identidade dos objetivos e das regras substantivas. Com efeito, as regras relativas à definição e à aquisição da marca e as que determinam os seus efeitos são, no essencial, idênticas, independentemente de dizerem respeito a uma marca nacional ou comunitária, como resulta do confronto da redação entre os artigos 2.°, 3.° e 5.° a 7.° da diretiva e os artigos 4.°, 7.°, 9.°, 12.° e 13.° do regulamento. Além disso, o Tribunal de Justiça não hesitou em transpor a interpretação de determinadas disposições da diretiva, em particular, a interpretação do seu artigo 5.°, para o artigo 9.° do regulamento (15).

39.      Além disso, embora o regime da marca nacional e o da marca comunitária seja independentes entre si, também é verdade que, na vida de uma marca, esses dois regimes interagem. Uma série de exemplos permite ilustrar este aspeto.

40.      Assim, em conformidade com o artigo 16.°, n.° 1, alínea a), do regulamento, por exemplo, a marca comunitária é considerada uma marca nacional registada no Estado‑Membro em que o titular tiver a sua sede. Caso a autoridade competente desse Estado‑Membro adote uma abordagem mais restritiva que a do IHMI quanto ao âmbito de aplicação material da marca, torna‑se então evidente que o titular da marca tem mais interesse em pedir o registo de uma marca comunitária do que o de uma marca nacional.

41.      Além disso, com fundamento no artigo 34.° do regulamento, o titular de uma marca nacional anterior pode invocar a antiguidade dessa marca quando apresente um pedido de marca comunitária idêntica para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca anterior foi registada. Por último, nos termos dos artigos 41.° e 42.° do regulamento, o titular de uma marca nacional anterior pode deduzir oposição ao registo de uma marca comunitária quando esta seja idêntica e os produtos ou os serviços para os quais a marca foi pedida sejam idênticos àqueles para os quais a marca anterior está protegida. Nestes dois últimos exemplos, o exame da justeza dessas pretensões depende da identidade dos produtos ou dos serviços respetivos, o que pressupõe, da parte da autoridade nacional competente e do IHMI, uma interpretação uniforme das regras que regulam a sua identificação.

42.      Estes exemplos demonstram que se torna, portanto, indispensável definir uma abordagem uniforme no que respeita a identificação dos produtos ou serviços para os quais a proteção da marca é pedida, aplicável tanto pelos institutos nacionais como pelo IHMI. Na sua falta, o sistema do registo das marcas na União poderia padecer de incoerências, de uma grande insegurança jurídica e, além disso, poderia alimentar o forum shopping. Foi, nomeadamente, para responder a estas preocupações que a Comissão referiu, na audiência, que seria iniciado a breve trecho um processo de reforma legislativa da diretiva e do regulamento.

43.      Por conseguinte e face a todos estes elementos, proponho ao Tribunal de Justiça que adote uma interpretação uniforme das exigências relativas à identificação dos produtos ou dos serviços conforme o pedido diga respeito ao registo de uma marca nacional ou de uma marca comunitária e, para essa finalidade, que tome como ponto de partida as regras fixadas no quadro do regulamento.

B —    Quanto à identificação dos produtos ou dos serviços no âmbito de um pedido de registo

44.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, ao Tribunal de Justiça se, nos termos da diretiva, o requerente é obrigado a identificar com clareza e precisão os produtos ou os serviços para os quais solicita uma proteção e, na afirmativa, questiona o Tribunal de Justiça sobre o nível de clareza e de precisão exigido.

45.      Pelas razões que acabo de expor, vou basear a minha análise nos primeiros elementos de que disponho no âmbito no quadro do regulamento.

46.      A identificação dos produtos ou dos serviços para os quais o registo de uma marca comunitária é pedido não deve ser confundida com a classificação destes. A identificação dos produtos ou dos serviços refere‑se apenas pelo artigo 26.°, n.° 1, alínea c), do regulamento e pela regra 2, n.° 2, do regulamento de execução. Em conformidade com estas disposições, o requerente deve elaborar uma lista dos produtos e dos serviços que permita determinar claramente a sua natureza.

47.      Por conseguinte, nada indica que o requerente seja obrigado a utilizar os termos dos títulos da classe da classificação de Nice. Este esclarecimento é importante visto que, através da Comunicação n.° 4/03, o presidente do IHMI pretende atribuir à classificação de Nice um valor jurídico que esta não possui.

48.      Com efeito, em conformidade com o artigo 2.°, n.° 1, do Acordo de Nice, a classificação de Nice não tem relevância jurídica no que se refere à apreciação da extensão da proteção conferida pela marca, salvo aquela que lhe for atribuída por cada país da União Particular (16).

