Language of document : ECLI:EU:C:2013:160

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

14 de março de 2013 (*)

«Concorrência — Artigo 101.°, n.° 1, TFUE — Aplicação de uma regulamentação nacional análoga — Competência do Tribunal de Justiça — Acordos bilaterais entre uma seguradora e oficinas de reparação de automóveis, relativos ao preço por hora de reparação — Aumento dos preços em função do número de contratos de seguro celebrados através dessas oficinas de reparação na qualidade de intermediários da seguradora — Conceito de ‛acordo que tem por objetivo restringir a concorrência’»

No processo C‑32/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Magyar Köztársaság Legfelsőbb Bírósága (Hungria), por decisão de 13 de outubro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 21 de janeiro de 2011, no processo

Allianz Hungária Biztosító Zrt.,

Generali‑Providencia Biztosító Zrt.,

Gépjármű Márkakereskedők Országos Szövetsége,

Magyar Peugeot Márkakereskedők Biztosítási Alkusz Kft,

Paragon‑Alkusz Zrt., que sucedeu à Magyar Opelkereskedők Bróker Kft,

contra

Gazdasági Versenyhivatal,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, M. Ilešič (relator), A. Borg Barthet, M. Safjan e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 de junho de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Allianz Hungária Biztosító Zrt., por Z. Hegymegi‑Barakonyi e P. Vörös, ügyvédek,

¾        em representação da Generali‑Providencia Biztosító Zrt., por G. Fejes e L. Scheuer‑Szabó, ügyvédek,

¾        em representação do Governo húngaro, M. Z. Fehrér, K. Szíjjártó e K. Molnár, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Comissão Europeia, por V. Bottka, L. Malferrari e M. Kellerbauer, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por X. Lewis e M. Schneider, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 25 de outubro de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.°, n.° 1, TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe as sociedades Allianz Hungária Biztosító Zrt. (a seguir «Allianz»), Generali‑Providencia Biztosító Zrt. (a seguir «Generali»), Magyar Peugeot Márkakereskedők Biztosítási Alkusz Kft (a seguir «Peugeot Márkakereskedők») e Paragon‑Alkusz Zrt., que sucedeu à Magyar Opelkereskedők Bróker Kft (a seguir «Opelkereskedők»), bem como a associação Gépjármű Márkakereskedők Országos Szövetsége (a seguir «GÉMOSZ»), por um lado, ao Gazdasági Versenyhivatal (Instituto da concorrência, a seguir «GVH»), por outro, a propósito de uma decisão tomada por este último que aplica coimas a estas empresas assim como à Porsche Biztosítási Alkusz Kft (a seguir «Porsche Biztosítási») por ter celebrado uma série de acordos com fins anticoncorrenciais (a seguir «decisão controvertida»).

 Quadro jurídico

 Regulamentação húngara

3        O preâmbulo da Lei n.° LVII. de 1996 que proíbe as práticas comerciais desleais e a restrição da concorrência (A tisztességtelen piaci magatartás és a versenykorlátozás tilalmáról szóló 1996. évi LVII. Törvény, a seguir «Tpvt») enuncia:

«O interesse público na manutenção da concorrência no mercado, que está ao serviço da eficácia económica e do desenvolvimento social, bem como o interesse dos consumidores e das empresas cumpridoras das exigências da lealdade dos negócios, necessitam que o Estado assegure a concorrência económica sã e livre mediante uma regulamentação legal. Tal requer a adoção de regras em matéria de direito da concorrência que proíbam as práticas do mercado contrárias às exigências da concorrência leal ou restritivas da concorrência económica e que impeçam as concentrações de empresas prejudiciais à concorrência, zelando simultaneamente pelo respeito das condições organizacionais e processuais necessárias. Para a realização destes objetivos, o Parlamento — considerando a necessidade de aproximação entre a regulamentação da Comunidade Europeia e as tradições da legislação húngara em matéria de concorrência — adota a seguinte lei [...]»

4        A Tpvt dispõe nos n.os 1 e 2 do seu artigo 11.°, sob a epígrafe «Proibição de acordos restritivos da concorrência»:

«1.      São proibidos todos os acordos entre empresas, todas as práticas concertadas e todas as decisões de associações de empresas, de organismos de direito público, de associações e de outras entidades de idêntica natureza […] que tenham por objeto ou que tenham ou possam ter como efeito impedir, restringir ou falsear o jogo da concorrência. Não são considerados como tais os acordos celebrados entre empresas que não sejam independentes entre si.

