Language of document : ECLI:EU:C:2016:654

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 8 de setembro de 2016 (1)

Processo C484/15

Ibrica Zulfikarpašić

contra

Slaven Gajer

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Općinski sud u Novom Zagrebu (Tribunal Municipal de Novi Zagreb, Croácia)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 805/2004 — Título executivo europeu para créditos não contestados — Instrumentos cuja certificação pode ser solicitada — Mandado de execução emitido por um notário com base num documento autêntico»





O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE)

1.        n.o 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados (2).

2.        O presente pedido foi submetido no âmbito de um litígio que opõe Ibrica Zulfikarpašić, advogado com domicílio na Croácia, a Slaven Gajer, igualmente residente na Croácia, a propósito da certificação como título executivo europeu, na aceção do Regulamento n.o 805/2004, de um mandado de execução emitido por um notário com base num documento autêntico.

3.        O Općinski sud u Novom Zagrebu (Tribunal Municipal de Novi Zagreb, Croácia) questiona, no essencial, se um notário que, em conformidade com a legislação croata, emitiu um mandado de execução definitivo e executório com base num documento autêntico é competente para emitir a certidão de título executivo europeu, quando o referido mandado não tiver sido contestado e se, em caso de resposta negativa, os órgãos jurisdicionais nacionais podem proceder a essa certificação quando o mandado de execução respeita a créditos não contestados.

4.        O presente processo constitui uma oportunidade para o Tribunal de Justiça prestar alguns esclarecimentos úteis acerca da definição dos conceitos de «decisão» e de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004, ao decidir, especificamente, se um notário a quem o direito nacional atribui o poder de emitir mandados de execução pode ser qualificado como «tribunal» ou «órgão jurisdicional».

5.        Todavia, suscita‑se, desde logo, uma questão prévia relativa à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, na medida em que resulta da leitura da decisão de reenvio que as partes no processo principal residem ambas na Croácia, pelo que a situação poderia, à primeira vista, ser qualificada como «puramente interna» e, por conseguinte, não ser considerada abrangida pelo direito da União.

6.        Nas presentes conclusões, sustentaremos, em primeiro lugar, que o presente pedido de decisão prejudicial é admissível pese embora o demandante e o demandado no litígio no processo principal residam ambos no território da República da Croácia. Com efeito, embora a certificação como título executivo europeu ao abrigo do Regulamento n.o 805/2004 tenha por objetivo permitir o reconhecimento e a execução de uma decisão num Estado‑Membro diferente daquele em que foi proferida, a admissibilidade do pedido de certificação endereçado ao órgão jurisdicional do Estado‑Membro de origem não está sujeita à prova, por parte do credor, do caráter transfronteiriço do litígio.

7.        Exporemos, em segundo lugar, que um título executivo, tal como um mandado de execução emitido por um notário com base num documento autêntico, constitui uma decisão na aceção do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004, desde que o notário competente para emitir esse mandado decida, no exercício dessa função específica, enquanto órgão jurisdicional, o que pressupõe que ofereça garantias no que respeita à sua independência e imparcialidade e que decida por sua própria autoridade mediante uma decisão que, por um lado, tenha sido ou possa ser objeto de instrução contraditória antes da respetiva certificação como título executivo europeu e que, por outro lado, possa ser objeto de recurso para uma autoridade judicial. Sem prejuízo das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, nomeadamente no que diz respeito às exigências de independência e imparcialidade, defenderemos que o notário competente para emitir o mandado de execução corresponde à qualificação de «tribunal» ou «órgão jurisdicional».

8.        Daí depreenderemos, em terceiro lugar, que esse notário, que constitui o «tribunal de origem» na aceção do artigo 4.o, n.o 6, e do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004, é competente para certificar como título executivo europeu o mandado que emitiu e declarou executório na falta de oposição deduzida pelo devedor.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

9.        Nos termos dos considerandos 5, 7 e 20 do Regulamento n.o 805/2004:

«(5)      O conceito de “créditos não contestados” deverá abranger todas as situações em que o credor, estabelecida a não contestação pelo devedor quanto à natureza ou dimensão de um crédito pecuniário, tenha obtido uma decisão judicial ou título executivo contra o devedor que implique a confissão da dívida por parte deste, quer se trate de transação homologada pelo tribunal, quer de um instrumento autêntico.

[…]

(7)      O presente regulamento deverá ser aplicável às decisões judiciais, títulos ou instrumentos autênticos relativos a créditos não contestados e a decisões pronunciadas na sequência de impugnação de decisões, transações judiciais ou instrumentos autênticos, certificados como Título Executivo Europeu.

[…]

(20)      O pedido de certificação como Título Executivo Europeu para créditos não contestados deverá ser facultativo para o credor, que pode igualmente optar pelo sistema de reconhecimento e de execução previsto pelo Regulamento (CE) n.o 44/2001 [do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil comercial (3)], ou por outros instrumentos comunitários.»

10.      O artigo 1.o do Regulamento n.o 805/2004, intitulado «Objeto», estabelece o seguinte:

«O presente regulamento tem por objetivo criar o Título Executivo Europeu para créditos não contestados, a fim de assegurar, mediante a criação de normas mínimas, a livre circulação de decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos em todos os Estados‑Membros, sem necessidade de efetuar quaisquer procedimentos intermédios no Estado‑Membro de execução previamente ao reconhecimento e à execução.»

11.      O artigo 3.o deste regulamento, intitulado «Títulos executivos a certificar como Título Executivo Europeu», dispõe, no seu n.o 1, que:

«O presente regulamento é aplicável às decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos sobre créditos não contestados.

Um crédito é considerado “não contestado” se o devedor:

a)      Tiver admitido expressamente a dívida, por meio de confissão ou de transação homologada por um tribunal, ou celebrada perante um tribunal no decurso de um processo; ou

b)      Nunca tiver deduzido oposição, de acordo com os requisitos processuais relevantes, ao abrigo da legislação do Estado‑Membro de origem; ou

c)      Não tiver comparecido nem feito representar na audiência relativa a esse crédito, após lhe ter inicialmente deduzido oposição durante a ação judicial, desde que esse comportamento implique uma admissão tácita do crédito ou dos factos alegados pelo credor, em conformidade com a legislação do Estado‑Membro de origem; ou

d)      Tiver expressamente reconhecido a dívida por meio de instrumento autêntico.»

12.      O artigo 4.o do referido regulamento, intitulado «Definições», estabelece que:

«Para efeitos do presente regulamento, aplicam‑se as seguintes definições:

1.      “Decisão”: qualquer decisão, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação, pelo secretário do tribunal, do montante das custas ou despesas do processo.

2.      “Crédito”: a reclamação do pagamento de um montante específico de dinheiro que se tenha tornado exigível ou para o qual a data em que é exigível seja indicada na decisão, transação judicial ou instrumento autêntico.

3.      “Instrumento autêntico”:

a)      Um documento que tenha sido formalmente redigido ou registado como autêntico e cuja autenticidade:

i)      esteja associada à assinatura e ao conteúdo do instrumento; e

ii)      tenha sido estabelecido por uma autoridade pública ou outra autoridade competente para o efeito no Estado‑Membro em que tiver origem;

ou

b)      Uma convenção em matéria de obrigações alimentares celebrada perante autoridades administrativas ou por elas autenticada.