49.      Ora, no quadro do regime da marca comunitária, a classificação dos produtos e dos serviços em conformidade com a classificação de Nice é efetuada para fins meramente administrativos. É o que expressamente resulta da leitura conjugada do artigo 28.° do regulamento com a regra 2, n.os 1 e 4, do regulamento de execução (17).

50.      Por conseguinte, a classificação de Nice tem, assim, um valor essencialmente prático (18). Facilita o registo das marcas, como o Tribunal de Justiça reconheceu no acórdão Koninklijke KPN Nederland (19), assim como a pesquisa de marcas anteriores. Com efeito, na medida em que os produtos e os serviços forem classificados da mesma maneira em todos os Estados partes no Acordo de Nice, a classificação de Nice facilita a preparação dos pedidos de registo. Além disso, ao estabelecer um sistema de classificação único, ajuda as autoridades competentes e os operadores económicos nas suas pesquisas de marcas anteriores que possam eventualmente opor‑se ao registo de uma nova marca. Por último, em conformidade com a regra 4 do regulamento de execução, é atendendo ao número de classes em que se inscrevem os produtos e os serviços referidos que a taxa de registo é calculada.

51.      Por conseguinte, a classificação dos produtos e dos serviços em conformidade com a classificação de Nice constitui apenas uma condição formal, cuja observância se impõe por razões administrativas e de facilidade evidentes.

52.      Em contrapartida, esta classificação carece de força jurídica vinculativa no que se refere à apreciação do âmbito de aplicação material da marca. Com efeito, o âmbito da proteção conferida pela marca deve ser examinado apenas em função dos elementos que o legislador da União vise expressamente no artigo 26.°, n.° 1, do regulamento e na regra 1, n.° 1, do regulamento de execução relativos aos requisitos que o pedido deve preencher. Entre estes elementos figuram, nomeadamente, a reprodução da marca assim como a lista dos produtos e dos serviços para os quais o registo é pedido, ou seja, as duas componentes fundamentais do registo de uma marca. Como a reprodução do sinal, a enumeração dos produtos e dos serviços vem, portanto, delimitar o objeto da proteção conferida pela marca. Assim, em aplicação do princípio da especialidade, a marca registada só está protegida para os produtos e os serviços referidos no pedido de registo.

53.      Após esta precisão, importa definir concretamente as exigências relativas à identificação dos produtos ou dos serviços.

54.      Para esse efeito, temos de nos socorrer dos princípios definidos no artigo 26.°, n.° 1, alínea c), do regulamento e na regra 2, n.° 2, do regulamento de execução, evocados anteriormente, e de tomar em consideração as regras que regulam a concessão de uma marca.

55.      Em primeiro lugar, o registo da marca deve garantir a função essencial desta, que é a de permitir ao consumidor ou ao utilizador final distinguir, sem confusão possível, os produtos e os serviços de uma empresa dos oferecidos por outra empresa (20). Por conseguinte, os produtos ou os serviços devem ser identificáveis.

56.      Em segundo lugar, uma marca deve ser registada em conformidade com princípio da especialidade. Este princípio visa conciliar os direitos exclusivos que a titularidade de uma marca confere ao seu titular com os princípios da livre circulação de mercadorias e da livre prestação de serviços. Implica que os direitos conferidos pela marca possam ser determinados com precisão de modo a limitar os direitos exclusivos à própria função da marca.

57.      Em terceiro lugar, a descrição dos produtos e dos serviços protegidos pela marca torna‑se necessária para permitir às autoridades competentes apreciar a existência dos motivos de recusa descritos nos artigos 3.° da diretiva e 7.° do regulamento (21).

58.      De acordo com os artigos 3.°, n.° 1, alíneas e), i), da diretiva e 7.°, n.° 1, alíneas e), i), do regulamento, será recusado o registo ou ficarão sujeitos a declaração de nulidade, uma vez efetuados, os registos de sinais constituídos exclusivamente pela forma imposta pela própria natureza do produto. Isso implica, por conseguinte, uma descrição do produto.

59.      Da mesma forma, os produtos e os serviços para os quais é pedido o registo da marca devem necessariamente ser tomados em consideração para se determinar se esse registo deve ser recusado, nos termos dos artigos 4.° da diretiva e 8.° do regulamento, por a referida marca ser idêntica ou poder criar um risco de confusão com uma marca anterior. Assim, de acordo com os artigos 4.°, n.° 1, alínea a), da diretiva e 8.°, n.° 1, alínea a), do regulamento, o pedido de registo de uma marca será recusado ou, tendo sido efetuado, o registo de uma marca ficará passível de ser declarado nulo se a marca for idêntica a uma marca anterior e se os produtos ou serviços para os quais o registo da marca for pedido ou a marca tiver sido registada forem idênticos aos produtos ou serviços para os quais a marca anterior está protegida. De acordo com os artigos 4.°, n.° 1, alínea b), da diretiva e 8.°, n.° 1, alínea b), do regulamento, a existência de um risco de confusão é devida a uma interdependência entre a semelhança das marcas entre si e a semelhança dos produtos e serviços respetivamente designados por essas marcas.

