Language of document : ECLI:EU:C:2015:189

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

19 de março de 2015 (*)

«Reenvio prejudicial — Mercado interno do gás natural — Diretiva 2003/55/CE — Artigo 25.° — Diretiva 2009/73/CE — Artigos 41.° e 54.° — Aplicação no tempo — Regulamento (CE) n.° 1775/2005 — Artigo 5.° — Mecanismos de atribuição de capacidade e procedimentos de gestão de congestionamentos — Decisão de uma entidade reguladora — Direito de recurso — Recurso de uma sociedade titular de uma autorização de transporte de gás natural — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.° — Direito a uma proteção jurisdicional efetiva contra uma decisão de uma entidade reguladora»

No processo C‑510/13,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pela Kúria (Hungria), por decisão de 2 de julho de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de setembro de 2013, no processo

E.ON Földgáz Trade Zrt

contra

Magyar Energetikai és Közmű‑szabályozási Hivatal,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, K. Jürimäe (relatora), J. Malenovský, M. Safjan e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

—        em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e K. Herrmann, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de outubro de 2014,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 25.° da Diretiva 2003/55/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Diretiva 98/30/CE (JO L 176, p. 57, e retificação no JO 2004, L 16, p. 74, a seguir «Segunda Diretiva»), e dos artigos 41.° e 54.° da Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO L 211, p. 94, a seguir «Terceira Diretiva»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a E.ON Földgáz Trade Zrt. (a seguir «E.ON Földgáz») à Magyar Energetikai és Közmű‑szabályozási Hivatal (entidade húngara de regulação do setor da energia e dos serviços de utilidade pública, a seguir «entidade reguladora»), a propósito da alteração, por esta, das regras do código de rede de gás (a seguir «código de rede») relativas à atribuição de capacidade a longo prazo e à gestão dos congestionamentos.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Segunda Diretiva

3        O artigo 25.° da Segunda Diretiva, sob a epígrafe «Entidades reguladoras», dispõe nos n.os 5, 6 e 11:

«5.      Qualquer parte que tenha uma queixa contra um operador de uma rede de transporte, [gás natural líquido] ou distribuição sobre os elementos referidos nos n.os 1, 2 e 4 e no artigo 19.° pode apresentá‑la à entidade reguladora que, agindo na qualidade de autoridade competente para a resolução de litígios, proferirá uma decisão no prazo de dois meses após a receção da queixa. Este prazo pode ser prorrogado por mais dois meses se a entidade reguladora necessitar de informações complementares. Pode ainda ser prorrogado por um período adicional, com o acordo do demandante. A referida decisão produz efeitos vinculativos salvo se for, ou até ser, revogada por decisão tomada após a interposição de recurso.

6.      Qualquer parte afetada que tenha o direito de apresentar queixa acerca de uma decisão sobre metodologia tomada nos termos dos n.os 2, 3 ou 4 ou, nos casos em que a entidade reguladora tenha o dever de consultar, acerca das metodologias propostas, pode, no prazo máximo de dois meses a contar da publicação dessa decisão ou proposta de decisão, ou num prazo inferior se assim for determinado pelos Estados‑Membros, apresentar um pedido de revisão. Esse pedido não tem efeito suspensivo.

[…]

11.      As queixas e pedidos referidos nos n.os 5 e 6 não prejudicam o exercício dos direitos de recurso previstos no direito comunitário e na legislação nacional.»

 Terceira Diretiva

4        O artigo 41.° da Terceira Diretiva reproduz, em substância, o conteúdo do artigo 25.° da Segunda Diretiva. Os n.os 11, 12 e 15 do artigo 41.° estão redigidos em termos análogos aos dos n.os 5, 6 e 11, do referido artigo 25.° O artigo 41.° da Terceira Diretiva contém um n.° 17, que não tinha equivalente no artigo 25.° da Segunda Diretiva, e que tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros devem garantir a existência de mecanismos adequados ao nível nacional que confiram a uma parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional o direito de recorrer para um órgão independente das partes envolvidas e de qualquer governo.»

5        O artigo 54.° da Terceira Diretiva, sob a epígrafe «Transposição», prevê:

«1.      Os Estados‑Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento ao disposto na presente diretiva até 3 de março de 2011[.] Os Estados‑Membros devem disso informar imediatamente a Comissão.

