Language of document : ECLI:EU:C:2018:169

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 7 de março de 2018 (1)

Processo C90/17

Turbogás – Produtora Energética, SA

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD) (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Tributação dos produtos energéticos e da eletricidade — Diretiva 2003/96/CE — Artigo 14.o, n.o 1, alínea a) — Isenção dos produtos energéticos e da eletricidade utilizados para produzir eletricidade — Artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo — Entidade que produz eletricidade para consumo próprio — Isenção dos pequenos produtores de eletricidade»






 Introdução

1.        No presente processo, o tribunal português submeteu questões prejudiciais sobre a interpretação de uma das disposições da Diretiva 2003/96/CE do Conselho, de 27 de outubro de 2003, que reestrutura o quadro comunitário de tributação dos produtos energéticos e da eletricidade (2). Em princípio, a resposta a esta questão não deveria suscitar dificuldades. Porém, o problema é que, para dar uma resposta útil para a decisão daquele tribunal no processo principal, é necessária a interpretação de outras disposições desta diretiva, que o órgão jurisdicional de reenvio não considerou no seu pedido de decisão prejudicial. Na minha opinião, o Tribunal de Justiça deve, pois, analisar essas outras disposições.

 Quadro jurídico

 Direito da União

2.        O artigo 1.o da Diretiva 2003/96 dispõe:

«Os Estados‑Membros devem tributar os produtos energéticos e a eletricidade de acordo com o disposto na presente diretiva.»

3.        Nos termos do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva:

«Para além das disposições gerais previstas na Diretiva 92/12/CEE [(3)] relativas às utilizações isentas de produtos tributáveis, e sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados‑Membros devem isentar os produtos a seguir referidos nas condições por eles fixadas tendo em vista assegurar uma aplicação correta e simples dessas isenções e de modo a impedir a fraude, a evasão fiscal ou utilizações abusivas:

a)      Produtos energéticos e eletricidade utilizados para produzir eletricidade e eletricidade utilizada para manter a capacidade de produzir eletricidade. No entanto, por razões de política ambiental, os Estados‑Membros podem sujeitar estes produtos a imposto, sem que tenham de respeitar os níveis mínimos de tributação estabelecidos na presente diretiva. […]»

4.        Por último, nos termos do artigo 21.o, n.o 5, primeiro e terceiro parágrafos, da Diretiva 2003/96:

«Para efeitos dos artigos 5.o e 6.o da Diretiva 92/12/CEE, a eletricidade e o gás natural são sujeitos a tributação, que será exigível no momento do fornecimento pelo distribuidor ou redistribuidor […]

[…]

Uma entidade que produza eletricidade para consumo próprio é considerada como um distribuidor. Em derrogação do disposto na alínea a) do n.o 1 do artigo 14.o, os Estados‑Membros podem isentar estes pequenos produtores de eletricidade, desde que tributem os produtos energéticos utilizados para a produção dessa eletricidade.»

 Direito português

5.        Segundo o artigo 4.o, n.o 1, alínea b), do Código dos Impostos Especiais de Consumo (a seguir «CIEC»), são sujeitos passivos de impostos especiais de consumo sobre a energia elétrica, entre outros, as entidades produtoras de energia elétrica para consumo próprio («autoprodutores»). Nos termos do artigo 9.o, n.o 1, do CIEC, considera‑se introdução no consumo de energia elétrica a produção para o autoconsumo. O artigo 89.o, n.o 2, alínea a), do CIEC isenta do imposto a eletricidade utilizada para produzir eletricidade e para manter a capacidade de produzir eletricidade. Por último, o artigo 96.o‑A, n.° 1, do CIEC exige o registo dos comercializadores de eletricidade, para efeitos da cobrança dos impostos especiais de consumo.

 Factos, tramitação processual e questão prejudicial

6.        A Turbogás – Produtora Energética, SA (a seguir «Turbogás»), é uma sociedade de direito português que exerce a atividade de produção de energia elétrica por combustão de gás natural. A instalação de produção da Turbogás dispõe de uma potência instalada de 990 MW, o que lhe permite produzir cerca de 9% de toda a eletricidade produzida em Portugal.

7.        A Turbogás utiliza parte da energia elétrica que produz para fins conexos com essa produção. Como resulta do pedido de decisão prejudicial, essa sociedade não estava isenta de imposto especial de consumo sobre a energia elétrica utilizada para consumo próprio. Contudo, a sociedade não declarou essa energia elétrica para efeitos do imposto especial de consumo, nem pagou imposto sobre a mesma.