60.      Por fim, é também graças à indicação dos produtos ou dos serviços protegidos pela marca que podem ser aplicados os motivos para a sua extinção ou nulidade e que os institutos nacionais, em conformidade com o artigo 13.° da diretiva, e o IHMI, em conformidade com os artigos 51.° a 53.° do regulamento, têm a possibilidade de limitar o alcance da extinção ou da nulidade da marca apenas aos produtos ou serviços em relação aos quais esses motivos se aplicam.

61.      Em quarto lugar, o registo deve contribuir, no que respeita tanto ao direito da União como aos direitos nacionais, para a segurança jurídica e a boa administração (22).

62.      Assim, no acórdão Sieckmann, já referido, relativo à possibilidade de registo de uma marca olfativa, o Tribunal de Justiça exigiu que a representação gráfica do sinal prevista nos artigos 2.° da Diretiva 89/104 e 4.° do regulamento deva ser clara, precisa, por si só completa, facilmente acessível, inteligível, duradoura, inequívoca e objetiva de modo a poder ser identificada com exatidão (23).

63.      Estas exigências respondem a dois objetivos precisos. O primeiro é o de permitir às autoridades competentes conhecer de forma clara e precisa a natureza dos sinais constitutivos de uma marca para proceder ao exame prévio dos pedidos de registo, bem como à publicação e manutenção de um registo adequado e preciso das marcas.

64.      Com efeito, o Tribunal de Justiça exige que os institutos nacionais e o IHMI procedam a um controlo rigoroso, aprofundado e completo dos motivos suscetíveis de justificar uma recusa de registo, de modo a garantir que não sejam registadas marcas indevidamente (24). Assim, para apreciar a existência ou inexistência de caráter distintivo, o Tribunal de Justiça exige um exame concreto relativamente a cada um dos produtos ou dos serviços para os quais o registo é solicitado (25) e, se a autoridade competente recusar o registo de uma marca, a respetiva decisão deverá, em princípio, conter separadamente os fundamentos relativos a cada um dos produtos ou serviços (26). Estas exigências justificam‑se atenta a natureza do controlo, que é antes de mais um controlo a priori, o número e o caráter pormenorizado dos obstáculos ao registo previstos nos artigos 2.° e 3.° da diretiva e nos artigos 4.° e 7.° do regulamento. Além disso, as referidas exigências justificam‑se tendo em conta o extenso leque de vias de recurso de que os requerentes dispõem quando as autoridades competentes recusem o registo de uma marca. Tal como o Tribunal de Justiça recordou recentemente, essa obrigação de fundamentação deve permitir garantir uma proteção jurisdicional efetiva dos direitos reconhecidos aos requerentes (27).

65.      O segundo objetivo é o de permitir aos operadores económicos certificarem‑se com clareza e precisão dos registos efetuados ou dos pedidos de registo formulados pelos seus concorrentes, atuais ou potenciais, e beneficiarem, assim, de informações pertinentes sobre os direitos de terceiros.

66.      Estas exigências foram, subsequentemente, aplicadas pelo Tribunal de Justiça aos registos de uma cor, de uma conjugação de cores (28) e de sons (29).

67.      É óbvio que estes objetivos não poderiam ser satisfeitos e estas exigências ficariam privadas de efeito útil se os produtos e os serviços para os quais o requerente solicita uma proteção não puderem ser claramente identificados. Com efeito, tal como sublinhou o advogado‑geral P. Léger no n.° 63 das suas conclusões no processo que deu origem ao acórdão Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido, as duas componentes indissociáveis do registo, que permitem definir o objeto exato da proteção conferida pela marca, são, por um lado, o sinal, e, por outro, os produtos e os serviços que este sinal deve servir para designar.

68.      Contudo, não creio que seja possível transpor stricto sensu as exigências estabelecidas a propósito da representação gráfica de um sinal, olfativo ou sonoro, para a identificação dos produtos ou dos serviços. É óbvio que a representação gráfica de um sinal que não é, por si só, suscetível de ser percebido visualmente suscita problemas muito diferentes daqueles com que podemos ser confrontados no âmbito de uma descrição verbal de produtos e de serviços.