2.      A proibição é designadamente aplicável:

a)      à fixação, de forma direta ou indireta, dos preços de compra ou de venda, ou de quaisquer outras condições de transação;

b)      à limitação ou ao controlo da produção, da distribuição, do desenvolvimento técnico ou dos investimentos;

c)      à repartição dos mercados de abastecimento, à limitação da escolha de abastecimento e à exclusão de determinados consumidores relativamente à compra de certos produtos;

d)      à divisão dos mercados, à exclusão da venda ou à restrição da escolha das modalidades de venda;

[revogado]

f)      às obstruções de acesso ao mercado;

g)      aos casos em que, tendo as operações o mesmo valor ou a mesma natureza, exista uma discriminação entre as partes contratantes, nomeadamente na aplicação dos preços, dos prazos de pagamento, das condições ou dos métodos de venda ou de compra, que coloque determinadas partes contratantes em desvantagem na concorrência;

h)      à subordinação da celebração de contratos à aceitação de obrigações que não tenham, nem pela sua natureza nem de acordo com os usos comerciais, uma ligação com o objeto desses contratos.»

5        Segundo a exposição dos motivos da Tpvt, a proposta do referido artigo 11.° baseava‑se nas seguintes considerações:

«São de esperar mudanças significativas e com repercussões económicas maiores no domínio do direito da concorrência. A principal razão das mudanças é a harmonização do direito. […] O artigo 85.° do Tratado CEE estabelece uma proibição geral dos cartéis, tanto a nível horizontal como vertical. […] No domínio dos cartéis, a proposta consagra o princípio da proibição — à semelhança da lei sobre os mercados de capitais e do artigo 85.° do Tratado CEE. Tal significa que a regulamentação consagra o princípio da proibição geral dos cartéis, ao qual associa o regime das exceções e das derrogações. […] O artigo 11.°, n.° 1, da proposta não proíbe apenas, como a lei sobre os mercados de capitais, toda a restrição ou exclusão (obstrução) da concorrência mas também, em aplicação do artigo 85.° do Tratado CEE, todo o falseamento do jogo da concorrência. […] Além da proibição geral dos cartéis, a proposta — inspirando‑se na solução regulamentar acolhida na lei sobre os mercados de capitais e no artigo 85.° do Tratado CEE — estabelece uma lista não exaustiva de exemplos de acordos típicos restritivos da concorrência. Esta enumeração é mais ampla do que a que figura na lei sobre os mercados de capitais e aproxima‑se da lista dos tipos de cartéis que figuram no artigo 85.°, n.° 1, do Tratado CEE.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

6        Uma vez por ano, as seguradoras húngaras, nomeadamente a Allianz e a Generali, acordam com as oficinas de reparação as condições e as tarifas aplicáveis às prestações de reparação a cargo da seguradora nos casos de sinistros de veículos segurados. Essas oficinas podem assim proceder diretamente às reparações de acordo com as condições e as tarifas acordadas com a seguradora.

7        Desde finais de 2002, diversos concessionários de marcas automóveis, que também funcionavam como oficinas de reparação, encarregaram a GÉMOSZ, a associação nacional de concessionários autorizados, de negociar com as seguradoras, em seu nome, acordos‑quadro anuais relativos ao preço por hora aplicável às reparações de veículos sinistrados.

8        Os referidos concessionários têm um vínculo duplo com as seguradoras. Por um lado, reparam, em caso de sinistro, os veículos segurados por conta das seguradoras e, por outro, atuam como intermediários destas últimas, oferecendo, na qualidade de mandatários dos seus próprios mediadores de seguro ou de mediadores associados, seguros automóveis aos seus clientes por ocasião da venda ou da reparação de veículos.

9        No decurso dos anos de 2004 e 2005, a GÉMOSZ celebrou com a Allianz acordos‑quadro. Posteriormente, a Allianz celebrou acordos individuais com os referidos concessionários com base nos acordos‑quadro. Estes últimos acordos previam que os concessionários receberiam, pela reparação de veículos sinistrados, uma tarifa superior caso os seguros automóveis da Allianz representassem uma determinada percentagem dos seguros vendidos pelo concessionário.