8.        No seguimento de uma fiscalização da Autoridade Tributária, foi calculada a quantidade de energia elétrica utilizada pela Turbogás para consumo próprio em 2012 e 2013 e emitido um ato de liquidação, em 4 de agosto de 2014, do imposto especial de consumo no montante de 71 197,17 euros, acrescido de juros no montante de 4 986,52 euros. A reclamação apresentada contra esse ato foi indeferida por Despacho de 7 de janeiro de 2016. Em 20 de abril de 2016, a Turbogás pediu a constituição de tribunal arbitral visando a declaração da ilegalidade do ato de liquidação de 4 de agosto de 2014. O tribunal arbitral foi constituído em 1 de julho de 2016.

9.        No seu pedido, a Turbogás alega, em especial, que não pode ser considerada uma entidade produtora de eletricidade para consumo próprio («autoprodutor») na aceção do artigo 4.o, n.o 1, alínea b), do CIEC. Para fundamentar a sua alegação, a sociedade baseia‑se na letra da versão portuguesa do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96, em cujo segundo período é utilizada a expressão «estes pequenos produtores». Segundo a Turbogás, a utilização dessa expressão significa que toda a norma do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96 visa exclusivamente os pequenos produtores de energia elétrica, pelo que só estes podem ser considerados distribuidores e sujeitos a imposto. Porém, a Turbogás, porque não é indiscutivelmente um pequeno produtor de energia elétrica, não deve ser considerada um distribuidor de energia elétrica que utiliza essa energia para consumo próprio, e não deve, por isso, ser sujeito passivo de imposto.

10.      Nestas circunstâncias, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Nos termos e para os efeitos do terceiro parágrafo do art.° 21.o/5 da Diretiva 2003/96/CE, as entidades que produzam eletricidade para consumo próprio para serem, consideradas como um distribuidor, e sujeitas a imposto nos termos do primeiro parágrafo do mesmo art.° 21.°/5 da Diretiva, deverão ser pequenos produtores, ficando as restantes entidades (as que não sejam pequenos produtores) que produzam eletricidade para consumo próprio excluídas daquela qualidade de distribuidor, ou deverão ser considerados como distribuidor, e sujeitas a imposto nos termos do primeiro parágrafo do mesmo art.° 21.o/5 da Diretiva, todas as entidades que produzam eletricidade para consumo próprio (independentemente da respetiva dimensão e de o fazerem como atividade económica principal ou acessória), e não sejam isentas, enquanto pequenos produtores, nos termos da segunda parte do terceiro parágrafo do referido art.° 21.o/5 da Diretiva?

2)      Em concreto, pode uma entidade como a que está em causa nos autos, que é uma grande produtora de eletricidade e que chega a produzir cerca de 9% da energia nacional, para venda da mesma à rede nacional, ser considerada como uma “entidade que produz eletricidade para consumo próprio”, tal como referido no n.o 5 do artigo 21.o da Diretiva n.o 2003/96/CE, quando só uma pequena parte da eletricidade que produz é consumida na própria produção de nova eletricidade, como parte integrante do seu processo produtivo?»

11.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de fevereiro de 2017. Apresentaram observações escritas a Turbogás, o Governo português e a Comissão Europeia.

 Análise

 Observações preliminares

12.      A Turbogás baseia as suas alegações, no processo no órgão jurisdicional de reenvio, na interpretação do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96. Por isso, as questões prejudiciais também incidem sobre essa disposição. Contudo, o objeto no processo principal não é determinar o estatuto da Turbogás enquanto entidade produtora de energia elétrica para consumo próprio, que a mencionada disposição já regula, mas sim apreciar a legalidade do ato de liquidação de 4 de agosto de 2014, pelo qual foi exigido a essa sociedade o pagamento de imposto especial de consumo sobre a energia elétrica que a mesma produz e que utiliza para efeitos da sua própria produção. Nesta perspetiva, afigura‑se essencial a interpretação do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96.

13.      Por isso, depois de analisar os problemas expressamente suscitados pelas questões prejudiciais, também me debruçarei sobre uma questão que não foi suscitada diretamente, nomeadamente a interpretação do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96 e a sua relação com o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da mesma. Na minha opinião, é admissível semelhante alargamento da problemática suscitada nas questões prejudiciais, pois, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe, sendo caso disso, ao Tribunal de Justiça reformular as questões que lhe são submetidas. Além disso, o Tribunal de Justiça pode entender ser necessário ter em consideração normas de direito da União às quais o juiz nacional não tenha feito referência no enunciado da sua questão (4). É minha convicção, pois, que não é possível dar uma resposta útil às questões prejudiciais no presente processo, em especial à segunda questão, sem levar em conta a interpretação do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96 para interpretar o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, desta diretiva.