69.      É evidente que esta descrição deve ser clara e precisa de modo a que os produtos ou os serviços possam ser identificados com exatidão pelas autoridades competentes e pelos operadores económicos. Esta clareza e esta precisão implicam, como é evidente, que as expressões empregues sejam inteligíveis e sem qualquer ambiguidade.

70.      Contudo, não podemos correr o risco de limitar significativamente a proteção que a marca concede ao seu titular, exigindo deste que detalhe cada um dos produtos e dos serviços em causa.

71.      Para satisfazer estas exigências, existem, em minha opinião, duas opções.

72.      A primeira consiste em enumerar concretamente cada um dos produtos e dos serviços para os quais o requerente solicita uma proteção. Em conformidade com a jurisprudência, esta identificação deve, evidentemente, entender‑se no sentido de englobar os produtos ou os serviços que entram na composição ou na estrutura dos produtos ou serviços concretamente designados, tais como peças sobressalentes, ou diretamente relacionados com estes últimos (30).

73.      Do mesmo modo, deve admitir‑se que uma enumeração concreta pode revelar‑se delicada, tendo em conta a extrema diversidade na qual determinados produtos ou serviços podem ser recusados e pode mesmo arriscar limitar sensivelmente a proteção que a marca concede ao seu titular. Com efeito, não se trata de exigir do titular de uma marca registada que formule um novo pedido de registo sempre que decline o produto em relação ao qual detenha uma marca, modificando, por exemplo, em proporções mínimas, a sua composição ou destinando‑o a outras categorias de pessoas. Assim, o titular de uma marca registada para creme hidratante deveria poder declinar este produto, conforme seja destinado a crianças de tenra idade ou a adultos, sem apresentar novos pedidos de registo.

74.      É por essa razão que, sem entrar numa enumeração individualizada de cada um dos produtos e dos serviços em causa, a segunda opção consiste em identificar os produtos e os serviços de base, de modo a que as autoridades competentes e os operadores económicos possam identificar com exatidão as características e as propriedades objetivas essenciais (31) dos produtos e dos serviços em causa.

75.      Este critério deveria permitir identificar de forma objetiva a natureza dos produtos, em conformidade com a regra 2, n.° 2, do regulamento de execução. Além disso, deveria permitir às autoridades competentes e aos operadores económicos determinar os produtos semelhantes suscetíveis de ser protegidos pela marca. Este sistema, que já aplicámos no domínio da classificação aduaneira das mercadorias, parece‑me satisfazer os objetivos de clareza e de precisão sem limitar a proteção que deve ser concedida ao titular da marca registada.

76.      Por exemplo, um pedido de registo deveria cumprir essas exigências quando o requerente solicite uma proteção para as «velas de iluminação». Esta expressão deveria poder abranger velas, círios ou artigos semelhantes, que possuam as mesmas características essenciais do produto de base, ou seja, compostos de pavio e cera. Em contrapartida, neste exemplo, é indispensável especificar a função para a qual este produto se destina, de modo a que as autoridades competentes e os operadores económicos possam distinguir as «velas de iluminação» das «velas de ignição» utilizadas no setor automóvel.

77.      Esta interpretação está na linha do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido, relativo ao registo de uma marca no domínio dos serviços do comércio de retalho. Nesse processo, o Tribunal de Justiça exigiu, de facto, que o requerente especificasse os produtos ou os tipos de produtos a que respeitam os serviços, referindo‑se, especificamente, à «venda a retalho de artigos de construção, de bricolagem e de jardinagem [(32)] bem como de outros bens de consumo do setordo‑it‑yourself’ [(33)]». Para o Tribunal de Justiça, este nível de precisão permitiria facilitar a apreciação da identidade ou da semelhança dos produtos ou dos serviços para os quais foi pedida ou registada uma marca sem que estas indicações limitem significativamente a proteção conferida a esta (34).

78.      De qualquer modo, a clareza e a precisão requeridas devem ser apreciadas caso a caso, em função dos produtos ou dos serviços para os quais o requerente solicite uma proteção, quer a marca seja nacional ou comunitária.

79.      Portanto e face a todos estes elementos, considero que a diretiva e o regulamento devem ser interpretados no sentido de que a identificação dos produtos ou dos serviços para os quais o requerente solicita uma proteção deve satisfazer exigências de clareza e de precisão bastantes para permitir às autoridades competentes e aos operadores económicos determinar com exatidão o âmbito da proteção conferida pela marca.