Os Estados‑Membros devem aplicar essas disposições a partir de 3 de março de 2011, com exceção do artigo 11.°, que devem aplicar a partir de 3 de março de 2013.

[…]»

 Regulamento (CE) n.° 1775/2005

6        À data dos factos do litígio no processo principal, encontrava‑se em vigor o Regulamento (CE) n.° 1775/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de setembro de 2005, relativo às condições de acesso às redes de transporte de gás natural (JO L 289, p. 1). Este regulamento foi revogado pelo Regulamento (CE) n.° 715/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, relativo às condições de acesso às redes de transporte de gás natural e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1775/2005 (JO L 211, p. 36, e retificações no JO 2009, L 229, p. 29, e no JO 2009, L 309, p. 87), aplicável a partir de 3 de março de 2011.

7        Os considerandos 17 e 23 do Regulamento n.° 1775/2005 tinham a seguinte redação:

«(17) As entidades reguladoras nacionais deverão garantir o cumprimento das regras do presente regulamento e as orientações adotadas por força deste.

[…]

(23)      Atendendo a que o objetivo do presente regulamento, nomeadamente o estabelecimento de regras equitativas sobre as condições de acesso às redes de transporte de gás natural, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros, e pode, pois, devido à dimensão e aos efeitos da ação prevista, ser melhor alcançado ao nível comunitário, a Comunidade pode adotar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.° do Tratado. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no mesmo artigo, o presente regulamento não excede o necessário para atingir aquele objetivo.»

8        O artigo 1.° deste regulamento, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», dispunha no seu n.° 1:

«O presente regulamento tem por objetivo estabelecer regras não‑discriminatórias sobre as condições de acesso às redes de transporte de gás natural, tendo em conta as características específicas dos mercados nacionais e regionais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno do gás.

Este objetivo inclui o estabelecimento de princípios harmonizados sobre as tarifas de acesso à rede ou as metodologias subjacentes ao seu cálculo, a definição de serviços de acesso de terceiros, e de princípios harmonizados de atribuição de capacidade e gestão de congestionamentos, a determinação de requisitos de transparência, regras e encargos de equilibragem e facilitar as transações de capacidade.»

9        Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, ponto 11, do referido regulamento:

«1.      Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

11.      ‘Utilizador da rede’, cliente ou potencial cliente de um operador da rede de transporte e os operadores da rede de transporte propriamente ditos, na medida em que lhes seja necessário para o desempenho das suas funções em matéria de transporte;».

10      O artigo 5.° do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Princípios relativos aos mecanismos de atribuição de capacidade e aos procedimentos de gestão de congestionamentos», previa:

«1.      Deve ser disponibilizada aos intervenientes no mercado a capacidade máxima em todos os pontos relevantes referidos no n.° 3 do artigo 6.°, tendo em consideração a integridade do sistema e o funcionamento eficaz da rede.

2.      Os operadores da rede de transporte devem aplicar e publicar mecanismos de atribuição de capacidade não‑discriminatórios e transparentes que deverão:

a)      Dar sinais económicos adequados para a utilização eficaz e otimizada da capacidade técnica e facilitar os investimentos em novas infraestruturas;

b)      Garantir a compatibilidade com os mecanismos de mercado, incluindo os mercados ‘spot’ e as plataformas de comércio eletrónico e, em simultâneo, serem flexíveis e capazes de se adaptarem a um enquadramento de mercado diferente;

c)      Ser compatíveis com os sistemas de acesso às redes dos Estados‑Membros.

3.      Quando os operadores da rede de transporte celebrem novos contratos de transporte ou renegociem os existentes, estes deverão ter em conta os seguintes princípios:

a)      Em caso de congestionamento contratual, o operador da rede de transporte deve oferecer a capacidade não utilizada no mercado primário pelo menos com um dia de antecedência e com a possibilidade de interrupção;

b)      Os utilizadores da rede que pretendam revender ou subalugar a sua capacidade contratada não utilizada no mercado secundário poderão fazê‑lo. Os Estados‑Membros podem exigir que os utilizadores da rede notifiquem ou informem os operadores da rede de transporte.

4.      Se a capacidade contratada ao abrigo dos contratos de transporte em vigor continuar a não ser utilizada e se verificar um congestionamento contratual, os operadores da rede de transporte devem aplicar o disposto no n.° 3, desde que não violem os requisitos dos contratos de transporte em vigor. Em caso de violação dos contratos de transporte em vigor, os operadores da rede de transporte devem, após consulta às autoridades competentes, apresentar ao utilizador da rede um pedido para a utilização da capacidade não utilizada no mercado secundário nos termos do n.° 3.