 Quanto ao artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96

14.      Com a primeira questão no presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, à luz da norma do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96, só devem ser consideradas distribuidoras as entidades que produzem eletricidade para consumo próprio e que, simultaneamente, são pequenos produtores.

15.      Recorde‑se que a Turbogás alega que, porque a Diretiva 2003/96, na versão portuguesa do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, segundo período, utiliza a expressão «estes pequenos produtores», toda essa disposição só se aplica aos pequenos produtores de energia elétrica. No entender da Turbogás, essa disposição não se aplica, por isso, aos grandes produtores de energia elétrica que utilizam para a sua própria produção parte da energia elétrica que eles próprios produzem.

16.      Contudo, só dificilmente se pode concordar com esta argumentação.

17.      Em primeiro lugar, tanto quanto me apercebo, além da versão portuguesa da Diretiva 2003/96, só a versão espanhola utiliza a expressão «estes pequenos produtores». É indiscutível que a mesma não ocorre, em especial, nas versões francesa, inglesa, alemã e polaca. Assim, a própria interpretação literal da referida disposição, face, não a uma, mas a todas as versões linguísticas, não permite acolher o entendimento defendido pela Turbogás.

18.      A interpretação sistemática e teleológica do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96 leva às mesmas conclusões.

19.      Segundo o artigo 21.o, n.o 1, da Diretiva 2003/96, conjugado com o disposto na Diretiva 92/12 (5), o facto gerador do imposto especial de consumo sobre produtos abrangidos pela Diretiva 2003/96 é, em princípio, a produção ou a utilização desses produtos como carburante ou como combustível para aquecimento. Exceção é a energia elétrica (e o gás natural), sobre a qual a obrigação tributária se constitui no momento do fornecimento pelo distribuidor ao consumidor final. É o que dispõe o artigo 21.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/96. Esta norma é acompanhada da isenção, prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, dos produtos energéticos e da eletricidade utilizados para produzir eletricidade. Graças a esta isenção, a eletricidade é tributada apenas uma vez, designadamente na fase da distribuição.

20.      No caso de entidades que produzem energia elétrica para consumo próprio, não há lugar à distribuição, porque a energia elétrica é utilizada pela própria empresa que a produz. O produtor da energia elétrica é, simultaneamente, o seu utilizador, sem intervenção de um intermediário, que é o distribuidor. Por isso, o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, primeiro período, da Diretiva 2003/96 determina que uma entidade que produza eletricidade para consumo próprio é considerada como um distribuidor. Há que entender esta norma no sentido de que o objetivo da qualificação dessa entidade como distribuidor é a aplicação do artigo 21.o, n.o 5, primeiro período, dessa diretiva, isto é, a definição do facto gerador do imposto. Se, nos termos do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, primeiro período, da Diretiva 2003/96, uma entidade que produza eletricidade para consumo próprio for considerada como um distribuidor, então a utilização, pela mesma, dessa eletricidade para as suas próprias necessidades dá lugar à constituição da obrigação tributária nos termos do artigo 21.o, n.o 5, primeiro período, dessa diretiva. Com esta solução é evitada uma lacuna na tributação, que se verificaria na falta de um distribuidor de energia elétrica.

21.      O artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, segundo período, da Diretiva 2003/96 permite, porém, aos Estados‑Membros excluir os pequenos produtores de energia elétrica do mecanismo supramencionado. Esses pequenos produtores podem, portanto, não ser considerados distribuidores, com a consequência de a energia elétrica que produzem não ser sujeita a imposto, pois não se verifica o facto gerador do imposto, que é a distribuição dessa energia elétrica. Nessa situação, uma lacuna na tributação é evitada também pela exigência da referida disposição de que, em derrogação do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96, os Estados‑Membros que façam uso dessa faculdade tributem os produtos energéticos que os pequenos produtores utilizam para produzir eletricidade para consumo próprio. Esta solução permite quer às entidades em causa quer aos órgãos administrativos dos Estados‑Membros poupar os custos administrativos gerados pela tributação dessa energia elétrica e pela respetiva fiscalização e que, no caso dos pequenos produtores de energia elétrica, podem exceder as correspondentes receitas fiscais. Lógica semelhante parece seguir, por exemplo, o artigo 21.o, n.o 3, da Diretiva 2003/96 (6).

