Language of document : ECLI:EU:C:2010:611

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 14 de Outubro de 2010 (1)

Processo C‑393/09

Bezpečnostní softwarová asociace – Svaz softwarové ochrany

contra

Ministerstvo kultury

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Nejvyšší správní soud (República Checa)]

«Propriedade intelectual – Directiva 91/250/CEE – Protecção jurídica dos programas de computador – Conceito de ‘expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador’ – Inclusão ou não da interface gráfica do utilizador de um programa – Direitos de autor – Directiva 2001/29/CE – Direito de autor e direitos conexos na sociedade da informação – Radiodifusão televisiva de uma interface gráfica do utilizador – Comunicação de uma obra ao público»





1.        No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a precisar o âmbito da protecção jurídica conferida pelos direitos de autor aos programas de computador, ao abrigo da Directiva 91/250/CEE (2).

2.        As questões submetidas pelo Nejvyšší správní soud (Supremo Tribunal Administrativo) (República Checa) têm por objecto, mais precisamente, a interface gráfica do utilizador de um programa de computador. Esta interface, como veremos, tem a função de estabelecer uma interacção entre este programa e o utilizador. Permite uma utilização mais intuitiva, mais ergonómica do referido programa, por exemplo através da apresentação de ícones ou símbolos no ecrã.

3.        Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se a interface gráfica do utilizador de um programa de computador constitui uma forma de expressão deste programa na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250 e beneficia, assim, da protecção dos direitos de autor aplicável aos programas de computador.

4.        Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a difusão televisiva de tal interface pode ser considerada uma comunicação de uma obra ao público nos termos do artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE (3).

5.        Nas presentes conclusões, indicarei as razões pelas quais considero que a interface gráfica do utilizador não é, em si mesma, uma forma de expressão de um programa de computador na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250 e não pode, por conseguinte, beneficiar da protecção conferida por esta directiva.

6.        De seguida, explicarei por que razão penso que, quando constitui uma criação intelectual do próprio autor, uma interface gráfica do utilizador pode beneficiar da protecção dos direitos de autor enquanto obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29.

7.        Em contrapartida, proporei ao Tribunal de Justiça que declare que a difusão televisiva da interface gráfica do utilizador, porque a faz perder a qualidade de obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29, não constitui uma comunicação da obra ao público na acepção do artigo 3.º, n.º 1, desta directiva.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito internacional

1.      O Acordo ADPIC

8.        O Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, que constitui o Anexo 1 C do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC), assinado em Marrakech em 15 de Abril de 1994, foi aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986‑1994) (4).

9.        Em virtude do artigo 10.º, n.º 1, do Acordo ADPIC, «[o]s programas de computador, quer sejam expressos em código fonte ou em código objecto, serão protegidos enquanto obras literárias ao abrigo da Convenção de Berna (1971)».

2.      Tratado sobre Direito de Autor

10.      O Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre Direito de Autor (a seguir «TDA»), adoptado em Genebra em 20 de Dezembro de 1996, foi aprovado em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2000/278/CE do Conselho, de 16 de Março de 2000 (5).

11.      O artigo 4.º do TDA prevê que «[o]s programas de computador são protegidos como obras literárias na acepção do artigo 2.º da Convenção de Berna. Essa protecção aplica‑se aos programas de computador, independentemente do seu modo ou forma de expressão».

12.      O TDA não define o conceito de programa de computador. Porém, durante os trabalhos preparatórios os membros signatários acordaram na seguinte definição: um programa de computador corresponde a uma série de comandos capazes de, quando inseridos num suporte assimilável pelo computador, conduzir um computador que tenha capacidade de tratamento a indicar, a realizar ou a executar uma determinada função, tarefa ou resultado (6).

B –    Direito da União

1.      Directiva 91/250

13.      A Directiva 91/250 tem por objectivo harmonizar as legislações dos Estados‑Membros no domínio da protecção jurídica dos programas de computador, definindo um nível mínimo de protecção (7).