5.      Em caso de congestionamento físico, o operador da rede de transporte ou, se for caso disso, as entidades reguladoras devem aplicar mecanismos de atribuição de capacidade não‑discriminatórios e transparentes.»

11      O artigo 9.° do Regulamento n.° 1775/2005, sob a epígrafe «Orientações», dispunha, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      As orientações que preveem o grau mínimo de harmonização necessário para alcançar o objetivo do presente regulamento devem conter, se for caso disso, as seguintes indicações:

[…]

b)      Dados relativos aos princípios subjacentes aos mecanismos de atribuição de capacidade e à aplicação de procedimentos de gestão de congestionamentos em caso de congestionamento contratual, nos termos do artigo 5.°;

[…]

2.      As orientações sobre as questões mencionadas no n.° 1 constam do anexo. Essas orientações podem ser alteradas pela Comissão nos termos do n.° 2 do artigo 14.°

[…]»

12      O artigo 10.° do mesmo regulamento, com a epígrafe «Entidades reguladoras», enunciava, no seu primeiro parágrafo:

«No exercício das responsabilidades que para elas decorrem do presente regulamento, as entidades reguladoras dos Estados‑Membros, instituídas nos termos do artigo 25.° da [Segunda Diretiva] devem garantir o cumprimento do presente regulamento e das orientações adotadas nos termos do seu artigo 9.°»

13      O anexo do Regulamento n.° 1775/2005 contém as orientações referidas no artigo 9.° desse regulamento. O n.° 2 deste anexo define, em particular, os «[p]rincípios subjacentes ao mecanismo de atribuição de capacidade e aos procedimentos de gestão de congestionamentos e aplicação de procedimentos de gestão de congestionamentos em caso de congestionamento contratual».

14      Nos termos do seu artigo 17.°, segundo parágrafo, o Regulamento n.° 1775/2005 é aplicável a partir de 1 de julho de 2006.

 Direito húngaro

15      As disposições pertinentes de direito nacional relativas à legitimidade e ao interesse em agir estão previstas na Lei n.° III de 1952 que institui o Código de Processo Civil (A polgári perrendtartásról szóló 1952. évi III. törvény) e na Lei n.° CXL de 2004 relativa às regras gerais do procedimento e dos serviços administrativos (A közigazgatási hatósági eljárás és szolgáltatás általános szabályairól szóló 2004. évi CXL. törvény).

16      O artigo 110.° da Lei n.° XL de 2008 relativa ao fornecimento de gás natural (a földgázellátásról szóló 2008. évi XL törvény), dispõe:

«1.      O operador da rede elabora as regras, os procedimentos e as modalidades de funcionamento da rede interligada de gás natural, o conteúdo mínimo dos acordos comerciais, de contabilização e medição, e de intercâmbio de dados, assim como o código de rede, que incluirá as regras detalhadas do balanço diário. […]

2.      O código de rede é elaborado tendo em conta a segurança do fornecimento, os requisitos de qualidade, a neutralidade na concorrência e o livre acesso à rede interligada de gás natural. Para efeitos da elaboração do código, o operador da rede deverá solicitar o parecer da comissão do código de rede, criada e regulada por legislação específica.

3.      O operador da rede efetuará anualmente a revisão do código de rede elaborado nos termos do n.° 2. Para tal, solicita o parecer da comissão do código de rede, e, em caso de alteração, envia [a ou as alterações propostas] para aprovação, antes de 31 de outubro, à entidade reguladora, juntamente com os pareceres recebidos. A entidade reguladora não aprova o código de rede se este for ilegal ou impedir a concorrência efetiva ou a prossecução dos princípios e regras da regulação de tarifas ou ainda se permitir um tratamento discriminatório de determinados clientes. Obriga o operador da rede, indicando os fundamentos, a apresentar uma nova proposta reformulada, num prazo por ela determinado. Os titulares de autorizações, os produtores de gás natural, os utilizadores da rede e os clientes devem respeitar as disposições relevantes do código de rede aprovado.