22.      A circunstância de as normas do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, primeiro e segundo períodos, da Diretiva 2003/96 constarem da mesma unidade de redação significa apenas que a simplificação administrativa prevista no segundo período só diz respeito aos pequenos produtores de energia elétrica que utilizam essa energia elétrica para consumo próprio e que, por isso, em princípio, estão sujeitos ao regime constante do primeiro período. Contudo, nada indica que todo o regime do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, desta diretiva se aplica exclusivamente aos pequenos produtores. Com efeito, deste regime resulta, em regra, a tributação da produção de eletricidade para o consumo próprio do produtor, porque esse produtor é considerado distribuidor. Só está prevista uma certa exceção a essa regra nos casos em que, devido a uma produção reduzida de energia elétrica, a tributação deixe de fazer sentido atendendo aos custos e aos encargos administrativos que gera. Pelo contrário, aceitar a tese defendida pela Turbogás levaria a isentar injustificadamente do imposto as entidades que produzem eletricidade para consumo próprio, mas que não são pequenos produtores.

23.      Por isso, proponho que se responda à primeira questão prejudicial que o artigo 21.o, n.o 5, terceiro período, da Diretiva 2003/96 deve ser interpretado no sentido de que também abrange as entidades que produzem energia elétrica para consumo próprio, mas que não são pequenos produtores.

24.      Na verdade, a Diretiva 2003/96 não contém uma definição de pequenos produtores, deixando essa questão ao legislador nacional. Contudo, no processo principal, é pacífico que a Turbogás não é um pequeno produtor, uma vez que produz uma parte significativa de toda a energia elétrica produzida no território nacional. Porém, como procurarei demonstrar a seguir, este problema é irrelevante para a decisão a tomar no processo principal.

 Quanto à interpretação do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96, conjugado com o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva

25.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma entidade como a Turbogás, cuja atividade essencial é a produção de energia elétrica, uma pequena parte da qual utiliza para as necessidades dessa produção, pode ser considerada uma entidade que produz eletricidade para consumo próprio, na aceção do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96.

26.      O Governo português propõe uma resposta afirmativa a esta questão, alegando que a Turbogás, no tocante à parte da energia elétrica por si produzida que utiliza para efeitos da sua própria produção, deve ser considerada, como qualquer outra entidade comparável, uma entidade que produz energia elétrica para consumo próprio, na aceção da referida disposição. Porém, a resposta não me parece assim tão simples.

 Relação entre o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96 e o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), dessa diretiva

27.      Na minha opinião, esta questão deve ser respondida negativamente, mas não pelas razões invocadas pela Turbogás no processo principal. Com efeito, as razões pelas quais a Turbogás não está sujeita a imposto, nos termos do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96, não resultam exclusivamente da interpretação desta disposição, mas antes da sua relação com o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva. Nesse sentido, concordo inteiramente com a tese defendida pela Comissão nas suas observações.

28.      Como já expliquei supra (7), a Diretiva 2003/96 define com precisão o método de tributação da energia elétrica. Os princípios desta tributação afastam‑se dos princípios da tributação de outros produtos abrangidos pela diretiva.

29.      O sistema implementado pela Diretiva 2003/96 prevê, com efeito, a tributação da energia elétrica na fase do fornecimento pelo distribuidor ao consumidor final, nos termos do artigo 21.o, n.o 5, primeiro parágrafo, dessa diretiva. Os impostos harmonizados pela Diretiva 2003/96 são impostos indiretos, em que o distribuidor, evidentemente, repercute a carga fiscal no consumidor final, mediante a sua inclusão no preço.

30.      Um mecanismo idêntico de repercussão da carga final noutras fases posteriores de comercialização incide sobre outros produtos energéticos sujeitos a imposto por força da Diretiva 2003/96, atendendo a que esse imposto tem a natureza de imposto indireto. Esses produtos não estão, pois, sujeitos a imposto na fase da produção, nem na fase da sua utilização como carburante ou como combustível de aquecimento.

31.      Na perspetiva da Diretiva 2003/96, a energia elétrica é um produto especial. Por um lado, trata‑se de um produto tributado por força do disposto nessa diretiva. Por outro, na União Europeia, a energia elétrica é produzida maioritariamente pela combustão de produtos energéticos, que, por sua vez, também são tributados. Se os produtos energéticos utilizados para a produção de energia elétrica fossem tributados como os outros produtos abrangidos pela Diretiva 2003/96, os utilizadores desses produtos estariam sujeitos a um duplo encargo fiscal: devido à tributação dos produtos energéticos e devido à tributação da própria energia elétrica.