14.      Assim, o sexto considerando da referida directiva precisa que o enquadramento jurídico da União de protecção dos programas de computador pode, numa primeira fase, limitar‑se a determinar que os Estados‑Membros devem conceder protecção aos programas de computador ao abrigo dos direitos de autor, considerando‑os como obras literárias, determinando subsequentemente quem e o que deve ser protegido, os direitos exclusivos que as pessoas protegidas podem invocar para poderem autorizar ou proibir certos actos e qual a duração da protecção.

15.      O artigo 1.º da Directiva 91/250 tem a seguinte redacção:

«1.      De acordo com o disposto na presente directiva, os Estados‑membros estabelecerão uma protecção jurídica dos programas de computador, mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras literárias, na acepção da Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas. Para efeitos da presente directiva, a expressão ‘programas de computador’ inclui o material de concepção.

2.      Para efeitos da presente directiva, a protecção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador. As ideias e princípios subjacentes a qualquer elemento de um programa de computador, incluindo os que estão na base das respectivas interfaces, não são protegidos pelos direitos de autor ao abrigo da presente directiva.

3.      Um programa de computador será protegido se for original, no sentido de que é o resultado da criação intelectual do autor. Não serão considerados quaisquer outros critérios para determinar a sua susceptibilidade de protecção.»

2.      Directiva 2001/29

16.      A Directiva 2001/29 tem por objectivo a protecção jurídica do direito de autor e dos direitos conexos no âmbito do mercado interno, com especial ênfase na sociedade da informação (8).

17.      A referida directiva é aplicável sem prejuízo das disposições existentes relativas, nomeadamente, à protecção jurídica dos programas de computador (9).

18.      O artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29 refere que os Estados‑Membros devem prever que cabe aos autores o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, directas ou indirectas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, para as suas obras.

19.      Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, desta directiva, «[o]s Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido».

C –    Direito nacional

20.      A Directiva 91/250 foi transposta para a ordem jurídica checa pela Lei n.° 121/2000 sobre o direito de autor, sobre os direitos conexos e sobre a alteração de determinadas leis (zákon č. 121/2000 o právu autorském, o právech souvisejících s právem autorským a o změně některých zákonů), de 7 de Abril de 2000 (10).

21.      Por força do artigo 2.º, n.º 1, desta lei, o direito de autor tem por objecto qualquer obra literária e qualquer outra obra artística resultado da criação do autor, expressa sob qualquer forma objectivamente perceptível, incluindo sob forma electrónica, permanente ou provisória, independentemente do seu âmbito, da sua finalidade ou da sua importância.

22.      O artigo 2.º, n.º 2, da referida lei indica que um programa de computador é igualmente considerado uma obra se for original, no sentido de que é o resultado da criação intelectual do autor.

23.      Segundo o artigo 65.º, n.º 1, da Lei sobre o direito de autor, um programa de computador, seja qual for a sua forma de expressão, incluindo os elementos preparatórios de concepção, é protegido enquanto obra literária. O artigo 65.º, n.º 2, desta lei precisa que as ideias e os princípios em que assenta qualquer elemento de um programa de computador, incluindo os que constituam o fundamento da sua conexão com outro programa, não são protegidos pela referida lei.

II – Factos e litígio no processo principal

24.      Por requerimento apresentado em 9 de Abril de 2001 ao Ministerstvo kultury e alterado por carta datada de 12 de Junho de 2001, a Bezpečnostní softwarová asociace – Svaz softwarové ochrany (Associação para a protecção do software, a seguir «BSA») solicitou uma autorização para a gestão colectiva dos direitos de autor patrimoniais sobre os programas de computador, em aplicação do artigo 98.º da Lei sobre o direito de autor.

25.      O Ministerstvo kultury indeferiu este requerimento por decisão de 20 de Julho de 2001. Assim, a BSA interpôs recurso desta em 6 de Agosto de 2001, recurso ao qual foi também negado provimento por decisão de 31 de Outubro de 2001.