4.      Em caso de alteração da lei ou de um regulamento, ou quando o código de rede impedir a concorrência efetiva ou a prossecução dos princípios e regras da regulação de tarifas, ou ainda se permitir o tratamento discriminatório de determinados clientes, a entidade reguladora, após consultar os operadores autorizados e os utilizadores da rede, obrigará o operador, indicando os fundamentos, a alterar o código, num prazo por ela determinado. Se não for efetuada a alteração, a entidade reguladora pode aplicar uma coima e alterar oficiosamente o código.

5.      O código de rede e as suas alterações, juntamente com a decisão de aprovação da entidade reguladora, serão publicados, na sua versão consolidada, no sítio Internet dos operadores autorizados.

[…]»

 Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

17      A E.ON Földgáz, transportadora autorizada de gás, apresentou ao operador húngaro da rede de transporte de gás, isto é, à FGSZ Földgázszállító Zrt. (a seguir «operador da rede»), quatro pedidos de atribuição de capacidade a longo prazo para o ponto de entrada de importação da interligação de gás entre a Hungria e a Áustria (Hungarian‑Austrian gas interconnector).

18      Dado que os referidos pedidos excediam amplamente a capacidade disponível nesse ponto de entrada após 1 de julho de 2010, o referido operador de rede pediu à entidade reguladora que lhe indicasse qual a posição a adotar na resposta aos referidos pedidos.

19      No seguimento do pedido do operador da rede, a entidade reguladora adotou a Decisão n.° 98/2010, de 22 de fevereiro de 2010, que alterou a Decisão de 25 de janeiro de 2010, relativa à aprovação do código de rede.

20      A Decisão n.° 98/2010 redefiniu, assim, as regras do código de rede que regulam a atribuição de capacidade de duração superior a um ano de gás (a seguir «capacidade a longo prazo»). Decorre da decisão de reenvio que a Decisão n.° 98/2010 alterou também as regras relativas à gestão dos congestionamentos.

21      Antes da alteração do código de rede pela Decisão n.° 98/2010, este previa que o operador da rede apreciava, pela ordem de apresentação, os pedidos de atribuição de capacidade a longo prazo e atribuía essa capacidade, no limite da capacidade disponível, através da celebração de um contrato com os requerentes.

22      Nos termos das regras alteradas pela Decisão n.° 98/2010, para o ano de gás 2010/2011, o operador da rede está obrigado a reservar 80% da capacidade disponível para a celebração de contratos a longo prazo e 20% dessa capacidade para a celebração de contratos anuais relativos a esse ano de gás. No que respeita aos anos de gás seguintes, essa decisão prevê que, a partir do ano de gás 2011/2012, a atribuição de capacidade a longo prazo, bem como a celebração efetiva de contratos, é efetuada segundo novas regras que devem ser elaboradas pelo operador da rede juntamente com os distribuidores de gás natural e apresentadas à entidade reguladora para aprovação.

23      A entidade reguladora fundamentou a aprovação destas novas regras indicando que o procedimento inicial de atribuição de capacidade prejudicava o desenvolvimento da concorrência e dificultava a entrada de novos agentes no mercado.

24      Em 27 de março de 2010, a E.ON Földgáz recorreu para o Fővárosi Bíróság (tribunal de Budapeste), pedindo a anulação das disposições da Decisão n.° 98/2010 relativas às modalidades de atribuição de capacidade para o ano de gás 2010/2011. Foi negado provimento ao recurso em 3 de novembro de 2011.

25      O Fővárosi Ítélőtábla (tribunal regional de segunda instância de Budapeste) também negou provimento, em 9 de maio de 2012, ao recurso interposto pela E.ON Földgáz, uma vez que esta sociedade não tinha legitimidade para agir no âmbito de um processo de controlo judicial de uma decisão administrativa relativa ao código de rede. Com efeito, a E.ON Földgáz não demonstrou que tinha um interesse direto pertinente relativamente às disposições recorridas da Decisão n.° 98/2010, na medida em que não celebrou nenhum contrato com o operador da rede e que essa decisão só faz referência a este último.