[…]

6.      “Tribunal de origem”: o órgão jurisdicional ou tribunal perante o qual o processo judicial foi invocado, no momento em que as condições enunciadas nas alíneas a), b) e c) do n.o 1 do artigo 3.o se encontravam preenchidas.

7.      Na Suécia, nos processos sumários de injunção de pagamento (betalningsföreläggande), a expressão “tribunal” inclui o “Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada” (kronofogdemyndighet).»

B –    Direito croata

13.      Nos termos do artigo 31.o da Ovršni zakon (Lei sobre a Execução Forçada) (4), na versão em vigor à data dos factos no processo principal:

«1)      Para efeitos da presente lei, consideram‑se documentos autênticos as faturas, letras de câmbio e cheques devolvidos, acompanhados, se for caso disso, de recibos de devolução como prova de crédito, os documentos oficiais, extratos de livros de contabilidade, documentos particulares autenticados e quaisquer outros documentos que possam ser considerados como constituindo um documento oficial ao abrigo de regulamentação específica. O cálculo de juros também é considerado como constituindo uma fatura.

2)      Um documento autêntico é executório se nele figurarem a identidade do credor e do devedor, bem como o objeto, a natureza, o âmbito e a data de execução da obrigação pecuniária.

3)      Além das informações previstas no n.o 2 do presente artigo, uma fatura entregue a uma pessoa singular que não exerça nenhuma atividade registada deve indicar ao devedor que, em caso de incumprimento da obrigação pecuniária devida, o credor poderá solicitar a execução forçada com base num documento autêntico.

[…]»

14.      O artigo 278.o da Lei sobre a Execução Forçada estabelece que «[o]s notários decidem sobre os pedidos de execução baseados em documentos autênticos em conformidade com o disposto na presente lei».

15.      O artigo 357.o da Lei sobre a Execução Forçada estabelece que são competentes para certificar decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos como título executivo europeu «os tribunais, as autoridades administrativas, os notários ou as pessoas singulares ou coletivas de direito público autorizadas a emitir certidões executivas de um título executivo europeu emitido por um órgão jurisdicional nacional sobre um crédito não contestado».

16.      O artigo 358.o, n.o 4, da Lei sobre a Execução Forçada estabelece que, «[c]aso o notário considere que não estão cumpridos os requisitos para a emissão das certidões [de título executivo europeu], remeterá o pedido de emissão, acompanhado de uma cópia dos títulos ou documentos em causa, ao tribunal municipal competente, a fim de que decida sobre o pedido».

II – Factos no processo principal e questões prejudiciais

17.      Na sequência da celebração de um contrato de representação com o seu cliente S. Gajer, o advogado I. Zulfikarpašić emitiu uma fatura que ficou por pagar.

18.      Com base nessa fatura, considerada como «documento autêntico», I. Zulfikarpašić obteve, em 12 de fevereiro de 2014, um mandado de execução definitivo emitido por um notário.

19.      Em 13 de novembro de 2014, I. Zulfikarpašić apresentou ao notário um pedido de certificação desse mandado como título executivo europeu, na aceção do Regulamento n.o 805/2004, a fim de poder iniciar o processo de execução que lhe permitiria recuperar o seu crédito.

20.      O notário considerou que não estavam cumpridos os requisitos para a emissão da certidão solicitada e, em conformidade com o disposto no artigo 358.o, n.o 4, da Lei sobre a Execução Forçada, remeteu o processo para o Općinski sud u Novom Zagrebu (Tribunal Municipal de Novi Zagreb). Segundo este tribunal, o notário salientou, em especial, que o artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 805/2004 prevê que a expressão «tribunal» inclui o «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada», ao passo que nenhuma disposição comparável equipara o serviço notarial croata a um tribunal na aceção desse regulamento.

21.      Questionando‑se quanto à conformidade da Lei sobre a Execução Forçada com o Regulamento n.o 805/2004, o Općinski sud u Novom Zagrebu (Tribunal Municipal de Novi Zagreb) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      As disposições da Lei sobre a Execução Forçada relativas ao Título Executivo Europeu são conformes ao Regulamento […] n.o 805/2004, isto é, na República da Croácia, relativamente à emissão de um mandado de execução com base num instrumento autêntico no âmbito de um processo de execução, o termo “órgão jurisdicional” inclui os notários?

2)      [Os notários] podem emitir certidões de Título Executivo Europeu para mandados de execução definitivos e executórios com base em instrumentos autênticos, quando os referidos mandados não tiverem sido contestados e, em caso de resposta negativa, os órgãos jurisdicionais podem emitir certidões de Título Executivo Europeu relativas a mandados de execução baseados num instrumento autêntico e elaborados por um notário, quando o conteúdo desses mandados respeita a créditos não contestados e, nesse caso, que formulário deve ser utilizado?»

III – Apreciação

A –    Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

22.      Não nos parece que a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial possa ser posta em causa com a justificação de que uma situação em que o pedido de emissão de certidão de título executivo europeu é apresentado a um órgão jurisdicional situado no Estado‑Membro onde o credor e o devedor têm o seu domicílio deverá ser qualificada como situação «puramente interna».

23.      Embora seja verdade que ambas as partes no litígio em causa no processo principal residem na Croácia, não se pode, de modo algum, deduzir dessa simples circunstância que o Regulamento n.o 805/2004 não seja aplicável no âmbito deste litígio.

24.      Em primeiro lugar, o âmbito de aplicação do Regulamento n.o 805/2004 não está limitado aos processos transfronteiriços.

25.      Com efeito, contrariamente ao Regulamento (CE) n.o 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento (5), do Regulamento (CE) n.o 861/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, que estabelece um processo europeu para ações de pequeno montante (6), ou ainda do Regulamento (UE) n.o 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial (7), o Regulamento n.o 805/2004 não estabelece nenhum requisito associado ao caráter transfronteiriço do litígio, que implica geralmente que pelo menos uma das partes tenha domicílio ou residência habitual num Estado‑Membro distinto do Estado‑Membro do tribunal demandado (8).

26.      Enquanto estes regulamentos criaram novos procedimentos europeus uniformes aplicáveis exclusivamente aos processos transfronteiriços e distintos dos procedimentos nacionais que continuam a aplicar‑se de modo concomitante, o Regulamento n.o 805/2004 não institui verdadeiramente um título executivo europeu uniforme, mas permite a livre circulação das decisões nacionais no espaço judiciário europeu, completando essas decisões com uma certidão que serve de «passaporte judicial europeu».

27.      Não existindo nenhum requisito relativo ao caráter transfronteiriço do processo, nada se opõe a que um pedido de emissão de uma certidão de título executivo europeu seja apresentado num litígio que opõe duas partes com domicílio ou residência habitual no mesmo Estado‑Membro. Essa hipótese está implicitamente prevista no artigo 6.o, n.o 1, alínea d), do Regulamento n.o 805/2004, que faz depender a certificação de uma decisão sobre um crédito não contestado, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea b) ou c), desse regulamento, do facto de a decisão ter sido proferida no Estado‑Membro do domicílio do consumidor, sem exigir, por outro lado, que o credor tenha o seu domicílio noutro Estado‑Membro.