10      Durante o período em causa, a Generali não celebrou acordos‑quadro com a GÉMOSZ, mas celebrou acordos individuais com os referidos concessionários. Embora tais acordos não contivessem nenhuma cláusula escrita de aumento das tarifas como as cláusulas incluídas nos acordos da Allianz, o GVH verificou todavia que, na prática, a Generali aplicava incentivos comerciais análogos.

11      Na sua decisão controvertida, o GVH considerou que os referidos acordos, bem como outros acordos celebrados pelas cinco recorrentes no processo principal e pela Porsche Biztosítási, eram incompatíveis com o artigo 11.° da Tpvt. Tais acordos podem ser reagrupados do seguinte modo:

¾        acordos de natureza horizontal constituídos por três decisões tomadas pela GÉMOSZ durante o período que compreende os anos de 2003 a 2005, decisões que estabeleciam «preços recomendados» aos concessionários de marcas automóveis para a reparação de veículos, aplicáveis às seguradoras;

¾        acordos‑quadro celebrados nos anos de 2004 e 2005 entre a GÉMOSZ e a Allianz assim como os acordos individuais celebrados nesse mesmo período entre alguns concessionários de marcas de automóveis, respetivamente, a Allianz e a Generali, que faziam depender o preço por hora dos serviços de reparação do resultado alcançado em matéria de subscrição de contratos de seguro;

¾        diversos acordos celebrados entre 2000 e 2005, respetivamente, entre, por um lado, a Allianz e a Generali, e, por outro, a Peugeot Márkakereskedők, a Opelkereskedők e a Porsche Biztosítási, enquanto mediadores de seguros, destinados a influenciar as práticas destes últimos, estabelecendo, nomeadamente, um número ou uma percentagem mínima de contratos de seguro automóvel a angariar pelo mediador num determinado período e prevendo uma remuneração do mediador que era escalonada em função do número de contratos angariados a favor da seguradora.

12      O GVH considerou que esta série de acordos, conjunta e individualmente considerados, tinha por objetivo restringir a concorrência no mercado dos contratos de seguro automóvel e no mercado dos serviços de reparação de automóveis. O GVH considerou que, não havendo incidência no comércio intracomunitário, o artigo 101.° TFUE não era aplicável a esses acordos e que, portanto, a ilegalidade dos mesmos resultava unicamente do direito da concorrência nacional. Em virtude desta ilegalidade, proibiu a continuação das práticas em causa e aplicou coimas num montante de 5 319 000 000 HUF à Allianz, de 1 046 000 000 HUF à Generali, de 360 000 000 HUF à GÉMOSZ, de 13 600 000 HUF à Peugeot Márkakereskedők e de 45 000 000 HUF à Opelkereskedők.

13      Na sequência do recurso de anulação interposto pelas recorrentes no processo principal, o Fővárosi Bíróság (Tribunal de Budapeste) reformou parcialmente a decisão controvertida, a qual, todavia, foi confirmada em sede de recurso por decisão do Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal de Recurso de Budapeste).

14      As recorrentes no processo principal recorreram deste último acórdão para o Legfelsőbb Bíróság (Supremo Tribunal), alegando, nomeadamente, que os acordos em causa não tinham por objetivo restringir a concorrência.

15      Em primeiro lugar, o Legfelsőbb Bíróság observa que a letra do artigo 11.°, n.° 1, da Tpvt é quase idêntica à do artigo 101.°, n.° 1, TFUE e que a interpretação do referido artigo 11.° da Tpvt, que acabar por ser acolhida em relação aos acordos em causa, terá no futuro igualmente incidência na interpretação do artigo 101.° TFUE neste Estado‑Membro. O referido órgão jurisdicional sublinha, ainda, que há um interesse manifesto na interpretação uniforme das disposições ou dos conceitos extraídos do direito da União. Em segundo lugar, o Legfelsőbb Bíróság observa que o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre a questão de saber se os acordos como os que estão em causa no processo principal podem ser qualificados de «acordos que, pela sua natureza, têm por objetivo restringir a concorrência».