26.      A BSA interpôs recurso desta decisão de 31 de Outubro de 2001 no Vrchní soud v Praze (Tribunal Superior de Praga). O Nejvyšší správní soud, ao qual o processo foi remetido, anulou a referida decisão.

27.      Por conseguinte, o Ministerstvo kultury adoptou uma nova decisão em 14 de Abril de 2004, pela qual indeferiu de novo o pedido da BSA. Esta última interpôs recurso administrativo desta nova decisão no Ministerstvo kultury. Por decisão de 22 de Julho de 2004, a decisão de 14 de Abril de 2004 foi revogada.

28.      O Ministerstvo kultury adoptou, por fim, uma nova decisão em 27 de Janeiro de 2005 pela qual indeferiu, mais uma vez, o requerimento da BSA. Indicou, nomeadamente, que a Lei sobre o direito de autor protege exclusivamente o código objecto e o código fonte de um programa de computador, mas de modo algum a interface gráfica do utilizador. A BSA interpôs recurso administrativo desta decisão no Ministerstvo kultury. Uma vez que este recurso foi indeferido por decisão de 6 de Junho de 2005, a BSA interpôs recurso no Městský soud v Praze (tribunal municipal de Praga), que confirmou a posição do Ministerstvo kultury. A BSA interpôs recurso da decisão do Městský soud v Praze no Nejvyšší správní soud.

III – Questões prejudiciais

29.      Por ter dúvidas relativamente à interpretação das disposições do direito da União, o Nejvyšší správní soud decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 91/250 […] deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da protecção de direitos de autor atribuída aos programas de computador enquanto obras de autor [nos termos desta directiva], a interface gráfica do utilizador é uma ‘expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador’ ou de uma parte dele?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: uma emissão televisiva, em que se permite que o público tenha uma percepção sensorial da interface gráfica do utilizador de um programa de computador ou de uma parte dela, embora o programa não possa ser activamente controlado, constitui uma comunicação ao público de uma obra ou de parte dela na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2001/29 […]?»

IV – Análise

A –    Quanto à competência do Tribunal de Justiça

30.      No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio destaca o facto de que poderia ser‑lhe oponível a incompetência do Tribunal de Justiça para responder às questões que coloca.

31.      Com efeito, os factos do litígio no processo principal são anteriores à data da adesão da República Checa à União Europeia.

32.      Ora, segundo jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça só é competente para interpretar as directivas no que se refere à sua aplicação num novo Estado‑Membro a partir da data da adesão deste último à União (11).

33.      Todavia, o Tribunal de Justiça, no acórdão de 14 de Junho de 2007, Telefónica O2 Czech Republic (12), salientou que a decisão recorrida no processo principal era posterior à data da adesão do Estado‑Membro à União, que a mesma regulava uma situação para o futuro e não para o passado e que o juiz nacional questionava o Tribunal de Justiça sobre a legislação da União aplicável ao litígio no processo principal. De seguida, indicou que, dado que as questões prejudiciais respeitam à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça decide sem que, em princípio, tenha de averiguar as circunstâncias em que os órgãos jurisdicionais nacionais foram levados a submeter‑lhe questões e se propõem aplicar a disposição do direito da União cuja interpretação solicitam (13).

34.      No processo que deu lugar a este acórdão, apesar de os factos do litígio terem ocorrido antes da data da adesão da República Checa à União, a decisão recorrida no processo principal era posterior a esta adesão (14). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça considerou que era competente para decidir sobre as questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

35.      No presente processo, deparamo‑nos com a mesma situação. Com efeito, vimos que a primeira decisão do Ministerstvo kultury foi proferida em 20 de Julho de 2001, ou seja, antes da data da adesão da República Checa à União. Após diversos requerimentos da BSA, indeferidos pelo Ministerstvo kultury, este aprovou uma nova decisão em 27 de Janeiro de 2005, que indeferiu, de novo, o requerimento da BSA.