26      A E.ON Földgáz interpôs então recurso de cassação no órgão jurisdicional de reenvio. Alega que tem um interesse direto que lhe confere legitimidade para agir. Este interesse resulta do facto de a Decisão n.° 98/2010 ter alterado as regras do código de rede com base nas quais apresentou, na qualidade de transportador de gás autorizado, pedidos de atribuição de capacidade e que as novas regras restringiram o seu direito de contratar a capacidade objeto dos referidos pedidos. A esse respeito, o facto de saber se existia um contrato entre a E.ON Földgáz e o operador da rede não é relevante, uma vez que o código de rede regulava, designadamente, o processo de celebração desses contratos. Além disso, a Decisão n.° 98/2010 foi adotada em consequência da apresentação desses pedidos. A E.ON Földgáz refere ainda que, nos termos da Lei n.° XL de 2008, relativa ao fornecimento de gás natural, o operador da rede estava obrigado a consultá‑la, na sua qualidade de distribuidora de gás natural, quando do procedimento de elaboração do código de rede.

27      O órgão jurisdicional de reenvio refere que, no direito húngaro, uma parte num procedimento administrativo só tem legitimidade para recorrer de uma decisão administrativa num recurso de uma disposição dessa decisão que afete diretamente os seus direitos. Pergunta, assim, se o interesse invocado pela E.ON Földgáz, que qualifica de interesse económico, pode constituir um interesse direto suscetível de conferir legitimidade para agir a essa recorrente no âmbito de um recurso judicial de uma decisão de regulação em matéria de energia.

28      O órgão jurisdicional de reenvio considera que é necessário interpretar o conceito de «parte afetada», que figura nas segunda e Terceira Diretivas. Com efeito, embora o Tribunal de Justiça já tenha interpretado este conceito no âmbito de recursos de decisões adotadas por entidades reguladoras no domínio das comunicações eletrónicas (acórdãos Tele2 Telecommunication, C‑426/05, EU:C:2008:103, e Arcor, C‑55/06, EU:C:2008:244), não existem precedentes a este respeito no que se refere à regulamentação do setor da energia e, mais concretamente, às decisões relativas aos códigos de rede.

29      Nestas condições, a Kúria (Tribunal Supremo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem ser aplicadas as disposições que determinam quem tem legitimidade para interpor recurso, previstas no artigo 25.° da [Segunda Diretiva], no caso de uma decisão administrativa adotada no período de vigência dessa [d]iretiva ou, no processo judicial em curso, deve ser tomado em consideração o disposto no artigo 41.° da [Terceira Diretiva], que entrou em vigor na pendência da lide, tendo em conta o disposto no segundo parágrafo do n.° 1 do seu artigo 54.°, por força do qual as referidas disposições devem ser aplicadas a partir de 3 de março de 2011?

2)      Caso a [Terceira Diretiva] deva ser aplicada, é possível considerar que um [distribuidor] autorizado que tenha um interesse económico como o que existe no presente processo é ‘parte afetada’, na aceção do artigo 41.°, n.° 17, da referida diretiva, num recurso da decisão que aprova um código de rede ou que determina o seu conteúdo, ou é apenas parte afetada o [operador] da rede habilitado a pedir a aprovação do código?

3)      Caso seja aplicável a [Segunda Diretiva] […], deve enquadrar‑se nas hipóteses previstas nos n.os 5 ou 6 do artigo 25.° a aprovação ou alteração do código de rede, como a que ocorreu no presente processo, na medida em que se refere à apreciação dos pedidos de [atribuição] de capacidade?

4)      Caso esteja em causa uma das situações abrangidas pelo artigo 25.°, n.° 6, da [Segunda Diretiva], é possível considerar que um [distribuidor] autorizado que tem um interesse económico, como o que existe no presente processo, é ‘parte afetada’ num recurso da decisão que aprova um código de rede ou que determina o seu conteúdo, ou apenas é parte afetada o [operador] da rede habilitado a pedir a aprovação do código?

5)      Qual a interpretação a dar ao artigo 25.°, n.° 11, da [Segunda Diretiva], nos termos do qual as queixas e pedidos referidos nos n.os 5 e 6 não prejudicam o exercício dos direitos de recurso previstos no direito [da União] e no direito nacional, caso resulte das respostas às questões anteriores que o direito nacional sujeita a interposição do recurso a requisitos mais estritos do que os [que] resultam das disposições da diretiva ou do direito [da União]?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

30      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Terceira Diretiva, cujo prazo de transposição expirava em 3 de março de 2011, designadamente as novas disposições introduzidas no artigo 41.°, n.° 17, da mesma, deve ser interpretada no sentido de que se aplica a um recurso de uma decisão de uma entidade reguladora, como a que está em causa no processo principal, adotada antes do termo do prazo de transposição e que ainda estava pendente na referida data.