16      Nestas condições, o Legfelsőbb Bíróság decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Podem ser considerados acordos contrários ao artigo 101.°, n.° 1, […] TFUE (que têm por objeto ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno) os acordos bilaterais celebrados entre uma […] seguradora e certas oficinas de reparação de veículos, em virtude dos quais o preço por hora de reparação pago pela […] seguradora à oficina de reparação de veículos segurados por aquela depende, entre outros fatores, do número e da percentagem de seguros subscritos com a [seguradora] por intermédio da oficina, que atua como agente de seguros da referida [seguradora]?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

17      A Allianz, a Generali, o Governo húngaro e a Comissão Europeia consideram que o Tribunal de Justiça é competente para responder à questão prejudicial ainda que o artigo 101.°, n.° 1, TFUE não seja aplicável no litígio no processo principal devido à inexistência de incidência dos acordos em causa nesse processo no comércio intracomunitário.

18      A Comissão, apoiada neste aspeto pela Generali e pelo Governo húngaro na audiência, invoca o nexo especial existente entre os artigos 101.° TFUE e 11.° da Tpvt, o qual resulta não só da utilização de conceitos idênticos mas também do sistema de aplicação descentralizado do direito da concorrência instituído pelo Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1). Além disso, decorre da decisão de reenvio que o Legfelsőbb Bíróság irá seguir a orientação adotada pelo Tribunal de Justiça e que a aplicará uniformemente tanto a situações puramente internas como a situações nas quais é simultaneamente aplicável o artigo 101.° TFUE. A Allianz alega, nomeadamente, que existe um interesse da União em que uma disposição extraída do direito da União, como o artigo 11.° da Tpvt, seja interpretada de modo uniforme.

19      A este respeito, importa recordar que, de acordo com o artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições da União. No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, instituída por esse artigo, compete exclusivamente ao juiz nacional apreciar, atendendo às particularidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, quando as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais tenham por objeto a interpretação de uma disposição do direito da União, o Tribunal de Justiça tem, em princípio, o dever de se pronunciar (v. acórdão de 21 de dezembro de 2011, Cicala, C‑482/10, Colet., p. I‑14139, n.os 15, 16 e jurisprudência referida).

20      Em aplicação desta jurisprudência, o Tribunal de Justiça declarou‑se reiteradamente competente para decidir dos pedidos prejudiciais respeitantes a disposições do direito da União em situações nas quais os factos no processo principal saíam do âmbito de aplicação direto do direito da União, mas nas quais as referidas disposições tinham passado a ser aplicáveis por força da legislação nacional, a qual era conforme, nas soluções dadas a situações puramente internas, às soluções do direito da União. Com efeito, em tais casos, existe um interesse certo da União em que, para evitar divergências de interpretação futuras, as disposições ou os conceitos procedentes do direito da União sejam interpretados de forma uniforme, quaisquer que sejam as condições em que se devem aplicar (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 18 de outubro de 1990, Dzodzi, C‑297/88 e C‑197/89, Colet., p. I‑3763, n.° 37; de 17 de julho de 1997, Leur‑Bloem, C‑28/95, Colet., p. I‑4161, n.os 27 e 32; de 11 de janeiro de 2001, Kofisa Italia, C‑1/99, Colet., p. I‑207, n.° 32; de 14 de dezembro de 2006, Confederación Española de Empresarios de Estaciones de Servicio, C‑217/05, Colet., p. I‑11987, n.° 19; de 11 de dezembro de 2007, ETI e o., C‑280/06, Colet., p. I‑10893, n.° 21; de 20 de maio de 2010, Modehuis A. Zwijnenburg, C‑352/08, Colet., p. I‑4303, n.° 33; e de 18 de outubro de 2012, Pelati, C‑603/10, n.° 18).

21      No que respeita ao presente pedido de decisão prejudicial, há que referir que o artigo 11.°, n.os 1 e 2, da Tpvt reproduz fielmente o conteúdo essencial do artigo 101.°, n.° 1, TFUE. Além disso, resulta claramente do preâmbulo assim como da exposição dos motivos da Tpvt que o legislador húngaro quis harmonizar o direito nacional da concorrência com o da União e que, nomeadamente, o referido artigo 11.°, n.° 1, tem por objeto proibir, «em aplicação do artigo 85.° do Tratado CEE», atual artigo 101.° TFUE, «todo o falseamento do jogo da concorrência». Assim, é pacífico que o referido legislador decidiu aplicar um tratamento idêntico às situações internas e às situações reguladas pelo direito da União.