80.      Estas exigências podem ser satisfeitas através de uma enumeração concreta de cada um dos produtos e dos serviços para os quais o requerente solicita a proteção. Também podem ser cumpridas através de uma identificação dos produtos ou dos serviços de base que permita às autoridades competentes e aos operadores económicos determinar as características e as propriedades objetivas essenciais dos produtos e dos serviços em causa.

C —    Quanto à utilização dos títulos das classes da classificação de Nice

81.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se a diretiva se opõe a que o requerente de uma marca nacional utilize as indicações gerais dos títulos das classes da classificação de Nice para identificar os produtos ou os serviços para os quais solicita uma proteção.

82.      Como indicámos, a classificação de Nice é um instrumento prático e os títulos das classes não têm, por si só, qualquer valor substancial. Porém, nada se opõe a que o requerente identifique esses produtos ou esses serviços utilizando as indicações gerais desses títulos de classe. Contudo, é indispensável que dessa identificação cumpra as exigências de clareza e de precisão. Ora, trata‑se de uma apreciação casuística.

83.      Com efeito, importa reconhecer que algumas dessas indicações gerais são, em si mesmas, suficientemente claras e precisas para permitir às autoridades competentes e aos operadores económicos determinar o âmbito da proteção conferida pela marca. É o caso, por exemplo, das indicações «sabões» ou «garfos e colheres» extraídas, respetivamente, dos títulos das classes 3 e 8 da classificação de Nice.

84.      Em contrapartida, outras indicações gerais não satisfazem essas exigências e apenas dão informações acerca do domínio de que fazem parte, em princípio, os produtos e os serviços (35). As indicações gerais que figuram, por exemplo, nas classes 37 («construção; reparações; serviços de instalação») e 45 («serviços pessoais e sociais prestados por terceiros destinados a satisfazer as necessidades dos indivíduos») da classificação de Nice são demasiado gerais e abrangem produtos e serviços por demais variados para serem compatíveis com a função de origem da marca. Sem outras especificações, não permitem às autoridades competentes cumprir as suas obrigações relativas ao exame prévio dos pedidos de registo nem permitem aos operadores económicos certificar‑se com precisão dos registos efetuados ou dos pedidos de registo formulados pelos seus concorrentes atuais ou potenciais. Esta é a razão pela qual o Tribunal de Justiça exigiu, no acórdão Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido, que o requerente especificasse os produtos ou tipos de produtos a que respeitam os serviços através de indicações que não constam dos títulos de classe.

85.      Tendo em conta estes elementos, parece‑me, por conseguinte, que a diretiva e o regulamento devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que o requerente identifique os produtos e os serviços para os quais solicita uma proteção utilizando as indicações gerais dos títulos das classes da classificação de Nice, desde que esta identificação cumpra as necessárias exigências de clareza e de precisão.

D —    Quanto à interpretação feita pelo presidente do IHMI no âmbito da Comunicação n.° 4/03

86.      Vem indicado no ponto III, n.° 2, da Comunicação n.° 4/03 que «[o IHMI] não se opõe à utilização de indicações gerais e dos títulos das classes pelo facto de serem demasiado vagos ou indefinidos». Além disso, o ponto IV desta Comunicação refere que a utilização de todas as indicações gerais do título de uma classe específica constitui para o IHMI uma reivindicação em relação a todos os produtos ou serviços incluídos nessa classe específica (36). Da mesma forma, a utilização de uma determinada indicação geral que se encontre no título da classe diz respeito a todos os produtos ou serviços incluídos na classe dessa indicação geral (37) e corretamente classificados na mesma classe.

87.      Com a sua terceira questão, o juiz de reenvio pergunta, no essencial, se a diretiva se opõe a uma interpretação como a que foi feita pelo presidente do IHMI no âmbito da Comunicação n.° 4/03.

88.      Esta Comunicação foi aprovada pelo IHMI no âmbito das missões que lhe incumbem ao abrigo da regulamentação relativa à marca comunitária. Não é um texto de caráter legislativo e não têm valor jurídico vinculativo. Trata‑se de um ato de organização interna que visa, em conformidade com o ponto I da referida Comunicação, explicar e clarificar a prática administrativa do IHMI. A Comunicação n.° 4/03 pretende, assim, garantir uma segurança jurídica às partes interessadas, estabelecendo um quadro claro e previsível sobre a maneira como interpreta as formulações empregues no âmbito de um pedido de registo. Esta Comunicação é, pois, pedagógica e explicativa. Ora, entre a função de explicação e a criação de verdadeiras regras de direito apenas há um curto espaço. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve certificar‑se de que esse texto garante efetivamente o respeito das regras estabelecidas pelo regulamento, tal como foram também interpretadas pelo Tribunal de Justiça, e dos direitos conferidos às partes interessadas.