31      O artigo 41.°, n.° 17, da Terceira Diretiva prevê que os Estados‑Membros devem garantir a existência de mecanismos adequados ao nível nacional que confiram a uma parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional o direito de recorrer para um órgão independente das partes envolvidas e de qualquer governo.

32      Segundo a sua redação, esta disposição é aplicável às situações em que a entidade reguladora adotou uma decisão que afetou os direitos de uma parte. Assim, há que atender à data da adoção da referida decisão para apreciar se uma situação se insere no âmbito do artigo 41.°, n.° 17, da Terceira Diretiva.

33      Consequentemente, o artigo 41.°, n.° 17, da Terceira Diretiva deve ser interpretado no sentido de que não abrange as decisões da entidade reguladora que foram adotadas antes do termos do prazo de transposição previsto no artigo 54.°, n.° 1, dessa diretiva, ou seja, antes de 3 de março de 2011.

34      Por conseguinte, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que a Decisão n.° 98/2010 foi adotada em 22 de fevereiro de 2010, ou seja, antes do termo do prazo de transposição da Terceira Diretiva, esta última não é aplicável.

35      Como tal, há que responder à primeira questão que a Terceira Diretiva, cujo prazo de transposição expirava em 3 de março de 2011, designadamente as novas disposições introduzidas no artigo 41.°, n.° 17, da mesma, deve ser interpretada no sentido de que não se aplica a um recurso de uma decisão de uma entidade reguladora, como a que está em causa no processo principal, adotada antes do termo do prazo de transposição e que ainda estava pendente na referida data.

 Quanto à segunda questão

36      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às terceira a quinta questões

37      Com as suas terceira a quinta questões, que devem ser apreciadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 25.° da Segunda Diretiva deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional sobre o exercício do direito de recurso no órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dos atos de uma entidade reguladora, que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não permite reconhecer a um operador, como a E.ON Földgáz, legitimidade para recorrer de uma decisão dessa entidade reguladora relativa ao código de rede.

38      Como o advogado‑geral indicou nos n.os 36 e 37 das suas conclusões, a Segunda Diretiva não prevê nenhuma disposição especial que tenha por efeito atribuir aos operadores um direito de recurso judicial das decisões da entidade reguladora, como a Decisão n.° 98/2010.

39      Todavia, há que salientar que o Regulamento n.° 1775/2005, que é o regulamento aplicável ratione temporis aos factos do litígio no processo principal, define as regras harmonizadas no que se refere ao acesso dos operadores do mercado à rede de transporte de gás natural.

40      Assim, nos termos do seu considerando 23 e do seu artigo 1.°, n.° 1, o objetivo do referido regulamento é estabelecer regras não discriminatórias sobre as condições de acesso às redes de transporte de gás natural, tendo em conta as características específicas dos mercados nacionais e regionais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno do gás.

41      Neste âmbito, decorre do artigo 1.°, n.° 1, segundo parágrafo, do referido regulamento, que este tem como objetivo, em especial, estabelecer princípios harmonizados no que se refere aos mecanismos de atribuição de capacidade e gestão de congestionamentos.

42      O artigo 5.° do mesmo regulamento enuncia os princípios que o operador de transporte é obrigado a respeitar no âmbito da execução desses mecanismos e procedimentos, para garantir que o acesso dos agentes do mercado à rede de transporte é feito em condições não discriminatórias e transparentes. Nos termos do artigo 9.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1775/2005, os princípios do referido artigo 5.° são precisados pelas orientações do anexo desse regulamento.

43      Além disso, decorre do considerando 17 e do artigo 10.°, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1775/2005 que as entidades reguladoras estão obrigadas a respeitar os princípios previstos no artigo 5.° e no anexo do mesmo regulamento, no exercício das suas competências.

44      Daqui resulta que, quando uma entidade reguladora adota, como no processo principal, uma decisão que altera as regras do código de rede relativas à atribuição de capacidade e à gestão dos congestionamentos pelo operador da rede, está obrigada a respeitar os princípios estabelecidos pelo Regulamento n.° 1775/2005 e, em especial, os previstos no seu artigo 5.°, lido em conjugação com o anexo deste regulamento.