36.      A BSA, como tivesse impugnado, sem sucesso, esta nova decisão no Ministerstvo kultury, interpôs recurso no Městský soud v Praze tendente à sua anulação.

37.      Este último confirmou a posição do Ministerstvo kultury, pelo que a BSA interpôs, assim, recurso no Nejvyšší správní soud.

38.      Por conseguinte, trata‑se de uma decisão posterior à data da adesão da República Checa à União, a saber a decisão de 27 de Janeiro de 2005, que é objecto do litígio no processo principal.

39.      Além disso, esta decisão tem por objectivo regular uma situação para o futuro, visto que o propósito da BSA é a gestão colectiva dos direitos de autor patrimoniais sobre os programas de computador, e as questões prejudiciais têm por objecto a interpretação de disposições do direito da União.

40.      Consequentemente, tendo em conta estes elementos, considero que o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

B –    Quanto à primeira questão prejudicial

41.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se a interface gráfica do utilizador é uma forma de expressão de um programa de computador na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250 e beneficia, assim, da protecção pelo direito de autor atribuída aos programas de computador.

42.      A dificuldade do juiz de reenvio no presente processo decorre do facto de esta directiva não conter uma definição do conceito de programa de computador. A questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio induz‑nos, na realidade, a interrogar‑nos sobre o objecto e o alcance da protecção conferida pela referida directiva.

43.      Para responder a esta questão, devemos interrogar‑nos, em primeiro lugar, sobre o âmbito deste conceito na acepção da Directiva 91/250 de modo a poder determinar, em seguida, se a interface gráfica do utilizador é uma forma de expressão do referido conceito.

44.      Após ter examinado o conceito de programa de computador, apresentarei as razões pelas quais penso que a interface gráfica do utilizador não é uma forma de expressão de um programa de computador na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250, pelo que não pode beneficiar da protecção conferida por esta directiva. Seguidamente, explicarei por que, na minha opinião, esta interface é susceptível de ser protegida pelas normas gerais do direito de autor.

1.      Quanto ao conceito de programa de computador

45.      O artigo 1.º, n.º 1, da Directiva 91/250 indica que os programas de computador são protegidos pelo direito de autor enquanto obras literárias. Esta directiva não contém qualquer definição do conceito de programa de computador, limitando‑se a indicar que esta compreende igualmente o material de concepção preparatório (15).

46.      A inexistência de definição resulta da vontade expressa do legislador da União. Na proposta de directiva (16), a Comissão das Comunidades Europeias precisa, com efeito, que «[f]oi recomendado por peritos na matéria que qualquer definição numa directiva do que constitui um programa se tornaria necessariamente obsoleta na medida em que a tecnologia futura alterará a natureza dos programas tal como são actualmente conhecidos» (17).

47.      Todavia, embora o legislador da União se recuse a incluir o conceito de programa de computador numa definição que poderia ser rapidamente ultrapassada, a Comissão fornece‑nos, nesta proposta de directiva, elementos úteis. Assim, é referido que este conceito designa um conjunto de instruções com o objectivo de levar um instrumento de processamento, um computador, a executar as suas funções (18). A Comissão indica igualmente que no presente estádio da técnica, considera‑se que o termo programa deve englobar a expressão sob qualquer forma, linguagem, notação ou código de um conjunto de instruções, com o fim de levar um computador a desempenhar uma determinada tarefa ou função (19).

48.      A Comissão acrescenta que este termo engloba todas as formas de programa, quer inteligíveis pelo homem quer legíveis pela máquina, a partir dos quais foi ou pode ser criado o programa que leva a máquina a desempenhar a sua função (20).

49.      Na realidade, a Comissão visa, neste contexto, os elementos literais que estão na base do programa de computador, isto é o código fonte e o código objecto. Com efeito, na origem de um programa de computador, existe o código fonte, redigido pelo programador. Este código, constituído por palavras, é inteligível ao espírito humano. No entanto, não é executável pela máquina. Para esse efeito, deve ser compilado para ser traduzido na língua da máquina sob uma forma binária, na maior parte dos casos, os números 0 e 1. É o que se denomina por código objecto.