89.      No caso em apreço, penso que tal não se verifica.

90.      Em primeiro lugar, a interpretação defendida na Comunicação n.° 4/03 contradiz os princípios estabelecidos no quadro do regulamento.

91.      Com efeito, a regra 2, n.° 2, do regulamento de execução exige que «[a] lista dos produtos e serviços [seja] redigida de forma a fazer ressaltar claramente a sua natureza e a permitir a classificação de cada produto e de cada serviço numa só classe da classificação de Nice». Ora, formularei duas considerações. Por um lado, será difícil satisfazer esta exigência se o IHMI não se opuser, nos termos do ponto III, segundo parágrafo, da Comunicação n.° 4/03, à utilização de indicações gerais e de títulos de classe por serem demasiado vagos ou indefinidos (38). Por outro lado, há que evocar as notas explicativas relativas à classificação de Nice que expõem que determinados produtos e serviços podem, na falta de qualquer explicação, pertencer a diversas classes.

92.      Em segundo lugar, a interpretação do IHMI, qualificada pela doutrina de «‘class‑heading‑covers‑all’ approach» (39), não garante o respeito do princípio da especialidade na medida em que não permite determinar com exatidão o âmbito de aplicação material da marca.

93.      Com efeito, esta interpretação equivale a reconhecer ao requerente direitos exclusivos quase ilimitados sobre os produtos e os serviços de uma classe. Por exemplo, quando um requerente se refere apenas às indicações gerais do título da classe 45 da classificação de Nice e pede, por conseguinte, o registo de uma marca para «serviços pessoais e sociais prestados por terceiros destinados a satisfazer as necessidades dos indivíduos», o registo dessa marca é suscetível de lhe conferir a utilização exclusiva de um sinal para serviços extremamente variados, que abrangem não só os «clubes de encontros» e os «estabelecimentos de horóscopo», mas igualmente as «agências de detetives» e os «serviços de cremação» (40). Por outras palavras, uma multiplicidade de serviços que não apresentam, a priori, nenhuma característica comum. Nesta hipótese, o âmbito da proteção conferida pela marca é indeterminável, quase invisível, em detrimento dos princípios da livre circulação de mercadorias e da livre prestação de serviços. Ora, em conformidade com o princípio da especialidade, uma marca não deve ser protegida em termos absolutos.

94.      Em terceiro lugar, uma interpretação como esta não garante uma utilização séria da marca, na aceção dos artigos 10.° da diretiva e 15.° do regulamento. Com efeito, não é evidente que o titular da marca explore o sinal em relação ao conjunto dos produtos e dos serviços para os quais solicitou uma proteção. Ora, tal como sublinhou o advogado‑geral P. Léger no n.° 80 das suas conclusões no processo que deu origem ao acórdão Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido, intentar uma ação para declaração da caducidade dos direitos do titular não é adequado quando, logo à partida, está adquirido que a marca só será aplicada a determinados produtos ou serviços. Além disso, este sistema parece em contradição com os objetivos expressos no nono considerando da diretiva e no décimo considerando do regulamento, nos termos dos quais o legislador da União exige que as marcas registadas sejam efetivamente usadas sob pena de caducidade. Como corretamente recordou o advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no n.° 42 das suas conclusões no processo que deu origem ao acórdão Ansul, já referido, os registos de marcas não são simples depósitos de sinais, mas devem, ao invés, ser reflexos fieis da realidade e das indicações que as empresa utilizam no mercado.

95.      Por conseguinte, se a interpretação feita pelo IHMI parece, à primeira vista, facilitar o registo das marcas nos registos públicos, acaba por conduzir a um aumento do número total das marcas registadas e protegidas na União e, portanto, do número dos conflitos que surgem entre elas. Longe de assegurar uma boa administração, não permite, além disso, garantir a existência de uma concorrência não falseada no mercado.

96.      Em quarto lugar, esta interpretação não garanta a segurança jurídica. Com efeito, como salientaram, nomeadamente, os Governos do Reino Unido, alemão, irlandês e francês nas suas observações, a classificação de Nice é um instrumento evolutivo. A décima edição desta classificação, que entrará em vigor em 1 de janeiro do 2012, inscreve, em títulos de classe inalterados, novos produtos e serviços (41). Ora, não se pode limitar o âmbito de aplicação material da marca a um texto suscetível de ser modificado ao sabor da evolução do mercado.