28.      Com efeito, esta situação hipotética verifica‑se, com frequência, nos casos em que o devedor é proprietário de imóveis no estrangeiro ou titular de contas em bancos estabelecidos noutros Estados‑Membros. Ainda que o devedor tenha residência no mesmo Estado‑Membro, o credor poderia ter interesse em dispor de um título executivo europeu que lhe permita adotar medidas de execução forçada sobre bens situados noutros Estados‑Membros.

29.      Ora, em segundo lugar, a admissibilidade do pedido de emissão de uma certidão de título executivo europeu não está sujeita à prova de que o credor instaurou noutro Estado‑Membro uma ação com vista a obter o reconhecimento ou execução de uma decisão ou de que o devedor é proprietário de bens situados noutros Estados‑Membros, que poderão ser objeto de medidas de execução forçada.

30.      Apesar de o Regulamento n.o 805/2004 ter por objetivo permitir o reconhecimento e a execução em todos os Estados‑Membros das decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos sobre créditos não contestados, sem que seja necessário recorrer ao procedimento de exequatur, não existe nenhuma disposição nesse regulamento que obrigue o credor a fazer prova da utilidade ou da necessidade da certificação.

31.      A este respeito, importa salientar que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004 especifica que a certificação de uma decisão sobre um crédito não contestado pode ser solicitada «a qualquer momento», o que significa que um credor pode, em princípio, desde a petição inicial, juntar ao seu pedido principal um pedido subsidiário com vista à certificação da decisão a proferir (9), na condição, porém, de esta decisão ser imediatamente executória no Estado‑Membro de origem (10). Este pedido de certificação não está sujeito à prova de que o credor instaurou noutro Estado‑Membro uma ação com vista a obter o reconhecimento ou execução de uma decisão ou de que o devedor é proprietário de bens situados noutros Estados‑Membros, que poderão ser objeto de medidas de execução forçada. A exigência de tais provas, difíceis de obter, acabaria por comprometer seriamente a eficácia do Regulamento n.o 805/2004, cujo objetivo consiste em facilitar a circulação automática dos títulos executivos nacionais no espaço judiciário europeu. Além do mais, é perfeitamente possível que um devedor, com domicílio no mesmo Estado‑Membro que o seu credor, prepare a sua insolvência, durante o procedimento, transferindo os seus bens para o estrangeiro, a fim de escapar à condenação.

32.      Na verdade, o título executivo europeu inclui, por natureza, como o seu nome indica, um elemento de estraneidade, na medida em que visa exclusivamente permitir a exportação do título nacional para os outros Estados‑Membros, funcionando como «passaporte judicial europeu», o qual pode ser obtido sem que seja necessário provar que o título nacional irá circular nos outros Estados‑Membros. Ousemos estabelecer um paralelismo com a emissão de um mandado de detenção europeu. Para poder emitir validamente um mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária nacional precisa de justificar que a pessoa procurada se encontra efetivamente noutro Estado‑Membro? Se essa autoridade judiciária de emissão solicitasse ao Tribunal de Justiça uma interpretação das disposições da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002 (11), relativas às condições de emissão do referido mandato, deveria o Tribunal de Justiça julgar o pedido inadmissível com o fundamento de que, enquanto a pessoa procurada não for interpelada noutro Estado‑Membro, a situação que deu origem ao litígio no processo principal será puramente interna (12)?

33.      Uma vez que do próprio objeto da certidão de título executivo europeu decorre uma dimensão intrinsecamente europeia, o pedido de decisão prejudicial não pode ser declarado inadmissível com o fundamento de a matéria de facto não ser abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 805/2004. Além disso, será escusado justificar a admissibilidade do pedido com a jurisprudência do acórdão de 18 de outubro de 1990, Dzodzi (13), segundo o qual o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre reenvios prejudiciais que se referem a uma disposição comunitária no caso particular em que o direito nacional de um Estado‑Membro remete para o conteúdo dessa disposição para determinar as regras aplicáveis a uma situação puramente interna desse Estado (14). A Lei sobre a Execução Forçada não remete, porém, para o conteúdo do Regulamento n.o 805/2004 para determinar as regras aplicáveis a situações puramente internas da República da Croácia, mas limita‑se a definir as autoridades competentes para certificar como título executivo europeu as decisões, as transações judiciais e os instrumentos autênticos sobre créditos não contestados.

34.      Daí se conclui que o pedido de decisão prejudicial não pode ser declarado inadmissível pelo motivo de a execução do mandado em causa no processo principal não ter sido previamente requerida num Estado‑Membro diferente daquele em que foi apresentado o pedido de emissão da certidão de título executivo europeu.

35.      Acrescentamos que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência e o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se se afigurar de forma manifesta que a interpretação ou apreciação da validade do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for de natureza hipotética ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são submetidas (15). Ora, no caso vertente, não resulta nem da decisão de reenvio nem das observações das partes interessadas que o litígio no processo principal seja fictício e artificial ou que a questão prejudicial seja puramente hipotética.

36.      Tendo em conta o que precede, conclui‑se que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

37.      Passemos agora à análise das questões prejudiciais.

B –    Quanto à primeira questão

38.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se as disposições da Lei sobre a Execução Forçada, que atribuem competência aos notários para certificar como título executivo europeu os mandados de execução que emitem com base num documento autêntico, na ausência de oposição deduzida pelo devedor, são compatíveis com o Regulamento n.o 805/2004.

39.      Embora, em conformidade com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, este, no âmbito de um reenvio prejudicial, não se possa pronunciar sobre questões respeitantes ao direito interno dos Estados‑Membros nem sobre a conformidade de disposições nacionais com o direito da União, pode, no entanto, fornecer todos os elementos de interpretação deste último que permitam ao órgão jurisdicional nacional resolver o litígio que lhe foi submetido (16).

40.      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se um título executivo, como um mandado de execução emitido por um notário com base num documento autêntico ao abrigo da Lei sobre a Execução Forçada, constitui uma decisão relativa a um crédito não contestado passível de ser certificada como título executivo europeu.

41.      Para responder a esta questão, importa salientar, antes de mais, que o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004 define três categorias de «títulos executivos» aos quais se aplica o procedimento de certificação. Nos termos desta disposição, esse regulamento é aplicável «às decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos sobre créditos não contestados».

42.      O pedido de decisão prejudicial convida‑nos, portanto, a analisar se o mandado de execução emitido pelo notário ao abrigo da Lei sobre a Execução Forçada se enquadra ou não numa dessas três categorias de títulos passíveis de serem certificados.

43.      A qualificação como transação judicial pode ser imediatamente excluída, uma vez que o mandado emitido unilateralmente pelo notário apenas com base numa fatura emitida pelo credor, considerado como «documento autêntico», não reveste evidentemente o caráter de contrato cujo conteúdo dependeria da vontade das partes.

44.      Resta, por isso, verificar se o mandado pode ser qualificado como instrumento autêntico ou decisão sobre um crédito não contestado.