22      De resto, decorre da decisão de reenvio que o Legfelsőbb Bíróság considera que os conceitos que figuram no artigo 11.°, n.° 1, da Tpvt devem efetivamente ser objeto da mesma interpretação que os conceitos análogos do artigo 101.°, n.° 1, TFUE e que, a este respeito, está vinculado à interpretação que o Tribunal de Justiça faz dos referidos conceitos.

23      Nestas condições, há que concluir que o Tribunal de Justiça é competente para responder à questão submetida, respeitante ao artigo 101.°, n.° 1, TFUE, ainda que este artigo não regule diretamente a situação em causa no processo principal.

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

24      O Governo húngaro contesta a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial com o fundamento de que os factos expostos pelo órgão jurisdicional de reenvio não contêm todos os elementos necessários para que o Tribunal de Justiça possa responder de forma útil à questão que lhe é submetida. Aquele governo alega, nomeadamente, que, para se apreciar se os acordos bilaterais a que se refere a questão prejudicial tinham ou não por objetivo restringir a concorrência, importa ter em conta não só esses acordos mas também a totalidade do sistema de acordos e o facto de os mesmos se reforçarem mutuamente.

25      O Órgão de Fiscalização da EFTA, sem invocar a inadmissibilidade do referido pedido, observa igualmente que o órgão jurisdicional de reenvio não precisa o contexto económico e jurídico no qual se inserem os acordos em causa no processo principal, pelo que é difícil dar‑lhe uma resposta útil.

26      Segundo jurisprudência constante, a recusa por parte do Tribunal de Justiça de um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando se afigura manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema é hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (v., designadamente, acórdãos de 13 de março de 2001, PreussenElektra, C‑379/98, Colet., p. I‑2099, n.° 39; de 5 de dezembro de 2006, Cipolla e o., C‑94/04 e C‑202/04, Colet., p. I‑11421, n.° 25; e de 15 de novembro de 2012, Bericap Záródástechnikai, C‑180/11, n.° 58).

27      No que diz respeito, mais concretamente, às informações que devem ser fornecidas ao Tribunal de Justiça no âmbito de uma decisão de reenvio, estas não se destinam apenas a permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis ao órgão jurisdicional de reenvio mas devem igualmente dar aos governos dos Estados‑Membros e aos outros interessados a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Para esse efeito, é necessário que o juiz nacional defina o quadro factual e regulamentar no qual se inserem as questões que coloca, ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que se baseiam essas questões (v. acórdão de 16 de fevereiro de 2012, Varzim Sol, C‑25/11, n.° 30 e jurisprudência referida).

28      Ora, a decisão de reenvio descreve suficientemente o quadro jurídico e factual do litígio no processo principal, e as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio permitem determinar o alcance da questão submetida. Assim, a referida decisão deu aos interessados a possibilidade efetiva de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, como comprova, aliás, o conteúdo das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

29      Além disso, com base nas indicações que figuram na decisão de reenvio, o Tribunal de Justiça está em condições de dar uma resposta útil ao Legfelsőbb Bíróság. A este respeito, importa recordar que, no âmbito do processo previsto no artigo 267.° TFUE, baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, o papel deste último se limita à interpretação das disposições do direito da União sobre as quais é questionado, no caso em apreço sobre o artigo 101.°, n.° 1, TFUE. Assim, não compete ao Tribunal de Justiça, mas ao Legfelsőbb Bíróság, aplicar esta interpretação ao caso vertente e, portanto, apreciar em definitivo se, tendo em conta todos os elementos pertinentes que caracterizam a situação no processo principal e o contexto económico e jurídico no qual esta se insere, os acordos em causa têm por objetivo restringir a concorrência. Por conseguinte, mesmo na hipótese de a decisão de reenvio não expor de forma suficientemente detalhada esses elementos e esse contexto para poder efetuar a referida apreciação, tal lacuna não afetaria o cumprimento pelo Tribunal de Justiça da tarefa que lhe é incumbida pelo artigo 267.° TFUE.