50.      Por conseguinte, estes códigos representam a caligrafia do programa de computador, numa linguagem inicialmente compreensível ao espírito humano, e, depois, compreensível à máquina. Os códigos são a expressão da ideia do programador e, nestes termos, não há qualquer dúvida de que beneficiam da protecção do direito de autor conferida pela Directiva 91/250.

51.      De resto, esta constatação é confirmada pela letra do artigo 10.º, n.º 1, do Acordo ADPIC, que prevê que os programas de computador, quer sejam expressos em código fonte ou em código objecto, serão protegidos enquanto obras literárias ao abrigo da Convenção de Berna.

52.      A questão que se coloca, presentemente, é a de saber se a interface gráfica do utilizador, que é o resultado, no ecrã, do programa de computador, constitui uma forma de expressão deste programa e beneficia, assim, da protecção conferida pela Directiva 91/250.

2.      Quanto ao conceito de «expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador»

53.      No décimo considerando da Directiva 91/250, refere‑se que a função de um programa de computador é comunicar e trabalhar com outros componentes de um sistema de computador e com os utilizadores. Para este efeito, é necessária uma interconexão e uma interacção lógica e, quando necessário, física, no sentido de permitir o funcionamento de todos os elementos do suporte lógico e do equipamento com outros suportes lógicos e equipamentos e com os utilizadores. Seguidamente, precisa‑se que as partes do programa que permitem tal interconexão e interacção entre os componentes de um sistema são geralmente conhecidas como interfaces (21).

54.      No domínio informático, a interface reveste, portanto, diversas formas que podem ser agrupadas em duas categorias, a saber as interfaces físicas e as interfaces lógicas ou de software. As interfaces físicas englobam, nomeadamente, o material como o ecrã do computador, o teclado ou ainda o rato.

55.      As interfaces de software englobam as interfaces de interconexão, internas ao software e que permitem o diálogo com outros elementos do sistema informático, e as interfaces de interacção, das quais faz parte a interface gráfica do utilizador.

56.      Com efeito, a interface gráfica do utilizador, vulgarmente denominada «look and feel», permite uma comunicação entre o programa e o utilizador. Trata‑se, por exemplo, dos ícones e dos símbolos visíveis no ecrã, das janelas ou, ainda, do menu deslizante. Permite uma interacção entre o programa e o utilizador. Esta interacção pode consistir na simples difusão de informações, mas pode igualmente permitir ao utilizador comunicar instruções ao programa de computador através da utilização de comandos. É o caso, por exemplo, de um ficheiro agarrado com o rato e deslocado para o lixo ou dos comandos «copiar» e «colar» de um programa de tratamento de texto.

57.      Pelas razões que indicarei mais adiante, não penso que uma interface gráfica do utilizador seja uma forma de expressão de um programa de computador e que possa beneficiar da protecção jurídica conferida aos programas de computador.

58.      O objectivo que a Directiva 91/250 visa atingir é proteger os programas de computador de qualquer reprodução que não tenha sido autorizada pelo titular do direito (22).

59.      Na minha opinião, a especificidade do direito de autor aplicável ao programa de computador reside no facto de que, contrariamente às restantes obras protegidas por este direito que fazem directamente apelo aos sentidos da pessoa humana, o programa de computador tem uma finalidade utilitária e é, por conseguinte, protegido enquanto tal.

60.      Com efeito, vimos no n.º 47 das presentes conclusões que o programa de computador designa a expressão de um conjunto de instruções que tem por objecto permitir a um computador a execução de uma tarefa ou de uma função específica.

61.      Além disso, penso que, seja qual for a forma de expressão de um programa de computador, esta forma deve ser protegida a partir do momento em que a sua reprodução provocaria a reprodução do próprio programa de computador, permitindo, assim, que o computador cumpra a sua função. Na minha opinião, é o sentido que o legislador da União pretendeu dar ao artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250.