1.      Quanto à qualificação como instrumento autêntico relativo a um crédito não contestado

45.      O artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 805/2004 inclui uma definição exata de «instrumento autêntico» que retoma a definição preconizada pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 17 de junho de 1999, Unibank (17), para a interpretação do artigo 50.o da Convenção de Bruxelas (18), por sua vez inspirada no relatório de Jenard‑Möller sobre a Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, feita em Lugano, em 16 de setembro de 1988 (19). Segundo essa definição, para ser considerado autêntico, um ato tem de cumprir três requisitos. Em primeiro lugar, a autenticidade do ato deve ter sido comprovada por uma autoridade pública; em segundo lugar, esta autenticidade deve referir‑se ao seu conteúdo e não só, por exemplo, à assinatura e, em terceiro lugar, o ato deve ter força executória no Estado onde foi estabelecido. Embora este último requisito não seja expressamente referido no artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 805/2004, decorre do artigo 25.o, n.o 1, do mesmo regulamento, que prevê que, para ser certificado como título executivo europeu, o instrumento autêntico deve ser «executório num Estado‑Membro».

46.      Na medida em que a função do notário consiste precisamente em conferir autenticidade aos atos que lhe são apresentados, o mandado de execução emitido pelo próprio notário pode, à primeira vista, corresponder à definição de instrumento autêntico «formalmente redigido ou registado».

47.      Todavia, o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004 exige que o instrumento autêntico, tal como a decisão ou a transação judicial, seja relativo a um crédito não contestado e a alínea d) da mesma disposição clarifica que um crédito é considerado «não contestado» se o devedor tiver expressamente reconhecido a dívida por meio de instrumento autêntico. Por outras palavras, o instrumento autêntico sobre um crédito não contestado, na aceção da referida disposição, é aquele em que o devedor reconheceu expressamente a dívida.

48.      O mandado de execução emitido pelo notário apenas com base na fatura emitida pelo credor, sem que o devedor tenha sido chamado a manifestar a sua aceitação, não cumpre evidentemente este requisito.

49.      Este mandado não pode, por conseguinte, receber a qualificação de instrumento autêntico relativo a um crédito não contestado. Resta, portanto, verificar se o título executivo poderá ser qualificado como «decisão», na aceção do Regulamento n.o 805/2004.

2.      Quanto à qualificação como decisão relativa a um crédito não contestado

50.      O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004 define o conceito de «decisão» como «qualquer decisão, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação, pelo secretário do tribunal, do montante das custas ou despesas do processo».

51.      O Regulamento n.o 805/2004 não fornece, no entanto, qualquer definição geral do conceito de «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro», de forma que compete à jurisprudência clarificar o seu conteúdo, a fim de determinar se um notário a quem o direito nacional confere o poder de emitir mandados de execução pode ser qualificado como tal na aceção deste regulamento.

52.      Segundo o Governo croata, o notário pode ser considerado um órgão jurisdicional no âmbito do procedimento de adoção de um mandado de execução com base num documento autêntico.

53.      Neste sentido, o referido governo alega que, embora o artigo 4.o do Regulamento n.o 805/2004 não indique expressamente que os termos «juiz», «tribunal» e «órgão jurisdicional» abrangem, na Croácia, outras autoridades como os notários, o referido regulamento foi aprovado e depois alterado duas vezes antes da adesão da República da Croácia à União Europeia, pelo que as especificidades da legislação croata não puderam ser levadas em consideração.

54.      Este governo observa ainda que a Croácia decidiu partilhar as competências em matéria de execução forçada entre os tribunais e os notários, tendo estes últimos recebido a competência exclusiva para proceder à cobrança coerciva dos créditos com base em documentos autênticos.

55.      Segundo o Governo croata, os termos «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004, não implicavam necessariamente que as pessoas e autoridades que organizam o processo tivessem de pertencer formalmente ao poder judicial do Estado. Bastaria que a autoridade em causa tivesse um caráter independente e imparcial e que a sua organização e a sua atividade se regessem por regras predefinidas. Os notários cumpriam, além disso, os critérios identificados pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 17 de setembro de 1997, Dorsch Consult (20), para definir um órgão jurisdicional na aceção do artigo 267.o TFUE.

56.      O Governo croata acrescenta que os notários gozam da confiança do público e que as suas funções são minuciosamente regulamentadas por disposições legais, designadamente pela Zakon o javnom bilježništvu (Lei sobre o Notariado) (21), que garantem o seu profissionalismo, idoneidade e responsabilidade no exercício dos poderes que lhes são atribuídos.

57.      O mesmo governo considera, além disso, que a regulamentação croata é justificada à luz do objetivo do Regulamento n.o 805/2004, que visa simplificar o procedimento de reconhecimento mútuo das decisões, evitando as desvantagens do procedimento de exequatur.

58.      O Governo croata sublinha, por último, que o procedimento de emissão de um mandado de execução pelo notário garante a proteção dos direitos fundamentais do devedor, uma vez que o notário só pode adotar um mandado de execução se considerar que o pedido é admissível e procedente, se o mandado for notificado ao devedor em conformidade com as regras gerais em matéria de notificação dos atos processuais, tais como a petição inicial, e se o devedor tiver a possibilidade de deduzir oposição, sendo devidamente informado dessa possibilidade, bem como das modalidades e do prazo para interpor recurso. Além disso, o notário apenas pode apor a fórmula executória no mandado se não for deduzida oposição e respeitando um prazo de oito dias.

59.      A Comissão Europeia defende a posição contrária.

60.      Em seu entender, o conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004, deve estar em conformidade com a interpretação dada a esse conceito no Regulamento n.o 44/2001, uma vez que ambos os regulamentos se inserem no domínio da cooperação judiciária em matéria civil e estabelecem regras complementares.

61.      Mesmo admitindo que os notários pudessem iniciar processos «quase judiciais» e adotar decisões análogas às decisões judiciais, a Comissão considera que essas decisões não podem ser qualificadas como «judiciais», na aceção do Regulamento n.o 805/2004, dado que, para poderem ser consideradas como tal, essas decisões teriam de respeitar as normas processuais mínimas previstas nesse regulamento, que visam garantir o pleno respeito do direito a um processo equitativo.

62.      A Comissão acrescenta que, quando a intenção do legislador da União é a de equiparar as decisões de outras autoridades competentes às decisões proferidas por órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, tal é expressamente mencionado no instrumento jurídico em causa, como demonstra, aliás, o artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 805/2004, que prevê que o termo «tribunal» inclui o «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada» nos processos sumários de injunção de pagamento. Equiparar os mandados de execução emitidos por notários a decisões implicaria, assim, uma alteração do Regulamento n.o 805/2004.

63.      A fim de arbitrar entre estas duas teses que opõem o Governo croata à Comissão, importa, por um lado, analisar de forma mais atenta o teor das definições de «decisão» e de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» nos instrumentos de direito derivado relativos à cooperação judiciária em matéria civil e, por outro lado, estudar os contributos da jurisprudência. Só após essa dupla análise é que proporemos uma solução ao Tribunal de Justiça.

a)      A definição dos conceitos de «decisão» e de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» nos instrumentos de direito derivado relativos à cooperação judiciária em matéria civil

64.      À semelhança do que fez no Regulamento n.o 44/2001 e depois no Regulamento (UE) n.o 1215/2012 (22), que substituiu o primeiro, o legislador da União retomou no Regulamento n.o 805/2004 a definição de decisão usada na Convenção de Bruxelas.

65.      A análise dos instrumentos de direito da União relativos à cooperação judiciária em matéria civil revela, portanto, uma abordagem unitária do conceito de decisão (23), que recebe uma definição orgânica baseada na natureza jurisdicional do autor do ato. Constitui assim uma decisão qualquer ato de um órgão que tenha a qualidade de tribunal ou órgão jurisdicional.