30      Daqui resulta que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto à questão prejudicial

31      Na sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 101.°, n.° 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que os acordos através dos quais sociedades de seguro automóvel acordam bilateralmente, quer com concessionários de automóveis que atuam como oficinas de reparação quer com uma associação que os representa, o preço por hora a pagar pela seguradora para a reparação de veículos por si segurados, prevendo que esse preço depende, entre outros, do número e da percentagem de contratos de seguro que o concessionário tiver angariado como intermediário dessa seguradora, podem ser considerados uma restrição da concorrência «em razão do seu objetivo» na aceção desta disposição.

32      A Allianz e a Generali consideram que tais acordos não constituem uma restrição «em razão do seu objetivo» e que, portanto, só podem ser qualificados de contrários ao artigo 101.°, n.° 1, TFUE se for demonstrado que são efetivamente suscetíveis de produzir efeitos anticoncorrenciais. Em contrapartida, o Governo húngaro e a Comissão propõem uma resposta afirmativa à questão prejudicial. O Órgão de Fiscalização da EFTA considera que a resposta a esta questão depende do grau de nocividade dos referidos acordos para a concorrência, o qual deve ser apreciado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

33      A título preliminar, há que recordar que, para estar abrangido pela proibição enunciada no artigo 101.°, n.° 1, TFUE, um acordo deve ter «por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno». Segundo jurisprudência constante desde o acórdão de 30 de junho de 1966, LTM (56/65, Colet. 1965‑1968, p. 381), o caráter alternativo desta condição, resultante do uso da conjunção «ou», leva, em primeiro lugar, à necessidade de considerar o próprio objetivo do acordo, tendo em conta o contexto económico em que o mesmo deve ser aplicado.

34      Assim, quando o objetivo anticoncorrencial de um acordo esteja provado, não há que verificar os seus efeitos na concorrência. No entanto, caso a análise do teor do acordo não revele um grau suficiente de nocividade relativamente à concorrência, há então que examinar os seus efeitos e, para lhe aplicar a proibição, exigir que estejam reunidos elementos que provem que o jogo da concorrência foi efetivamente impedido, restringido ou falseado de modo sensível (v. acórdãos de 4 de junho de 2009, T‑Mobile Netherlands e o., C‑8/08, Colet., p. I‑4529, n.os 28 e 30; de 6 de outubro de 2009, GlaxoSmithKline Services e o./Comissão e o., C‑501/06 P, C‑513/06 P, C‑515/06 P e C‑519/06 P, Colet., p. I‑9291, n.° 55; de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o., C‑403/08 e C‑429/08, Colet., p. I‑9083, n.° 135; e de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, Colet., p. I‑9419, n.° 34).

35      A distinção entre «infrações pelo objetivo» e «infrações pelo efeito» tem a ver com o facto de determinadas formas de conluio entre empresas poderem ser consideradas, pela sua própria natureza, prejudiciais ao bom funcionamento da concorrência (v. acórdãos de 20 de novembro de 2008, Beef Industry Development Society e Barry Brothers, C‑209/07, Colet., p. I‑8637, n.° 17; T‑Mobile Netherlands e o., já referido, n.° 29; e de 13 de dezembro de 2012, Expedia, C‑226/11, n.° 36).

36      A fim de apreciar se um acordo contém uma restrição da concorrência «em razão do seu objetivo», deve atender‑se ao teor das suas disposições, aos objetivos que visa atingir, bem como ao contexto económico e jurídico em que se insere (v. acórdãos, já referidos, GlaxoSmithKline Services e o./Comissão e o., n.° 58; Football Association Premier League e o., n.° 136; e Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, n.° 35). No âmbito da apreciação do referido contexto, há também que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (v. acórdão Expedia, já referido, n.° 21 e jurisprudência referida).

37      Além disso, embora a intenção das partes não seja um elemento necessário para determinar o caráter restritivo de um acordo, nada impede que as autoridades da concorrência ou os órgãos jurisdicionais nacionais e da União a tenham em conta (v., neste sentido, acórdão GlaxoSmithKline Services e o./Comissão e o., já referido, n.° 58 e jurisprudência referida).