62.      Além disso, esta é a razão pela qual o material de concepção preparatório, quando conduz à elaboração de tal programa, é igualmente protegido pelo direito de autor aplicável ao programa de computador (23).

63.      Este material pode abranger, por exemplo, uma estrutura ou um organigrama elaborado pelo programador, susceptíveis de ser novamente transcritos em código fonte e em código objecto, permitindo, assim, à máquina a execução do programa de computador (24). Este organigrama elaborado pelo programador poderia ser comparado ao argumento de um filme.

64.      Assim, considero que o conceito de expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador visa as formas de expressão que, uma vez exploradas, permitem que o programa de computador execute a tarefa para a qual foi criado.

65.      Ora, a simples interface gráfica do utilizador não pode produzir este resultado, dado que a sua reprodução não acarreta a reprodução do próprio programa de computador. Além disso, é possível que programas de computador com códigos fonte e objecto diferentes tenham a mesma interface. Portanto, a interface gráfica do utilizador não implica a divulgação do programa de computador. Tem apenas a utilidade de tornar a sua utilização mais fácil e mais ergonómica.

66.      No meu entender, a interface gráfica do utilizador não é, por conseguinte, uma forma de expressão de um programa de computador, na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250.

67.      Admitir o contrário poderia ter a consequência de conferir uma protecção a um programa de computador, e, por conseguinte, ao seu código fonte e ao seu código objecto, apenas porque a interface gráfica do utilizador foi reproduzida, sem que tenha sequer sido verificada a originalidade dos códigos que a constituem, o que violaria manifestamente o artigo 1.º, n.º 3, desta directiva que prevê que «[u]m programa de computador será protegido se for original, no sentido em que é o resultado da criação intelectual do autor».

68.      Por estas razões, sou da opinião que a interface gráfica do utilizador não é uma forma de expressão de um programa de computador na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da referida directiva e que, assim, não pode beneficiar da protecção conferida pela Directiva 91/250.

69.      Todavia, não considero que semelhante interface nunca possa ser protegida.

3.      A protecção da interface gráfica do utilizador pelas normas gerais do direito de autor

70.      Embora a interface gráfica do utilizador não possa ser considerada expressão de um programa de computador e não possa, por conseguinte, ser protegida enquanto tal, considero que é, todavia, susceptível de beneficiar da protecção do direito de autor aplicável a toda a obra literária e artística, ao abrigo do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29.

71.      Segundo a jurisprudência desenvolvida no acórdão de 16 de Julho de 2009, Infopaq International (25), o direito de autor é aplicável a um objecto que seja original, no sentido de que é o resultado da criação intelectual do autor (26).

72.      No meu entender, não há qualquer dúvida que a interface gráfica do utilizador é susceptível de ser uma criação intelectual.

73.      A realização de tal interface exige um esforço intelectual considerável por parte do seu autor, como é o caso de um livro ou de uma partitura de música. A interface gráfica do utilizador esconde, com efeito, uma estrutura complexa desenvolvida pelo programador (27). Este último utiliza uma linguagem de programação que, estruturada de uma determinada forma, permite obter um comando especial, por exemplo, o «copiar‑colar», ou ainda uma acção, tal como o clicar duas vezes numa pasta para a abrir ou o clicar num ícone para reduzir a janela que se encontra aberta.

74.      Porém, embora a interface gráfica do utilizador exija um esforço intelectual, é necessário ainda, nos termos do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29, que seja, para retomar a expressão do Tribunal de Justiça, um objecto original no sentido de que é o resultado da criação intelectual do autor (28).