66.      No entanto, essa definição unitária esconde, na realidade, uma forte diversidade, uma vez que o legislador da União deu definições bastante diferentes para o conceito, indissociável, de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», que parece ter significados muito díspares. A este respeito, julgamos poder identificar três tendências principais que correspondem a três perceções diferentes desse conceito.

67.      A primeira tendência caracteriza‑se por um processo de equiparação pontual de certas autoridades a órgãos jurisdicionais. É nessa tendência que se enquadra o artigo 4.o do Regulamento n.o 805/2004 que, sem definir o conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», estabelece, no seu n.o 7, que, na Suécia, nos processos sumários de injunção de pagamento, a expressão «tribunal» inclui o «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada». Insere‑se nessa mesma tendência o artigo 3.o do Regulamento n.o 1215/2012, que prevê o seguinte:

«Para efeitos do presente regulamento, “tribunal” compreende as seguintes autoridades na medida em que tenham competência em matérias abrangidas pelo presente regulamento:

a)      Na Hungria, em processos sumários de “injunção de pagamento” (fizetési meghagyásos eljárás), o notário (közjegyzö);

b)      Na Suécia, em processos sumários de “injunção de pagamento” (betalningsföreläggande) e “pedidos de assistência” (handräckning), a Autoridade de Execução (Kronofogdemyndigheten).»

68.      É interessante notar que, por força desta disposição, os notários húngaros são expressamente equiparados a um tribunal na sua atividade de emissão de injunções de pagamento. Mais adiante veremos as conclusões a retirar desta equiparação limitada apenas aos notários húngaros.

69.      A segunda tendência que se verifica na legislação da União é a da diluição do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» no de «autoridade competente». Essa tendência é ilustrada, nomeadamente, pelo artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 (24), que define «tribunal» como «todas as autoridades que nos Estados‑Membros têm competência nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação do [presente] regulamento», e pelo artigo 2.o, n.o 2, do mesmo regulamento, que define «juiz» como «o juiz ou o titular de competências equivalentes às do juiz nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação do […] [R]egulamento [n.o 2201/2003]». Nesta categoria enquadra‑se também o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1896/2006, que define «tribunal» como «qualquer autoridade de um Estado‑Membro competente em matéria de injunções de pagamento europeias ou em quaisquer outras matérias conexas».

70.      A referida tendência encontra‑se na Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Lugano, em 30 de outubro de 2007 (25), cuja celebração foi aprovada, em nome da Comunidade, pela Decisão 2009/430/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2008 (26), na medida em que o artigo 62.o dessa convenção prevê que «o termo “tribunal” inclui quaisquer autoridades designadas por um Estado vinculado pela [referida] convenção com competência nas questões abrangidas pelo âmbito de aplicação da mesma».

71.      A terceira tendência que se manifesta na legislação recente da União Europeia corresponde a um processo de definição do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» através da consagração do acervo jurisprudencial. Essa evolução interessante encontra‑se expressa, nomeadamente, no artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 4/2009 (27), que prevê que a noção de «tribunal» inclui as autoridades administrativas dos Estados‑Membros competentes em matéria de obrigações alimentares, desde que ofereçam garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito das partes a serem ouvidas e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado‑Membro onde estão estabelecidas:

–        Possam ser objeto de recurso perante uma autoridade judiciária ou de controlo por essa autoridade, e

–        Tenham força e efeitos equivalentes a uma decisão de uma autoridade judiciária sobre a mesma matéria.

72.      O artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, do Regulamento (UE) n.o 650/2012 (28) insere‑se na mesma linha ao definir «órgão jurisdicional» como «os tribunais e as outras autoridades e profissionais do direito competentes em matéria sucessória que exerçam funções jurisdicionais ou ajam no exercício de uma delegação de poderes conferida por um tribunal ou sob o controlo deste», desde que essas outras autoridades e profissionais do direito, bem como as suas decisões satisfaçam as mesmas condições aplicáveis às autoridades administrativas e às suas decisões por força do artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 4/2009.

73.      Após esta análise, podemos concluir que o conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» se caracteriza por uma proliferação descontrolada de definições que parecem ter‑se acumulado ao longo do tempo sem coerência alguma. Enquanto que certos instrumentos, ao procederem a uma enumeração taxativa das autoridades administrativas equiparadas a um tribunal ou órgão jurisdicional, poderão induzir uma interpretação estrita desse conceito, outros, pelo contrário, adotam uma interpretação ampla, por vezes até profundamente elástica, do mesmo conceito, incluindo nele qualquer autoridade competente nos termos do direito nacional, ao passo que outros instrumentos ainda adotam uma definição conceptual que, como iremos ver, se aproxima daquela que decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

b)      A definição dos conceitos de «decisão» e de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» na jurisprudência do Tribunal de Justiça

74.      As questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio situam‑se no cruzamento de duas linhas de jurisprudência.

75.      A primeira diz respeito ao conceito de «decisão» no domínio da cooperação judiciária em matéria civil e comercial.

76.      Essa linha de jurisprudência tem origem na interpretação do artigo 25.o da Convenção de Bruxelas que, à semelhança do artigo 4.o do Regulamento n.o 805/2004, define esse conceito como abrangendo qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado contratante independentemente da designação que lhe for dada.

77.      O Tribunal de Justiça já considerou que o conceito de «decisão» definido no artigo 25.o dessa convenção, cuja interpretação pelo Tribunal de Justiça também se aplica, em princípio, à disposição correspondente do Regulamento n.o 44/2001, visa «unicamente as decisões judiciais efetivamente proferidas por um órgão jurisdicional de um Estado contratante» (29), especificando ao mesmo tempo, com referência ao relatório sobre a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, elaborado por P. Jenard (30), que a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo é qualificada como «decisão», uma vez que o secretário «atua na qualidade de órgão do Tribunal» que conheceu do mérito da questão e que, «em caso de contestação, um órgão jurisdicional propriamente dito decide sobre as custas» (31).

78.      O Tribunal de Justiça deduziu desta definição que, para poder ser qualificado como «decisão» na aceção da Convenção de Bruxelas, «o ato deve emanar de um órgão jurisdicional pertencente a um Estado contratante e que decide por sua própria autoridade sobre as questões controvertidas entre as partes» (32).

79.      Para além do critério orgânico expressamente consagrado no artigo 25.o da Convenção de Bruxelas, o Tribunal de Justiça identificou progressivamente dois outros critérios, um de natureza processual e outro de natureza material.

80.      O critério processual obriga a que o processo conducente à adoção da decisão se desenrole no respeito dos direitos de defesa (33). Não obstante, o Tribunal de Justiça considerou que, para uma decisão beneficiar do regime de reconhecimento e execução previsto na Convenção de Bruxelas, basta que, antes do seu reconhecimento e da sua execução serem requeridos num Estado diferente do respetivo Estado de origem, a decisão seja ou possa ser objeto, sob diversas modalidades, de uma instrução contraditória nesse Estado de origem (34). O Tribunal de Justiça qualificou assim como «decisão» um despacho proferido no termo de uma primeira fase não contraditória do processo, mas que podia ser objeto de instrução contraditória antes do seu reconhecimento ou da sua execução (35), uma injunção de pagamento contra a qual o devedor podia deduzir oposição transformando o processo num processo contencioso ordinário (36) ou uma sentença proferida à revelia num processo civil que, em princípio, segue o princípio do contraditório (37).