45      Quanto à questão de saber se o artigo 5.° do Regulamento n.° 1775/2005, lido em conjugação com o anexo deste regulamento, confere a um operador, como a E.ON Földgáz nas circunstâncias do processo principal, direitos que a entidade reguladora está obrigada a respeitar quando adota uma decisão que altera as obrigações regulamentares impostas ao operador da rede no que se refere aos procedimentos que regulam o acesso a essa rede, há que sublinhar que, na sua qualidade de titular de uma autorização de transporte de gás na rede, a E.ON Földgáz deve ser considerada um utilizador da rede, na aceção do artigo 2.°, n.° 1, ponto 11, do Regulamento n.° 1775/2005. Com efeito, à luz da redação desta disposição, o facto de esse operador ter efetivamente celebrado um contrato com o operador da rede não é pertinente para beneficiar da qualidade de utilizador da rede, na medida em que esta qualidade se refere a todos os clientes ou potenciais clientes do operador da rede.

46      Em seguida, atendendo ao objetivo prosseguido pelo Regulamento n.° 1775/2005, conforme recordado no n.° 41 do presente acórdão, os princípios previstos no artigo 5° desse regulamento, lido em conjugação com o anexo do referido regulamento, devem ser interpretados no sentido de que constituem medidas protetoras previstas no interesse dos utilizadores que pretendem aceder à rede e, por conseguinte, suscetíveis de lhes conferir direitos (v., por analogia, acórdão Tele2 Telecommunication, C‑426/05, EU:C:2008:103, n.° 34).

47      Em especial, no que se refere aos mecanismos de atribuição de capacidade e aos procedimentos de gestão dos congestionamentos, decorre do ponto 2.1.3. do anexo do Regulamento n.° 1775/2005 que esses mecanismos e procedimentos não impedirão a entrada de novos parceiros no mercado nem gerarão obstáculos indevidos à entrada no mercado. Além disso, estes mecanismos não impedirão que os participantes no mercado, incluindo novos operadores e empresas com uma parte de mercado reduzida, concorram de forma eficaz.

48      Decorre das considerações precedentes que um operador, como a E.ON Földgáz nas circunstâncias do processo principal, é titular de certos direitos por força do artigo 5.° do Regulamento n.° 1775/2005, lido em conjugação com o anexo deste regulamento, e deve considerar‑se potencialmente lesado nesses direitos por uma decisão da entidade reguladora que altera as regras do código de rede relativas à atribuição de capacidade e gestão dos congestionamentos.

49      Ora, em conformidade com jurisprudência constante, na falta de regulamentação da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e definir as modalidades processuais das ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União, tendo, todavia, os Estados‑Membros a responsabilidade de assegurar, em cada caso, a proteção efetiva desses direitos (acórdão Mono Car Styling, C‑12/08, EU:C:2009:466, n.° 48 e jurisprudência referida).

50      Assim, embora, em princípio, caiba ao direito nacional determinar a qualidade e o interesse de um litigante em agir judicialmente, o direito da União exige, para além do respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade, que a legislação nacional não afete o direito a uma proteção jurisdicional efetiva, conforme previsto no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (v., neste sentido, acórdão Mono Car Styling, EU:C:2009:466, n.° 49 e jurisprudência referida).

51      Atendendo às considerações precedentes, há que responder às terceira a quinta questões que o artigo 5.° do Regulamento n.° 1775/2005, lido em conjugação com o anexo deste regulamento, e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional sobre o exercício do direito de recurso no órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dos atos de uma entidade reguladora, que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não permite reconhecer a um operador, como a E.ON Földgáz, legitimidade para recorrer de uma decisão dessa entidade relativa ao código de rede.

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

1)      A Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE, cujo prazo de transposição expirava em 3 de março de 2011, designadamente as novas disposições introduzidas no artigo 41.°, n.° 17, da mesma, deve ser interpretada no sentido de que não se aplica a um recurso de uma decisão de uma entidade reguladora, como a que está em causa no processo principal, adotada antes do termo do prazo de transposição e que ainda estava pendente na referida data.

2)      O artigo 5.° do Regulamento (CE) n.° 1775/2005, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de setembro de 2005, relativo às condições de acesso às redes de transporte de gás natural, lido em conjugação com o anexo deste regulamento, e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional sobre o exercício do direito de recurso no órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dos atos de uma entidade reguladora, que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não permite reconhecer a um operador, como a E.ON Földgáz Trad Zrt, legitimidade para recorrer de uma decisão dessa entidade relativa ao código de rede de gás.

Assinaturas


* Língua do processo: húngaro.