75.      A dificuldade quanto à determinação da originalidade da interface gráfica do utilizador deve‑se ao facto de a maioria dos elementos que a compõem terem um objectivo funcional, uma vez que visam facilitar a utilização do programa de computador. Assim, a forma de exprimir estes elementos só pode ser limitada, dado que, como a Comissão indicou nas suas observações escritas (29), a expressão resulta da função técnica que os referidos elementos desempenham. É o caso, por exemplo, do rato que se desloca no ecrã e que é direccionado para um comando de modo a activá‑lo ou, ainda, do menu deslizante que aparece quando se encontra aberto um ficheiro de tratamento de texto.

76.      Neste caso, parece‑me que o critério da originalidade não se encontra preenchido, porque as diferentes formas de executar uma ideia são tão limitadas que a ideia e a expressão se confundem. Caso esta possibilidade existisse, tal teria por efeito conferir um monopólio a certas sociedades no mercado dos programas de computador, pondo, assim, um travão considerável à criação e à inovação neste mercado, o que contrariaria o objectivo da Directiva 2001/29 (30).

77.      Assim, penso que, na sua apreciação casuística, o juiz nacional deverá verificar se, face às escolhas do seu autor, às combinações que criou e à apresentação da interface gráfica do utilizador, esta é uma expressão da criação intelectual do próprio autor, excluindo desta apreciação os elementos cuja expressão resulta da sua função técnica.

78.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, considero que a interface gráfica do utilizador não é uma forma de expressão de um programa de computador na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250 e que, assim, não pode beneficiar da protecção conferida por esta directiva. Em contrapartida, quando constitui uma criação intelectual do próprio autor, a interface gráfica do utilizador beneficia da protecção conferida pelo direito de autor enquanto obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29.

C –    Quanto à segunda questão prejudicial

79.      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se a difusão televisiva de uma interface gráfica do utilizador constitui uma comunicação da obra ao público, na acepção do artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29.

80.      Na audiência que teve lugar em 2 de Setembro de 2010, as partes apresentaram alguns exemplos de difusão, num ecrã de televisão, de uma interface gráfica do utilizador. Pode tratar‑se, nomeadamente, da afixação no ecrã, quando da difusão de uma emissão sobre eleições, de um quadro com os resultados destas.

81.      O juiz de reenvio duvida que tal interface possa ser objecto de uma comunicação ao público na acepção do artigo 3, n.º 1, da Directiva 2001/29, dado que esta interface é difundida no ecrã televisivo de forma passiva, sem que os telespectadores possam utilizar a referida interface ou mesmo aceder ao computador ou a outro equipamento que esta permita comandar.

82.      Na minha opinião, a simples difusão televisiva de uma interface gráfica do utilizador não é uma comunicação da obra, na acepção dos artigos 2.º, alínea a), e 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29.

83.      Com efeito, vimos no n.º 56 das presentes conclusões que a interface gráfica do utilizador tem por objecto permitir uma interacção entre o programa de computador e o utilizador. A razão de ser de tal interface é assegurar que a utilização deste programa se torne mais fácil para o utilizador.

84.      A interface gráfica do utilizador distingue‑se, por conseguinte, das outras obras protegidas pelas normas gerais do direito de autor devido à sua natureza particular. A originalidade daquela reside na sua apresentação, na sua forma de comunicar com o utilizador, como a possibilidade de comandar botões ou, ainda, de abrir janelas.

85.      Ora, quando esta interface é difundida no ecrã de televisão, a mesma perde o seu carácter original devido ao facto de o elemento essencial que a constitui, a saber esta interacção com o utilizador, ser impossível.

86.      Assim, privada do elemento essencial que a caracteriza, a interface gráfica do utilizador já não corresponde à definição de obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29. Por conseguinte, já não é a obra que o organismo de difusão difunde nos ecrãs de televisão e comunica ao público.

87.      Por estas razões, considero que a difusão televisiva da interface gráfica do utilizador, porque a faz perder a qualidade de obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29, não constitui uma comunicação da obra ao público na acepção do artigo 3.º, n.º 1, desta directiva.

V –    Conclusão

88.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma ao Nejvyšší správní soud:

«1)      A interface gráfica do utilizador não é uma forma de expressão de um programa de computador na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1991, relativa à protecção jurídica dos programas de computador e, por conseguinte, não pode beneficiar da protecção conferida por esta directiva.