81.      O critério material exige que o órgão autor do ato desempenhe um certo papel na elaboração do mesmo. Tal como já foi referido, o ato deve emanar de um órgão que «decide por sua própria autoridade sobre as questões controvertidas» (38), o que, de acordo com o Tribunal de Justiça, exclui as transações judiciais que revestem um caráter essencialmente contratual, no sentido de que o seu conteúdo depende antes de tudo da vontade das partes (39).

82.      O conceito de «decisão», na aceção da Convenção de Bruxelas, implica, em última análise, a intervenção de um órgão jurisdicional investido de poder de apreciação e que decida no respeito dos direitos de defesa.

83.      A jurisprudência relativa à Convenção de Bruxelas e ao Regulamento n.o 44/2001 não nos fornece, porém, qualquer elemento preciso quanto ao conteúdo do conceito de órgão jurisdicional. Para o delimitar será necessário consultar a jurisprudência que aborda a questão à luz do artigo 267.o TFUE.

84.      A segunda linha jurisprudencial prende‑se com a definição do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.o TFUE.

85.      Não havendo necessidade de expor de forma detalhada todas as subtilezas de uma jurisprudência casuística que se baseia, de certa forma, numa lógica de «tentativa e erro» (40), limitar‑nos‑emos a recordar que, para apreciar se o órgão de reenvio possui caráter de «órgão jurisdicional», o Tribunal de Justiça, que se absteve de elaborar uma definição geral e abstrata desse conceito, aplica um método de identificação que tem em conta um conjunto de indícios concordantes, como a origem legal do órgão, a sua permanência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, pelo órgão, das regras de direito, bem como a sua independência.

86.      Assim, o Tribunal de Justiça admitiu que uma autoridade administrativa à qual foi submetido um litígio e que exerce, portanto, uma função jurisdicional, podia ser considerada um órgão jurisdicional competente para submeter uma questão prejudicial (41). De acordo com jurisprudência assente, segundo a qual a apreciação do caráter de «órgão jurisdicional» é uma questão unicamente do âmbito do direito da União, o Tribunal de Justiça recordou que o facto de o órgão de reenvio ser considerado, em direito nacional, um órgão administrativo não é, em si mesmo, determinante para efeitos desta apreciação (42).

c)      Proposta de resposta ao pedido de decisão prejudicial

87.      Do contexto jurídico que acabamos de expor resultam, muito naturalmente, três soluções para definir o conceito de «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004.

88.      A primeira consiste em optar por uma interpretação estrita do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», limitada aos órgãos jurisdicionais propriamente ditos e excluindo, por conseguinte, qualquer autoridade que não esteja ligada à orgânica da organização jurisdicional de um Estado‑Membro, a não ser que seja expressamente prevista pelo legislador da União.

89.      A segunda solução corresponde, pelo contrário, a uma interpretação ampla, que inclui no conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» qualquer autoridade competente nos termos do direito do Estado‑Membro.

90.      A terceira solução, que qualificaremos de «intermédia», consiste em destacar os traços característicos do órgão jurisdicional, tal como enunciados na jurisprudência tradicional do Tribunal de Justiça que interpreta o artigo 267.o TFUE, e admitir, por conseguinte, que os notários croatas podem, em determinadas circunstâncias, ser considerados como «órgãos jurisdicionais», na aceção do Regulamento n.o 805/2004.

91.      A primeira destas três soluções parece‑nos a opção menos provável de ser considerada seriamente.

92.      Embora não estando isenta de uma certa ambiguidade, a posição defendida pela Comissão nas suas observações tanto escritas como orais parece seguir essa linha, já que esta instituição considera, sem sequer analisar as condições em que os notários croatas intervêm no processo, que as decisões que proferem não podem ser consideradas «decisões judiciais», na aceção do Regulamento n.o 805/2004, a não ser que esse regulamento fosse alterado no sentido de prever essa equiparação.

93.      A principal justificação invocada em defesa desta primeira solução é a de que, quando o legislador da União pretende equiparar uma autoridade a um órgão jurisdicional, tal é expressamente mencionado no ato jurídico em causa. Ora, o Regulamento n.o 805/2004 não menciona os notários croatas, ao passo que o artigo 4.o, n.o 7, desse regulamento refere o «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada» nos processos sumários de injunção de pagamento e o artigo 3.o do Regulamento n.o 1215/2012 equipara expressamente a tribunais não só o já referido «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada», como também os notários húngaros nos processos sumários de injunção de pagamento.

94.      Esta interpretação estrita seria, além disso, reforçada pela comparação com o artigo 62.o da Convenção de Lugano, na medida em que a falta de uma disposição análoga, nos Regulamentos n.os 805/2004 e 1215/2012, que inclua qualquer autoridade competente no conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», demonstraria que o legislador da União não pretendia atribuir, no âmbito destes dois regulamentos, um sentido puramente funcional ao conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional».

95.      Embora esta interpretação estrita pareça, à primeira vista, assente num sólido argumento textual, baseado na letra do artigo 4.o do Regulamento n.o 805/2004, existem outras considerações mais prementes a favor de uma interpretação mais lata.

96.      Em primeiro lugar, as disposições do artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 805/2004 e do artigo 3.o do Regulamento n.o 1215/2012 podem ser objeto de uma leitura diferente. Com efeito, o facto de o legislador da União obrigar a considerar certas autoridades administrativas como um «tribunal» ou «órgão jurisdicional» não significa que outras autoridades não possam também ser consideradas como tal por força dos critérios jurisprudenciais clássicos. É óbvio que um órgão distinto do «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada» não pode ser automaticamente considerado, por «determinação da lei», como «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004. Não obstante, nenhuma disposição deste regulamento se opõe a que esse órgão seja qualificado como «tribunal» ou «órgão jurisdicional» se for demonstrado que apresenta os respetivos traços característicos, em conformidade com a jurisprudência tradicional do Tribunal de Justiça.

97.      Em segundo lugar, esse tipo de grau de exigência na interpretação do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» seria extremamente inovador pelo seu rigor, uma vez que não seria minimamente consentâneo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça que, conferindo um conteúdo autónomo ao conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» no âmbito do instrumento de cooperação judiciária que é o reenvio prejudicial, reconheceu aos órgãos administrativos que exercem funções jurisdicionais caráter de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.o TFUE.

98.      Em terceiro lugar, este novo grau de exigência equivaleria a negar o caráter autónomo, no direito da União, do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», uma vez que bastaria que o Estado‑Membro de origem qualificasse um órgão como «autoridade judiciária» e o associasse, mesmo que apenas formalmente, à sua organização jurisdicional interna para que fosse qualificado como «tribunal» ou «órgão jurisdicional».

99.      Em quarto lugar, esta interpretação estrita não nos parece compatível com o princípio de reconhecimento mútuo, que está subjacente à economia do Regulamento n.o 805/2004. Este princípio justifica que, para efeitos de execução, a decisão proferida no Estado‑Membro de origem e certificada como título executivo europeu pelo órgão jurisdicional desse Estado‑Membro seja tratada como se tivesse sido proferida no Estado‑Membro onde é requerida a execução. Na lógica de um sistema baseado no reconhecimento mútuo, qualquer autoridade cuja intervenção confere a um ato a qualificação de decisão com força executória no Estado‑Membro de origem deve ser considerada um «órgão jurisdicional» cujas decisões devem poder circular livremente nos outros Estados‑Membros.