38      Acresce que o Tribunal de Justiça já declarou que, para ter um objetivo anticoncorrencial, basta que o acordo seja suscetível de produzir efeitos negativos sobre a concorrência, isto é, que seja concretamente apto a impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno. A questão de saber se e em que medida esse efeito se verifica realmente só tem importância para calcular o montante das coimas e avaliar os direitos a indemnizações (v. acórdão T‑Mobile Netherlands e o., já referido, n.° 31).

39      Relativamente aos acordos visados pela questão prejudicial, importa referir que os mesmos têm por objeto o preço por hora a pagar pela seguradora a concessionários de automóveis, que atuam como oficinas, para efeitos de reparação de veículos em caso de sinistros. Os referidos acordos preveem uma majoração desse preço em função do número e da percentagem de contratos de seguro que o concessionário tiver angariado para essa seguradora.

40      Assim, tais acordos estabelecem um nexo entre a remuneração do serviço de reparação dos veículos sinistrados e a remuneração da mediação de seguros automóveis. A criação deste nexo entre dois serviços distintos é possível devido à particularidade de os concessionários intervirem, no que respeita às seguradoras, numa dupla qualidade, a saber, como intermediários ou mediadores, oferecendo seguros automóveis aos seus clientes por ocasião da venda ou da reparação de veículos, e como oficinas, reparando veículos sinistrados por conta das seguradoras.

41      Ora, embora a criação de tal nexo entre duas atividades em princípio independentes não signifique automaticamente que o acordo em causa tem por objetivo restringir a concorrência, não deixa de ser verdade que pode constituir um elemento importante para apreciar se esse acordo é por natureza prejudicial ao bom funcionamento do jogo normal da concorrência, sendo esse o caso, concretamente, se a independência das referidas atividades for necessária para esse funcionamento.

42      Além disso, importa ter em conta o facto de que um acordo dessa natureza pode afetar não só um mas dois mercados — no caso vertente, o mercado dos seguros automóveis e o mercado dos serviços de reparação dos veículos —, e que, portanto, o seu objetivo deve ser apreciado em relação aos dois mercados em causa.

43      A este respeito, importa, antes de mais, sublinhar que, contrariamente ao que parecem considerar a Allianz e a Generali, o facto de se tratar, nos dois casos, de relações verticais não exclui de modo algum a possibilidade de o acordo em causa no processo principal constituir uma restrição da concorrência «em razão do seu objetivo». Com efeito, embora sejam, por natureza, frequentemente menos prejudiciais para a concorrência do que os acordos horizontais, os acordos verticais podem, contudo, em determinadas circunstâncias, ter também um potencial restritivo particularmente elevado. Assim, o Tribunal de Justiça já declarou em várias ocasiões que um acordo vertical tinha por objetivo restringir a concorrência (v. acórdãos de 13 de julho de 1966, Consten e Grundig/Comissão, 56/64 e 58/64, Colet. 1965‑1968, p. 423; de 1 de fevereiro de 1978, Miller International Schallplatten/Comissão, 19/77, Colet., p. 45; de 3 de julho de 1985, Binon, 243/83, Recueil, p. 2015; e Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, já referido).

44      Em seguida, no que respeita à apreciação do objetivo dos acordos em causa no processo principal em relação ao mercado dos seguros automóveis, importa concluir que, através desses acordos, seguradoras como a Allianz e a Generali visam conservar ou aumentar a sua quota de mercado.

45      É pacífico que, se existisse entre estas duas sociedades um acordo horizontal ou uma prática concertada destinada a repartir o mercado, tal acordo ou tal prática deveria qualificar‑se de restrição em razão do seu objetivo e acarretaria igualmente a ilegalidade dos acordos verticais celebrados para executar esse acordo ou essa prática. Todavia, a Allianz e a Generali negam ter celebrado qualquer acordo ou ter atuado de forma concertada e sustentam que a decisão controvertida concluiu pela inexistência de um acordo ou de uma prática desse tipo. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar a exatidão dessas alegações e, na medida em que o direito nacional lho permita, apreciar se existem provas suficientes para demonstrar a existência de um acordo ou de uma prática concertada entre a Allianz e a Generali.

46      Contudo, mesmo que não se verifique qualquer acordo ou prática concertada entre essas seguradoras, importará ainda verificar se, tendo em conta o contexto económico e jurídico no qual se inserem, os acordos verticais em causa no processo principal revelam um grau suficiente de nocividade relativamente à concorrência no mercado dos seguros automóveis para constituírem uma restrição da concorrência em razão do seu objetivo.