2)      Quando constitui uma criação intelectual do próprio autor, a interface gráfica do utilizador beneficia da protecção conferida pelo direito de autor enquanto obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação.

3)      A difusão televisiva da interface gráfica do utilizador, porque a faz perder a qualidade de obra na acepção do artigo 2.º, alínea a), da Directiva 2001/29, não constitui uma comunicação da obra ao público na acepção do artigo 3.º, n.º 1, desta directiva.»


1 – Língua original: francês.


2 – Directiva do Conselho, de 14 de Maio de 1991, relativa à protecção jurídica dos programas de computador (JO L 122, p. 42).


3 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO L 167, p. 10).


4 – JO L 336, p. 1, a seguir «Acordo ADPIC».


5 – JO L 89, p. 6.


6 – V. definição dada pela OMPI nas suas disposições‑tipo sobre a protecção dos programas de computador no sítio Internet da OMPI (http://www.wipo.int/edocs/mdocs/copyright/en/wipo_ip_cm_07/wipo_ip_cm_07_www_82573.doc).


7 – V. primeiro, quarto e quinto considerandos desta directiva.


8 – V. artigo 1.°, n.° 1, desta directiva.


9 – V. artigo 1.°, n.° 2, alínea a), da Directiva 2001/29.


10 – 121/2000 Sb., a seguir «Lei sobre o direito de autor».


11 – V., nomeadamente, acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Ynos (C–302/04, Colect., p. I‑371, n.° 36 e jurisprudência aí referida).


12 – C‑64/06, Colect., p. I 4887.


13 – N.os 21 e 22, bem como a jurisprudência aí referida.


14 – N.os 19 e 20.


15 – O sétimo considerando da referida directiva indica que, «para efeitos da presente directiva a expressão ‘programa de computador’ inclui qualquer tipo de programa, mesmo os que estão incorporados no equipamento; que esta expressão inclui igualmente o trabalho de concepção preparatório conducente à elaboração de um programa de computador, desde que esse trabalho preparatório seja de molde a resultar num programa de computador numa fase posterior».


16 – Proposta de directiva do Conselho relativa à protecção jurídica dos programas de computador (JO 1989, C 91, p. 4, a seguir «proposta de directiva»).


17 – V. artigo 1.°, n.° 1, primeiro parágrafo, constante da segunda parte da proposta de directiva, sob a epígrafe «Disposições especiais».


18 – V. n.° 1.1 constante da primeira parte da proposta de directiva, sob a epígrafe «Aspectos Gerais». V., igualmente, nota de pé de página 6.


19 – V. artigo 1.°, n.° 1, segundo parágrafo, constante da segunda parte da proposta de directiva.


20 – V. artigo 1.°, n.° 1, segundo parágrafo, constante da segunda parte da proposta de directiva.


21 – V. décimo primeiro considerando desta directiva.


22 – V. primeiro e segundo considerandos desta directiva.


23 – V. sétimo considerando desta directiva e n.° 1.1 constante da primeira parte da proposta de directiva.


24 – Para uma síntese da elaboração de um programa informático, v. Caron, C., Droits d’auteur et droits voisins, 2e Edição, Litec, Paris, 2009, pp. 134 e 135, assim como Strowel, A., e Derclaye, E., Droit d’auteur et numérique: logiciels, bases de données, multimédia: droit belge, européen et comparé, Bruylant, Bruxelles, 2001, pp. 181 e 182.


25 – C‑5/08, Colect., p. I‑6569.


26 – N.° 37.


27 – Para um exemplo de criação de uma interface gráfica, v. sítio Internet http://s.sudre.free.fr/Stuff/Interface.html.


28 – V. acórdão Infopaq International, já referido (n.° 37).


29 – V. n.os 36 e 37.


30 – V. segundo e quarto considerandos desta directiva.