97.      Por conseguinte e face a todos estes elementos, considero que a Comunicação n.° 4/03, através da qual o presidente do IHMI indica, por um lado, que o IHMI não se opõe à utilização das indicações gerais e dos títulos de classes demasiado vagos ou indefinidos e, por outro, que a utilização das referidas indicações constitui uma reivindicação em relação a todos os produtos ou serviços que se enquadram na classe referida, não garante a clareza e a precisão necessárias para efeitos do registo de uma marca, independentemente de ser nacional ou comunitária.

IV — Conclusão

98.      À luz das considerações expostas, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões apresentadas pela The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of the Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks, transmitidas pela High Court of Justice (England & Wales), do seguinte modo:

«1)      a)      A Diretiva 2008/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados Membros em matéria de marcas, e o Regulamento (CE) n.° 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária, devem ser interpretados no sentido de que a identificação dos produtos ou dos serviços para os quais o requerente solicita uma proteção deve satisfazer exigências de clareza e de precisão bastantes para permitir às autoridades competentes e aos operadores económicos determinar com exatidão o âmbito da proteção conferida pela marca.

b)      Estas exigências podem ser satisfeitas através de uma enumeração concreta de cada um dos produtos e dos serviços para os quais o requerente solicita uma proteção. Também podem ser cumpridas através de uma identificação dos produtos ou dos serviços de base que permita às autoridades competentes e aos operadores económicos determinar as características e as propriedades objetivas essenciais dos produtos e dos serviços em causa.

2)      A Diretiva 2008/95 e o Regulamento n.° 207/2009 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que o requerente identifique os produtos e os serviços para os quais solicita uma proteção utilizando as indicações gerais dos títulos das classe da classificação comum dos produtos e dos serviços para os quais uma marca foi registada, desde que esta identificação cumpra as necessárias exigências de clareza e de precisão.

3)      A Comunicação n.° 4/03 do presidente do Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (IHMI), de 16 de junho de 2003, relativa à utilização dos títulos das classes das listas de produtos e serviços para os pedidos e os registos de marca comunitária, através da qual este indica, por um lado, que o referido Instituto não se opõe à utilização das indicações gerais e dos títulos de classes demasiado vagos ou indefinidos e, por outro, que a utilização das referidas indicações constitui uma reivindicação em relação a todos os produtos ou serviços que se enquadram na classe referida, não garante a clareza e a precisão necessárias para efeitos do registo de uma marca, independentemente de ser nacional ou comunitária.»


1 – Língua original: francês.


2 – Acórdão de 12 de dezembro de 2002 (C‑273/00, Colet., p. I‑11737).


3 – A seguir «Acordo de Nice». De acordo com a base de dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), só a República de Chipre e a República de Malta não são partes no Acordo de Nice. No entanto, utilizam a classificação comum dos produtos e dos serviços para os quais é registada uma marca (a seguir «classificação de Nice»).


4 – Convenção assinada em Paris em 20 de março de 1883, revista pela última vez em Estocolmo em 14 de julho de 1967 e alterada em 28 de setembro de 1979 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 828, n.° 11851, p. 305, a seguir «Convenção de Paris»).


5 – V. considerações gerais e ponto 1 do guia do utilizador da classificação de Nice, disponíveis no sítio Internet da OMPI.


6 – Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO L 299, p. 25, a seguir «diretiva»).


7 – Regulamento do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (JO L 78, p. 1, a seguir «regulamento»).


8 – Regulamento da Comissão, de 13 de dezembro de 1995, relativo à execução do Regulamento (CE) n.° 40/94 do Conselho, sobre a marca comunitária (JO L 303, p. 1, a seguir «regulamento de execução»).


9 – Comunicação, de 16 de junho de 2003, relativa à utilização dos títulos das classes das listas de produtos e serviços para os pedidos e os registos de marca comunitária.


10 – No quadro da minha análise, remeto para as conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo que deu origem ao acórdão de 11 de março de 2003, Ansul (C‑40/01, Colet., p. I‑2439), e para os n.os 57 a 82 das conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo que deu origem ao acórdão de 7 de julho de 2005, Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte (C‑418/02, Colet., p. I‑5873).


11 – Acórdão de 22 de setembro de 2011, Budějovický Budvar (C‑482/09, Colet., p. I‑8701, n.° 30 e jurisprudência aí indicada). Este acórdão diz respeito à interpretação da Primeira Diretiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1), sendo essas disposições, no essencial, idênticas às da diretiva.


12 – Acórdão Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido (n.° 31).


13 – Acórdão Sieckmann, já referido (n.° 37).


14 – Acórdão Budějovický Budvar, já referido (n.° 36 e jurisprudência aí indicada).


15 – V., nomeadamente, acórdão de 22 de setembro de 2011, Interflora e Interflora British Unit (C‑323/09, Colet., p. I‑8625, n.° 38 e jurisprudência aí indicada).