47      Tal poderá suceder se, como sustenta o Governo húngaro, o papel atribuído pelo direito nacional aos concessionários que atuam como intermediários ou mediadores de seguros requerer a independência destes últimos em relação às seguradoras. A este respeito, aquele governo sublinha que esses concessionários atuam não em nome de uma seguradora, mas do tomador do seguro, e têm por missão propor‑lhe o seguro que melhor lhe convém entre a oferta de várias seguradoras. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, nestas condições e tendo em conta as expectativas dos referidos tomadores, o bom funcionamento do mercado dos seguros automóveis pode ser perturbado de forma significativa pelos acordos em causa no processo principal.

48      Acresce que esses acordos poderão igualmente constituir uma restrição da concorrência em razão do seu objetivo caso o órgão jurisdicional de reenvio conclua que é provável que, atendendo ao contexto económico, a concorrência no referido mercado seja eliminada ou gravemente enfraquecida na sequência da celebração dos referidos acordos. A fim de avaliar o risco de tal consequência, o referido órgão jurisdicional deverá, designadamente, ter em consideração a estrutura desse mercado, a existência de canais de distribuição alternativos e a sua importância respetiva, bem como o poder de mercado das seguradoras em causa.

49      Por último, quanto à apreciação do objetivo dos acordos em causa no processo principal em relação ao mercado dos serviços de reparação de veículos, importa ter em conta o facto de que esses acordos foram celebrados com base em «preços recomendados» estabelecidos nas três decisões tomadas pela GÉMOSZ durante o período compreendido entre 2003 e 2005. Neste contexto, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio determinar a natureza e o alcance exato dessas decisões (v., neste sentido, acórdão de 2 de abril de 2009, Pedro IV Servicios, C‑260/07, Colet., p. I‑2437, n.os 78 e 79).

50      Caso esse órgão jurisdicional conclua que as decisões tomadas pela GÉMOSZ durante o referido período tinham efetivamente por objetivo restringir a concorrência, uniformizando os preços por hora para a reparação dos veículos, e que, mediante os acordos controvertidos, as seguradoras ratificaram voluntariamente tais decisões, o que pode ser presumido no caso de a seguradora ter celebrado um acordo diretamente com a GÉMOSZ, a ilegalidade das referidas decisões viciaria os referidos acordos, os quais, portanto, devem também ser considerados uma restrição da concorrência em razão do seu objetivo.

51      Atendendo ao conjunto das considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 101.°, n.° 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que os acordos através dos quais sociedades de seguro automóvel acordam bilateralmente, quer com concessionários de automóveis que atuam como oficinas de reparação quer com uma associação que os representa, o preço por hora a pagar pela seguradora para a reparação de veículos por si segurados, prevendo que esse preço depende, entre outros, do número e da percentagem de contratos de seguro que o concessionário tiver angariado como intermediário dessa seguradora, podem ser considerados uma restrição da concorrência «em razão do seu objetivo» na aceção daquela disposição, se, na sequência de uma análise individual e concreta do teor e do objetivo desses acordos assim como do contexto económico e jurídico no qual se inserem, se verificar que os mesmos são, pela sua própria natureza, prejudiciais ao bom funcionamento do jogo normal da concorrência num dos dois mercados em causa.

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 101.°, n.° 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que os acordos através dos quais sociedades de seguro automóvel acordam bilateralmente, quer com concessionários de automóveis que atuam como oficinas de reparação quer com uma associação que os representa, o preço por hora a pagar pela seguradora para a reparação de veículos por si segurados, prevendo que esse preço depende, entre outros, do número e da percentagem de contratos de seguro que o concessionário tiver angariado como intermediário dessa seguradora, podem ser considerados uma restrição da concorrência «em razão do seu objetivo» na aceção daquela disposição, se, na sequência de uma análise individual e concreta do teor e do objetivo desses acordos assim como do contexto económico e jurídico no qual se inserem, se verificar que os mesmos são, pela sua própria natureza, prejudiciais ao bom funcionamento do jogo normal da concorrência num dos dois mercados em causa.

Assinaturas


* Língua do processo: húngaro.