32.      Para evitar esta dupla tributação, o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96 prevê a isenção obrigatória dos produtos energéticos utilizados para produzir eletricidade. A mesma isenção é concedida à eletricidade utilizada para produzir eletricidade. A isenção diz respeito tanto à energia elétrica adquirida a terceiros como à energia elétrica que o próprio produtor de energia elétrica produz e que utiliza para essa produção.

33.      A isenção prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96 é, em princípio, obrigatória. Na verdade, de acordo com o segundo período dessa disposição, os Estados‑Membros podem tributar os produtos energéticos e a eletricidade utilizados para produzir eletricidade, por razões de política ambiental. Porém, dos autos do presente processo não resulta que Portugal tenha feito uso desta possibilidade.

34.      Como expliquei supra (8), a finalidade das normas do artigo 21.o da Diretiva 2003/96 não é a tributação de produtos ou a sua isenção de imposto, mas sim a fixação do momento da tributação, mediante a definição do facto gerador do imposto. A fixação do momento da tributação só pode, por natureza, dizer respeito aos produtos sujeitos a imposto, e não aos produtos isentos de imposto.

35.      Assim, quando o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96 exige que se considere que uma entidade que produz eletricidade para consumo próprio é um distribuidor, para efeitos da aplicação do primeiro parágrafo desse n.° 5 (9), isso pode valer exclusivamente para os produtores de energia elétrica sujeitos a imposto por força de outras disposições desta diretiva. Como, todavia, por força do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96, a energia elétrica utilizada para a produção de eletricidade está isenta, o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da mesma não se aplica aos produtores dessa energia elétrica.

36.      Por outras palavras, o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96 só se aplica a entidades que produzam eletricidade e que, em seguida, a utilizem para fins que não a produção de energia elétrica. Se, porém, a atividade principal dessa entidade for a própria produção de energia elétrica e se essa entidade utilizar parte da energia elétrica que produz para essa produção, a referida disposição não se aplica a essa entidade.

37.      É verdade que, como expliquei nas minhas conclusões recentemente apresentadas no processo Koppers Denmark (10), na prática, o artigo 21.o, n.o 3, da Diretiva 2003/96 tem um resultado análogo ao de uma isenção fiscal. Segundo essa disposição, o consumo de produtos energéticos nas instalações de um estabelecimento que produz produtos energéticos não é considerado como facto gerador de imposto. Uma vez que não há outro momento possível para a constituição da obrigação tributária, essa norma significa, de facto, que esses produtos estão isentos. Porém, desta consequência prática do artigo 21.o, n.o 3, da Diretiva 2003/96 não se pode concluir que a aplicação do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, dessa diretiva a entidades que produzem eletricidade para consumo próprio pode levar à tributação dessa eletricidade, o que, por sua vez, seria contrário à isenção de imposto prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da mesma diretiva.

38.      Face ao exposto, deverá responder‑se à questão do órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96, conjugado com o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), dessa diretiva, deve ser interpretado no sentido de que uma entidade como a Turbogás, que é produtora de eletricidade e que utiliza parte da eletricidade que produz para efeitos dessa produção, não pode ser considerada um distribuidor da mesma, na aceção da referida disposição.

 Problema da não isenção da Turbogás nos termos do artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96

39.      Como resulta do pedido de decisão prejudicial no presente processo, a Autoridade Tributária portuguesa não concedeu à Turbogás, com base nas normas portuguesas que transpuseram para o direito português o disposto no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96, a isenção do imposto sobre a energia elétrica que essa sociedade produz e que, em seguida, utiliza para a sua própria produção de energia elétrica. O fundamento para a recusa da isenção parece ser a preterição de formalidades por parte da Turbogás, que consistem no seu não registo como distribuidor e na inexistência de contadores de eletricidade que permitam determinar a quantidade de eletricidade que essa sociedade utilizou para consumo próprio. Depois de verificar a inexistência do direito da Turbogás à isenção, a Autoridade Tributária portuguesa considerou‑a como distribuidor da eletricidade que a mesma produz e que utiliza para consumo próprio, e liquidou o imposto.