16 – Este princípio está igualmente consagrado no artigo 4.°, n.° 1, alínea b), do Protocolo referente ao Acordo de Madrid relativo ao registo internacional de marcas, aprovado em Madrid em 27 de junho de 1989, ao qual a Comunidade Europeia aderiu nos termos da Decisão 2003/793/CE do Conselho, de 27 de outubro de 2003 (JO L 296, p. 20).


17 – Em conformidade com as referidas disposições, a classificação dos produtos e dos serviços de acordo com a classificação de Nice não vincula o examinador relativamente à apreciação da identidade ou da semelhança dos produtos e dos serviços, porque os produtos e os serviços não podem ser considerados nem semelhantes pelo facto de constarem da mesma classe da classificação de Nice nem diferentes pelo facto de constarem de classes diferentes dessa classificação. Este princípio está igualmente consagrado no artigo 9.°, n.° 2, alíneas a) e b), do Tratado sobre o Direito das Marcas, adotado em Genebra em 27 de outubro de 1994.


18 – V. n.os 42 e 43 das conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo que deu origem ao acórdão Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido.


19 – Acórdão de12 de fevereiro de 2004 (C‑363/99, Colet., p. I‑1619, n.° 111).


20 – V. artigos 2.° da diretiva e 4.° do regulamento. V., igualmente, acórdãos de 6 de maio de 2003, Libertel (C‑104/01, Colet., p. I‑3793, n.° 62 e jurisprudência aí indicada), e Interflora e Interflora British Unit, já referido (n.° 37 e jurisprudência aí indicada).


21 – Acórdãos de 4 de outubro de 2001, Merz & Krell (C‑517/99, Colet., p. I‑6959, n.° 29) e Koninklijke KPN Nederland, já referido (n.os 33 e 34).


22 – Acórdão Sieckmann, já referido (n.° 37).


23 – Ibidem (n.os 46 a 55).


24 – V. acórdão Koninklijke KPN Nederland, já referido (n.° 123 e jurisprudência aí indicada).


25 – V. acórdão de 15 de fevereiro de 2007, BVBA Management, Training en Consultancy (C‑239/05, Colet., p. I‑1455, n.° 31 e jurisprudência aí indicada).


26 – Despacho de 18 de março de 2010, CFCMCEE/IHMI (C‑282/09 P, Colet., p. I‑2395, n.° 37 e jurisprudência aí indicada), e, a propósito do artigo 7.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento (CE) n.° 40/94 do Conselho, de 20 de dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1), nomeadamente, acórdão de 29 de abril de 2004, Procter & Gamble/IHMI (C‑468/01 P à C‑472/01 P, Colet., p. I‑5141, n.° 36).


27 – Despacho CFCMCEE/IHMI, já referido (n.° 39 e jurisprudência aí indicada).


28 – No acórdão Libertel, já referido, o Tribunal de Justiça considerou que a cor laranja, mesmo representando apenas uma mera característica das coisas, podia, quando relacionada com um produto ou um serviço, constituir um sinal (n.° 27). Esta jurisprudência foi confirmada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 24 de junho de 2004, Heidelberger Bauchemie (C‑49/02, Colet., p. I‑6129, n.° 23), relativo a uma combinação de cores.


29 – V. acórdão de 27 de novembro de 2003, Shield Mark (C 283/01, Colet., p. I‑14313), relativo ao registo de catorze marcas sonoras, onze das quais consistiam nas nove primeiras notas da composição «Für Elise» de L. van Beethoven e as outras três no «canto de um galo».


30 – Acórdão Ansul, já referido (n.os 41 a 43).


31 – Sublinhado meu.


32 – Sublinhado meu.


33 – Idem.


34 – Acórdão Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, já referido (n.os 50 e 51).


35 – V. ponto 1 do guia do utilizador da classificação de Nice.


36 – Sublinhado meu.


37 – Idem.


38 – Sublinhado meu.


39 – V. Ashmead, R., «International Classification class headings: illustrative or exemplary? The scope of European Union registrations», Journal of Intellectual Property Law & Practice, 2007, vol. 2, n.° 2, p. 76.


40 – V., igualmente, a classe 37 da classificação de Nice, sob a epígrafe «Construção; reparações; serviços de instalação», que inclui a «eliminação de animais nocivos», ou a classe 26 dessa mesma classificação, sob a epígrafe «Rendas, bordados, fitas e laços; botões, ganchos e cravos, alfinetes e agulhas; flores artificiais», que engloba os «cabelos postiços».


41 – V., nomeadamente, a classe 42 da classificação de Nice que terá, a partir de 1 de janeiro de 2012, oito serviços adicionais.