100. A solução restritiva deve ser afastada por estas quatro razões.

101. Levada ao extremo, a lógica do reconhecimento mútuo poderia justificar a adoção da solução inversa, ou seja, a interpretação mais lata que faz coincidir o conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» com o de autoridade competente. Essa solução permitiria qualificar o notário croata como «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004, pelo simples facto de a Lei sobre a Execução Forçada lhe atribuir a competência para emitir mandados de execução e certificá‑los como título executivo europeu.

102. No entanto, não nos parece que esta solução seja pertinente.

103. Não é conforme com a própria letra do artigo 4.o do Regulamento n.o 805/2004 que, contrariamente ao artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, ao artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1896/2006 e ao artigo 62.o da Convenção de Lugano, não consagrou a generalização, ou mesmo a banalização, do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional».

104. Além do mais, se a expressão «tribunal» ou «órgão jurisdicional» abrangesse qualquer autoridade competente, não vemos por que razão o legislador da União terá tido o cuidado de equiparar expressamente a um tribunal o «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada».

105. Propomos, por isso, que seja adotada uma solução intermédia que consiste, na prática, em retomar o método de identificação utilizado pelo Tribunal de Justiça para definir o conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.o TFUE, tendo em conta a economia e a finalidade do Regulamento n.o 805/2004 que, em muitas das suas disposições, enfatiza a importância do respeito das garantias processuais.

106. Assim sendo, há que concluir que a definição de crédito «considerado “não contestado”» formulada no artigo 3.o do referido regulamento pressupõe que, tratando‑se de decisões, seja levada em conta a atitude do devedor «durante a ação judicial» (43). Em nosso entender, está implícita nesta disposição a existência de um procedimento que respeita o direito do devedor a ser ouvido e a contestar o pedido do credor.

107. Além disso, o Regulamento n.o 805/2004 subordina a certificação de uma decisão relativa a um crédito não contestado proferida num Estado‑Membro ao respeito de normas processuais mínimas que visam garantir que o devedor seja informado, por um lado, acerca da ação judicial intentada contra ele e dos requisitos da sua participação ativa no processo, de forma a fazer valer os seus direitos, e, por outro lado, das consequências da sua não participação, em devido tempo e de forma a permitir‑lhe preparar a sua defesa. Tendo em conta os perigos inerentes a uma presunção de não contestação do crédito inferida do silêncio do devedor durante a ação judicial, o respeito das garantias processuais mínimas exprime um requisito fundamental que o «tribunal» ou «órgão jurisdicional» tem de assegurar.

108. Em última análise, o conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» deveria ser entendido, na aceção do Regulamento n.o 805/2004, como qualquer órgão que ofereça garantias de independência e de imparcialidade e que decida por sua própria autoridade mediante uma decisão que, por um lado, tenha sido ou possa ser objeto de instrução contraditória antes de se colocar a questão da respetiva certificação como título executivo europeu e que, por outro lado, possa ser objeto de recurso perante uma autoridade judiciária.

109. Esta definição funcional do conceito de «tribunal» ou «órgão jurisdicional» parece‑nos corresponder à sua interpretação tradicional, ao mesmo tempo que permite levar em conta a tendência atual de desjudicialização de certos processos contenciosos, nomeadamente os de maior volume, no intuito de aliviar as autoridades judiciárias.

110. Nesse sentido, consideramos que os notários croatas, ao emitirem mandados de execução, exercem efetivamente uma atividade de natureza jurisdicional, ainda que o procedimento seguido seja sumário e se assemelhe a um procedimento de injunção de pagamento.

111. Nas suas observações escritas, o Governo croata forneceu, a este respeito, algumas explicações interessantes relativas às garantias oferecidas ao devedor no âmbito do processo de execução perante o notário. Segundo este governo, o notário apenas emite o mandado de execução depois de ter apreciado pessoalmente a admissibilidade e a procedência do pedido. Além disso, deve notificar o mandado ao demandado de acordo com regras que garantam a possibilidade de este último contestar o seu crédito, informando‑o da possibilidade de deduzir oposição perante o tribunal, bem como do prazo a observar. Ainda segundo o referido governo, o notário só pode apor a fórmula executória no mandado passados oito dias após o termo do prazo para deduzir oposição.

112. Na audiência, o Governo croata apresentou esclarecimentos adicionais, indicando que a Lei sobre o Notariado e o Código deontológico dos notários garantem a independência e a imparcialidade do notário em relação ao demandante no exercício das suas funções específicas de emissão de mandados de execução com base em documentos autênticos. Segundo este governo, a função do notário vai muito além da de uma mera câmara de registo, na medida em que ele examina o pedido e aprecia a sua admissibilidade e procedência.

113. De acordo com as indicações fornecidas pelo referido governo, no exercício da sua atividade específica de emissão de mandados de execução, o notário parece, portanto, encontrar‑se na situação de um terceiro alheio aos interesses em causa e a salvo dos conflitos de interesses que poderiam emergir do exercício das suas demais atividades.

114. Sem prejuízo das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece‑nos, pois, que o notário, ao agir não como um funcionário público, mas na qualidade de órgão responsável pela emissão de mandados de execução, se comporta como um órgão independente e imparcial.

115. Nestas condições, consideramos que o mandado de execução emitido pelo notário pode ser qualificado como «decisão», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004. Resta esclarecer se o notário também pode certificar essa decisão como título executivo europeu.

C –    Quanto à segunda questão

116. Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o notário que emitiu, com base num documento autêntico, um mandado de execução que adquiriu força executória na falta de oposição deduzida pelo devedor tem competência para emitir a respetiva certidão de título executivo europeu.

117. Resulta do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004 que o pedido de certificação como título executivo europeu deve ser apresentado ao «tribunal de origem», que é definido no artigo 4.o, n.o 6, do mesmo regulamento como sendo «o órgão jurisdicional ou tribunal perante o qual o processo judicial foi invocado, no momento em que as condições enunciadas nas alíneas a), b) e c) do n.o 1 do artigo 3.o se encontravam preenchidas», ou seja, o órgão jurisdicional ou tribunal perante o qual o processo judicial foi invocado, no momento em que estavam reunidas as condições que permitem presumir o caráter «não contestado» do crédito.

118. No sistema previsto pela Lei sobre a Execução Forçada é, portanto, o notário que deve ser qualificado como tribunal de origem, quando o devedor não tiver deduzido oposição ao mandado de execução e este tiver adquirido força executória.

119. O facto de a certificação de uma decisão como título executivo europeu ter sido considerada pelo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 16 de junho de 2016, Pebros Servizi (C‑511/14, EU:C:2016:448), como um ato de natureza jurisdicional não se opõe a que o notário possa proceder a essa certificação, desde que cumpra o conjunto de condições para ser qualificado como «tribunal» ou «órgão jurisdicional», na aceção do Regulamento n.o 805/2004.