40.      Tal como a Comissão, considero este procedimento errado à luz do disposto na Diretiva 2003/96.

41.      Como já observei, a isenção prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96 tem natureza obrigatória, sem prejuízo da faculdade de tributar por razões de política ambiental. Porém, Portugal não fez uso dessa faculdade. Ademais, a isenção controvertida não é um privilégio para o produtor de energia elétrica, mas sim um elemento do sistema de tributação da energia elétrica. Com efeito, a isenção possibilita a tributação da energia elétrica na fase da distribuição, sem impor uma dupla tributação aos destinatários.

42.      Assim, os Estados‑Membros, a partir do momento em que concedem a isenção prevista no artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2003/96, «nas condições por eles fixadas tendo em vista assegurar uma aplicação correta e simples dessas isenções e de modo a impedir a fraude, a evasão fiscal ou utilizações abusivas», não podem traduzir essas condições na subordinação do direito a essa isenção ao cumprimento de determinadas formalidades, em casos em que não há indícios de fraude ou abuso. O conceito de «condições» deve, pois, ser entendido no sentido de regras de concessão da isenção, e não no sentido de circunstâncias das quais depende o direito à isenção. O próprio direito à isenção de imposto é aqui incondicional.

43.      A este propósito, pode ser estabelecida uma certa analogia, embora imperfeita, com a dedução do imposto pago a montante no sistema do imposto sobre o valor acrescentado. O direito à dedução do imposto pago a montante também é um elemento indissociável desse sistema. À isenção prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96 pode, pois, aplicar‑se por analogia a argumentação do Tribunal de Justiça de que a inobservância de regras formais para a dedução do imposto pago a montante pode dar lugar a sanções administrativas, mas não pode pôr em causa o próprio direito à dedução do imposto pago a montante (11). O mesmo vale para a energia elétrica utilizada para a produção de energia elétrica: o incumprimento de requisitos formais pelo interessado pode dar lugar a sanções administrativas proporcionais ao grau de incumprimento, mas não à recusa da isenção do imposto sobre essa energia elétrica prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96.

44.      Muito menos pode isso levar à aplicação do artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, desta diretiva a semelhante entidade, pois essa norma determina o facto gerador do imposto que incide sobre os produtos tributáveis, e não a tributação de produtos isentos por força de outras disposições da mesma diretiva.

45.      Consequentemente, uma entidade como a Turbogás deverá beneficiar da isenção prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2003/96, quanto à energia elétrica que ela própria produz e que utiliza para efeitos da produção de energia elétrica.

 Conclusão

46.      Atendendo ao exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD) (Portugal), do seguinte modo:

1)      O artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96/CE do Conselho, de 27 de outubro de 2003, que reestrutura o quadro comunitário de tributação dos produtos energéticos e da eletricidade, deve ser interpretado no sentido de que também abrange as entidades que produzem energia elétrica para consumo próprio, mas que não são pequenos produtores.

2)      O artigo 21.o, n.o 5, terceiro parágrafo, da Diretiva 2003/96, conjugado com o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), dessa diretiva, deve ser interpretado no sentido de que uma entidade que é produtora de energia elétrica e que utiliza parte da energia elétrica que produz para efeitos dessa produção não pode ser considerada um distribuidor de energia elétrica, na aceção dessa disposição. Essa entidade deve beneficiar da isenção prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea a), dessa diretiva, no tocante à energia elétrica que ela própria produz e que utiliza para efeitos da produção de energia elétrica.


1      Língua original: polaco.


2      JO 2003, L 283, p. 51.


3      Diretiva 92/12/CEE do Conselho, de 25 de fevereiro de 1992, relativa ao regime geral, à detenção, à circulação e aos controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo (JO 1992, L 76, p. 1).


4      V., por todos, Acórdão de 13 de outubro de 2016, M. e S. (C‑303/15, EU:C:2016:771, n.o 16 e jurisprudência aí referida).


5      Em 15 de janeiro de 2009, esta diretiva foi substituída pela Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE (JO 2009, L 9, p. 12).


6      Esta disposição permite a utilização de produtos energéticos isentos na produção de produtos energéticos.


7      V. n.o 19 das presentes conclusões.


8      V. n.os 19 e 20 das presentes conclusões.


9      Recordo que o artigo 21.o, n.o 5, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/96 define, ao invés, o momento do fornecimento da energia elétrica como facto gerador do imposto.


10      Conclusões de 22 de fevereiro de 2018 (C‑49/17, EU:C:2018:93, n.o 38).


11      V., por todos, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex (C‑518/14, EU:C:2016:691, n.o 41).