IV – Conclusão

120. À luz das considerações que precedem, propomos que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo ao pedido de decisão prejudicial que lhe foi submetido pelo Općinski sud u Novom Zagrebu:

1.         O conceito de «decisão», na aceção do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados, deve ser interpretado no sentido de que um título executivo, tal como um mandado de execução emitido por um notário com base num documento autêntico, constitui uma «decisão» na aceção do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004, desde que o notário competente para emitir esse mandado decida, no exercício dessa função específica, na qualidade de órgão jurisdicional, o que pressupõe que ofereça garantias quanto à sua independência e imparcialidade e que decida por sua própria autoridade mediante uma decisão que, por um lado, tenha sido ou possa ser objeto de instrução contraditória antes da respetiva certificação como título executivo europeu e que, por outro lado, seja passível de recurso para uma autoridade judicial. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o notário cumpre todas essas condições, nomeadamente no que diz respeito à sua independência e imparcialidade.

2.         O artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004 deve ser interpretado no sentido de que o notário que cumpre os requisitos para ser qualificado como órgão jurisdicional constitui o «tribunal de origem» na aceção do artigo 4.o, n.o 6, e do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004, sendo, por isso, competente para certificar como título executivo europeu o mandado que emitiu e declarou executório na falta de oposição por parte do devedor.


1      Língua original: francês.


2      JO 2004, L 143, p. 15.


3      JO 2001, L 12, p. 1.


4      Narodne novine, br. 112/12.


5      JO 2006, L 399, p. 1.


6      JO 2007, L 199, p. 1.


7      JO 2014, L 189, p. 59.


8      V. artigo 3.o, n.o 1, dos Regulamentos n.os 1896/2006 e 861/2007. O Regulamento n.o 655/2014 define processo transfronteiriço como sendo aquele em que a conta a arrestar através da decisão de arresto é mantida num Estado‑Membro que não seja o Estado‑Membro do tribunal onde foi apresentado o pedido de decisão de arresto ou aquele onde o credor tem domicílio (artigo 3.o, n.o 1, desse regulamento).


9      V., neste sentido, o Guia Prático para a aplicação do Regulamento relativo ao Título Executivo Europeu, disponível no seguinte endereço: https://e‑justice.europa.eu/content_european_enforcement_order‑54‑pt.do. Este guia refere que não é obrigatório demonstrar caráter internacional para requerer o título executivo europeu e que não é necessário que uma das partes esteja domiciliada ou resida no estrangeiro nem é obrigatório demonstrar que a execução ocorrerá no estrangeiro (p. 14).


10      V., no que se refere à condição relativa à força executória da decisão no Estado‑Membro de origem, artigo 6.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 805/2004.


11      Decisão‑Quadro relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1).


12      Na fase de emissão do mandado de detenção europeu, colocar‑se‑ia antes uma outra questão relativa à existência de um litígio no processo principal.


13      C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360.


14      N.os 36 e 37 do acórdão referido.


15      V., nomeadamente, neste sentido, acórdão de 16 de junho de 2016, Saint Louis Sucre (C‑96/15, EU:C:2016:450, n.o 34 e jurisprudência referida).


16      V. acórdão de 12 de julho de 2012, Giovanardi e o. (C‑79/11, EU:C:2012:448, n.o 36 e jurisprudência referida).


17      C‑260/97, EU:C:1999:312.


18      Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pelas sucessivas Convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a esta Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»).


19      JO 1990, C 189, p. 57.


20      C‑54/96, EU:C:1997:413.


21      Narodne novine, br. 78/93, 29/94, 162/98, 16/07 e 75/09.


22      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).


23      V., além do artigo 32.o do Regulamento n.o 44/2001 e do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, artigo 2.o, n.o 1, ponto 1, do Regulamento (CE) n.o 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares (JO 2009, L 7, p. 1), e artigo 4.o, n.o 8, do Regulamento n.o 655/2014.


24      Regulamento do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).


25      A seguir «Convenção de Lugano».


26      JO 2009, L 147, p. 1.


27      O considerando 12 desse regulamento especifica que, «[a] fim de ter em conta as diferentes formas de resolver as questões relativas às obrigações alimentares nos Estados‑Membros, o [referido] regulamento deverá aplicar‑se tanto às decisões jurisdicionais como às decisões proferidas por autoridades administrativas, desde que estas ofereçam garantias nomeadamente no que se refere à sua imparcialidade e ao direito das partes a serem ouvidas».


28      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2012, L 201, p. 107).


29      Acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren (C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 15).


30      JO 1979, C 59, p. 1, designadamente p. 42 in fine.


31      Acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren (C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 16).


32      V. acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren (C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 17).


33      V. acórdão de 21 de maio de 1980, Denilauler (125/79, EU:C:1980:13, n.o 13). V., no âmbito do Regulamento n.o 44/2001, acórdão de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka (C‑327/10, EU:C:2011:745, n.o 48).


34      V. acórdão de 21 de maio de 1980, Denilauler (125/79, EU:C:1980:13, n.o 13).


35      V. acórdão de 14 de outubro de 2004, Mærsk Olie & Gas (C‑39/02, EU:C:2004:615, n.os 50 a 52).


36      V. acórdão de 13 de julho de 1995, Hengst Import (C‑474/93, EU:C:1995:243, n.os 14 e 15).


37      V. acórdão de 2 de abril de 2009, Gambazzi (C‑394/07, EU:C:2009:219, n.os 23 a 25).


38      V., além do acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren (C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 17), acórdão de 14 de outubro de 2004, Mærsk Olie & Gas (C‑39/02, EU:C:2004:615, n.o 45).


39      V. acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren (C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 18). Cumpre, no entanto, referir que o acórdão de 2 de abril de 2009, Gambazzi (C‑394/07, EU:C:2009:219), que atribuiu às sentenças inglesas proferidas à revelia («default judgment») a qualificação de «decisão», pode ser considerado um marco na evolução da jurisprudência do Tribunal de Justiça, na medida em que o juiz inglês não parece agir na qualidade de órgão jurisdicional neste tipo de processos (v., nomeadamente, Cuniberti, G., «La reconnaissance en France des jugements par défaut anglais — À propos de l’affaire Gambazzi‑Stolzenberg», Revue critique de droit international privé, n.o 4, 2009, p. 685, pontos 33 e 34).


40      V. Barav, A., «Tâtonnement préjudiciel — La notion de juridiction en droit communautaire, Études sur le renvoi préjudiciel dans le droit de l’Union européenne, Bruyant, Bruxelas, 2011, p. 37.


41      V., relativamente à Vergabeüberwachungsausschuß des Bundes (comissão federal de fiscalização da adjudicação dos contratos públicos, Alemanha), acórdão de 17 de setembro de 1997, Dorsch Consult (C‑54/96, EU:C:1997:413, n.os 37 e 38), e, mais recentemente, relativamente ao Tribunal Català de Contractes del Sector Públic (tribunal catalão de contratos do setor público, Espanha), acórdão de 6 de outubro de 2015, Consorci Sanitari del Maresme (C‑203/14, EU:C:2015:664, n.os 17 a 27).


42      V. acórdão de 6 de outubro de 2015, Consorci Sanitari del Maresme (C‑203/14, EU:C:2015:664, n.o 17).


43      V. artigo 3.o, n.o 1, alíneas a) a c), do referido regulamento. Sublinhado nosso.